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LIVRANÇA
ASSINATURA
IMPUGNAÇÃO
PROVA PERICIAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário
1. A prova pericial determinada em consequência do seu objecto convocar especiais conhecimentos técnicos aprestadas a essa finalidade, não autoriza um juízo de substituição pelo tribunal quanto à conclusão retirada pelos peritos. 2. A conclusão extraída no relatório pericial, segundo a qual a assinatura “pode ter sido” do punho do embargante, queda-se no domínio de uma mera possibilidade, não chegando a completar-se o grau de provável, presumível e plausível da realidade do facto em questão. 3. Pelo que, desamparada de outro suporte fáctico de verosimilhança, designadamente na prova pessoal produzida, não permite sufragar a convicção de que a assinatura contestada do título exequendo é da autoria do embargante. 4. A inversão do ónus da prova na situação de impugnação da assinatura constante de documento particular, radica numa razão de natureza de direito substantivo documental, não se prendendo com as dificuldades práticas da prova de factos negativos.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
A. Itinerário da Instância M… - Sociedade Financeira de Crédito, SA impetrou contra P…, acção executiva para pagamento de quantia certa, juntando a livrança de que é portadora, no valor de Euros 13.029,23, cujo pagamento reclama em fundamento do aval nela prestado à subscritora Adelgas, Ld.ª.
Citado o executado, deduziu os presentes embargos de executado. Em síntese, impugna a assinatura por não ser do seu punho, que consta do aval da livrança bem como a assinatura na qualidade de avalista aposta no contrato de Aluguer de Longa Duração de veículo automóvel, do seu inteiro desconhecimento. Pugna assim pela extinção da execução e mais requereu a suspensão dos autos até ao conhecimento de mérito dos embargos.
Na contestação a exequente e embargada manteve o peticionado.
Não admitiu a invocada falsidade das assinaturas, uma vez que foram efectuadas na presença de um funcionário da Santogal, Lda., empresa fornecedora do veículo, opondo-se à suspensão da execução e concluiu pela improcedência dos embargos.
Foi proferido despacho que indeferiu o pedido de suspensão, seguiu-se a realização de audiência prévia, na qual se proferiu despacho de saneamento dos autos e fixação dos temas de prova, determinando-se a realização de exame pericial à letra.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e subsequente sentença que julgou procedentes os embargos e assim extinta a execução.
Inconformada a embargante interpôs recurso da sentença.
Nas suas alegações motivou a discordância do julgado e formulou as conclusões que seguem. Denotando as mesmas incipiente delimitação entre os fundamentos da impugnação de facto e os fundamentos da impugnação de direito, acabou por se desconsiderar a prolação de despacho de aperfeiçoamento por economia de actos. [1]
I. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, em sede de embargos de executado, a qual julgou procedentes os embargos de executado e declarou extinta a ação principal de execução.
II. O objeto do litígio dos embargos de executado resumiu-se a aferir se a assinatura constante na respetiva livrança tinha sido aposta pelo Recorrido.
III. A sentença ora recorrida entendeu que não resultou provado que a assinatura constante na livrança tinha sido aposta pelo Recorrido.
IV. Face à alegação da falsificação da assinatura, inverteu-se o ónus da prova, nos termos do artigo 374.º, n.º 2 do CC, cabendo à Recorrente provar que a assinatura aposta na livrança pertence ao Recorrido.
V. O Recorrido, bem como os demais intervenientes do contrato de aluguer de longa duração, facultou à Recorrente todos os elementos de identificação e respetivos documentos, figurando estes no dito contrato.
VI. A sentença ora recorrida colheu e valorou o argumento apresentado pelo Recorrido que os seus documentos pessoais se encontravam depositados na empresa e estavam à disposição da mesma.
VII. Assumindo a veracidade de tal facto, sucede que, o Recorrido, confrontado com tal situação, ou seja, a utilização indevida dos seus documentos de identificação, não praticou qualquer ato associado a tal prática ilícita, isto é, a apresentação da respetiva participação criminal, conforme resultou das suas declarações de parte.
