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ALTERAÇÃO DE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
OBJETO DO PROCESSO
Sumário
I - O que se pretende com o regime do artigo 358.º do Código de Processo Penal, em caso de alteração de qualificação jurídica (como também sucede de forma equiparável em caso de alteração não substancial de factos), é que se garantam duas coisas, ambas necessárias à tutela da defesa do arguido: primeiro, que este seja informado da possibilidade de realização de uma convolação jurídica; e depois que, em face de tal advertência, lhe seja concedida uma oportunidade de redirecionar a sua defesa em função dessa novidade; foi este o paralelismo que se procurou traçar entre a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos. II - A prévia produção de prova é uma contingência específica da emergência da alteração dos factos e não da alteração de qualificação jurídica, não havendo razão para que se exerça qualquer tipo de condicionamento sobre os termos em que poderá ou não ser levada a cabo uma alteração da qualificação jurídica dos factos; se esta alteração pode ocorrer sem que haja produção de prova, não há motivo para que a sua admissibilidade fique a ela sujeita. III – Há alteração da qualificação jurídica dos factos quando os factos se mantêm, alterando-se somente a sua qualificação jurídica; o regime do artigo 358.º do Código de Processo Penal não deve constituir obstáculo a uma alteração da qualificação jurídica dos factos anterior ao início da audiência de julgamento na fase do saneamento do processo. IV - Face ao disposto no artigo 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, o objeto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados; perante a reconfiguração jurídica não há qualquer alteração do objeto do processo, não sendo posto em causa o seu efeito de vinculação temática, pelo que não há intromissão nas funções do Ministério Público. V - Se o tribunal, no primeiro exame do conteúdo da acusação, forma a ideia de que a qualificação jurídica dos factos imputados ali adotada não é correta, todos os outros sujeitos processuais sairão beneficiados com o imediato conhecimento da solução jurídica tida como devida; esse conhecimento será especialmente útil para o arguido, cuja defesa só tem a ganhar se puder ser organizada desde início tendo em conta essa informação; e é também importante para assegurar que a causa é julgada pelo tribunal competente, para evitar o avanço de um procedimento que seja legalmente inadmissível (por prescrição do procedimento, caso julgado, ilegitimidade do Ministério Público, etc.) ou para aferir a legalidade de provas cuja admissibilidade esteja dependente da natureza do crime imputado ou da gravidade da pena aplicável.
Texto Integral
Proc. n.º 1/21.5S1LSB-B.P1 Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular nº 1/21.5S1LSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 3, foi deduzida pelo Ministério Público acusação pública contra AA, sendo-lhe imputada a prática imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo arts. 2.º, n.º 1, al. an), 3.º, n.º 2, al. i) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1 e 184.º ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c) ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.
Remetidos os autos para julgamento, por despacho de 03-01-2023, a Senhora Juiz titular do processo decidiu, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 1, al. a), e 3, al. d), do CPPenal rejeitar parcialmente a acusação pública por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos e os factos não constituírem crime.
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Inconformado com esta decisão, recorreu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, solicitando a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que determine o recebimento da acusação pública deduzida devendo a Srª juíza proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, seguindo os autos os seus habituais trâmites.
Apresenta em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação:
«I. Por douto despacho judicial proferido no dia 03/01/2023 a Meritíssima Juiz rejeitou parcialmente a acusação quanto aos factos descritos relativos à prática do crime de detenção de arma proibida, nos termos do disposto no art.º 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d) do C.P.P.;
II. Admitindo-se que os factos narrados não integram a prática do crime de detenção de arma proibida, certo é que não deixam de constituir um crime: o de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo art.º 87º, n.º 1 da Lei N.º 5/2006, de 23/02;
III. Apesar disso, a Meritíssima Juiz não retirou qualquer ilação nesse sentido;
IV. Ora, se o Juiz divergir da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e quiser saná-la antes do julgamento, ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º C.P.P., deve proceder ao enquadramento jurídico que tenha por correto daqueles factos;
V. Tal circunstância, representava uma mera alteração (não substancial) da qualificação jurídica que sendo comunicada ao arguido não implicava qualquer limitação dos seus direitos de defesa nem estava dependente da sua concordância – cf. decorre do art.º 358º, n.º 3 do C.P.P.
VI. O art.º 311º, n.º 3, al. d) do C.P.P. prevê taxativamente que a acusação só deve ser rejeitada se os factos narrados não constituírem pura e simplesmente nenhum crime;
VII. E o despacho de acusação proferido nos autos descreve factos que são suscetíveis de integrar os elementos objetivo e subjetivo do crime de tráfico e mediação de armas;
VIII. Ao rejeitar parcialmente a acusação em vez de proceder à alteração (não substancial) da qualificação jurídica no momento em que proferiu o despacho de saneamento do processo, a
Meritíssima Juiz violou o disposto no artigo 87º, n.º 1º da Lei N.º 5/2006, de 23/02, no artigo 311º, n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal e no artigo 32º, n.º 5 da Constituição da
República Portuguesa.»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer e expôs de forma desenvolvida e aprofundada as suas razões, pugnando a final, pela manutenção do despacho recorrido.
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Não foram apresentadas respostas ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal.
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II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se é incorrecta a decisão do Tribunal a quo que rejeitou, por manifestamente infundada parte da acusação pública e se se lhe impunha efetuar alguma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.
