TRIBUNAL ARBITRAL
INSUFICIÊNCIA DE MEIOS ECONÓMICOS
Sumário

1- O princípio da competência dos tribunais arbitrais para decidirem da sua própria competência, aqui se incluindo a possibilidade de conhecimento das limitações no acesso à justiça arbitral em razão da situação económica do demandante, determina que a excepção de preterição do tribunal arbitral só não deva proceder se for manifesta a inexequibilidade da convenção de arbitragem, face à constatação evidente da impossibilidade definitiva e não imputável à parte de recorrer ao tribunal arbitral, em razão da sua situação económica.
2- A diferente capacidade económica da A. que se possa verificar, entre o momento da celebração do contrato de distribuição (com convenção de arbitragem) por tempo indeterminado e o momento em que a A. recorre a juízo para fazer valer o seu direito a indemnização de clientela, é uma situação normalmente previsível, estando a diminuição dessa mesma capacidade económica, decorrente da cessação do contrato por vontade exclusiva da R., prevista pelos riscos próprios do mesmo, o que afasta a aplicação do art.º 437º do Código Civil à referida convenção de arbitragem.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
M., Ld.ª intentou acção declarativa com processo comum contra F., S.p.A. Soc. Unipersonale, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de €354.168,47, acrescida de juros de mora.
Alega, em síntese, que:
. Foi celebrado em Junho de 2002 um contrato de distribuição que tinha por objecto a distribuição, em Portugal, de um conjunto de produtos denominados produtos Z.;
. Em 2006 a A. substituiu a sociedade de direito nacional outorgante nesse contrato e em 2012 a R. substituiu a sociedade de direito suíço também outorgante nesse contrato, mantendo-se a relação de distribuição regulada pelo referido contrato;
. Em Março de 2014 a relação comercial de distribuição passou a ser regulada por contrato de distribuição celebrado com a R. e por tempo indeterminado, continuando a A. nos termos desse contrato a distribuir os produtos Z. e passando também a distribuir em Portugal os produtos da marca F. P., designados produtos F.;
. Por carta datada de 19/5/2016 a R. comunicou à A. a denúncia do contrato, tendo a A. manifestado à R. a sua intenção de receber uma indemnização de clientela, por carta de 23/5/2017, correspondente ao valor peticionado.
Citada, a R. veio contestar, aí invocando, para além do mais, a excepção dilatória da preterição de tribunal arbitral, e alegando que:
. Quer o contrato de Junho de 2002, quer o contrato de Março de 2014, contêm cláusulas de resolução de conflitos que as partes previram para o caso de surgir qualquer controvérsia ou diferendo quanto aos mesmos;
. No contrato de Março de 2014 prevê-se que
Este Acordo deverá ser regulado e interpretado de acordo com a lei Italiana com a expressa exclusão da Convenção de Viena de 1980 relativa à compra e venda internacional de mercadorias.
Todos os litígios, controvérsias ou pretensões emergentes ou relacionadas com este acordo deverão ser discutidos pelo Fornecedor e Distribuidor com o objetivo de resolverem amigavelmente tais litígios, controvérsias ou pretensões. Caso tais esforços falhem no alcançar de tal resolução, qualquer uma das partes pode notificar por escrito a outra de que, caso o litígio não esteja resolvido dentro de 30 dias após a receção de tal notificação, pretende prosseguir para a arbitragem.
Caso a matéria em litígio ou em questão não possa ser resolvida pelas partes dentro 30 dias após a notificação acima referida, qualquer litígio emergente ou relacionado com este acordo deverá ser definitivamente resolvido de acordo com as regras de arbitragem da câmara de comércio internacional por um ou mais árbitros nomeados nos termos de tais regras. A arbitragem deverá ter lugar em Bolonha, Itália e deverá ser conduzida em Inglês”;
. Tal cláusula compromissória, inserida no contrato de 2014, foi livre e esclarecidamente subscrita por ambas as partes, sendo a mesma demonstrativa da real vontade destas em submeter à arbitragem todo e qualquer litígio emergente ou relacionado com o contrato de distribuição celebrado.
Conclui pela sua absolvição da instância.
Em resposta a A. aceita a existência da cláusula compromissória invocada pela R. mas alega encontrar-se em situação de insuficiência económica e, nessa medida, estar objectivamente impossibilitada de suportar e custear as despesas relacionadas com a constituição e funcionamento do tribunal arbitral e que ascendem ao valor mínimo de €37.774,34, já que a relação de distribuição com a R. era a sua principal fonte de receita, e sendo que com a cessação do contrato praticamente não exerce qualquer tipo de actividade, encontrando-se totalmente desprovida dos meios financeiros adequados e necessários para o efeito e não tendo capacidade de gerar qualquer receita. Mais invoca que a sua situação de insuficiência económica em razão do fim do contrato corresponde a uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes estabeleceram a convenção de arbitragem, a qual implicou uma lesão significativa para a A., traduzida no sacrifício do seu direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais. Conclui pela improcedência da excepção dilatória em questão.
