ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
SUSPENSÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
Sumário

Não pode ser qualificado como acidente de trabalho o acidente de viação sofrido por trabalhador numa situação de suspensão do contrato de trabalho por incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença natural, uma vez que escapa ao critério da autoridade ou do controlo do empregador, na medida em que o trabalhador não está obrigado nem pode prestar-lhe actividade ou ficar na sua disponibilidade.

Texto Integral

1. Relatório
A…, patrocinado pelo Ministério Público, intentou acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra … - Companhia de Seguros, S.p.A., alegando, em síntese, ter sofrido um acidente de viação quando se deslocava da sua residência para as instalações da empregadora e em resultado do qual sofreu incapacidade para o trabalho, quer temporária quer permanente, sendo esta superior à fixada na perícia singular, tendo suportado despesas nas deslocações a tribunal. A empregadora havia celebrado com a R. seguradora um contrato de seguro de acidentes de trabalho relativamente a si e em função da totalidade da sua retribuição.
Termina, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe:
- a pensão que vier a ser fixada na sequência da perícia por junta médica;
- a indemnização no valor de € 4.041,48;
- a despesa com transportes no valor de € 17;
- e os juros de mora.
A R. contestou, negando a caracterização do acidente como sendo de trabalho, por ter ocorrido em situação de suspensão do contrato de trabalho por doença natural do trabalhador e após uma interrupção do trajecto entre a casa do mesmo e as instalações da empregadora, na sequência dum desvio motivado por razões pessoais.
Concluiu, pedindo a improcedência da acção.
O Instituto de Solidariedade e Segurança Social – Centro Distrital do Porto, I.P. veio deduzir contra a R. um pedido de reembolso da quantia de € 1.555,64, paga ao A. a título de subsídio de doença no período de 26/11/2011 a 31/12/2011, em que este esteve incapacitado por causa do acidente de trabalho a que se reportam estes autos. Mais pediu que tal quantia seja acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Foi proferido despacho saneador, com fixação dos factos assentes e dos controvertidos.
Realizou-se a audiência de julgamento, após o que pela Mma. Juíza foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a presente acção provada e procedente nos termos sobreditos e, em consequência:
I – Condeno a ré, “… - Companhia de Seguros, SpA”, a pagar ao autor, A…:
- o capital de remição da pensão anual vitalícia de € 404,15 com início no dia 13/3/2012;
- a indemnização no valor de € 2.485,84 (já deduzido o valor do subsídio de doença que o autor recebera da Segurança Social);
- a despesa de transportes no valor de € 17;
- e os juros de mora, à taxa legal, sobre todas essas quantias pecuniárias.
II – Condeno a ré, “… - Companhia de Seguros, SpA”, a reembolsar o Instituto da Segurança Social – Centro Distrital do Porto, I.P. da quantia de € 1.555,64 que este pagou ao autor/sinistrado a título de subsídio de doença e prestações compensatórias de subsídio de Natal durante um período de incapacidade temporária que resultou deste sinistro, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Custas a cargo da ré.»
A R., inconformada, interpôs recurso da sentença e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
«I. A expressão “que seria relevante para a reunião aludida em 1º” incluída na resposta ao quesito 5º da base instrutória constitui matéria não factual e meramente conclusiva que, como tal, deverá ser dada como não escrita. Caso assim não se entenda, e não revestindo a mesma o carácter de facto meramente acessório ou instrumental, e não tendo sido alegada por nenhuma das partes, não poderia ter sido dada como provada pelo tribunal recorrido devendo, nessa medida, ser agora dada como não escrita.
II. Encontrando-se o sinistrado de baixa médica há mais de um mês, estava suspenso o seu contrato de trabalho com a empregadora, e, como tal, todos os deveres inerentes ao mesmo que implicassem a efectiva prestação de trabalho, ou seja, os deveres de assiduidade, diligência ou obediência.
III. A participação numa reunião na sede da empresa terá sempre de ser considerada como efectiva prestação de trabalho, pelo que não estava o autor/sinistrado obrigado a comparecer na mesma, pese embora convocado pela sua entidade patronal para o efeito, assistindo-lhe, face às circunstâncias, o direito de se recusar a comparecer.