Antes de passarmos à apreciação do recurso importa ter presente a decisão que constitui seu objecto, que é do seguinte teor (transcrição):
«I.
Autue como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.
II.
O Tribunal é o competente.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer
e que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
III.
Da acusação pública deduzida contra o arguido AA
O Ministério Público deduziu acusação pública contra o Arguido AA
imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo arts. 2.º, n.º 1, al. an), 3.º, n.º 2, al. i) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1 e 184.º ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c) ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.
Ora, o art. 311.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP) determina que recebidos os
autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou
incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo legal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. A concretização do conceito “manifestamente infundada” surge dilucidada no n.º 3 do referido preceito, considerando-se uma acusação manifestamente infundada quando: a) não contenha a identificação do arguido; b) não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam ou d) se os factos não constituírem crime.
Para aferir a conformidade de uma acusação é necessário recorrer ao art. 283.º, n.ºs 3, 7 e 8 do CPP. Assim, nos termos do art. 283.º, n.º 3, al. b) do CPP é necessário que na acusação conste, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Decorre da Constituição da República Portuguesa no seu art. 32.º, n.º 4 que o processo penal
tem estrutura acusatória, isto é, o objecto do processo penal é fixado pela acusação. É a narração sintética dos factos que vincula tematicamente o Tribunal, na medida em que delimita o seu poder cognitivo. Esta vinculação do Tribunal à exposição dos factos, abrange necessariamente os factos integradores de todos os elementos típicos do crime, quer os objectivos, quer os subjectivos e ainda todos os factos que possam relevar para a determinação da medida da pena, nomeadamente circunstâncias agravantes ou atenuantes (cfr. Maia Costa, “Código de Processo Penal Comentado”, 3.ª Edição Revista, Almedina, pág. 954).
Nas palavras de Maia Gonçalves, “a acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade” (in “Código de Processo Penal”, Almedina, pág. 667).
No caso dos autos, ao arguido é imputada a prática de um crime de detenção de arma proibida, através dos arts. 2.º, n.º 1, al. an), 3.º, n.º 2, al. i) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Para tanto, vem acusado da prática dos seguintes factos:
“Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 20 de Janeiro de 2021, AA, então residente na Rua ..., ..., ... Lourosa e através do site da OLX, publicitou, desde o mês de Outubro de 2020, e sob o nome de BB a venda de um bastão extensível da Classe A, pelo preço de €120,00, que é um instrumento portátil telescópico, rígido ou flexível, destinado a ser empunhado como meio de agressão ou de defesa.
Para tanto, o arguido criou o anúncio com o ..., referindo que residia no Concelho de Santa Maria da Feira, no Distrito de Aveiro e possuía o email: CC...@gmail.com e com o contacto telefónico ....
O arguido conhecia as características de tal arma e sabia que não podia importá-la, adquiri-la ou por qualquer meio obter a mesma ou cedê-la nas circunstâncias referidas a um indivíduo, cuja identidade se desconhece.”
Vejamos.
O art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sob a epígrafe “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, no n.º 1, al. d) prevê que quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desactivar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo (…) bastão extensível é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
Por “bastão extensível” entende-se o “instrumento portátil telescópico, rígido ou flexível, destinado a ser empunhado como meio de agressão ou defesa” (art. 2.º, n.º 1, al. an) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), estando classificado como uma arma de tipo A, de acordo com o art. 3.º, n.º 2, al. i) do mesmo diploma, cuja venda, aquisição, cedência, detenção, uso e porte de armas, acessórios e munições é proibida pelo art. 4.º n.º1 do mesmo diploma.
O crime de detenção de arma proibida, prevê assim como condutas típicas capazes de ser objecto do crime doloso deste ilícito criminal: i) a detenção, ii) o transporte, iii) a importação; iv) a transferência; v) a guarda; vi) a compra; vii) a aquisição por qualquer título ou por qualquer meio, a obtenção por viii) fabricação; ix) transformação; x) importação; xi) transferência; xii) exportação; xiii) a utilização e xiv) o porte de arma.
Relativamente ao elemento subjectivo exige-se que o agente actue com dolo, em qualquer uma das suas modalidades e, consequentemente, a representação por parte do arguido dos elementos objectivos previstos no tipo, acima considerados (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/02/2016, proferido no âmbito do processo n.º 649/12.9GDLLE.E1, disponível em www.dgsi.pt).
No caso em apreço, é imputado ao arguido a criação de um anúncio no site “OLX” a publicitar a venda de um bastão extensível da Classe A, pelo preço de € 120,00, sob o nome de “BB”, referindo que residia no concelho de Santa Maria da Feira, com um endereço electrónico e contacto telefónico e que este conhecia as características da arma e que sabia que não podia importá-la, adquiri-la ou por qualquer meio obter a mesma ou cedê-la nas circunstâncias referidas a um indivíduo, cuja identidade se desconhece.
Ora, temos assim que a simples leitura da factualidade imputada ao arguido não permite chegar à conclusão de que o comportamento deste preenche qualquer conduta típica susceptível de preencher o elemento objectivo do crime de detenção de arma proibida. Ali se descreve um mero anúncio / proposta de venda de um objecto que o arguido terá classificado como “bastão extensível”, sequer sendo descritas na acusação as concretas características de tal objecto por forma a poder concluir pela sua subsunção ao conceito previsto no art. 2.º, n.º 1, alínea an) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Ademais, da acusação não resulta que o mesmo adquiriu, deteve e vendeu um bastão extensível em algum momento, mas somente que publicitou a venda de um tal objecto. Isto é, a única acção imputada ao arguido é a colocação de um anúncio numa plataforma de compra e venda de bens e, tal não significa, de forma clara e imediata, a aquisição, detenção ou a venda de uma arma pelo arguido.