A R. pronunciou-se sobre a questão da insuficiência económica da A., designadamente alegando que a situação invocada não é fundamento para, à luz da Convenção de Nova Iorque, afastar a cláusula compromissória, e reafirmando a procedência da excepção dilatória por si invocada.
Foi então proferida decisão final que, no reconhecimento da excepção dilatória invocada pela R., julgou o tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido, absolvendo a R. da instância.
A A. recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A. A Douta Sentença recorrida julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria por preterição de tribunal arbitral, tendo, em consequência, absolvido a Recorrida da presente instância.
B. Na referida Sentença, o Tribunal a quo julgou improcedente a contra-excepção invocada pela Recorrida, de acordo com o qual deveria a convenção arbitral ser julgada inexequível em virtude da insuficiência económica da Recorrente, motivadora da aplicação do disposto no art.º 790, n.º 1 do CC por impossibilidade objectiva de cumprimento das obrigações dela decorrentes, ou, subsidiariamente, do disposto no art.º 437, n.º 1 do mesmo diploma, por verificação dos pressupostos de uma alteração anormal das circunstâncias.
C. Contudo, o Tribunal a quo incorreu, desde logo, em erro no julgamento de facto relativo à insuficiência económica da ora Recorrente. Nessa medida, impõe-se uma modificação do facto implicitamente dado como não provado relativamente à situação económica da Recorrente, e sua substituição pelo seguinte facto provado: A Autora encontra-se em situação de insuficiência económica que não decorre de facto que lhe seja imputável.
D. O douto Tribunal a quo incorreu em erro na aplicação do disposto no art.º 790, n.º 1 do CC, uma vez que, da prova junta aos autos resulta cabalmente demonstrada (i) a impossibilidade de cumprimento da obrigação de submissão do presente litígio à arbitragem, bem como (ii) a não imputabilidade à Recorrente de tal impossibilidade.
E. Tal impossibilidade objectiva resulta, em primeiro lugar, da circunstância de o Regulamento da CCI não dispor de mecanismo cabal que permita à Recorrente iniciar o processo arbitral sem ter os meios necessários para o fazer.
F. Nomeadamente, por o processo apenas poder ser iniciado com o pagamento de uma taxa de US$5.000,00, nos termos do artigo 1.º, n.º 1 do Regulamento CCI; e
G. E, bem assim, contrariamente ao entendimento adoptado pelo Tribunal a quo, pelo facto de o art.º 37, n.º 5 do Regulamento CCI não ser susceptível de assegurar o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva da Recorrente, já que caso a Recorrida entenda não dever adiantar a totalidade dos custos necessários à continuação do processo arbitral, ficará aquela impedida de fazer valer a sua pretensão, em qualquer foro, por insuficiência de meios económicos, o que consubstancia uma situação inadmissível que colide frontalmente com o princípio vertido no art.º 20, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
H. Ademais, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, a denúncia do Contrato de Distribuição celebrado entre Partes conduziu a uma situação de impossibilidade objectiva de cumprimento da convenção de arbitragem enxertada naquele contrato.
I. A insuficiência económica decorrente da denúncia contratual, por se tratar do exercício de um direito potestativo da Recorrida, consubstancia um facto externo à convenção arbitral, não imputável à Recorrente.
J. Na avaliação da bondade da contra-excepção invocada pela Recorrente, o Tribunal a quo absteve-se de ponderar o conflito de direitos e interesses legalmente protegidos existente entre, de um lado, a autonomia privada (cfr. art.º 26, n.º 1 e 61.º, n.º 1, ambos da CRP), e, de outro, o direito de acesso aos tribunais e à justiça (cfr. art.º 20, n.º 4 da CRP), o que determinou que a Sentença que ora se impugna seja atentatória do direito à tutela jurisdicional efectiva do Recorrente.
K. A Recorrente cumpriu o ónus que sobre ela impendia de alegar e provar os factos subjacentes à sua débil situação financeira, que resulta da análise da sua escrituração mercantil, extractos de contas bancárias e do Relatório de Avaliação de Risco e do despacho da Segurança Social juntos aos autos.
L.A certificação legal de contas apenas é exigível para as sociedades por quotas que cumpram, pelo menos, dois dos três requisitos previstos no art.º 262, n.º 2 do CSC, o que não é o caso da Recorrente.
M. Não obstante, sempre se dirá que mesmo a ausência de “documentos contabilísticos certificados” - que o Tribunal a quo considerou essencial para prova da insuficiência económica -, não obstou a que a Recorrente visse deferido o seu pedido de apoio judiciário, situação que o douto Tribunal a quo nunca poderia sindicar.
N. O deferimento do pedido de apoio judiciário mais não é do que a confirmação de que, perante a análise da factualidade constante dos autos, a Recorrente está, efectivamente, perante uma situação de elevada debilidade financeira que a impossibilita de custear o presente processo judicial e, por maioria de razão, o processo arbitral, cujos encargos ascendem, no mínimo, a € 37.774,37 para uma arbitragem cujo valor seja de € 371.944,82, assumindo que o tribunal é composto por um árbitro único.