VIII. Acresce que, este argumento utilizado pelo Recorrido tem uma amplitude tão genérica como a imaginação humana. (…) Para o efeito, é necessário que o executado demonstre que efetivamente existiu uma atuação ilícita, por parte de terceiros, e que este não a aceita, apresentando uma participação criminal para demonstrar tal facto.
IX. A atuação do Recorrido só evidencia que tal argumento não corresponde à verdade, ou que este se conformou e aceitou tal alegada atuação ilícita, responsabilizando-se pela mesma.
X. Em sede de alegações finais, o Recorrente bem salientou a ausência de participação final, mas o Tribunal a quo não fez qualquer menção a tal facto na avaliação da prova produzida nos autos.
XI. Como elemento de prova, foi elaborado um relatório pericial, por comparação documental e presencial, à assinatura da livrança e do contrato, tendo este concluído: “Um exame comparativo, de ordem geral, não revela diferenças que apontem para a proveniência de punhos diferentes ”“A observação da escrita das assinaturas contestadas de P…, no seu aspeto geral, por si só, não releva qualquer indício de falsificação grosseira” (destacado nosso) “Considera-se que a escritura das assinaturas contestadas de P…, aposta nos documentos identificados como C1 e C2, podem ter sido (1) produzida pelo seu punho”.
XII. Por fim, é importante salientar que o relatório pericial classificou como 55% provável que a assinatura da livrança tenha sido efetuada pelo Recorrido, ou seja, favorável à posição da Recorrente.
XIII. A perícia é a atividade de avaliação dos factos relevantes realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos e tem lugar quando a perceção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
XIV. O princípio da livre apreciação da prova "não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objetivável e motivável", conforme referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-11-1998.
XV. O próprio Tribunal a quo refere no seu despacho saneador, proferido em 06-03-2019, existirem flagrantes semelhanças entre a assinatura aposta no título executivo e a que consta dos documentos apresentados pelo Recorrido.
XVI. Atendendo ao supra exposto, é evidente que a perícia, enquanto prova científica foi “desvalorizada” pelo Tribunal a quo, tendo, dentro da livre apreciação da prova dos Tribunais, existido um excesso de arbítrio do Tribunal a quo.
XVII. Veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães proferido em 07-06-2018, no âmbito do processo n.º 3/14.8TJVNF.G25 (…) VIII. No humilde entendimento da Recorrente, o Tribunal a quo valorou, em demasia, a prova testemunhal produzida nos autos, em detrimento da prova pericial, principalmente quando a testemunha em causa era a então cônjuge do Recorrido.
XIX. Ora, a opinião de terceiros, nomeadamente do cônjuge do Recorrido, sobre a genuinidade da assinatura não pode relevar quando nos autos já existe um parecer técnico quanto à mesma matéria. XX. Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 06-07- 2017, no âmbito do processo n.º 590/12.5JDLSB.L1-96: (…)
XXI. O facto das restantes testemunhas não se lembrarem do Recorrido e do contrato de aluguer de longa duração em apreço não poderá relevar como ter existido uma falsificação da assinatura, uma vez é normal que as testemunhas não se recordem de um cliente em concreto e de factos que ocorreram há 3 anos (2016), não podendo tais elementos serem utilizados para demonstrar que a assinatura aposta na livrança não é do ora recorrido.
XXII. O Tribunal a quo baseou igualmente a sua decisão nas declarações de parte do Recorrido, sendo referido na sentença ora recorrida que “à data em que tal negócio terá sido concretizado, sem qualquer intervenção sua, se encontrava a trabalhar em Moçambique”.
XXIII. Ora, tal facto não corresponde à verdade. Veja-se que a transcrição presente no ficheiro denominado “20190404120505_4004004_2871357 “, a partir do minuto 02:19 até 02:52: Tribunal – “Este contrato terá sido assinado em janeiro de 2016… 25 de janeiro! Nessa altura o senhor estaria em moçambique, estaria em Portugal…” recorrido – “na altura em que fui confrontado com este processo a minha primeira preocupação foi exatamente verificar isso. E foi a data do processo, portanto desse contrato digamos assim. Dois dias antes de eu sair do país. Eu saí 26 ou 27 de janeiro…” Tribunal – “em 25 de janeiro efetivamente estava no país…” Recorrido – “correto!”
