PRINCÍPIO DA ADESÃO
DIREITO DE REGRESSO
LESADO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Sumário

I – Os factos geradores da responsabilidade civil, que o juiz penal conhece por força do princípio da adesão, têm que ser os mesmos que justificam a responsabilidade criminal.
II – No exercício do direito de regresso não está em causa o direito do lesado a ser indemnizado por ter sofrido danos ocasionados pelo crime, ou seja, não está em apreciação a responsabilidade civil extracontratual de outrem pela prática de facto ilícito, mas sim o eventual direito do demandante de ser reembolsado do que pagou ao seu cliente, derivado da relação contratual existente entre ambos, nos termos da qual aquele terá a obrigação de indemnizar este em determinadas situações contratualizadas
III – O exercício deste direito terá de ser realizado através de acção cível autónoma, nos termos gerais de direito, uma vez que é inaplicável ao caso o princípio da adesão obrigatória de que temos vindo a falar.
IV – A indemnização paga pela entidade bancária demandante ao seu cliente, devido aos danos sofridos por este em consequência dos factos ilícitos imputados às arguidas, não resulta directamente da prática dos factos em apreciação no processo crime.
V – Além disso, não sendo a demandante ofendida nem assistente no processo crime, também não tem legitimidade para adquirir a qualidade de lesada, na medida em que não sofreu danos ocasionados pelo crime.

Texto Integral

            Processo nº 871/17.1PBCBR-A.C1.

               Comarca de Coimbra - Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz ....

               Relator: Luís Teixeira.

               Adjuntos: Vasques Osório.

                                Maria José Guerra.


I

1. No processo comum nº 871/17.... supra identificado, no despacho judicial de recebimento da acusação do Ministério Público contra as arguidas AA, BB e CC proferido nos termos do artigo 311º do Código de Processo Penal, foi rejeitada a admissão do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A contra as arguidas, com base no direito de regresso contra estas.

2. Não se conformando com a decisão, dela e recorre o demandante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A, formulando as seguintes conclusões:


I.          O BANCO SANTANDER TOTTA,S.A.deduziu nos autos PIC contra as Arguidas


AA, BB e


CC, invocando que as mesmas, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar


melhor descritos na douta acusação, causaram ao BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.


um prejuízo patrimonial.

II.         As Arguidas/Demandadas, na prossecução do plano que acordaram com terceiros, atuando da forma descrita na acusação, recebendo valores que depois enviavam a terceiros, após retenção de uma percentagem, ou revendendo bens, remetendo o produto da venda a terceiros, depois de reterem a comissão, ou seja, acusadas, praticando, cada uma, um crime de receptação, p. p. pelo artigo 231.º/1 do Código Penal, causaram prejuízos ao ofendido DD, prejuízo esse que o Demandante já reparou, reembolsando ao Cliente o valor de € 17.356,12.


III.        No crime de receptação, o ofendido, ou seja, o titular do interesse que a norma especialmente protege com a incriminação é a vitima do facto ilícito típico contra o património atravésdo qualfoi obtido o bemobjecto dareceptação, ou seja, incasu, a vitimado crime dereceptação foi o ClienteBancário DD, logo sendo este também o ofendido.

IV.        E crê-se que não existe duvida no sentido de que, apesar do crime de receptação ser autónomo do crime de burla informática e de não estar alegado terem sido as Arguidas a gizar o plano que veio a ser posto em prática, às mesmas poderá ser imputada responsabilidade pelo pagamento da indemnização adequada a restituir o prejuízo causado ao lesado.

V.         Assim, crê-se não existirem duvidas que DD, enquanto ofendido, tinha legitimidade para deduzir, nos autos, pedido de indemnização civil.


VI.        Já que todo o ofendido é lesado - cfr. n.º 1 do artigo 74.º do C.P.P. – sendo legitimo que o mesmo pretendesse ser ressarcido, pelas Arguidas, do prejuízo que sofreu.


VII.       No entanto, DD não deduziu PIC nos autos, PIC esse para ser indemnizado do prejuízo sofrido, porquanto esse prejuízo já foi reparado pelo BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., o qual reembolsou ao Cliente o valor de € 17.356,12 -cfr. Documento 1 e 2 juntos com o PIC.