Em suma, não resulta da acusação que o arguido em algum momento efectivamente deteve, transportou, importou, transferiu, guardou, comprou, adquiriu por qualquer título ou por qualquer meio, obteve por fabricação, transformação, importação, transferência, exportação, utilização ou porte um objecto com características que permitam concluir que se trata de um bastão extensível, razão pela qual a factualidade ali descrita não permite concluir pelo preenchimento do elemento objectivo do crime de detenção de arma proibida.
Tendo em consideração o exposto, conclui-se que a acusação pública deduzida nos autos contra o arguido, no que concerne à imputação a este de um crime de detenção de arma proibida é manifestamente infundada, dado que os factos referentes a este crime não consubstanciam a prática de um crime (art. 311.º, n.º 3, al. d) do CPP).
Aponte-se que, de acordo com a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, a falta de qualquer um dos elementos que constituem o tipo legal do crime, não é passível de ser suprida em julgamento com recurso ao art. 348.º do CPP (disponível em www.dgsi.pt).
Face ao exposto e ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, als. b) e d) do CPP,
rejeito parcialmente a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA quanto aos factos ali descritos relativos à prática do crime de detenção de arma proibida.
Notifique.
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Recebo a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o Arguido AA pela prática dos restantes factos e com base nas disposições legais nela constantes e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 313.º n.º 1, alínea a) do C.P.P.
IV.
O Arguido tem Defensora nos autos que se mantém.
V.
Por se afigurar adequado e suficiente às exigências cautelares do caso em apreço, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos processuais sujeito a termo de identidade e residência já prestado a fls. 91.
VI.
Nos termos dos arts. 311.º-A, n.ºs 1, 3 e 4 e 311.º-B, ambos do CPP, notifique o arguido e sua Defensora para, querendo, contestar e apresentar rol de testemunhas.
VII.
Admite-se o pedido de indemnização civil deduzido pelo Demandante CC, por requerimento de 03/11/2022.
Cumpra o disposto no art. 78.º, n.º 1 do CPP.
Santa Maria da Feira, d.s.
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Vejamos.
O recurso interposto salienta a ideia de que os factos constantes da acusação, ainda assim, consubstanciam a prática de um crime de tráfico e mediação de armas, pelo que o tribunal a quo não deveria ter rejeitado parcialmente a acusação, devendo, antes ter procedido à alteração da qualificação jurídica dos mesmos.
Em síntese, a Meritíssima Juiz após ler a acusação pública considerou que o arguido se limitou a proceder à publicitação da venda de um bastão extensível e que tal conduta não está prevista no tipo objetivo do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, n.º 1, da Lei N.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Ademais, entendeu que não resultava da acusação que ele tivesse adquirido, detido ou vendido um bastão extensível, ou seja, que em momento algum ele teve consigo aquele objeto. Por fim, afirmou que não foi descrita na acusação as caraterísticas do bastão extensível.
Ora, nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 3º, al. d) do C.P.P. (preceito citado no despacho recorrido) a acusação será manifestamente infundada quando os factos narrados “não constituírem crime”.
Vejamos então se publicitação para venda de um bastão extensível (arma proibida) não constitui um crime.
Ora, nos termos do disposto no art.º 87º, n.º 1, da Lei N.º 5/2006, de 23 de Fevereiro incorre na prática do crime de tráfico e mediação de armas:
“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transação ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, adotar algum dos comportamentos previstos no artigo anterior, envolvendo quaisquer bens e tecnologias militares, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos aí referidos, é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão”.
Portanto, se é certo que os factos descritos na acusação e imputados ao arguido não são suscetíveis de integrar a prática do crime de detenção de arma proibida, eles não deixam de poder constituir um crime conforme decorre da leitura conjugada do art.º 311º, n.º 3, al. d) do C.P.P. e art.º 87º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
O Tribunal “a quo” optou por rejeitar liminarmente a acusação quanto ao crime de detenção de arma proibida não equacionado a possibilidade de tais factos constituírem a prática de um crime de tráfico e mediação de armas.
O crime de tráfico e mediação de armas prevê como modalidades de ação a venda, cedência a qualquer título e até a mediação de uma transação não se exigindo sequer que se tenha a disponibilidade física da arma proibida.
Este tipo legal prevê ainda a possibilidade de apenas se ter intenção de transmitir uma arma proibida por meio de aquisição prévia, compra, detenção, ou outra modalidade de conduta prevista no art.º 86º do citado diploma legal.
“O tráfico e a mediação não têm de ser onerosos. E é suficiente a prática de um único ato de venda, de cedência ou de mediação (ou de qualquer das outras modalidades de atuação previstas) e também relativo a uma só arma para estar preenchido este tipo legal de crime quer o seu n.º 1, quer o seu n.º 2” Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Universidade Católica Editora, Volume I, pág. 247.
Ora, o despacho de acusação proferido nos autos prevê as modalidades típicas de venda\cedência de uma arma proibida e respetivo elemento subjetivo, no que toca ao conhecimento da arma e da proibição de a ceder a qualquer título a terceiros.