XXIV. Assim, à data de celebração do contrato de aluguer de longa duração, i.e. 25-01-2016, encontrava-se em Portugal, uma vez que só foi para Moçambique em 27-01-2016, pelo que este poderia ter assinado o contrato e livrança nessa data. XXV. Nestes termos, o fio de raciocínio do Tribunal a quo que motivou a decisão ora recorrida, perdeu-se quando o Recorrido atestou, em viva voz, que se encontrava em Portugal nessa data.
XXVI. Face ao exposto, tendo a prolação da sentença ora recorrida se baseado, certamente por mero lapso, em factos incorretos, estes deverão ser retificados, com vista à correta valoração de todas as provas produzidas nos autos.
XXVII. Apesar da inversão do ónus da prova operada através do artigo 374.º, n.º 2 do CC, a Recorrente fez tudo o que estava ao seu alcance para reunir as provas suficientes que demonstrassem que o Recorrido assinou o contrato de aluguer de longa duração e a respetiva livrança.
XXVIII. Acresce que, não obstante o Recorrido ter alegado a falsificação da sua assinatura e de ter fortes suspeitas do S…, este não apresentou qualquer participação criminal contra o mesmo ou contra incertos.
XXIX. Por outras palavras, o Recorrido alegou a existência de uma falsificação de assinatura, com vista à inversão do ónus da prova, mas não praticou qualquer ato adicional para salvaguardar os seus direitos, conformando-se com tal atuação ilícita (a existir).
XXX. Ora, sem a atuação do Recorrido não é expectável que se apure com 100% de certeza quem alegadamente falsificou a sua assinatura, ficando a Recorrente refém de uma mera alegação de falsificação.
XXXI. Assim, não podia ser exigido à Recorrente a apresentação de mais elementos de prova, sob pena de estarmos perante uma autêntica prova diabólica, tornando-se objetivamente impossível demonstrar o contrário.
XXXII. Nesse sentido e no que à dificuldade da prova diz respeito, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 17-10-2012:“Por outro lado, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur.
XXXIII. A aceitação, sem mais, de uma alegação de falsificação de assinatura irá provocar, sem qualquer dúvida, uma enorme incerteza no comércio jurídico, uma vez que bastará simplesmente um devedor alegar a falsificação da sua assinatura para ficar eximido das responsabilidades previamente assumidas perante o credor.
XXXIV. Ora, os Tribunais, enquanto órgãos de soberania e responsáveis pela aplicação da lei e direito, têm de evitar situações abusivas. In casu, os Tribunais têm de exigir ao alegante de tal falsificação que demonstre uma atuação positiva para demonstrar que efetivamente existiu um ato ilícito.
XXXV. Aproveitando uma situação já ocorrida com o ora signatário, referira-se que a contraparte tinha alegado a falsificação da assinatura num contrato. Confrontada com a hipótese de apresentar queixa-crime contra o seu filho (autor da falsificação), ou assumir a dívida, esta optou por assumir a dívida.
XXXVI. Ora, no caso em apreço, ocorre exatamente o mesmo. A não apresentação de uma participação criminal evidencia que o Recorrido se conformou com tal ato ilícito, não podendo alegar a respetiva falsificação por mera conveniência.
XXXVII. Reforce-se que a Recorrente é uma instituição de renome internacional que em nada beneficiaria com a falsificação das assinaturas dos seus clientes.
XXXVIII. Em suma, todos os factos e provas apontam num sentido. Ou seja, que o Recorrido assinou o respetivo contrato e livrança.
O embargante apresentou contra-alegações, pugnando pela ausência de fundamento da recorrente e a subsistência da sentença.
O recurso foi regularmente admitido como apelação, subida imediata e efeito devolutivo.
Colheram-se os vistos e nada obsta ao conhecimento do recurso.
B. OBJECTO DO RECURSO
São as conclusões que delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem- artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil - salvo em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, não podendo ainda conhecer de questões novas; também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos recursivos, debatendo apenas aqueles que se mostrem relevantes para o conhecimento do recurso, e não resultem prejudicados pela solução preconizada – artigos 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma.