O. Ora, a impossibilidade de suportar os encargos do processo arbitral culmina com a inexequibilidade da convenção arbitral, configurando, consequentemente, uma excepção ao dever de os Estados Contratantes da CNI remeterem o litígio para a arbitragem, em conformidade com o disposto no n.º 3 do art.º 2 da CNI. Pelo que o Tribunal a quo interpretou e aplicou erroneamente a CNI, nomeadamente o seu artigo 2.º, n.º 3.
P. Por outro lado, ao fazer impender sobre a Recorrente o ónus de prova da inexistência de quaisquer outras contas bancárias em Portugal ou no estrangeiro, Tribunal a quo violou o princípio da proporcionalidade e, consequentemente, o princípio da proibição da indefesa previsto no art.º 20, n.º 1 da CRP.
Q. Face ao exposto, deve concluir-se que se encontram verificados os pressupostos do art.º 790, n.º 1 do CC, encontrando-se a Recorrida numa situação de impossibilidade de cumprimento da convenção arbitral que não lhe é imputável.
R. Não obstante, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que estão verificados os pressupostos de que depende o instituto da alteração de circunstâncias previsto no art.º 437, n.º 1 do CC.
S. Contrariamente ao momento da aprovação do primeiro plano de recuperação, não existem actualmente as mesmas perspectivas de recuperação da actividade económica da Recorrente: note-se que, em 2014, a Recorrente havia celebrado o Contrato de Distribuição com a Recorrida; actualmente, é certo que contrato com semelhante impacto económico venha a ser celebrado.
A R. apresentou alegação de resposta, aí concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Novo Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, tal como se encontram delimitada pelas aludidas conclusões, prendem-se com:
. A alteração da matéria de facto;
. A declaração de inexequibilidade da convenção de arbitragem;
. A aplicação do instituto da alteração das circunstâncias.

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Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da excepção dilatória em questão:
1. Em 6/3/2014 A. e R. outorgaram um contrato que denominaram de “Acordo de Parceiro de Distribuição”, com o teor traduzido que consta do documento junto com o requerimento de 7/1/2019 (fls. 322v. a 329) e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. Desse contrato consta, além do mais, a cláusula 25 com a epígrafe “Lei aplicável e jurisdição competente” tendo o seguinte teor:
(…) Todas as disputas, controvérsias e reclamações decorrentes ou em ligação com este acordo deverão ser debatidas pelo Fornecedor e pelo Distribuidor com o objectivo de as solucionar de forma amigável. Se tais esforços falharem na obtenção de uma resolução, cada parte pode notificar a outra por escrito e declarar que, se essa disputa não ficar solucionada dentro de 30 dias depois da recepção dessa notificação, deseja recorrer à arbitragem.
Se a matéria em disputa ou questão não puder ser resolvida pelas partes dentro de 30 dias depois da notificação acima referida, qualquer disputa decorrente ou em ligação com este acordo deverá ser finalmente solucionada ao abrigo das regras de arbitragem da câmara internacional de comércio, por um ou mais árbitros designados de acordo com as referidas regras. A arbitragem deverá ter lugar em Bolonha, Itália e deverá ser conduzida em inglês”.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nºs 1 e 2, todos do Novo Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido nº 1 do art.º 640º do Novo Código de Processo Civil, refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 126 a 129):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) (…)
d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto”.
E, mais adiante, afirma a rejeição, total ou parcial, do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto”, designadamente quando se verifique a “falta de especificação, nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos alegados pelas partes, quer os que constituem a causa de pedir, quer aqueles que sustentam as excepções invocadas (e sem prejuízo do disposto no nº 2 do art.º 5º do Novo Código de Processo Civil).
Ou seja, é no confronto do elenco de factos provados e não provados com os factos alegados pelas partes que o recorrente que pretende impugnar a decisão relativa à matéria de facto deve dar cumprimento à exigência de especificação acima referida, indicando cada um dos concretos pontos de facto que, sendo integrantes da causa de pedir ou de cada uma das excepções alegadas, mereciam decisão diversa daquela tomada pelo tribunal recorrido, e sob pena de rejeição dessa impugnação.
Por outro lado, da decisão da matéria de facto deve ser expurgada matéria conclusiva, matéria de direito e matéria factual sem qualquer relação com a causa de pedir e/ou as excepções invocadas.
E como tais limites devem estar igualmente presentes na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso, mas igualmente decorram do confronto entre o elenco de factos provados e não provados, retirados dos factos alegados pelas partes e daqueles não essenciais que decorreram da instrução da causa, assim se respeitando o disposto no referido art.º 5º do Novo Código de Processo Civil.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, constata-se que a A. apenas conclui que deve ser dado como provado que “a Autora encontra-se em situação de insuficiência económica que não decorre de facto que lhe seja imputável”.