VIII.      No âmbito do direito processual penal (artigo 71º), encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.


IX.        No caso dos autos, o Demandante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. interveio, reembolsando ao seu Cliente o valor do prejuízo, o qual passa, assim, a repercutir- se no seu património, podendo o Banco legitimamente exigir a indemnização de terceiro, do responsável civil que aqui são as três Arguidas.


X.         De facto,o prejuízo, i.é, o dano que se gerou no património do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. resultou da atividade ilícita e culposa das Arguidas e está a esta ligado por um nexo de causalidade adequada, devendo, pois, ser ressarcidos.

XI.        De facto, não concorda o Recorrente com a interpretação que é feita no despacho recorrido no sentido de que “Estamos aqui no âmbito de Direito de Regresso da entidade bancária sobre o seu cliente e não da responsabilidade civil extracontratual prevista nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil”.


XII.       O“BancoSantanderTotta,S.A.”deduziupedidodeindemnizaçãocivil, peticionando a condenação das Arguidas no pagamento da quantia de € € 20 761,78 (sendo € 17.356,12 capital e o restante juros), acrescida de juros vencidos desde 24.08.2022 até efectivo e integral pagamento.


XIII.      Tal pedido alicerça-se, pois, na responsabilidade civil emergente da prática de facto ilícito e, de acordo com o disposto no artigo 129.º do Código Penal, a responsabilidade civil emergente de crime é apreciada segundo as regras da lei civil.


XIV.      Para que alguém se constitua na obrigação de indemnizar é necessário que os factos provados integrem os elementos constitutivos da responsabilidade civil, nascendo, assim, a obrigação de indemnizar a cargo do lesante, nos termos dos artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 564.º, n.º 1, todos do Código Civil.


XV.       Ora, a ser feita prova (como se espera) da factualidade alegada na acusação publica e no pedido de indemnização civil, resulta não existirem dúvidas quanto ao preenchimento de todos os pressupostos da responsabilidade civil.

XVI.      Mais se refira que o BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. tem um interesse directo na satisfação do crédito do seu Cliente – desde logo, sob pena de se encontrar sujeita a responsabilidade civil contratual perante o ofendido - neste sentido, leia-se o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 12.02.2009, processo n.º 08A3714, disponível em www.dgsi.pt) -, tal como exige a subrogação legal (artigo
592.º, n.º 1, do Código Civil).


XVII.     Assim, havendo causa legal de sub-rogação, o Demandante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. subentrou na posição do Cliente DD, Ofendido, sendo, assim, pois, legalmente admissível o pedido de indemnização civil por si deduzido, bem como o requerimento probatório conexo.


XVIII.     O despacho recorrido violou os Art°. 71.º do CPP, 129.º CP, 483.º e 592.º do CC.


XIX.      Termos em que, e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, ser substituído por um outro que admita o pedido de indemnização civil.


TERMOS EM QUE, E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO E, EM      CONSEQUÊNCIA, SER SUBSTITUÍDO POR UM QUE ADMITA O PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL FORMULADO  PELO RECORRENTE



*

3. O Ministério Público em 1ª instância não respondeu.

            4. Nesta instância, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

            “Compulsado o teor da acusação, o despacho recorrido e a motivação do recurso, acompanha-se, na integra, a fundamentação de facto e de direito, inserta no despacho recorrido, no sentido de que o direito de indemnização que o demandante pretende exercer neste processo penal (fundado em direito de regresso, e que apenas surge na sua esfera jurídica a partir do momento em que indemnizou, com base em responsabilidade contratual, o cliente lesado) não é admissível em processo penal.

            Pelo que se entende que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, na integra o despacho recorrido”. 

            5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.


II

            Tem o despacho recorrido o seguinte teor:

            “Pedido de indemnização civil:

Foi formulado “pedido de indemnização civil” (rectius “direito de regresso”) pelo demandante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., a fls. 445 - ref. 7468431, de 24.08.2022-, contra as arguidas AA, BB; e CC, todas já melhor identificadas nos autos, peticionando o pagamento do montante global de € 20 761,78, sendo € 17.356,12 de capital, e o montante de € 3 405,66 de juros de mora, desde 23/10/2017 (data da reposição do valor ao Cliente) até à data da apresentação do pedido cível, acrescido ainda dos juros de mora vincendos, contados à taxa legal, desde tal data até efectivo e integral pagamento.

