DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
CONTRADITÓRIO
Sumário

Haverá que avaliar caso a caso se se justifica o cumprimento pelo tribunal da audição prévia das partes antes da decisão de deserção das partes; justificar-se-á essa prévia audição quando a decisão de deserção da instância, sem audiência prévia das partes, viesse a constituir uma decisão surpresa, violadora, nessa medida, do princípio do contraditório.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 24/17.9T8CCH.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), autora na ação de despejo que moveu contra (…), (…), (…), (…) e mulher, (…) e mulher, interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica de Coruche do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou deserta a instância.

A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«Por requerimento entrado em juízo em 12/01/2022, foi junta aos autos certidão de óbito do réu (…), pelo que, por despacho de 14.01.2022, foi declarada suspensa a instância, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo civil, despacho esse que foi notificado às partes em 24.01.2022.
Nenhuma das partes veio requerer o competente incidente de habilitação de herdeiros até ao dia 28 de junho de 2022.
Refere o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que “(…) considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Quando o despacho com a referência 91149355 foi proferido, em 29 de setembro de 2022, já a instância se encontrava deserta, pelo que o mesmo não foi idóneo a poder renovar a instância, por não estarem reunidos todos os pressupostos legais para a sua prolação, ou seja, não era possível designar-se data para a realização de audiência de discussão e julgamento, por falta de habilitação dos herdeiros do réu (…), sendo certo que se encontrava já decorrido o prazo para o efeito nessa data.
Pelo exposto, uma vez que o processo não foi devidamente impulsionado pelas partes até 28 de junho de 2022, julga-se deserta a presente instância.
Custas pela autora e réus sobrevivos».

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«Da extinção de instância por deserção
I - Pretende a A. que o despacho que julga extinta a instância por deserção, seja anulado e prossiga o processo para audiência até ser proferida sentença ou acórdão.
II. Em 21/04/2021, conforme consta do Despacho saneador com a Refª: 86495633, “Para realização da audiência de julgamento designa-se o dia 7 de julho de 2021, pelas 14.00h. D.N., cumprindo-se o disposto no artigo 151.º do Código de Processo Civil.”
III. Em 14-01-2022 foi proferido Despacho com a Refª. 88882352 que declarou “suspensa a instância” apesar de sustentar que resulta dos artigos 270.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1;
IV. Conforme resulta do artigo 270.º, n.º 1, parte final, não poderia ser proferida a suspensão de instância, porque o processo já estava inscrito na tabela para julgamento, pelo que não poderia a Meritíssima Juíza dar sem efeito a audiência de discussão e julgamento agendada.
V. Porque e conforme dispõe o artigo 270.º, n.º 1, último parágrafo:
“Neste caso (….ou se o processo já tiver sido inscrito em tabela para julgamento.) a instância só se suspende depois de proferida a sentença ou o acórdão”.
VI. Não poderia, em consequência, ser decretada a suspensão de instância, senão após o julgamento e depois de proferida a sentença ou o acórdão.
VII. O despacho que julga deserta a instância deverá apreciar a falta de impulso processual, o que não aconteceu:
VIII. O despacho que julgar extinta a instância por deserção, deverá assim, ouvir primeiro as partes, notificando-as para o efeito, de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao seu comportamento ou a qualquer outra causa.
IX. Se ficou a dever-se à negligência das partes, o que significa que lhe incumbe efetuar uma valoração do comportamento das partes, e concluir se a falta de impulso ao não promover o andamento do processo resulta, efetivamente, da negligência das partes.
X. Além do mais, “o princípio da cooperação, reforçado no atual CPC, justifica que as partes sejam alertadas para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei.
XI.O Despacho/Sentença de que se recorre, nem sequer deu qualquer possibilidade de as partes se pronunciarem sobre as consequências gravosas dessa eventual inércia.
XII. Deve em consequência este tribunal aplicar o artigo 270.º/1, do C.P.C., na sua parte final e anular o Despacho/sentença recorrido».