No elenco de factos provados não se afirma a matéria em questão, não havendo igualmente afirmação de factualidade não provada, onde a mesma matéria esteja incluída.
E não se afirma tal matéria porque corresponde a meros juízos conclusivos, os quais se retiram (ou não) de factualidade concreta e relativa à actividade da A.
E como os juízos conclusivos não se integram na vertente fáctica da causa de pedir, antes representando o termo final do silogismo judiciário, estão os mesmos excluídos da decisão da matéria de facto.
Ou seja, na perspectiva da impugnação da decisão da matéria de facto, a pretendida inclusão da matéria identificada no elenco de factos provados mais não representa que um acto sem qualquer relevo para os fins visados (a alteração da decisão relativa à factualidade relevante para a excepção dilatória invocada pela R.) e, por isso, inútil, assim se concluindo pela desnecessidade de valoração dos concretos meios de prova identificados no corpo da alegação, nesta parte.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, indefere-se a inclusão da matéria identificada no elenco dos factos provados.
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Da declaração de inexequibilidade da convenção de arbitragem
Na decisão recorrida sustentou-se a exequibilidade da convenção de arbitragem pela seguinte forma:
De acordo com o nº 3 do artigo 2º da Convenção [de Nova Iorque de 1958], o Tribunal do Estado Contratante só não remeterá as Partes para arbitragem quando constatar que a convenção caducou, se tornou inexequível ou é insuscetível de aplicação.
No caso em apreço não está manifestamente em causa a caducidade da providência, pelo que, a convenção seria afastada se se tornou inexequível ou insuscetível de aplicação.
É conhecida a problemática na interpretação da parte final desta cláusula, sendo que por respeito ao direito internacional, a interpretação terá de ser a mais conforme possível aos diferentes estados signatários.
A doutrina e a jurisprudência internacionais têm vindo a afastar a inexequibilidade da convenção de arbitragem por questões de incapacidade económica de uma das partes, existindo mecanismos dentro da própria Câmara de Comércio Internacional – vide artigo 37º nº 5 do Regulamento de Arbitragem – que permitem que a incapacidade económica não obste a que uma determinada parte dê início ao procedimento.
Importa aferir se esta interpretação mais restritiva é sustentável à Luz do direito português. Nesse processo decisório haverá que atender que de acordo com a Constituição da Republica Portuguesa “As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”- artigo 8º nº 2, prevendo igualmente e reconhecendo que a função jurisdicional poderá ser por força da Lei atribuída a “formas de composição não jurisdicional de conflitos” – artigo 202º nº 4. Daqui resulta desde logo que é por força da Constituição que o Estado Português aceita estar vinculado às normas constantes de convenções internacionais, sendo o próprio legislador constitucional a reconhecer a arbitragem nacional ou internacional como uma forma de composição de conflitos. Neste sentido, o direito de acesso ao direito e aos tribunais constitucionalmente consagrado no artigo 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, terá de ser sopesado no confronto com estes normativos igualmente de natureza constitucional – artigos 16º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
Alegou a A. que se encontrava em situação de insuficiência económica, sendo que em face desta insuficiência se encontra impossibilitada de cumprir a cláusula compromissória a que se vinculou.
Apreciando a cláusula compromissória na sua vertente obrigacional, dispõe o artigo 790º nº 1 do Código Civil “a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”, incumbindo à luz do artigo 342º nº 2 do mesmo diploma legal in casu à A. alegar e provar que a obrigação se tornou impossível e que tal impossibilidade não lhe é imputável.
Desde logo a A. não alegou que a eventual impossibilidade não lhe era imputável. Com efeito a circunstância da R. ter resolvido o contrato que vigorava entre as partes, não pode ser fundamento para a A. incumprir de forma que lhe não é imputável as obrigações que assumiu. Tal seria impor um ónus excessivo à parte que pretendia exercer o direito à resolução de um contrato, na medida em que do exercício desse direito sempre resultaria para a parte contrária uma impossibilidade “quase objetiva” de cumprir as obrigações a que se havia vinculado no âmbito do contrato que por essa via findava. Acresce que a A. não podia desconhecer que o contrato foi celebrado por tempo indeterminado, pelo que teria de contar que pudesse ocorrer uma resolução do mesmo, a qualquer prazo.
No que à concreta situação de insuficiência económica respeita, a mesma não ficou igualmente demonstrada nos autos. Tal como a R. bem salienta os documentos juntos pela A. não são idóneos a concluir pela concreta e efetiva situação económica da A.. Os documentos contabilísticos juntos não se mostram certificados e as informações quanto a saldos bancários só seriam determinantes se a A. tivesse alegado e provado que não tinha contas bancárias em qualquer outra instituição bancária em Portugal ou no estrangeiro.
A este respeito importa referir que é a própria A. que alega no artigo 70º da Petição Inicial que “por força da crise no mercado português, com conhecimento e autorização da R. vendeu ainda sete parques em Angola”, sendo os investimentos e negócios em Angola e Moçambique que sustentaram o último PER a que a A. se apresentou, como o Tribunal pode constatar por consulta do mesmo.