IV. Tendo optado por apresentar-se na mesma, fê-lo por sua livre e espontânea vontade, e não por qualquer ordem – à qual não devia obediência – assumindo, assim, os riscos inerentes a essa comparência e deslocação, pelo que o acidente aqui em causa não poderá ser considerado como acidente de trabalho desde logo por ausência dos requisitos essenciais ao mesmo, nomeadamente a ocorrência no tempo de trabalho e a existência de poder de direcção ou interesse económico por parte do empregador, o que tudo se requer seja aqui reconhecido.
V. Por necessidades atendíveis do trabalhador nos termos do art. 9º, nº 3 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, deverão entender-se não todas as necessidades do trabalhador, mas apenas aquelas que sejam imprescindíveis e prementes, que não possam ser realizadas noutra altura ou por outra forma, sob pena de qualquer necessidade vir a ser considerada atendível para este efeito.
VI. Pedro Romano Martinez afirma que “se o trabalhador se afasta diariamente o caminho ideal para ir levar os filhos à escola ou, no cumprimento de uma missão fora da empresa, se desvia do trajecto ideal para almoçar num restaurante da sua predilecção, não se pode considerar que a situação seja abrangida pelo conceito de percurso normal.” (Direito do Trabalho, Almedina, 3ª edição, p.831).
VII. Posição esta corroborada pelo Supremo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 04.11.1998 relativo a um trabalhador que efectua um desvio no seu trajecto normal e habitual para ir a casa de um tio entregar um convite de casamento, e de 05.08.2011 em acidente ocorrido quando o trabalhador, interrompendo a sua actividade laboral, com prévia autorização da entidade patronal, se ausenta do local de trabalho para ir buscar o filho ao infantário sofrendo, nesse percurso um acidente (ambos os acórdãos citados se encontram disponíveis em www.dgsi.pt).
VIII. Neste caso concreto, a deslocação do trabalhador ao hospital não constitui necessidade premente ou imprescindível – o que tudo não foi, de resto, em momento algum alegado pelo sinistrado -, podendo o sinistrado ter obtido a informação pretendida por outra via ou em outra ocasião, não sendo imperioso que o fizesse nestas circunstâncias de tempo e lugar, sendo que nem mesmo resultou provado, até porque não alegado, a relevância de tal informação para a entidade patronal do sinistrado ou para a reunião a ter lugar.
IX. Resultou ainda provado que o acidente em causa não ocorreu no período de tempo normalmente gasto pelo trabalhador no seu trajecto entre a sua residência e o local de trabalho – cfr facto 16 da sentença recorrida.
X. Ao considerar o sinistro aqui em causa como acidente de trabalho o tribunal recorrido violou, por virtude de incorrecta interpretação da lei, o disposto no art. 9º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, o que tudo se requer seja aqui reconhecido, revogando-se a sentença recorrida e considerando-se não ser o acidente aqui em causa caracterizável como acidente de trabalho nos termos da lei.»
O A. apresentou resposta ao recurso da R., pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
- se deve ser expurgada da descrição dos factos provados a expressão “que seria relevante para a reunião aludida em 10”;
- se o acidente de viação que o A. sofreu deve ser caracterizado como sendo simultaneamente de trabalho.

3. Fundamentação de facto
Os factos provados são os seguintes:
1 - O A. (A…) trabalhava com a categoria profissional de encarregado, sob as ordens, direcção e fiscalização de F…, Lda., sediada na …, Santo Tirso.
2 - Mediante a retribuição mensal de € 1.268 por 14 meses, acrescida de € 135,74 por 11 meses a título de subsídio de alimentação.
3 - No dia 25/11/2011, cerca das 15h50m., o A. tripulava o seu motociclo com a matrícula …-CC-…, no sentido Riba de Ave - Santo Tirso, quando sofreu um acidente de viação.
4 - Em consequência do qual o A. sofreu as lesões descritas no auto de perícia médica do G.M.L., designadamente fractura do polegar esquerdo e traumatismos diversos, descritos a fls. 56-58 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
5 - Em consequência dessas lesões, o A. esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 26/11/2011 e 12/3/2012 (data da alta).
6 - A R. Companhia de Seguros…, S.p.A. e a empregadora do A. haviam celebrado entre si um contrato de seguro de acidentes de trabalho titulado pela apólice n.º …, através do qual esta transferiu para aquela a responsabilidade pela reparação de eventuais acidentes de trabalho sofridos pelo A. em função da totalidade da remuneração aludida em 2.