No cotejo das conclusões da apelante resulta que o objecto do recurso demanda a apreciação das seguintes questões:
· Da Impugnação da matéria de facto- no tocante ao estabelecimento da autenticidade ou falsidade da assinatura manuscrita aposta por baixo dos dizeres “bom para aval”, constante do verso da livrança dada à execução é do punho do embargante;
· Do mérito da solução jurídica preconizada pela sentença.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. OS FACTOS.
O Tribunal a quo assentou na seguinte factualidade provada:
1 – Nos autos de execução apensos é título executivo uma livrança, com o nº 50021, com vencimento a 23.05.2017 e o valor de € 13.029,23, emitida a favor do Exequente em 25.01.2016;
2 – Consta da mesma que a subscritora é A…, Lda.;
3 – A referida livrança contém, no verso, no lugar destinado aos avalistas, duas
assinaturas, precedidas das expressões “Bom por aval ao subscritor”.
E, não resultou provado que a assinatura aposta no verso da livrança suprarreferida em 1. como pertencendo ao embargante, na qualidade de avalista, tenha na mesma sido aposta pelo próprio punho deste.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Antes de passar à reapreciação e análise crítica da prova no alcance da convicção própria deste Tribunal, é patente que o desfecho da causa depende inexoravelmente do êxito da prova da autenticidade, ou ex adverso, da prova da falsidade da assinatura do embargante aposta no verso da livrança, na posição de avalista da subscritora.
Em fundamentação do suporte factício da sentença, o Tribunal a quo lavrou o seguinte: “Teve o Tribunal em consideração, para fundar a sua convicção nos moldes supra consignados em 1. a 3., o teor da livrança junta, nos autos principais, ao requerimento executivo. Para dar como não provada a genuinidade da assinatura que o exequente imputa à autoria do embargante, e que consta da livrança em causa, teve o Tribunal em consideração, de forma preponderante, o teor do relatório pericial elaborado a fls. 65 a 260 dos autos, que concluiu simplesmente que a assinatura em causa “pode ter sido” produzida pelo punho do embargante. Ora, para concluir dessa forma, tiveram os Senhores Peritos em consideração o facto de a escrita genuína do embargante (assinatura) apresentar semelhanças com a que consta da livrança, constando de uma e outros elementos característicos semelhantes. Porém, a conclusão a que chegaram os Senhores Peritos encontra-se numa escala de graduação que, por si só, não oferece uma convicção próxima da certeza, já que se situa no patamar imediatamente seguinte à da impossibilidade de formular conclusão, conforme consta da lista de expressões constante de fls. 70, e que se integra no relatório pericial em apreço. Tal meio de prova foi devidamente conjugado com os depoimentos prestados, em audiência de julgamento, pelas testemunhas F..., ex-cônjuge do executado, R…, funcionário do exequente, e H…, vendedor da S…. que interveio no negócio subjacente à emissão da livrança. Ora, quanto a F…, a mesma, de forma espontânea, confrontada com as assinaturas imputadas ao embargante, constantes quer da livrança quer do contrato, afirmou que as mesmas são totalmente divergentes da assinatura genuína deste, a que acresce o facto de nunca, até à citação para a execução, ter tido conhecimento de qualquer negócio envolvendo o embargante e a sociedade exequente. Quanto às testemunhas R… e H…, apesar de terem tido, por força das respectivas funções profissionais, contacto com o negócio em causa nestes autos e que justificou a emissão da livrança, nunca viram o executado, não tendo por conseguinte conhecimento das circunstâncias em que a assinatura da livrança e do contrato se concretizaram. Teve ainda o tribunal em consideração que, em declarações de parte, afirmou o embargante nunca ter assinado a livrança em causa, nem o contrato que à mesma esteve subjacente, mais esclarecendo que, à data em que tal negócio terá sido concretizado, sem qualquer intervenção sua, se encontrava a trabalhar em Moçambique, tendo ficado na empresa de que foi sócio, a subscritora A…, cópias dos seus documentos de identificação que podem ter sido utilizados para o indevido preenchimento da livrança e do contrato à mesma subjacente. Ora, sopesados os meios de prova produzidos, não pôde o tribunal concluir que a assinatura imputada ao embargante tenha, efectivamente, sido produzida pelo próprio punho deste. Desta forma, a convicção do tribunal decorreu da conjugação dos elementos de prova referidos, depois de sujeitos a análise crítica e à ponderação do senso comum e máximas da experiência.”