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
No caso importa decidir:
1 – Questão prévia: saber se este tribunal pode conhecer do eventual (des) acerto da decisão de suspensão da instância.
2 - Se antes de ter proferido a decisão recorrida o tribunal recorrido deveria ter ouvido as partes com vista a apurar as razões da sua inércia processual.

II.3.
FACTOS
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
1 – Com data de 14.01.2022, foi proferido despacho com o seguinte teor: «Referência 8343470: Conforme resulta da certidão de óbito junta aos autos o réu (…) faleceu no dia 28 de dezembro de 2021. Nesta medida, e conforme resulta do disposto nos artigos 270.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, declara-se suspensa a presente instância.
Aguardem os autos que seja requerido o competente incidente de habilitação, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil».
Atento o despacho supra, dá-se sem efeito a audiência de discussão e julgamento agendada.
Desconvoque».
2- Os mandatários das partes foram notificados do despacho referido supra, através de comunicação via Citius com data de 24.01.2021.
3 - Com data de 29-09-2022 foi proferido o seguinte despacho: «Para a realização da audiência de julgamento designa-se o dia 19 de janeiro de 2023, pelas 14 horas.
DN, cumprindo-se o disposto no artigo 151.º do Código de Processo Civil».
4 – Com data de 19-01-2023, foi proferido despacho com o seguinte teor: «Devidamente compulsados os autos com vista à preparação da audiência de discussão e julgamento verifica-se que foi indevidamente designada data para a realização de audiência de discussão e julgamento. Efetivamente, por requerimento entrado em juízo em 12/01/2022, foi junta aos autos certidão de óbito do réu (…) pelo que, por despacho de 14/01/2022, foi declarada suspensa a instância, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Civil, despacho esse que foi notificado às partes em 24/01/2022.
Verifica-se, assim, que quando foi aberta conclusão para despacho em 29/09/2022, o despacho a proferir deveria ter sido o da deserção da instância por falta de impulso processual das partes.
Erradamente foi designada data, pela signatária, para a realização de audiência de discussão e julgamento por não se ter atentado que a habilitação de herdeiros que se encontra apensada aos presentes autos não dizia respeito ao réu Júlio Manuel Matias.
Pelo exposto cumpre agora corrigir tal lapso, razão pela qual se dá a audiência de discussão e julgamento designada sem efeito uma vez que a mesma foi designada com um pressuposto errado.
Desconvoque pelo meio mais expedito».