7 - A tentativa de conciliação, que encerrou a fase conciliatória do processo, ficou frustrada devido às razões constantes do respectivo auto de fls. 64-66, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
8 - O A. nasceu no dia 17/01/1965.
9 - O A. é beneficiário do Instituto de Segurança Social – Centro Distrital do Porto, I.P. com o n.º …, tendo-lhe sido paga, desde 26/11/2011 até 31/12/2011, a título de subsídio de doença e prestações compensatórias de subsídio de Natal, a quantia total de € 1.555,64 – cfr. fls. 83, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
10 - Por volta das 15 horas do dia aludido em 3, o A. tinha-se deslocado desde a sua residência (sita na Rua…, Lousada) e tinha como destino final as instalações da empregadora (sitas no local aludido em 1), a fim de participar numa reunião para a qual tinha sido convocado a mando da empregadora e a ter lugar aí pelas 16 horas desse mesmo dia.
11 - Quando circulava na Estrada Nacional n.º 310, ao descrever uma curva para a sua direita (atento o sentido Riba de Ave - Santo Tirso) houve um embate entre o seu ciclomotor e um veículo automóvel proveniente de um entroncamento ali existente (Rua D. Maria II, em Bairro).
12 - O A. estava sem prestar trabalho à empregadora por se encontrar de baixa médica, por doença natural, que havia iniciado em 2/09/2011 até 18/10/2011 e que reiniciara em 24/10/2011 em diante.
13 - Naquele dia (25/11/2011), depois de sair da sua residência (por volta das 15 horas) e antes de se dirigir às instalações aludidas em 10, o A. fez um desvio em direcção ao Hospital da Misericórdia de Riba de Ave (Hospital Narciso Ferreira).
14 - E no qual entrou e permaneceu cerca de 10 minutos, com vista a poder inteirar-se sobre a marcação de uma cirurgia a que ia ser submetido. De seguida, tendo saído e retomado a viagem em direcção às instalações da empregadora, foi quando ocorreu o descrito em 3 (alterado nos termos do abaixo decidido sob o ponto 4.1.).
15 - Para esse efeito, o A. adoptou uma parte do trajecto diferente daquele que costumava fazer entre a sua residência e o seu local de trabalho, em que era desnecessário passar por aquele Hospital.
16 - Adoptou um trajecto em parte mais longo e demorado do que aquele que costumava fazer entre a sua residência e o seu local de trabalho, que totalizava cerca de 22 Km, com dispêndio de cerca de 30 minutos, enquanto então já havia despendido cerca de 30 minutos num percurso de cerca de 14 Km e sem ter chegado à sede da empregadora, que ainda distava cerca de 10 Km desde o local do embate.
17 - O A. despendeu a quantia de € 17 em transporte nas deslocações desde a sua residência até ao Gabinete Médico-Legal de Guimarães e a tribunal e vice-versa (durante as fases conciliatória e contenciosa deste processo).
18 - Foi fixada ao A. uma incapacidade para o trabalho permanente e parcial de 3%.

4. Apreciação do recurso
4.1. Como se disse, a primeira questão a tratar é se deve ser expurgada da descrição dos factos provados a expressão “que seria relevante para a reunião aludida em 10”.
Tal expressão insere-se no contexto da seguinte factualidade:
«10 - Por volta das 15 horas do dia aludido em 3, o A. tinha-se deslocado desde a sua residência (sita na Rua…, Lousada) e tinha como destino final as instalações da empregadora (sitas no local aludido em 1), a fim de participar numa reunião para a qual tinha sido convocado a mando da empregadora e a ter lugar aí pelas 16 horas desse mesmo dia.
11 - Quando circulava na Estrada Nacional n.º 310, ao descrever uma curva para a sua direita (atento o sentido Riba de Ave - Santo Tirso) houve um embate entre o seu ciclomotor e um veículo automóvel proveniente de um entroncamento ali existente (Rua D. Maria II, em Bairro).
12 - O A. estava sem prestar trabalho à empregadora por se encontrar de baixa médica, por doença natural, que havia iniciado em 2/09/2011 até 18/10/2011 e que reiniciara em 24/10/2011 em diante.