Vejamos.
Acompanhando a linha jurisprudencial prevalecente no Supremo Tribunal de Justiça, de perto com a finalística inovadora do recurso da impugnação da decisão de facto, a intervenção do Tribunal da Relação não se limita à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo. Implica um reexame dos meios de prova sobre os pontos impugnados, em termos de substanciar a sua própria e livre apreciação e convicção – artigos 640, nº 1, al. b) e nº 2, al. b) do CPC, e fundamentação da decisão tomada- artigos 607, nºs 4 e 5 e 663, nº 2 do CPC.
Nesta instância, como é incumbência legal, procedeu-se à audição integral do registo sonoro da audiência de julgamento. Analisou-se o conteúdo do relatório pericial e atentou-se no conteúdo do documento contratual, que conduziu à emissão da livrança em branco, com pacto de preenchimento, entregue para garantia em situação de incumprimento das obrigações assumidas pelo locatário da viatura.
Reapreciados estes elementos probatórios, antecipa-se que se alcançou motivação probatória alinhada com a dialética produzida pelo tribunal a quo, e afastada prima facie, a margem de dúvida sobre a verdade do facto reconduzível ao non liquet como solução do julgado.
Saliente-se ainda, que o Tribunal a quo conduziu a recolha de prova testemunhal em notória e persistente intervenção na descoberta da verdade material, [2]indagando com detalhe exaustivo as circunstâncias envolventes da relação contratual subjacente ao título exequendo. Desta forma permitindo ao Tribunal de recurso, um visionamento esclarecedor da prova oral, e por essa via a reconstrução cognitiva da dinâmica factual.
Começando pelo exame pericial à letra.
É consabido que a prova pericial assume particular ênfase no domínio fáctico em apreciação.
O exame pericial dos autos foi levado a cabo pelo Laboratório de Exame da Faculdade de Ciências do Porto.
Os dois peritos intervenientes produziram o laudo, do qual consta a seguinte conclusão:
” … consideradas todas as limitações que este exame apresenta (…) somos levados a concluir que as características exibidas por P…, na escrita das assinaturas genuínas, se encontram na das assinaturas contestadas, pelo que se considera que a escrita das assinaturas contestadas (apostas nos documentos em questão - contrato e livrança) “pode ter sido “produzida pelo punho de P….. É justamente neste segmento do relatório pericial, que a recorrente alicerça a argumentação principal da impugnação do facto tido por não provado.
Sustentou que tal asserção dos peritos corresponde à conclusão ínsita de que a assinatura aposta no aval da livrança corresponde afinal, a um grau de 55% de certeza de que a assinatura aposta na livrança é da autoria e punho do executado.
Não lhe assiste razão, tratando-se doravante de ilação extraída à margem da conclusão declarada no relatório pericial, extravasando o seu conteúdo e as premissas em que assentou.
Aproximando.
Conforme consta da nota explicativa anexa ao relatório, os peritos laboraram tendo por base a escala descendente de expressões utilizadas – entre Probabilidade próxima da certeza científica, Muitíssimo Provável; muito provável, provável, pode ter sido, não é possível formular conclusão, Pode Não ter sido, provável não, Muito Provável Não, muitíssimo provável Não, Probabilidade próxima da certeza científica Não.
As imputadas assinaturas[3] integram dois únicos nomens – P…T…. Circunstância de escrita, que à semelhança das dificuldades mencionadas pelos peritos em provas congéneres, (e também neste relatório destacadas) não permite evidenciar vincados e personalizados hábitos gráficos do autor, e por consequência não viabilizam, à partida, as combinações de elementos assertivos quanto à autenticidade das assinaturas analisadas. A prova pericial foi determinada em consequência do seu objecto convocar especiais conhecimentos técnicos aprestadas a essa finalidade, e os quais escapam ao recorrente e ao tribunal [4]. Não estão em crise os padrões científicos pertinentes prosseguidos pelos peritos na realização do exame e a credibilidade e objectividade da sua actividade.