Assim podemos concluir que a A. não logrou provar nos autos encontrar-se em situação económica que por causa que lhe não é imputável a impossibilitem de cumprir a cláusula compromissória a que livre, consciente e esclarecidamente se vinculou.
Esta conclusão levaria à improcedência da contra exceção.
No entanto, a este respeito o Tribunal tem que tecer algumas considerações em face da decisão de concessão do benefício de apoio judiciário à A. ao abrigo da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, cujo escopo é o “assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, (…) por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos”. Em face do teor do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 242/2018, de 7 de Junho, fica, em nosso entender, prejudicada neste momento qualquer discussão quanto à concessão às sociedades comerciais do benefício de apoio judiciário, de modo a que lhes seja assegurado o acesso ao direito e aos tribunais constitucionalmente consagrada no artigo 20º da Constituição da Republica Portuguesa, porém, como acima referimos há-que sopesar os efeitos desta decisão no âmbito do direito internacional a que o Estado Português se vinculou.
Com efeito, a decisão de concessão do benefício de apoio judiciário, de natureza administrativa, “é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização” – artigo 6º nº 2 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, junto dos Tribunais portugueses. Mas será que derroga por si as normas de direito internacional, nomeadamente, a constante no nº 3 do artigo 2º da Convenção de Nova Iorque de 1958, na interpretação que lhe é dada pelo direito internacional.
A nossa resposta é negativa.
O princípio da confiança é um princípio imanente às relações entre Estados e entre particulares, neste sentido e tendo como acima referimos as Convenções e o recurso a formas não jurisdicionais de resolução de conflitos reconhecimento constitucional, a par do direito de acesso ao direito e aos tribunais judiciais, entendemos que não poderá ser uma norma de âmbito estritamente de direito interno a derrogar as normas de direito internacional. Com isto diremos que não é a circunstância de à A. ter sido concedido o benefício de apoio judiciário para litigar nos tribunais portugueses que faz presumir para efeitos de afastamento da cláusula compromissória a sua situação de insuficiência económica. Para o Tribunal afastar a convenção de arbitragem teria a A. de ter nos presentes autos alegado e provado a situação de insuficiência económica que sem culpa sua a impedia de cumprir a convenção a que se obrigou, o que como referimos não fez.
Pelo que também com este fundamento improcede a contra exceção”.
Na sua alegação de recurso a A. sustenta que se encontra numa situação de insuficiência económica, tal como decorre, não só da concessão do benefício do apoio judiciário, como igualmente dos documentos contabilísticos e bancários que apresentou.
Mais invoca que tal situação não lhe é imputável porque representa uma consequência da cessação da relação contratual existente entre as partes, nos termos promovidos pela R.
E, nessa medida, a exequibilidade da convenção de arbitragem celebrada com a R. estaria afastada.
Ou seja, a A. não coloca em crise a existência de uma convenção de arbitragem.
Do mesmo modo, não coloca em crise a aplicação do disposto no nº 3 do art.º 2º da Convenção de Nova Iorque de 1958, no sentido dos tribunais judiciais portugueses estarem obrigados a não conhecer de litígio sobre questão relativamente à qual tenha sido celebrada uma convenção de arbitragem, devendo remeter as partes para a arbitragem, excepto se declararem a inexequibilidade dessa convenção.
Todavia, porque entende que, face à concreta situação económica em que se encontra, há que afirmar a inexequibilidade da convenção de arbitragem outorgada com a R., conclui pela competência dos tribunais judiciais para o julgamento do litígio mantido com a R.
E, para sustentar tal entendimento, convoca o acórdão 311/2008 do Tribunal Constitucional, publicado no DR série II de 1/8/2008, que “julga inconstitucional a norma do artigo 494.º, alínea j), do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de considerar a excepção de violação de convenção de arbitragem oponível à parte em situação superveniente de insuficiência económica, justificativa de apoio judiciário, no âmbito de um litígio que recai sobre uma conduta a que, eventualmente, seja de imputar essa situação”.
Com efeito, nesse acórdão ficou afirmado que “essa efectivação [“das consequências intencionadas pelo exercício da liberdade de acção dos sujeitos, de que o negócio jurídico é instrumento, na esfera das relações jurídicas”] não pode ser isolada dos referentes normativos de protecção constitucional de outros direitos ou valores, em cujo âmbito de previsão a situação também, prima facie, se integra, e que são susceptíveis de com ela colidir.
(…) No caso sub judice, foi dada como comprovada a impossibilidade de o recorrido arcar com as custas judiciais, por insuficiência de meios económicos. Para efectivação do direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses (artigo 20.º, n.º 1, da CRP), estava, pois, em condições de beneficiar de apoio judiciário que, efectivamente, lhe foi concedido, na modalidade de apoio total, na acção por ele instaurada no tribunal judicial. A competência deste tribunal foi, todavia, impugnada pelo recorrente, réu nessa acção, com base na prévia estipulação de uma cláusula compromissória, que pretende ver integralmente executada.