Fundamenta tal pedido no seu direito de regresso por, não obstante não se estar perante uma fraude imputável ao Demandante BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., ter este decidido assumir e restituir ao s/ Cliente DD em 23 de outubro de 2017 o valor do prejuízo deste. Pretende, o Banco/demandante ser reembolsado pelo montante do prejuízo e indemnização satisfeita ao seu cliente que cifra no montante de €14.047,70 (artigo 2º), ainda que traga à colação o disposto nos artigos 483º e seguintes do Código Civil.

Por força do contrato bancário que celebrou com o seu cliente DD, a entidade bancária aqui demandante pagou a indemnização devida pelos danos causados pela burla informática causada a este por terceiros desconhecidos que criaram uma página online como se se tratasse da página oficial do Banco Santander Totta, a qual após ser validada pelo cliente (através da instalação de uma APP Mobile e de um código enviado para o respectivo telemóvel), permitiu que o acesso à sua conta bancária fosse efectuada, por desconhecidos, como se do seu legítimo titular se tratasse, sem autorização e conhecimento deste.

De acordo com a acusação, tais indivíduos de identidade desconhecida, como parte do plano por si gizado e por forma a ocultar as suas identidades, vieram a solicitar a colaboração das arguidas, as quais aceitaram receber os valores decorrentes de tal actividade, ficando, para si, com parte, como compensação.

As três arguidas apenas vêm acusadas pela indiciada prática, cada uma, sob a forma consumada, um crime de receptação, p. p. pelo artigo 231.º/1 do Código Penal.

O ofendido DD ficou prejudicado em consequência da conduta de quem logrou movimentar o dinheiro da sua conta bancária (pessoa/s não concretamente apurada/s), e da conduta das arguidas, na quantia respeitante ao valor transferido de forma fraudulenta, obtendo aqueles um benefício patrimonial, de acordo com a acusação, de €10.047,70, vindo o BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., posteriormente, a reembolsar aquele, encontrando-se lesado em tal valor.

Portanto, no caso em apreço está em causa enxerto cível fundado no direito de regresso da Entidade Bancária relativamente ao seu cliente (que não é sequer aqui arguido), no âmbito do pagamento que realizou a este por ter sido vitima de uma fraude bancária causada por terceiros desconhecidos que criaram uma página online como se se tratasse da página oficial do Banco Santander Totta.

Da acusação não decorre que tivessem sido as Arguidas/Demandadas, a gizarem o plano de obterem dividendos através de uma burla informática, mas apenas que aceitaram colaborar com tais indivíduos, num segundo momento, aceitando receber os valores na sua conta (a arguida AA, no montante de 5.000€) decorrentes de tal actividade que depois enviavam a terceiros, após retenção de uma percentagem, ou, revendendo bens (a arguida BB), remetendo o produto  da venda a terceiros, ficando, para si, com parte, como compensação (reterem a comissão de 5% a 10%).

Mas, em termos rigorosos, do que se trata é da obrigação de reembolsar a entidade bancária da indemnização por si paga ao lesado/ofendido nos autos (DD), mas em sede de direito de regresso, em ação autónoma própria.

Estamos aqui no âmbito do Direito de Regresso da entidade bancária sobre o seu cliente e não da responsabilidade civil extracontratual prevista nos artigos 483º e seguintes do Código Civil.

Como é sabido a responsabilidade civil emergente de um crime é regulada pela lei civil, tendo a indemnização atribuída no âmbito do processo penal a natureza de indemnização civil de perdas e danos (art. 129.º, do Código Penal, 71.º e ss. do Código de Processo Penal, e 483.º do Código Civil), sendo que só os responsáveis pelo facto ilícito (criminal) poderão incorrer em responsabilidade civil.

Todavia, a responsabilidade civil que poderá ser apreciada no processo penal refere-se apenas àquela que emerge da violação do direito de outrém ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa, e da qual resultem danos (artigo. 483º do Código Civil), ficando assim excluída a responsabilidade contratual. Aliás, na decorrência de tal entendimento, o STJ, no Assento n.º 7/99, de 17/6/99, publicado no DR, I Série-A, de 3/8/99, estabeleceu jurisprudência uniformizadora no sentido de que em processo penal apenas é admissível a condenação do arguido com base em responsabilidade civil subjectiva ou extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.