Acresce que, um bastão extensível não precisa de ser minuciosamente descrito (com tamanho, largura, peso, etc…) para ser qualificado como uma arma proibida, porque se trata de um objeto cuja denominação literal é facilmente apreensível e de uso reservado apenas às forças de segurança e, por isso, proibido por lei. De todo modo, dentro do possível, na acusação é referido que se tratava de um: “instrumento portátil telescópico, rígido ou flexível, destinado a ser empunhado como meio de agressão ou de defesa”.
Aliás, através da fotografia do anúncio de venda junto aos autos não se descortina que mais caraterísticas tivessem de ser realçadas na acusação, sendo que no referido anúncio é mencionado “bastão istensivel para defesa pessoal de vigilantes, segurança entre outros. Valor não negociável” – cf. fls.2/4.
Aqui chegados, pode-se desde já concluir que o tribunal a quo não podia ter rejeitado parcialmente a acusação, dado que os factos neles constantes eram passíveis de serem integrados num tipo legal de crime alternativo.
De facto,« Conforme tem sido jurisprudência uniforme dos nossos tribunais superiores «A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na predita al. d), quando for notório, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não constituem crime (vale por dizer: que não preenchem qualquer tipo legal de crime). Já se vê, assim, que tal não pode ser o caso em que o juiz, no despacho de saneamento, fazendo um juízo sobre a relevância criminal desses factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis.” ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, 21.10.2020, RELATOR ANA PARAMÉS.»
A acusação apenas será manifestamente infundada, na definição legal, se o entendimento sobre a irrelevância penal dos factos nela narrados for pacífico, indiscutível, incontroverso, aceite como válido sem objeções na doutrina e na jurisprudência - situação em que o julgamento, como nas demais alíneas daquele nº 3, é previsivelmente inútil face à manifesta inviabilidade ou improcedência da acusação.
A alínea d), do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal não visa dar guarida a um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório - o tribunal é sempre livre de aplicar o direito (princípio da livre aplicação do direito e qualificação dos factos), mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando esta for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
Este fundamento só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal, v.g. insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal e não se subsume a algum tipo legal de crime, o que não se verifica no caso concreto.
Ou seja, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada, o que não é o caso.
Em suma, o Tribunal a quo precipitou-se e fez um pré-julgamento da acusação, quando tal não lhe era admissível. Impõe-se, por isso, a revogação da decisão de rejeição parcial da acusação.
Coloca-se agora a seguinte questão que é a de saber se o tribunal a quo deveria pura e simplesmente receber a acusação tal com ela está e deixar para momento ulterior, em sede de julgamento e após a produção de prova, (pode dar-se o caso de nada se provar e nem sequer ser necessária a alteração do enquadramento jurídico com recurso ao art. 358º, n º 3 do CPP) a alteração da qualificação jurídica.
Ou, como pugna o recorrente, proceder de imediato a quando do recebimento a essa alteração na fase do saneamento previsto no art. 311º do CPP.
Doutrina e jurisprudência dividem-se.
Trata-se de uma questão controvertida na jurisprudência.
Seguiremos de perto a posição defendida no VOLUME V \ n.º 3 \ novembro 2021 \ 135-149 141 A alteração da qualificação jurídica dos factos no saneamento do processo penal \ Nuno Brandão, Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra COMENTÁRIO DE JURISPRUDÊNCIA Nuno Brandão Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra por se nos afigurarem pertinentes e sensatos os respetivos argumentos que se transcrevem bem como as posições jurisprudenciais que defendem a posição infradescrita.
À problemática da alteração da qualificação jurídica dos factos no saneamento do processo penal está de alguma forma relacionada com o da possibilidade de realização de uma convolação após abertura da audiência de julgamento, a propósito do qual o Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a tomar uma posição uniformizadora, no âmbito de recurso para fixação de jurisprudência.
Em Ac. n.º 11/2013 (Rel. Pires da Graça), concluiu o STJ que «a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos fatos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º, n.os 1 e 3, do CPP».
A jurisprudência fixada por este Ac. do STJ n.º 11/2013 não abrange o momento do saneamento do processo, tendo o próprio STJ ressalvado, nesse aresto, que «a questão em análise está a jusante do despacho inerente aos artigos 311.º a 313.º do CPP; situa-se após a prolação desse despacho, e, por conseguinte, situa-se em audiência de julgamento depois de ter sido iniciada, e integra-se no mérito da causa».
Não obstante, os argumentos que levaram o STJ a estabelecer aquela jurisprudência têm sido transpostos para a requalificação jurídica dos factos antes de iniciada a audiência de julgamento, motivo pelo qual aquele Ac. n.º 11/2013 é frequentemente invocado para contrariar essa possibilidade.
São de diversas as razões apresentadas contra a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos antes do encerramento da audiência de julgamento, incluindo no ato de saneamento do processo. De um ponto de vista mais formal, argumenta-se com a falta de previsão legal específica de uma tal modificação. E no plano material e dos princípios, diz-se que admitir essa alteração significaria compactuar com uma ingerência do tribunal na esfera de atuação do Ministério Público, permitindo que controlasse a atividade por este desenvolvida no termo da fase que lhe cumpre dirigir, o que não é compatível com a estrutura acusatória do processo e com o princípio da autonomia do Ministério Público.