Não estando prevista a atribuição de apoio judiciário nos tribunais arbitrais, o cumprimento estrito desse acordo coloca o recorrido numa situação de indefesa. A situação conflituante nasce, precisamente, da impossibilidade de satisfação simultânea dos direitos pertinentemente invocados, ambos com tutela constitucional: o de liberdade negocial, como expressão da autodeterminação, a qual impõe a observância dos efeitos vinculativos do seu exercício sem vícios; o de tutela jurisdicional efectiva, que, nas circunstâncias concretas, aponta no sentido da inexigibilidade da sujeição a esses efeitos”.
Ou seja, a referência à situação de indefesa parte do pressuposto da inaplicabilidade do instituto do apoio judiciário nos tribunais arbitrais.
Só que, no presente caso, não é certo que a invocada situação de insuficiência económica da A. seja, sem mais, impeditiva do recurso a tribunal arbitral.
Com efeito, e como se refere na decisão recorrida, do art.º 37º do Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional decorre que, se após o recebimento do requerimento inicial, o Secretário-geral pode solicitar ao requerente da arbitragem que faça um adiantamento da provisão para os custos da arbitragem (nº 1), igualmente decorre que o montante de qualquer provisão para os custos da arbitragem pode ser reajustado a qualquer momento durante a arbitragem, podendo ainda a contraparte efectuar o pagamento da parcela da provisão não paga (nº 5).
Do mesmo modo, o nº 6 do art.º 1º do apêndice III (relativo a custas e honorários da arbitragem) do referido Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional refere a possibilidade de pagamento em prestações da provisão ou da parcela de qualquer uma das partes.
O que equivale a concluir que o referido Regulamento contém normas suficientemente abertas para contemplar situações de incapacidade económica da parte demandante, do modo a não impedir o acesso à justiça (arbitral) em caso de verificação dessa situação.
Ou seja, a jurisprudência do Tribunal Constitucional não é, sem mais, transponível para o caso dos autos, desde logo porque aqui está em causa uma situação de arbitragem internacional que, na sua concreta configuração, não conduz “automaticamente” a uma situação de indefesa da A.
Acresce que, como já concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 20/1/2011 (relatado por Álvaro Rodrigues e disponível em www.dgsi.pt), “vigora, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência (…) e que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral”, mais concluindo que “apenas nos casos em [que] for manifesta a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção”.
Do mesmo modo, concluiu igualmente o Supremo Tribunal de Justiça, no seu recente acórdão de 12/11/2019 (relatado por Pedro de Lima Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt), que “os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação”.
Ou seja, num caso em que não esteja em causa a validade formal da convenção de arbitragem nem a sua aplicação ao litígio concretamente existente entre as partes, só se desde logo resultar das regras de funcionamento do tribunal arbitral que a questão da impossibilidade do demandante suportar os custos com a arbitragem, por insuficiência de meios económicos, constitui impedimento no acesso ao mesmo tribunal, é que se pode afirmar que é manifesto e incontroverso que a convenção de arbitragem é inexequível, devendo, então, essa inexequibilidade ser reconhecida no tribunal judicial e mais impedindo a procedência da excepção da preterição de tribunal arbitral.
Caso contrário, o tribunal judicial deve respeitar o princípio da competência dos tribunais arbitrais para decidirem da sua própria competência (entendida a mesma em sentido lato, como compreendendo igualmente a possibilidade de conhecimento das limitações no acesso à justiça arbitral em razão da situação económica do demandante), abstendo-se de decidir sobre essa questão enquanto sobre a mesma não se pronunciar o tribunal arbitral.
Neste mesmo sentido o Supremo Tribunal de Justiça afirmou já, no seu acórdão de 26/4/2016 (relatado por Ana Paula Boularot e disponível em www.dgsi.pt) que “se se admitir, como é possível admitir, que a superveniência de uma situação de debilidade económica é susceptível de constituir uma causa legítima de incumprimento da convenção arbitral, de forma a que a parte afectada possa submeter a apreciação do litígio aos Tribunais estaduais, teremos de concluir, tendo em atenção o principio da competência da competência dos Tribunais Arbitrais, que caberá a estes aferir em sede liminar da aplicabilidade ou inaplicabilidade por motivos financeiros, da cláusula atributiva do foro e se tal decisão for definitiva, no sentido da inaplicabilidade daquela com a consequente incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer da acção, podendo, então, a parte recorrer aos Tribunais judiciais para fazer valer o(s) seu(s) direito(s)”.