13 - Naquele dia (25/11/2011), depois de sair da sua residência (por volta das 15 horas) e antes de se dirigir às instalações aludidas em 10, o A. fez um desvio em direcção ao Hospital da Misericórdia de Riba de Ave (Hospital Narciso Ferreira).
14 - E no qual entrou e permaneceu cerca de 10 minutos, com vista a poder inteirar-se sobre a marcação de uma cirurgia a que ia ser submetido e que seria relevante para a reunião aludida em 10. De seguida, tendo saído e retomado a viagem em direcção às instalações da empregadora, foi quando ocorreu o descrito em 3.» - sublinhado nosso.
Ora, compulsados os articulados, verifica-se que o A. se limitou a alegar que sofreu um acidente de viação quando se deslocava de sua casa para as instalações da empregadora com o fim de participar numa reunião para que fora convocado.
A seguradora é que, na sua contestação, com o fim de afastar a caracterização do acidente como de trabalho, mais precisamente in itinere, alegou que o contrato de trabalho do A. estava suspenso por baixa prolongada do mesmo por doença natural e que este na deslocação que invoca fez um desvio e interrupção, por motivos exclusivamente pessoais, dirigindo-se e entrando no Hospital da Misericórdia de Riba de Ave (Hospital Narciso Ferreira), com o objectivo de se inteirar sobre a marcação duma cirurgia ao joelho a que iria ser submetido.
Em conformidade, foi formulado o quesito 5.º constante da «Matéria de facto controvertida», com o seguinte teor: «E no qual entrou, por motivos pessoais, com vista a inteirar-se sobre a marcação de uma cirurgia ao joelho a que iria ser submetido»?
Sendo que o mesmo obteve a resposta constante do acima transcrito ponto 14, com base na qual se entendeu na sentença recorrida que os motivos subjacentes ao desvio e interrupção do trajecto do A. de casa para o local de trabalho estavam ainda relacionados com este e consequentemente eram atendíveis para efeitos de se considerar estar perante um acidente in itinere.
Todavia, como sustenta a Recorrente, trata-se duma expressão conclusiva e que, nessa medida, impossibilita – ao contrário do que pretende o legislador – que o tribunal de recurso reaprecie a bondade da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, uma vez que se desconhecem os factos a partir dos quais o mesmo retirou a conclusão de que a informação sobre a marcação da cirurgia era relevante para a reunião para que o trabalhador fora convocado, mormente os indicativos do objecto e finalidade desta e da sua ligação com aquela informação.
Com efeito, dispunha o n.º 4 do art. 646.º do Código de Processo Civil de 1961 que se têm por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito, assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. E, embora não se contemplassem directamente as respostas sobre a matéria de facto vagas, genéricas e conclusivas, foi-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que aquela disposição era de aplicar analogicamente a tais situações, sempre que a matéria em causa se integrasse no thema decidendum, por se reconduzirem à formulação de juízos de valor que se devem extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova.
Ora, não obstante a eliminação do preceito mencionado no Código de Processo Civil de 2013, é de considerar que se deve manter aquele entendimento, interpretando, a contrario sensu, o actual n.º 4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados.
Isto é, o que o tribunal pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida são os factos e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis, que é uma operação intelectual distinta - neste sentido, entre muitos outros, veja-se o Acórdão do STJ de 29 de abril de 2015, proferido no processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt).
Retornando ao caso em apreço, a manter-se na factualidade dada como provada a expressão aludida, o juízo sobre a motivação do desvio e interrupção do trajecto utilizado para o local de trabalho decorreria automaticamente da mesma, sem necessidade de intervenção do tribunal na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito aos factos concretos da situação equacionada.
Em face do exposto, impõe-se, efectivamente, expurgar tal expressão da factualidade provada (cfr. a alteração já acima consignada no local próprio da «Fundamentação de facto»).
4.2. Posto isto, cabe apreciar se o acidente de viação que o A. sofreu deve ser caracterizado como sendo simultaneamente de trabalho, como concluiu o tribunal a quo.
A Recorrente insurge-se contra esse entendimento por duas ordens de razões:
- não é logicamente configurável que o A. tenha sofrido um acidente de trabalho, na medida em que o seu contrato de trabalho estava suspenso por baixa prolongada do mesmo por doença natural;
- ainda que assim não fosse, na deslocação de casa para o local de trabalho que o A. invoca, o mesmo fez um desvio e interrupção, por motivos exclusivamente pessoais, insusceptíveis de serem qualificados como satisfação de necessidades atendíveis.