Não havendo disposição que preveja de forma expressa a possibilidade de levar a cabo a convolação no saneamento do processo e que estando ela apenas prevista no art. 358.º do CPP, preceito dedicado à alteração não substancial dos factos, será vedado ao tribunal dar uma nova configuração jurídico-penal aos factos imputados ao arguido sem que antes se produza prova sobre os mesmos. Tal só poderia ocorrer em sede de instrução, art.303º do CPP e citado art. 358 também do CPP em sede de julgamento.
No caso não houve instrução.
Sendo a audiência de julgamento o espaço processual próprio para a produção e exame da prova a ter em consideração na decisão sobre a matéria de facto a tomar na sentença (art. 355.º, n.º 1, do CPP), alarga-se à alteração da qualificação jurídica dos factos uma premissa que marca o regime da alteração (substancial e não substancial) dos factos: a de que a imputação só poderá ser reconformada após haver produção de prova. Antes disso, considerando o desenho processual da fase de julgamento do nosso processo penal, não é cogitável uma alteração dos factos. Um dado que, segundo esta corrente, deverá valer também para a alteração da qualificação jurídica dos factos, por força da sua arrumação sistemática no preceito relativo à alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art. 358.º do CPP). Grosso modo, raciocina-se nestes termos: sendo os arts. 303º e 358.º do CPP os únicos lugares onde o legislador regula a tramitação a seguir em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos, então só no contexto a que aquele preceito se refere – o de uma alteração que ocorre «no decurso da audiência» (n.º 1) – é que uma tal alteração deverá ser autorizada; e mesmo aí, isto é, estando a audiência de julgamento já aberta, só após a produção da prova será admissível, pois antes disso não se vê como possa ser possível uma alteração não substancial dos factos; e o que vale para a alteração de factos deverá valer também para a alteração da qualificação jurídica, já que esta está contemplada no artigo que versa sobre a alteração não substancial dos factos (art. 358.º, n.º 3, do CPP). Esta visão mistura e confunde duas realidades normativas substancialmente distintas – a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos –, subordinando esta última a uma condição que não só é para ela desprovida de sentido, como até é contrária à sua própria lógica.
Com o aditamento do n.º 3 do art. 358.º do CPP, realizado na revisão de 1998 do CPP (Lei n.º 59/98), não se pretendeu propriamente abrir caminho a uma alteração da qualificação jurídica dos factos na fase de julgamento até aí porventura proibida. Já antes de 1998, tanto na doutrina como na jurisprudência era largamente maioritário o entendimento de que o tribunal tinha plena latitude para dar aos factos imputados ao arguido na acusação pública um enquadramento penal distinto do aí sufragado pelo Ministério Público. O que então sobretudo se discutia era se, embora não constituindo uma alteração dos factos, a admissibilidade da convolação jurídica deveria ou não estar dependente de uma condição a que aquela estava sujeita: a prévia concessão ao arguido de uma oportunidade de defesa. Como é sabido, prevaleceu, fruto principalmente da ação do Tribunal Constitucional, Acs. do TC n.os 173/92 (Luís Nunes de Almeida), 279/05 (Sousa e Brito), entre outros, que culminaram na decisão de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral tomada pelo Ac. do TC n.º 445/97 – todos disponíveis in www.tribunalconstitucional, a ideia de que se é certo que se deverá assegurar ao tribunal a liberdade de qualificação jurídica dos factos, não menos certo é que não poderá essa prerrogativa deixar de ser compatibilizada com o direito de defesa do arguido. Deste modo, antes de consumar, na sentença, uma alteração da qualificação jurídica dos factos, deveria o tribunal prevenir o arguido dessa sua intenção, para que este, querendo, pudesse reorganizar a sua defesa em função da nova perspetiva jurídica sobre os factos imputados trazida pelo tribunal. Foi esse o sentido do n.º 3 introduzido no art. 358.º do CPP. A remissão para o regime da alteração não substancial dos factos visou garantir que o arguido não seja confrontado, já só na sentença, com uma convolação surpresa, comprometedora da efetividade do seu direito de defesa. O que se pretende então é que, tal como sucede quando o tribunal se propõe avançar para uma alteração não substancial dos factos, se garantam duas coisas, ambas necessárias à tutela da defesa do arguido: primeiro, que este seja informado da possibilidade de realização de uma convolação jurídica; e depois que, em face de tal advertência, lhe seja concedida uma oportunidade de redirecionar a sua defesa em função dessa novidade. Foi este o paralelismo que se procurou traçar entre a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos. A prévia produção de prova é uma contingência específica da emergência da alteração dos factos, sem relevo para a tramitação processual que deverá ser adotada quando ela se verifique, não havendo razão para que exerça qualquer tipo de condicionamento sobre os termos em que poderá ou não ser levada a cabo uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Se, na verdade, esta alteração pode ocorrer sem que haja produção de prova, não há motivo para que a sua admissibilidade fique a ela sujeita.