Não pode então a apelante pretender substituir-se aos peritos na conclusão retirada do exame de comparação de escritas, e nem mesmo este Tribunal tem a veleidade de prosseguir essa vã tarefa. Diferente já será afirmar que a prova pericial está sujeita ao princípio da livre apreciação do julgador, que assume o dever de ponderar acerca do seu conteúdo, à luz de uma análise crítica, em interface com os demais elementos de prova, não lhe bastando aderir simplificadamente às conclusões retiradas pelos peritos, conforme decorre do disposto da leitura conjugada dos artigos 389 do Código Civil e artigo 489 do CPC. [5]
Uma outra nota surge com pertinência sobre a natureza e grau de certeza científica subjacente ao exame pericial à letra.
A conclusão - grau de segurança tecnicamente previsto como “pode ter sido “na comparação das assinaturas, não encerra um juízo de probabilidade razoável que a assinatura da livrança (e do contrato de ALD subjacente) sejam do punho do embargante. “Pode ter sido” queda-se no domínio de uma mera possibilidade, não chegando a completar-se o grau de provável,[6] presumível e plausível da realidade do facto em questão- ter sido a assinatura produzida pelo punho do embargante.
Importa observar, recorrendo às incisas palavras de Vaz Serra [7] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”.
Plano de sustentação que se perpetua na dogmática e prática judiciária actuais, não almejando o paradigma da prova judicial surpreender a verdade absoluta, é mister que a decisão judicial se estribe “(…) na melhor aproximação possível à realidade empírica dos factos, é inevitável que se trate em todo o caso de uma aproximação relativa “, (…) tendo como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)” e, (…)“Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais .”[8]
Em suma, apesar do carácter influente da prova pericial na formação da convicção favorável ou desfavorável do julgador quanto à realidade do facto em apreciação, o exame pericial em apreço não estabeleceu margem de probabilidade segura na afirmação da autenticidade da assinatura constante da letra e impugnada pelo embargante.
Passando à prova pessoal produzida, revisitada à luz das regras da experiência, em ordem a dela extrairmos margem de confirmação ou atenuação da dúvida que subsiste face à conclusão pericial.
Foram tomadas declarações de parte ao embargante, e ouvidas as testemunhas: F…, mulher do embargante;[9] R…, funcionário administrativo do departamento de contencioso da embargada; e H…., [10]director do departamento comercial da empresa Santogal, vendedora do veículo automóvel financiado pela embargada.
Ora, também neste contexto não se recolheu amparo apto a suportar a convicção sobre a aposição da assinatura pelo embargante, conforme se ajuizou no tribunal de primeira instância.
Assim, nenhuma das testemunhas interveio directamente, ou esteve presente, seja na aquisição/selecção da viatura automóvel que ocorreu no stand da Santogal, em Campolide, seja nas negociações prévias e concretização do contrato de ALD entre os sujeitos titulares, a locatária A…., Ldª e seus sócios, avalistas, G…. e P...T…, ora embargante .
Através do depoimento prestado pela mulher do embargante, em conjugação com as declarações de parte deste último, apura-se que sendo sócio da A….,Ldª a sua actividade laboral era desenvolvida em Moçambique, onde a sociedade mantinha negócios, ficando a gestão corrente da empresa em Portugal a cargo do outro sócio gerente maioritário, G…., que representava por si só a sociedade; a estada em Portugal resumia-se a dois períodos de férias, designadamente no Natal.
Donde em tais circunstâncias, segundo as máximas da experiência, e na ausência de outro elemento contrário, é verosímil aderir à versão do embargante. Isto é, que foi alheio à aquisição da viatura ligeira de passageiros e à celebração do contrato ALD subjacente, antevendo-se o interesse próprio do outro sócio G…, e seu exclusivo interveniente de facto.
Mais se apurou pelos seus depoimentos que ao tempo da celebração do contrato, a empresa acumulava débitos proeminentes, vindo aliás a ser declarada em estado de insolvência, e bem assim o sócio G….