Vejamos.
Estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, no que respeita ao conceito de acidente de trabalho:
Artigo 8.º
Conceito
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
Artigo 9.º
Extensão do conceito
1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.
De acordo com o que ensina Maria do Rosário Palma Ramalho (Tratado de Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª edição, pp. 872 e ss.), esta noção legal de acidente de trabalho permite recortar a figura com recurso a um critério subjectivo, a um critério geográfico, a um critério temporal e ainda ao dano típico que resulta daquele, para além de se exigir um adequado nexo de causalidade entre o evento acidentário e o dano, nos termos gerais da responsabilidade civil.
Por seu turno, o critério do local da ocorrência do acidente apresenta-se conjugado com um critério de autoridade.
Na verdade – esclarece aquela autora (op. cit., pp.874-875) – “(…) a lei utiliza um conceito amplo de local de trabalho, identificando-o com o lugar onde o trabalhador se encontre ou se deva dirigir, por força do trabalho, e no qual esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador (art. 8.º n.º 2 a) da LAT). Deste modo, o critério geográfico conjuga-se com um critério de autoridade, que faz apelo ao controlo do empregador sobre o trabalhador, na delimitação do acidente de trabalho.
(…) Por outro lado, uma vez apontado o local de trabalho como um dos critérios delimitadores do acidente de trabalho, a lei procede a algumas extensões da tutela acidentária com alcance geográfico, que permitem qualificar como acidentes de trabalho os eventos danosos ocorridos nas situações seguintes:
- no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste local, que é definido, em termos muitos amplos, pelo art. 9.º n.º 1 a) e n.º 2 da LAT: é a categoria dos acidentes de trabalho in itinere;
(…)
De outra parte, o critério delimitador da autoridade ou controlo do empregador é também objecto de extensão no art. 9.º n.º 1 da LAT, permitindo enquadrar no conceito de acidente de trabalho o sinistro ocorrido na execução de serviços espontaneamente prestados pelo trabalhador e dos quais o empregador pode beneficiar (art. 9.º n.º 1 b) da LAT), bem como noutras situações em que, apesar de o trabalhador se encontrar no local de trabalho, não está adstrito à sua actividade laboral (e, nessa medida, sujeito ao controlo do empregador), mas sim a outras actividades, como o exercício do direito de reunião ou a actividade de representação de outros trabalhadores, ou ainda em actividade de formação (art. 9.º n.º 1 c) e d) da LAT).
Já no caso de o contrato de trabalho se encontrar suspenso, por impedimento prolongado devido ao trabalhador ou ao empregador, ou por qualquer outra causa que determine a suspensão do vínculo, o acidente que sobrevenha ao trabalhador não pode ser qualificado como acidente de trabalho, uma vez que escapa ao critério da autoridade ou do controlo do empregador.” – sublinhado nosso.
Com efeito, nos termos do Código do Trabalho, a suspensão de contrato de trabalho decorre da impossibilidade temporária e total de prestação de trabalho por facto relativo ao trabalhador ou ao empregador (art. 294.º, n.º 1), designadamente o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença, acidente ou facto decorrente da aplicação da lei do serviço militar (art. 296.º, n.º 1), podendo o contrato suspender-se antes daquele prazo, no momento em que seja previsível que o impedimento vai ter duração superior (art. 296.º, n.º 3).
Ora, durante a suspensão, só se mantêm os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho (art. 295.º, n.º 1), pelo que apenas terminado o período de suspensão são restabelecidos os direitos, deveres e garantias das partes decorrentes da efectiva prestação de trabalho (art. 295.º, n.º 3), devendo no dia imediato à cessação do impedimento o trabalhador apresentar-se ao empregador para retomar a actividade (art. 297.º).
Assim, como sintetiza António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, Almedina, 16.ª edição, p. 425), “[o] facto ou situação em causa deve determinar a impossibilidade da execução do trabalho e, além disso, constituir obstáculo à disponibilidade do trabalhador, mesmo para outras funções compatíveis. É necessário, em suma, que o impedimento o afaste da actividade da empresa. É o que sucede nos casos expressamente previstos pelo texto legal citado – serviço militar obrigatório ou serviço cívico substitutivo, doença, acidente – e também noutros facilmente imagináveis, dotados de cobertura normativa em diplomas diversos.”