Com efeito, não estando a emergência da alteração da qualificação jurídica dos factos dependente de uma prévia produção de prova, não se percebe a que título deverá aplicar-se uma vertente do n.º 1 do art. 358.º do CPP que lhe é substancialmente estranha. Este tipo de alteração pressupõe uma constância dos factos essenciais imputados ao arguido. Só estaremos neste domínio se os factos com base nos quais se forma, na pendência da fase de julgamento, uma qualificação jurídico-penal distinta daquela que fez curso na acusação continuarem a ser substancialmente os mesmos que nela se imputam ao arguido. Uma alteração à qual é alheia qualquer tipo de atividade probatória. Quer ela tenha lugar logo na abertura da fase de julgamento, aquando do saneamento, quer no seu encerramento, na sentença, esta alteração abstrai das provas que estão a montante dos factos imputados e centra-se exclusivamente nestes factos, incidindo sobre eles. Sendo certo que só se falará de uma alteração de qualificação jurídica ali onde os factos imputados persistam os mesmos: o tribunal aponta para a aplicação de uma norma incriminadora distinta daquela que o Ministério Público entendeu aplicável a esses mesmos factos. Se o tribunal considera estar em causa um crime diverso ou o mesmo crime, mas punido, no seu limite máximo, com uma pena mais grave porque os factos entretanto apurados são diferentes dos que se descreviam na acusação ou na pronúncia, estaremos perante uma alteração de factos, de caráter substancial [art. 1.º, al. f), do CPP], e não em face de uma alteração da qualificação jurídica dos factos. A este propósito Maria João Antunes, 2021, p. 210: «Há alteração da qualificação jurídica dos factos quando os factos se mantêm, alterando-se somente a sua qualificação jurídica.» Pelo que vem de se ver, o regime do art. 358.º do CPP não deve constituir obstáculo a uma alteração da qualificação jurídica dos factos anterior ao início da audiência de julgamento na fase do saneamento do processo.
Outra objeção que é oposta à alteração da qualificação jurídica dos factos antes de iniciada a produção de prova é a da alegada ingerência do tribunal na esfera de atuação própria do Ministério Público.
Considera-se que uma tal modificação representa uma abusiva forma de controlo do tribunal sobre a atividade do Ministério Público, incompatível com a natureza acusatória do processo e ofensiva da autonomia que a esta autoridade judiciária é constitucional e legalmente reconhecida.
A estrutura acusatória do processo opõe-se a que o objeto do processo, fixado na acusação, seja substancialmente alterado pelo tribunal na fase de julgamento (art. 359.º, n.º 1, do CPP). Se uma tal alteração substancial dos factos fosse legalmente admitida, o tribunal assumiria, materialmente, uma função acusadora, que cumularia com a função jurisdicional que lhe cumpre desempenhar. Esta acumulação de papéis implicaria uma concentração das funções de acusar e de julgar num mesmo órgão, violando portanto o princípio da acusação.
Não é isso, porém, que sucede quando o tribunal dá aos factos imputados pelo Ministério Público um enquadramento jurídico-penal distinto daquele que é avançado pelo Ministério Público.
Nesta hipótese, não há qualquer alteração do objeto do processo, não sendo posto em causa o seu efeito de vinculação temática, segundo o qual «o objeto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença [princípio da identidade], deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) [princípio da unidade] e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se decidido [princípio da consumpção]». Figueiredo Dias, 1988, pp. 103 e s.
Na fase de julgamento, a vinculação temática ao objeto do processo inerente ao princípio da acusação a que o tribunal está submetido circunscreve-se aos factos imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia, não sendo afetada por uma possível requalificação jurídica desses factos. Que por isso mesmo é legalmente autorizada. Se se entendesse que uma reconfiguração normativa dos factos teria um significado de alteração do objeto do processo, seria ela vetada pelo princípio da identidade, que, como se viu, determina que o objeto do processo se deve manter o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença. Para que não haja dúvidas, o próprio CPP, no art. 339.º, n.º 4, clarifica que a discussão da causa tem por objeto todas as soluções jurídicas pertinentes em face dos factos imputados ao arguido, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia. Se a alteração dessa qualificação jurídica não fosse permitida não faria sentido admitir a discussão de enquadramentos jurídicos alternativos. Por isso se entende, face ao disposto no art. 339.º, n.º 4, do CPP, que «o objeto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados» Paulo Pinto de Albuquerque, 2011, Art. 339.º, nm. 8. No caso da mera alteração da qualificação jurídica dos factos promovida pelo tribunal na abertura da fase de julgamento. Nela, os factos de que o arguido se encontra acusado ou pronunciado permanecem intocados, permanecendo por isso também imperturbado o princípio da identidade do objeto do processo.
O mesmo e passa no presente caso sendo o próprio Ministério Público, e não o tribunal, que imputou ao arguido os factos que terão sido praticados pelo arguido e até é o próprio M.P que pede que se altere a qualificação jurídica dos factos solicitando o encaminhando para julgamento. A circunstância de o tribunal ter considerado que tais factos não poderiam fazer o arguido incorrer numa condenação por um crime de detenção de arma proibida, e concluindo-se que aquela matéria fáctica constitui ainda um outro tipo de crime, nenhum reflexo tem no objeto do processo, que permaneceu o mesmo, nenhuma suspeição suscita sobre a imparcialidade do juiz e nenhum prejuízo acarreta para a posição processual do arguido, pois os factos que poderiam fundar uma tal responsabilidade penal do arguido foram introduzidos no feito não pelo tribunal, mas sim pelo Ministério Público. Não é por esta via que poderá então considerar-se ofendida a natureza acusatória do processo.
Considerando, porém, que «o objeto do processo penal é constituído pela questão de facto descrita no acto acusatório e pelo conjunto de questões do direito que a questão do facto deva suscitar», Jorge de Figueiredo Dias / Susana Aires de Sousa, 2021, p. 181. Para o efeito em apreço, que é o de saber se a alteração da qualificação jurídica dos factos coenvolve ou não uma modificação do objeto do processo, estas perspetivas, acabam afinal por convergir numa mesma conclusão: a convolação jurídica não implica uma mutação do objeto do processo.