Por outro lado, e quanto à afirmada (e verificada) concessão do apoio judiciário à A., como argumento para considerar a impossibilidade de recurso à justiça arbitral, é certo que no referido acórdão de 12/11/2019 do Supremo Tribunal de Justiça igualmente se concluiu que “a insuficiência económica superveniente, e sem culpa, da parte para custear as despesas com a convenção de arbitragem, fará com que a excepção de preterição de tribunal arbitral não se lhe possa opor, porquanto conduziria a uma situação de denegação de justiça (e de acesso aos tribunais) e à consequente violação do disposto no artigo 20º, nº1, da CRP”. Mas igualmente se concluiu que “a mera concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, sem qualquer outra alegação de insuficiência económica superveniente e sem culpa da parte, não é suficiente para afastar a procedência da excepção de preterição do tribunal arbitral”.
Todavia, o apoio judiciário da A. foi concedido já após a propositura da acção, e tendo a mesma pago a taxa de justiça devida pela apresentação da P.I., no valor máximo da tabela respectiva (16 UC, ou seja, €1.632,00).
Acresce que o apoio judiciário foi concedido na modalidade de dispensa do pagamento de taxas de justiça e demais encargos com o processo, não compreendendo a nomeação e pagamento da compensação de patrono. E a A. tem mandatários constituídos, o que faz pressupor a existência de meios económicos bastantes da mesma para o pagamento dos honorários respectivos.
Ou seja, não é possível afirmar que só com recurso à concessão do benefício do apoio judiciário é que a A. logrou exercer o seu direito constitucionalmente garantido de acesso ao direito. Pelo que, por esta via não é possível concluir que a A. ficou definitivamente impossibilitada de recorrer aos tribunais (arbitrais ou judiciais) por razões económicas.
O que equivale a afirmar que continua a ser necessária a demonstração da recusa manifesta de conhecimento do litígio por parte do tribunal arbitral, assente nas referidas razões económicas, já que esta é a única situação que permite a imediata declaração de inexequibilidade da convenção de arbitragem por esta ordem de tribunais judiciais, em detrimento da competência do tribunal arbitral para decidir tal questão.
Isso mesmo decorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/6/2016 (relatado por Fernandes do Vale e disponível em www.dgsi.pt), quando conclui que “I - Ao apreciar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, devem os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insusceptível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada. II - Manifesta inexistência (nulidade, ineficácia ou inexequibilidade) é aquela que não necessita de mais prova para ser apreciada, afastando, à partida, qualquer alegação de vícios da vontade na celebração do contrato e deixando ao tribunal judicial apenas a consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade”.
Do mesmo modo, decorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/3/2018 (relatado por Henrique Araújo e disponível em www.dgsi.pt) que “os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção invocada é nula ou ineficaz ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.
Alcança-se, deste modo, com o indispensável respaldo legal, uma solução de compromisso entre o princípio da autonomia privada, corporizado na legítima escolha das partes quanto à desjudicialização de conflitos (mediante recurso à instância arbitral), e a possibilidade de os tribunais judiciais apreciarem uma manifesta inexistência ou invalidade da convenção arbitral, quando confrontados com uma demanda em que tal convenção exista.
Assim, o tribunal judicial só poderá deixar de proferir decisão a absolver da instância se for manifesta a invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da cláusula.
Como refere Menezes Cordeiro, o termo ‘manifestamente’, empregue na norma do artigo 5º, n.º 1, da LAV, tem de ser interpretado com o sentido de “dispensar a produção de prova, para se alcançar a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade””.
No caso dos autos os elementos integrantes da insuficiência económica, e que foram invocados pela A. para concluir pela impossibilidade de dar cumprimento à convenção de arbitragem, são tudo menos manifestos (ou cabais, na expressão da A.), no sentido de fazer afirmar, por um lado, que correspondem a uma impossibilidade definitiva (na medida em que a alteração da situação económica de uma sociedade comercial em actividade não pode deixar de ser considerada como temporária, tendo presente o seu escopo lucrativo) e, por outro lado, que não é imputável à sua conduta (desde logo porque não podia a A. deixar de conhecer as consequências da cessação da relação contratual mantida com a R. e a possibilidade da mesma ocorrer a todo o tempo, por ter sido o contrato celebrado por tempo indeterminado, assistindo-lhe então o dever de prevenir tal possibilidade, em obediência ao princípio da boa fé que decorre do art.º 762º do Código Civil).
Ou, dito de outra forma, a informação contabilística e financeira que se retira dos extractos bancários e dos balancetes apresentados pela A. não é bastante para fazer concluir que a situação económica da A. se degradou de forma permanente, irreversível e fora do controlo da mesma, ao ponto de a impedir, de forma definitiva e sem culpa sua, de ter meios suficientes para dar cumprimento à convenção de arbitragem, para a resolução do litígio que mantém com a R.
O que equivale a afastar a verificação de qualquer situação manifesta de impossibilidade de acesso aos tribunais (judiciais ou arbitrais) em razão da insuficiência económica da A., quer porque a sua conduta processual contradiz essa conclusão, quer porque dos elementos documentais constantes dos autos não se pode retirar tal conclusão.
E, assim, improcedem as conclusões do recurso da A., no sentido da correspondente declaração de inexequibilidade da convenção de arbitragem.