Isto porque, como bem evidencia a jurisprudência nesta matéria, o enxerto civilístico terá que ter como causa de pedir “(…) os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado.” (cfr. Ac. do STJ de 10-12-2008, proc. n.º 08P3638). “A acção civil que adere ao processo penal, ficando nele enxertada, é apenas a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitua crime.” (ac. do STJ de 28-05-2015, Proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1). “No pedido de indemnização civil deduzido ao abrigo da previsão normativa do artigo 71.º do CPP, a causa de pedir é constituída pelos factos constitutivos da prática de um crime. Dito de outro modo, os factos geradores da responsabilidade civil e os que justificam a responsabilidade criminal são necessariamente coincidentes” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/10/2017, proc. nº 68/11.4TAPNI.C1). “Os danos indemnizáveis em processo penal são os que decorrem da prática do crime, pelo que terão de ser excluídos todos os demais, mesmo que os requerentes a eles tenham direito por outra razão que não a criminal”(Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/01/2013). “Se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, então esse pedido não é admissível em processo penal” (Ac. do STJ de 28-05-2015, Proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1).

Portanto, os factos geradores da responsabilidade civil têm que ser os mesmos que justificam a responsabilidade criminal (integralmente coincidentes), pelo que no âmbito do regime de aplicação do art. 129º do CPPenal, em que se remete a regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime para a Lei Civil, apenas é abrangida a responsabilidade por factos ilícitos, sendo total a exclusão da responsabilidade contratual e da responsabilidade por factos lícitos, nos casos contemplados na Lei.

O direito de regresso da Entidade Bancária é, assim, uma circunstância específica em relação à sua responsabilidade bancária em geral, mas por virtude de uma relação conexa com o contrato bancário, para os casos enunciados na lei, e que contratualiza o dever de reembolso do seu cliente. Todavia, este direito de regresso constitui um direito novo, surgido com o cumprimento da obrigação de indemnização (em principio contratualmente estabelecida), assistindo à Entidade Bancária apenas a faculdade de ser reembolsada pelos causadores da fraude.

Na ação de regresso já não está em causa o direito do lesado a ser indemnizado, nem a apreciação da responsabilidade extracontratual de quem quer que seja, mas apenas, o eventual direito do Banco se reembolsar do que pagou ao seu cliente, estando já definido o seu crédito.

Ora, porque de um direito especial se trata, ele tem de ser invocado e demonstrado, em ação autónoma cível, nos termos gerais do direito, pelo Banco demandante, recaindo sobre si o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, não tendo o Demandante legitimidade, nem assumindo o mesma, neste processo, a qualidade de ofendido para efeitos processuais penais, nem a indemnização que peticiona se trata, pois, de uma verdadeira acção de indemnização por danos provocados pelos factos ilícitos culposos, que tenha de ser enxertada na acção penal respectiva, mas de uma acção a interpor autonomamente, na Jurisdição Civil, uma vez paga essa indemnização.

Assim sendo, o formulado direito de regresso contra as arguidas, não está abrangida pelas situações de excepção que resultam do princípio da adesão, estatuído no art. 71º, do Cód., Proc. Penal, únicas que suportam a intervenção do tribunal penal na causa cível para a qual é, em regra, materialmente incompetente.

Nestes termos, sendo inadmissível tal pedido de reembolso em processo penal, não se admite o pedido de indemnização civil deduzido, e bem assim o requerimento probatório conexo, devendo a Demandante recorrer às instâncias civilistas e aí accionar o direito de regresso que pretende”.

III

Questão a apreciar:

A admissibilidade da dedução do pedido de indemnização civil do demandante Banco Santander Totta, S.A, no presente processo crime ao abrigo do princípio da adesão consagrado no artigo 71º, do Código de Processo Penal.

Apreciando:

1. Como emerge do pedido de indemnização civil do demandante Banco Santander Totta, S.A, tem o mesmo como causa de pedir o seu direito de regresso por ter decidido assumir e restituir ao Cliente DD, em 23 de outubro de 2017, o valor do prejuízo por este sofrido na sequência da prática de um crime de burla informática. Ou seja, conforme teor da acusação e demais elementos dos autos, “Por força do contrato bancário que celebrou com o seu cliente DD, a entidade bancária aqui demandante pagou a indemnização devida pelos danos causados pela burla informática causada a este por terceiros desconhecidos que criaram uma página online como se se tratasse da página oficial do Banco Santander Totta, a qual após ser validada pelo cliente (através da instalação de uma APP Mobile e de um código enviado para o respectivo telemóvel), permitiu que o acesso à sua conta bancária fosse efectuada, por desconhecidos, como se do seu legítimo titular se tratasse, sem autorização e conhecimento deste.