O problema está na divergência entre a solução jurídica que o tribunal considera reclamada pela factualidade descrita na acusação e aquela indicada pelo Ministério Público nessa peça processual, sendo certo que no caso dos presentes autos é o próprio M.P que solicita ao tribunal a alteração da qualificação jurídica. Ora, se o tribunal não está vinculado a uma tal qualificação – diferentemente do que acontece com a factualidade de que o arguido é acusado, em relação à qual, vale o efeito de vinculação temática do objeto do processo –, podendo adotar, na sentença, uma solução jurídica distinta, mesmo que mais gravosa para o arguido, não obstante o Ministério Público, na acusação, tem de indicar as disposições legais (a seu ver) aplicáveis [art. 283.º, n.º 3, al. c), do CPP]. A principal função da acusação é a de delimitar o objeto do processo, circunscrevendo os factos que poderão ser conhecidos pelo tribunal quando é chamado a julgar o arguido. Como é óbvio, trata-se de um papel que se liga de forma umbilical ao efeito de vinculação temática do objeto do processo e ao princípio da identidade que o caracteriza. A qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não é coberta por esse efeito. Significa isto que, no contexto das funções de que a acusação é incumbida, a obrigação de indicação das disposições legais aplicáveis aos factos descritos na acusação não se funda na necessidade de dar cumprimento à função delimitativa que lhe é atribuída. Essa obrigação liga-se antes, indiscutivelmente, à função informativa que a acusação também deve prosseguir. De acordo com ela, a acusação deve dar a conhecer aos vários sujeitos processuais, em especial ao arguido, todos os aspetos de facto e de direito relevantes para uma eventual responsabilização criminal do acusado. É esse o motivo pelo qual a lei exige que o Ministério Público especifique quais são, do seu ponto de vista, as normas legais aplicáveis aos factos que leva à acusação. Nesta direção também, entre nós, João Conde Correia, 2007, p. 103, que se refere ainda a uma função de promoção processual. O enquadramento jurídico é importante para o exercício do direito de defesa e por forma a poder organizar a sua defesa e a exercer o seu contraditório em conformidade. Daí que a requalificação jurídica dos factos feita pelo tribunal durante a fase de julgamento, antes de iniciada a prova, não invade uma área de competência reservada ao Ministério Público, mas antes só a dar conta no processo, de modo a que todos os demais sujeitos processuais possam disso ficar cientes, qual é, em seu juízo, o quadro normativo em que se inscrevem os factos de que o Ministério Público acusa o arguido. Também não pode considerar-se, uma qualquer forma de controlo sobre a atividade do Ministério Público ou sequer mesmo da própria acusação, pois a posição jurídica divergente que o tribunal consigna no processo não se repercute numa qualquer espécie de rejeição ou invalidação da acusação. Não há motivo válido para que se trave uma eventual alteração dessa qualificação que o tribunal, ao confrontar-se com a acusação, entenda devida. Aliás, tudo aconselha a que o tribunal concretize essa alteração assim que, incluindo no momento do recebimento do processo (isto é, do saneamento), forme um juízo distinto sobre a solução jurídica a dar ao caso, tal como enunciado na acusação, distinta da apontada pelo Ministério Público. E em certas situações será até de entender que o tribunal estará mesmo obrigado a fazê-lo, nomeadamente, quando tal seja necessário para assegurar a legalidade processual. A requalificação jurídica dos factos imputados ao arguido, na acusação ou na pronúncia, a levar a cabo pelo tribunal poderá servir várias ordens de interesses, todos eles juridicamente reconhecidos tal como explanado no Acórdão do TRG já citado bem como a jurisprudência nele citada, e ainda Acs. TRP de 24.01.18, proc. n º 1408/16.5PEGDM.P1, relator Luís Coimbra e de 09.05.22, proc. n º 324/20.0PAVFR.P.
Assim, interesse dos outros sujeitos processuais em saber, de antemão, aquilo com que podem contar do tribunal, saindo favorecidas a segurança jurídica e a previsibilidade do subsequente desenrolar do pleito. Do mesmo passo é salvaguardado o direito de defesa do arguido. Além disso, poderá a requalificação ser imprescindível para garantir a regularidade processual da lide, evitando-se a prática de atos ilegais e desnecessários, respeitando-se a celeridade e a adequação processual contribuindo, portanto, para manter a legalidade da tramitação processual e para a promoção dos princípios da celeridade processual (art. 32.º, n.º 2, da CRP) e da economia processual (art. 130.º do CPC). Essa pluralidade de interesses que a imediata alteração da qualificação jurídica dos factos permitirá promover ou defender mostra que essa requalificação está essencialmente afeta a duas funções: uma função informativa, em tudo similar àquela que cabe à acusação, nos termos desenvolvidos supra; e uma função saneadora.