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Está em causa no presente recurso o despacho prolatado pela primeira instância que julgou deserta a instância, ao abrigo do disposto no artigo 281.º/1, do Código de Processo Civil.
Previamente ao despacho recorrido o tribunal de primeira instância havia proferido, em 14.01.2022, decisão onde declarou a instância suspensa, ao abrigo do disposto nos artigos 270.º/1 e 269.º/2/a), ambos do Código de Processo Civil, dado que havia sido junta aos autos uma certidão de óbito relativa ao réu (…).
Despacho que agora a apelante vem impugnar, dizendo que estando já designada a data para a realização da audiência de discussão e julgamento, a suspensão da instância só poderia ser decretada após o julgamento e depois de proferida a sentença ou o acórdão.
Sucede, porém, que o despacho que declarou a suspensão da instância foi notificado às partes, mediante comunicação de 24.01.2021, que dele não interpuseram recurso (o qual seria, nos termos do disposto no artigo 644.º/2, alínea c), do CPC, uma apelação autónoma). Consequentemente o despacho que determinou a suspensão da instância ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 270.º/1 e 269.º/2/a), ambos do Código de Processo Civil, transitou em julgado (cfr. artigo 628.º do Código de Processo Civil), tendo adquirido força obrigatória dentro do processo (cfr. artigo 620.º/1 do Código de Processo Civil). Desta feita, são de desatender as alegações do presente recurso na parte relativa ao referido despacho, pois o caso julgado traduz-se justamente na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu, em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário.
Dito isto, avancemos, pois, para a questão da deserção da instância.
Instituto que se mostra consagrado no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Dispõe este normativo, epigrafado de Deserção da instância e dos recursos (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2013, de 26-06) o seguinte:
«Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses».
Por sua vez o n.º 4 do mesmo artigo dispõe que:
«A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator».
O instituto em causa funda-se no princípio da auto responsabilidade das partes, visando evitar que nos tribunais permaneçam pendentes e parados processos em virtude do mero desinteresse de quem a eles recorreu para fazer valer o direito que entendem assistir-lhes.
São pressupostos cumulativos da deserção da instância:
1) Que sobre a parte incida o ónus de promover o impulso processual;
2) Que se verifique uma situação de negligência imputável à parte sobre a qual recaia o ónus de impulso processual;
3) O decurso do prazo temporal fixado na lei.
Em síntese, para que se verifique uma situação de extinção da instância com fundamento em deserção não basta o mero decurso do prazo legal, sendo, ao invés, necessário também que a falta de impulso processual seja imputável à parte que tinha o dever de impulsionar os autos. O que significa, pois, que a deserção não é de funcionamento automático, tendo de ser verificada pelo juiz do tribunal onde ocorre a falta de impulso processual (cfr. artigo 281.º, n.º 4, do CPC).
Analisando o primeiro dos pressupostos acima referidos, diremos que só excecionalmente cabe às partes o ónus de impulso processual, isto é, o ónus de praticar o(s) ato(s) necessário ao normal desenvolvimento do processo. Com efeito, é ao juiz que incumbe dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo as diligências que se afigurem necessárias ao normal prosseguimento da ação (artigo 6.º, n.º 1, do CPC). Como sublinham Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[1]«[…] ao juiz cabe, em geral, a direção formal do processo, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna. Esta direção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, só excecionalmente cabendo às partes o ónus de impulso processual subsequente, ligado ao princípio do dispositivo. A referência a que este só existe quando uma lei especial o imponha foi introduzida na revisão do Código para afastar a ideia, anteriormente difundida na prática dos tribunais, de que o autor tinha constantemente de impulsionar o desenvolvimento do processo […]» (itálicos nossos).
Desta feita, o impulso processual devido pelas partes encontra-se reduzido aos casos em que uma norma especial o imponha, tendo deixado de constituir um princípio geral[2].
Relativamente ao segundo pressuposto – verificação de uma situação de negligência imputável à parte sobre a qual recai o ónus de impulso processual – este implica uma valoração da conduta da parte, isto é, o tribunal tem de aferir se existiu uma conduta causal e censurável da(s) parte(s) na falta de promoção de ato de que dependa o andamento do processo (ou de seu incidente). Dito de outra forma, verificada a existência de um ónus de impulso processual, importará aferir se a não atuação da parte se deve, ou não, a uma omissão da diligência necessária e adequada relativamente à promoção do desenvolvimento do processo[3]. Como se escreveu no Ac. STJ de 22 de maio de 2018, processo n.º 3368/06.1TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt, será negligente a conduta da parte que, estando em condições de praticar o ato, não o faz, sendo-lhe essa omissão diretamente imputável.