De relevante ainda, tudo aponta para que o conhecimento do contrato por parte do embargante apenas ocorreu aquando da recepção da carta de citação na execução, pois que as cartas admonitórias foram remitidas para a única morada inscrita no contrato, onde se situava o armazém da sociedade.
Acerca do confronto do embargante com o dito sócio G…, perante a situação, aceita-se que numa época em que a sociedade já estava insolvente, e definitivamente quebrada a confiança entre eles, não fosse viável o apuramento remoto da questão. Por último, os serviços administrativos da sociedade tinham em arquivo os elementos de identificação fotocopiados de cada um dos seus colaboradores, incluindo do embargante, procedimento que se verifica ser comum em empresas.
Passando ao depoimento da testemunha R….
Este funcionário do serviço de contencioso da embargada produziu um depoimento claro e elucidativo sobre o processo de formação deste tipo de contratos.
Ficou então bem esclarecido que o contrato ALD é inteiramente mediado pelo vendedor/stand da viatura, no caso a Santogal, que atende o comprador, apresenta a proposta de crédito e recolhe, em regra, toda a documentação contratual, que remete subsequentemente à financiadora/embargada. Sobre a recolha de assinaturas foi taxativo ao afirmar que na maioria dos casos, o comprador entrega ao vendedor os documentos contratuais já assinados, não sendo presenciado ou estabelecido contacto pessoal necessário com os obrigados. Corroborou que de acordo com os registos do processo contratual, o embargante nunca manteve qualquer contacto pessoal ou outro com a embargante, e a viatura veio a ser devolvida pelo Sr. G…, conforme termo junto.
Na mesma linha depôs o Senhor H…, identificado pela anterior testemunha como o comercial da S…. que tratou da venda da viatura. Todavia, como viria a esclarecer, era o responsável pela área comercial da S…, não lhe cabendo a venda directa das viaturas ou o contacto com os compradores, tarefa a cargo do vendedor que identificou. A audição deste que chegou a ser equacionada como pertinente pela Senhora Juiz, foi, contudo, desconsiderada pelo desinteresse manifestado por ambos os mandatários.
De resto, perpectivada a sucessão de actos até celebração do contrato, tal como descrita pelo funcionário da embargada, confirmada pelo responsável comercial da S…, é provável que não adviesse elemento esclarecedor quanto ao envolvimento do embargante no negócio, visto que os documentos são entregues já assinados.
Em suma, coadjuvado o conteúdo do relatório pericial com os depoimentos pessoais prestados e acima indicados, justifica-seque o embargante não participou ou de alguma forma esteve ligado à celebração do contrato subjacente, e por consequência, na medida da probabilidade necessária, não assumiu a obrigação inerente ao aval na livrança garantia do seu cumprimento.
Face ao que vem de se expor, não ocorre motivação que autorize a inversão do sentido probatório sufragado pelo tribunal a quo, considerando o grau de prudência e verosimilhança exigíveis, segundo o qual a assinatura contestada vertida no título exequendo, não é da autoria do embargante.
Soçobra por consequência a impugnação da matéria de facto.
Aqui chegados.
O título dado à execução- livrança - encerra a natureza de um documento particular, no qual consta, no local destinado ao avalista, a assinatura que a exequente atribui ao executado e embargante.
Sendo os embargos de executado uma verdadeira acção declarativa, uma contra-acção do executado à acção executiva do exequente, destinada a impedir a execução ou a obstar à produção dos efeitos do título executivo, vigora a regra geral do ónus de prova pertencer ao embargante - prova da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente ou de factos que constituiriam matéria de excepção - artigo 342, nº 1 e nº2 do Código Civil.
Porém, o embargante impugnou eficazmente a assinatura da livrança que lhe é atribuída na posição de avalista da livrança.
E, nessa medida, se invertendo o ónus de prova- artigos 374, nº 2 ex vi artigo 344, nº 1 do Código Civil e 574, nº 3 do CPC - competindo à exequente e ora embargada a prova da autoria da assinatura.