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Da aplicação do instituto da alteração das circunstâncias
 Como bem se refere na decisão recorrida, decorre do art.º 437º do Código Civil o direito da parte lesada à resolução do contrato ou à modificação do mesmo segundo juízos de equidade, se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, e desde que a exigência das obrigações assumidas pelas mesmas afecte gravemente, os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
A aplicação deste instituto à convenção de arbitragem é defendida pela A., por entender que a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar corresponde à modificação da sua situação económica e financeira, decorrente da cessação das relações comerciais mantidas com a R.
Como se refere no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (Volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, pág. 413), em anotação ao referido art.º 437º, “Alude a lei, no entanto, aos seguintes requisitos: a) Que haja alteração anormal das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar. É preciso que essas circunstâncias se tenham modificado. (…) A lei não exige (…) que a alteração seja imprevisível, mas o requisito da anormalidade conduzirá praticamente quase aos mesos resultados (…)”.
Ou seja, a alteração anormal das circunstâncias é aquela que as partes não lograram prever, apresentando-se assim como imprevisível.
Do mesmo modo o Supremo Tribunal de Justiça já deixou expresso, como no seu acórdão de 30/3/2017 (relatado por João Trindade e disponível em www.dgsi.pt), que “o regime do art.º 437.º/1 afasta, desde logo, aqueles casos em que a alteração das circunstâncias é coberta pelos riscos próprios do contrato, se a disciplina estiver no seu conteúdo, é de acordo com esta que o caso concreto se resolve. (…)
Para que seja possível a resolução ou, ao menos, a modificação das cláusulas do contrato fundada na alteração anormal das circunstâncias é necessário: (i) que a alteração ocorrida não seja o desenvolvimento previsível de uma situação conhecida à data da celebração do contrato e (ii) que essa alteração torne o cumprimento da obrigação ofensivo dos princípios da boa fé”.
No caso dos autos está em causa a celebração de uma convenção de arbitragem no âmbito de um contrato de distribuição, através da qual as partes contratantes se comprometem a recorrer ao tribunal arbitral para a resolução de todos os litígios “decorrentes ou em ligação” com o contrato, e mais decorrendo que, por esse contrato, celebrado por tempo indeterminado, a A. assumiu a obrigação de comprar produtos da R. e revendê-los em território nacional, em regime de exclusividade, assumindo a R. a obrigação de vender à A. tais produtos, igualmente em exclusividade para o território nacional.
Há então que afirmar, a partir do programa contratual estabelecido, que a evolução da actividade comercial da A. passou a estar ligada à quantidade e qualidade dos negócios (compras para revenda) concretamente efectuados entre as partes, no quadro previsto no contrato de distribuição.
Mais se pode afirmar que essa evolução era susceptível de poder terminar a todo o tempo, uma vez que o contrato de distribuição foi celebrado por tempo indeterminado.
Ou seja, um dos riscos próprios do contrato era a cessação do mesmo, por vontade exclusiva da R., com a consequente extinção do volume de negócios gerado pela distribuição exclusiva dos produtos da R. em território nacional.
Por outro lado, decorre que é dessa cessação do contrato, por vontade exclusiva da R., que surge o eventual direito da A. a uma indemnização de clientela, a exercitar pela via arbitral, em respeito pela convenção de arbitragem.
O que equivale a afirmar que era previsível, ao tempo da celebração da convenção de arbitragem, um decréscimo do volume de negócios da A. decorrente da cessação do contrato que viesse a ser unilateralmente declarada pela R.
Do mesmo modo, há que afirmar que tal situação está prevista pelos riscos próprios do contrato, atenta a sua natureza de contrato‑programa ou contrato‑quadro, a vigorar por tempo indeterminado. Aliás, só assim tem sentido afirmar a existência do invocado direito à indemnização de clientela, por corresponder à cobertura patrimonial do referido risco, do lado da A.
Pelo que não estão preenchidos os pressupostos a que alude o art.º 437º do Código Civil, para concluir que a convenção de arbitragem incluída no contrato em questão deve ser dada sem efeito, assim se extinguindo a obrigação da A. recorrer à justiça arbitral para exercitar o seu direito emergente desse contrato.
Ou seja, não é porque a A. se encontra sujeita a plano de recuperação homologado em sede de PER, quer ao tempo da celebração do contrato, quer ao tempo em que recorre a juízo, que se deve afirmar que inexiste qualquer alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar (na consideração da igualdade de capacidade económica num e no outro momento), mas sim porque a diferente capacidade económica que se possa verificar num e no outro momento era normalmente previsível, estando a diminuição da mesma prevista pelos riscos próprios do contrato celebrado entre as partes.
Pelo que, também nesta parte, improcedem as conclusões do recurso da A.
O que equivale a afirmar que, na improcedência total das conclusões do recurso da A., não merece qualquer censura a decisão recorrida que verificou a eficácia da convenção de arbitragem em questão e absolveu a R. da instância, por verificação da excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 5 de Março de 2020
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Lúcia Sousa