No caso sub judice, a suspensão da instância foi despoletada pelo falecimento do réu Júlio Matias, não vindo posto em causa que sobre os autores incumbia o ónus de promover a habilitação dos sucessores do réu falecido, em conformidade com o disposto nos artigos 270.º, n.º 2, e 276.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
A apelante estriba o seu recurso em dois argumentos:
(i) As partes devem ser alertadas para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei, à luz do princípio da cooperação; e
(ii) Antes de julgar extinta a instância por deserção, o tribunal deve ouvir primeiro as partes, de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao seu comportamento ou a qualquer outra causa.
Que dizer?
O dever de cooperação está consagrado no artigo 7.º/1, do Código de Processo Civil[4]. Este dever funciona num duplo sentido: das partes para com o tribunal e deste órgão para com as partes. Do ponto de vista do tribunal, estamos perante um poder-dever que se desdobra em quatro aspetos essenciais: um dever de esclarecimento do tribunal junto das partes quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou tomadas de posição em juízo de molde a evitar que a sua decisão venha a ter por base uma falta de informação e não a verdade apurada; um dever de prevenção, isto é, o de prevenir as partes acerca de eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos; o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer da matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a oportunidade de se pronunciarem; e o dever de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento de ónus ou deveres processuais[5].
Na densificação do conceito do “dever de prevenção”, Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., refere que «(…) ele vale genericamente para todas as situações em que o êxito da ação a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo. São quatro as áreas fundamentais em que a chamada de atenção decorrente do dever de prevenção se justifica: a explicitação de pedidos pouco claros, o caráter lacunar da exposição dos factos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação concreta e a sugestão de uma certa atuação».
Parece-nos incontornável que o poder-dever de cooperação do tribunal para com as partes exige que aquele advirta expressamente as partes das possíveis consequências desvantajosas de certas atuações das mesmas – em idêntico sentido, vide Lebre de Freitas, Da Nulidade da declaração da Deserção da Instância Sem Prévia Advertência à Parte, ROA, ano 78, janeiro de 2018, pág. 191 e seguintes.
Ora in casu esse dever de cooperação foi observado pelo tribunal. Com efeito, mediante despacho proferido em 14.01.2022 o tribunal a quo alertou as partes para a necessidade de ser promovido o incidente de habilitação decorrente do óbito do réu (…) e da possibilidade de deserção da instância por falta de impulso daquele incidente (cfr. supra II.3).
Logo, não se verifica, in casu, uma violação do dever de cooperação do tribunal.
Quanto ao segundo argumento invocado pela apelante, ele prende-se com a questão de saber se antes de decretar a deserção da instância o tribunal deve ouvir as partes para aferir da existência de uma conduta negligente da parte quanto ao impulso dos autos.
Questão que não é tratada de forma unânime na doutrina e na jurisprudência. Quanto à jurisprudência veja-se, por todos, Ac. RL de 07.05.2020, processo n.º 3820/17.3T8SNT.L1-6, consultável em www.dgsi.pt, onde se faz uma resenha da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão. Na doutrina, Lebre de Freitas, Da Nulidade da Declaração da Deserção da Instância Sem Prévia Advertência à Parte, ROA, I/II, ano 78, 2018, pág. 191 e seguintes e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, Almedina, pág. 437 defendem que o tribunal deve ouvir as partes antes de decidir pela deserção da instância, para aferir das razões da ausência de atos processuais.
Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Felipe de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, Almedina, pág. 365 e seguintes defendem, ao que pensamos, uma posição intermédia, defendendo que há casos em que a audição prévia das partes pode ser dispensada e outros em que essa audição deve ser realizada: quando não se suscitem dúvidas sobre a necessidade de impulso processual ou sobre as consequências da inércia da parte, a deserção da instância deve ser declarada a partir da mera observância dos elementos conferidos pelos autos não cabendo ao tribunal promover a audição da parte tendo em vista a formulação de um juízo sobre as razões da inércia. E estes autores apontam justamente como um exemplo dos casos de dispensa da