Se o tribunal, no primeiro exame do conteúdo da acusação ou da pronúncia, forma a ideia de que a qualificação jurídica dos factos imputados ali adotada não é correta, todos os outros sujeitos processuais sairão beneficiados com o imediato conhecimento da solução jurídica tida como devida. Esse conhecimento será especialmente útil para o arguido, cuja defesa só tem a ganhar se puder ser organizada desde início tendo em conta essa informação. Na verdade, do ponto de vista da estruturação da estratégia de defesa quanto mais cedo o arguido souber qual é a conceção jurídica do tribunal sobre os factos imputados, melhor. O seu direito ao contraditório não só não é prejudicado, como, pelo contrário, é reforçado: ocorrendo a alteração da qualificação jurídica no ato do saneamento do processo, o arguido poderá já tê-la em conta na sua contestação, no seu requerimento de prova, bem como na produção de prova e nas alegações que vierem a ter lugar na audiência de julgamento. Tudo o que, para o seu direito de defesa, é obviamente preferível do que só ter uma chance de contraditar essa nova solução jurídica já depois de concluída a produção de prova, num momento em que o encerramento da audiência se encontra próximo ou até já ocorreu, dentro do tempo considerado como estritamente necessário para o efeito.
Tal como afirma Nuno Brandão em obra citada Temos, pois, que a comunicação pelo tribunal da sua perspetiva jurídica sobre os factos imputados ao arguido tem um papel informativo equivalente ao da consignação na acusação das normas legais que o Ministério Público considera que lhes são aplicáveis. Por essa razão, dada a sua relevância para a efetivação do direito de defesa, é recomendável que o tribunal a partilhe no processo logo que se convença de que se trata da solução jurídica cabida à causa. Integrando-se este dever de informação no domínio mais amplo do direito fundamental de audiência e contraditório, cremos mesmo que essa comunicação será devida em nome do princípio da lealdade.
E este princípio é muito importante não sendo deveras aceitável, que o tribunal deva poder esconder para si uma informação importante para o exercício da defesa, só a libertando depois de produzida a prova, numa altura em que já foram dados praticamente todos os passos processuais que devem preceder a sentença e em que ao arguido não será concedido mais do que o tempo tido como estritamente necessário para a preparação da sua defesa.
A par desta função informativa, a alteração da qualificação jurídica dos factos é indispensável para que o tribunal garanta a legalidade processual, integrando-se por isso, de pleno direito, no ato de saneamento do processo. Essa função saneadora marcará a requalificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia quando ela seja imprescindível, fornecendo maiores garantias ao arguido do que as que teria caso se vedasse ao juiz do julgamento o poder de expressar a sua perspetiva jurídica dos factos constantes da acusação, por se considerar que apenas o poderia fazer no decurso da audiência e no condicionalismo estabelecido nos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, em que ao arguido é concedido, apenas, o “tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
E é também importante para assegurar que a causa é julgada pelo tribunal competente, para evitar o avanço de um procedimento que seja legalmente inadmissível (por prescrição do procedimento, caso julgado, ilegitimidade do Ministério Público, etc.) ou para aferir a legalidade de provas cuja admissibilidade esteja dependente da natureza do crime imputado ou da gravidade da pena aplicável. Neste tipo de situações, uma pronta requalificação jurídica dos factos poderá impedir que o processo avance para a realização de atos processuais que mais tarde serão inevitavelmente qualificados como inválidos, assim se prevenindo a prática de atos que terão tanto de ilegais como de inúteis. Com isso, será salvaguardado o princípio da economia processual e favorecer-se-á a celeridade processual.
É importante relativamente à competência do tribunal já que a definição da competência material segue, em geral, um modelo de determinação abstrata, assente na natureza do crime imputado ao arguido ou na medida máxima da pena abstrata cominada para o delito de que ele é acusado. Também a competência territorial poderá estar na dependência da qualificação jurídico-penal que se dê aos factos de que o arguido é acusado ou pronunciado, dado que, em regra, corresponde ao lugar da consumação do crime (art. 19.º, n.º 1, do CPP). Ora, se não se reconhecesse ao tribunal de julgamento a possibilidade de, no saneamento do processo, formar um juízo próprio sobre o relevo penal dos factos objeto do processo correr-se-ia o risco de a causa ser julgada por um tribunal material e/ou territorialmente incompetente, em afronta do princípio do juiz natural. Uma ofensa que em certos casos poderia ser mesmo irreparável, designadamente, quando o tribunal fosse territorialmente incompetente, atento o disposto no art. 32.º, n.º 2, al. b), do CPP, que estabelece o início da audiência de julgamento como momento limite para a declaração de incompetência territorial. Caso em que, portanto, na prática, a definição da competência territorial poderia ficar exclusiva e insindicavelmente nas mãos do Ministério Público. Ora, uma proteção efetiva do princípio do juiz legal não se compadece com uma proibição de alteração da qualificação jurídica dos factos se dela puder decorrer a atribuição de competência material ou territorial a um tribunal distinto daquele que resultaria das normas que o Ministério Público, no despacho de acusação. Com uma abertura à requalificação jurídica dos factos no saneamento do processo haverá ainda, além disso, ganhos respeitantes a interesses pessoais de sujeitos e participantes processuais, nomeadamente riscos de vitimização secundária inerentes ao processo penal que pode obrigar a um segundo julgamento.
Decisão:
Em face do exposto, impõe-se revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por despacho que receba a acusação pública na sua integralidade e requalifique juridicamente o crime de detenção de arma proibida, para um crime de tráfico e mediação de arma p.e.p pelo art. 87º, n º 1 da Lei nº 5/2006 de 23/02 e nessa sequência notifique o M.P para expressar se mantém o recurso ao disposto no art. 16º, n º 3 do CPP, seguindo o processo os seus trâmites normais.
Sem tributação.
Notifique.
Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 07 de Junho de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo a assinatura autógrafa substituída pela electrónica aposta no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
______________ [1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.