Acresce que, sendo legítimo ao executado discutir no domínio das relações imediatas, em embargos de executado, a relação subjacente à emissão do título de crédito, e alegado a inexistência de intervenção e conhecimento do contrato de ALD subjacente, causal da prestação do aval na livrança, não logrou a embargada contrariar tal asserção.
Concede-se, como alega a apelante, que a prova de factos negativos supera o esforço probatório em relação à prova dos factos positivos, o que importará casuísticamente menor grau de exigência na prova pelo julgador. Observa-se , todavia, que a inversão do ónus da prova neste caso legal radica numa razão de natureza de direito substantivo documental, [11]não se prendendo com as dificuldades práticas na prova de factos negativos.
Neste propósito, afirmam Pires de Lima e Antunes Varela [12] “Ao contrário do que sucede com os documentos autênticos, os documentos particulares não provam, por si sós, a genuinidade da sua (aparente) proveniência. A letra e assinatura, ou a assinatura, só se consideram, neste caso, como verdadeiras, se forem expressas ou tacitamente reconhecidas pela parte contra quem o documento é exibido ou se legal ou judicialmente forem havidas como tais. Havendo impugnação, é ao apresentante do documento que incumbe provar a autoria contestada; e terá de fazê-lo, mesmo que o impugnante tenha arguido a falsidade do texto e assinatura, ou só da assinatura”.
Em suma, não estando provado que a assinatura aposta na livrança como avalista é do punho do executado/embargante, o exequente não detém título para a demanda executiva, e os embargos não poderão deixar de proceder, conforme ao dispositivo da sentença recorrida.
II. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em conferência em julgar improcedente o recurso, mantendo-se o julgado do Tribunal a quo.
As custas ficam a cargo da apelante.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2020 Isabel Salgado Conceição Saavedra Cristina Coelho _______________________________________________________ [1] A prática judiciária é indicadora do fraco resultado da prolação de despacho de aperfeiçoamento.
Cf. a propósito o AC.STJ de 05.07.2018, in www.dgsi.pt “A deficiência, obscuridade ou complexidade das conclusões das alegações de recurso - passíveis de despacho de aperfeiçoamento - são vícios de conclusões, que pressupõem a existência de um esboço de síntese” [2] Como por exemplo, determinando ex officio a audição de testemunhas, que manifestamente útil para o apuramento dos factos, e as quais a embargada, sobre quem impendia o ónus de prova não cuidou de arrolar; e, formulando, a par e passo de cada depoimento, interpelações e interrogações incisivas sobre o objecto controvertido. [3] Tanto a constante no verso da livrança, como aquela outra, incluída no contrato subjacente de ALD, na posição de avalista. [4] Cf. a propósito o artigo 388 do Código Civil”. A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem”. [5] Cf. Alberto dos Reis, In Código de Processo Civil, anotado, vol. IV, pág. 184/5. [6] Querendo significar que a realidade do facto objecto de prova é mais provável do que o contrário. [7] In Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171. [8] Cf. Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova por Presunção no Direito Civil, pág. 136 e do mesmo autor, “O standard de prova no processo civil e no processo penal”, disponível in wwwtrl.mj.pt. [9] Embora despiciendo no contexto, foi declarado pela Mandatária da embargada, na última sessão de julgamento, que, entretanto, o casal se divorciou, prevendo-se que com base nessa informação, se refira à testemunha Filipa Teixeira, como ex-cônjuge do embargante nas respectivas alegações de recurso. [10] Por iniciativa do tribunal, face ao depoimento prestado pelo funcionário da embargada, RS. [11] Cf. Sobre o tópico, entre outros, o Acórdão do STJ de 9.02.2011, “3.A aplicação das regras substantivas, definidas para a prova documental no art.º 374º do CC, conduz a que – impugnando o executado/opoente a assinatura do documento particular não reconhecido notarialmente, sustentando que ela lhe não pertence ou que – quando tal assinatura lhe não seja imputada - não sabe se é verdadeira , passe a recair sobre o apresentante de tal documento – ou seja, sobre o exequente – o ónus de prova da veracidade da assinatura impugnada”, disponível in www.dgsi.pt. [12] In Código Civil, anotado, vol. I, 2ª ed., pág. 307.