audição da parte o caso em que a suspensão da instância é motivada pelo falecimento de alguma das partes. Também Paulo Ramos de Faria[6] afirma que «(…) não se poderá dizer, sem mais, que devem as partes ser ouvidas depois de se verificarem os pressupostos da deserção, mas antes do seu julgamento. Tudo dependerá do caso concreto – mihi factum dabo tibi jus –, isto é, do grau de satisfação, pelo tribunal, do princípio da cooperação, do dever de prevenção e do dever de gestão processual, antes de se ter completado o prazo de deserção. O mais que se poderá dizer é que, quando estes princípios e deveres não tenham sido satisfeitos, não se podendo concluir que o demandante foi esclarecido pelo tribunal, deve ser oferecido o contraditório prévio à decisão».
Sufragamos esta última posição: haverá que avaliar caso a caso se se justifica o cumprimento pelo tribunal da audição prévia das partes antes da decisão de deserção das partes; justificar-se-á quando a decisão de deserção da instância, sem audiência prévia das partes, viesse a constituir uma decisão surpresa, violadora, nessa medida, do princípio do contraditório.
Regressando ao caso concreto estamos perante uma situação em que deserção da instância foi precedida de uma decisão de suspensão da instância motivada pelo óbito de um co-réu, não vindo posto em causa que à suspensão da instância com tal fundamento está associada a necessidade de um impulso processual subsequente, a saber, a promoção do incidente de habilitação dos herdeiros do réu falecido.
Releva para a resolução do caso o facto de no despacho em que decretou a suspensão da instância, com fundamento no óbito de um co-réu, o julgador a quo ter advertido expressamente as partes da necessidade de promoção do incidente de habilitação de herdeiros e da consequência da falta de impulso processual daquele incidente (a prevista no artigo 281.º/1 do CPC).
As partes estavam representadas por advogados que foram notificados daquele despacho, tendo, por isso, ficado cientes das consequências da falta de impulso processual do incidente de habilitação de herdeiros do co-réu (…).
Não resulta dos autos que as partes e nomeadamente a apelante tivessem vindo informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo à promoção do incidente de habilitação de herdeiros.
Não se olvida que com data de 29-09-2022 (portanto entre a data de prolação do despacho que declarou a suspensão da instância e a prolação do despacho que julgou a instância deserta) o tribunal a quo proferiu despacho designando o dia 19 de janeiro de 2023, pelas 14 horas, para a realização da audiência de discussão e julgamento. Todavia, naquela data de 29.09.2022, já há muito que havia decorrido o prazo legal de seis meses previsto no artigo 281.º/1, do CPC, pois que as partes foram notificadas do despacho que declarou a suspensão da instância em 24.01.2021 (cfr. supra II.3). Deste modo, aquele despacho de designação de data para a realização da audiência de discussão e julgamento não pode ser encarado como um comportamento violador das regras da confiança o que, a verificar-se, justificaria uma audiência prévia das partes antes do julgamento de deserção da instância.
Por todo o exposto, consideramos que não havia fundamento para que a primeira instância ouvisse previamente as partes sobre a deserção da instância. Com efeito, repete-se, as partes estavam cientes da necessidade de impulso processual e das consequências da sua inércia e não revelaram ao tribunal qualquer razão que os impedisse de diligenciar pela promoção do incidente de habilitação de herdeiros do co-réu (…).
Improcede, pois, a presente Apelação.

Sumário:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas na presente instância de recurso porquanto a recorrente procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e não há lugar ao reembolso de custas de parte pois não houve resposta às alegações de recurso.

Notifique.
DN.
Évora, 12 de julho de 2023
Cristina Dá Mesquita
José Manuel Barata (1.º Adjunto)
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2.º Adjunto)



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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2014, Coimbra Editora, pág. 22.
[2] Lebre de Freitas, Gestão Processual, Princípio da Cooperação e Garantias das partes, II Colóquio de Processo Civil de Santo Tirso, 2016, Almedina, págs. 77 e seguintes.
[3] Como é salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.2019, «a deserção assenta na omissão negligente da parte em promover o andamento do processo (quando apenas a ela lhe incumba fazê-lo) e na paragem da sua marcha (globalmente considerada), constituindo-se esta como um resultado causalmente adequado daquela atitude omissiva».
[4] De acordo com este preceito legal, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
[5] Assim, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, Lex, pág. 65.
[6] O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa”, Revista Julgar on line, 2015, págs. 5 e seguintes.