Em conformidade, não se mantendo a actividade ou disponibilidade do trabalhador, ficam paralisados deveres como os de assiduidade, obediência ou diligência, e, correspectivamente, o poder de direcção do empregador, bem como o dever de este pagar a retribuição, excepto nos casos indicados na lei, ou seja, como conclui aquele autor, “[o] conjunto do regime da suspensão do contrato de trabalho mostra que o legislador parte do “princípio” segundo o qual “não havendo trabalho não há salário”; os desvios a esse pressuposto traduzem-se sempre em normas expressas acerca de rendimentos aos quais o trabalhador atingido pela suspensão tem direito (arts. 305.º, 309.º, 320.º). Não havendo norma desse tipo, aplica-se a “regra” da suspensão do crédito retributivo.” (op. cit., p. 428).
Retornando ao caso dos autos, resulta do ponto 12 da factualidade provada, à luz das considerações que se acabaram de tecer, que à data da ocorrência do sinistro em apreço o contrato de trabalho do A. se encontrava suspenso por incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença natural, pelo que tal sinistro, reproduzindo novamente as palavras de Maria do Rosário Palma Ramalho, “não pode ser qualificado como acidente de trabalho, uma vez que escapa ao critério da autoridade ou do controlo do empregador.”
É certo que se provou que no dia 25/11/2011, por volta das 15 horas, o A. tinha-se deslocado desde a sua residência e tinha como destino final as instalações da empregadora, a fim de participar numa reunião para a qual tinha sido convocado a mando da empregadora e a ter lugar aí pelas 16 horas desse mesmo dia, sendo que o acidente de viação ocorreu cerca das 15h50.
Todavia, como se viu, trata-se duma ordem ilegítima do empregador, atenta a suspensão da obrigação do trabalhador de lhe prestar trabalho ou ficar na sua disponibilidade, com a inerente paralisação dos deveres de assiduidade, obediência e diligência, e, no que àquele respeita, do poder de direcção e do dever de pagar a retribuição.
O A. não estava obrigado a cumprir tal ordem.
Aliás, numa situação de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença, como é sabido, o trabalhador está mesmo proibido de se ausentar do seu domicílio, excepto para tratamento, só excepcionalmente e fundamentadamente podendo ser autorizada a ausência entre as 11h00 e as 15h00 e entre as 18h00 e as 21h00, pelo médico competente, obviamente em atenção a interesses relevantes do doente, designadamente benefício para a melhoria do seu estado de saúde, e nunca para satisfazer interesses do respectivo empregador.
Ora, não só nunca foi concedida tal autorização ao A. (cfr. os certificados de fls. 121 a 127), como aquele se ausentou de sua casa cerca das 15h00, para comparecer a uma reunião que teria lugar às 16h00, tendo o acidente de viação se verificado pelas 15h50, ou seja, fora dos períodos mencionados.
Por outro lado, estando o contrato de trabalho suspenso por doença, com o consequente recebimento de subsídio da Segurança Social, substitutivo da retribuição que a empregadora não está obrigada a pagar, carece totalmente de razão de ser pretender receber uma indemnização por incapacidade temporária para o trabalho por acidente de trabalho, cuja ratio radica precisamente na perda temporária da capacidade de angariar retribuição, entendimento que se deve estender à indemnização por incapacidade permanente ou morte porque – sublinha-se – se trata de hipótese em que o trabalhador, não só não está obrigado a prestar trabalho ou ficar na disponibilidade do empregador, como, pela natureza das coisas, está mesmo proibido por lei de o fazer, incorrendo, inclusive, em responsabilidade contra-ordenacional perante a Segurança Social.
Em face do exposto, não se configura a verificação de acidente de trabalho no caso dos autos, procedendo necessariamente o recurso da Apelante.

5. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar a sentença recorrida, absolvendo-se a Recorrente dos pedidos contra ela formulados.
Sem custas, atenta a isenção de que o A. beneficia.
Guimarães, 24 de Setembro de 2015
Alda Martins
Sérgio Almeida
Antero Veiga