De acordo com a acusação, tais indivíduos de identidade desconhecida, como parte do plano por si gizado e por forma a ocultar as suas identidades, vieram a solicitar a colaboração das arguidas, as quais aceitaram receber os valores decorrentes de tal actividade, ficando, para si, com parte, como compensação.

As três arguidas apenas vêm acusadas pela indiciada prática, cada uma, sob a forma consumada, um crime de receptação, p. p. pelo artigo 231.º/1 do Código Penal.


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            Nos termos do artigo 71º do Código de Processo Penal, “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

            Mostra-se aqui consagrado o princípio da adesão e, deste modo, a suficiência do processo penal e do juiz penal, para apreciar a questão do pedido civil conexa com os factos ilícitos da acusação: “Com a consagração do princípio da adesão resolvem-se no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes, sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos, (…) uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos quando afinal o tribunal a quem se atribuiu competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quando ela é alargada ao conhecimento de uma matéria que está intimamente ligada a esse crime.”  ac. do STJ de 10-12-2008, proc. n.º 08P3638.

O objeto do processo e os concretos factos a apreciar, são definidos pela acusação ou pela pronúncia, quando esta existe.

            O que significa que a responsabilidade meramente civil terá que emergir do facto ilícito a apurar quanto à responsabilidade criminal. Que de resto é esta que delimita tal objeto processual e não o contrário.

            A ação civil tem como causa de pedir “(…) os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado” - V. ac. do STJ de 10-12-2008, proc. n.º 08P3638, supra citado.

            Ou, como decidido no ac. do STJ de 28-05-2015, Proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1, “A ação civil que adere ao processo penal, ficando nele enxertada, é apenas a que tem por objeto a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitua crime.” .

A questão é equacionada no ac. do STJ de 09-05-2019, Proc. n.º 132/12.2TAACN.E1.S1 - 3.ª secção (relator Maia Costa), nos seguintes termos:

I - A prática de uma infração criminal pode gerar, além do pedido de natureza penal (a condenação do arguido numa pena), a formulação de um pedido de natureza civil, para ressarcimento do lesado pelas perdas e danos emergentes do crime (art. 129.º, do CP). Este segundo pedido é, por regra, deduzido (“enxertado”) no processo penal, conforme dispõe o art. 71.º, do CPP, que consagra o chamado “princípio de adesão”, só excecionalmente podendo ser formulado separadamente perante o

tribunal civil (art. 72.º, do CPP).

II - Tal pedido, quando feito no processo penal, circunscreve-se necessariamente aos danos exclusivamente resultantes da prática do crime. Por outras palavras, a causa de pedir do pedido civil é constituída pelos factos que integram o crime.

Ou seja, é inequívoco que o pedido de indemnização civil terá de ter como suporte, como causa de pedir, os mesmos factos que justificam a imputabilidade criminal. Ou seja, os factos geradores da responsabilidade civil têm que ser os mesmos que justificam a responsabilidade criminal. Ou, no dizer do ac. do STJ de 28-05-2015, Proc. n.º 2647/06.2TAGMR.G1.S1. “Se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, então esse pedido não é admissível em processo penal”.   

Como se decide ainda no ac. do STJ de 17/5/2012 www.dgsi.pt, “A causa de pedir que sustenta o pedido cível tem que partir dos mesmos factos que integram a prática de um crime, ou seja, dos factos que são causa da responsabilidade criminal.”


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            Como resulta claramente dos autos e se fundamenta na decisão recorrida, o pedido formulado pela demandante entidade bancária tem como causa de pedir o direito de regresso relativamente ao que pagou ao seu cliente DD, ofendido no processo crime. Mas esta indemnização paga pelo Banco ao cliente DD não resulta diretamente da prática do facto ilícito em apreciação no processo crime, logo não tem essa indemnização a natureza de uma responsabilidade extracontratual por facto ilícito, assentando outrossim na relação contratual entre a entidade bancária e o respetivo cliente, segundo a qual aquela terá a obrigação de indemnizar este em determinadas situações previstas e contratualizadas.

Na situação de dedução do pedido civil mediante o princípio da adesão obrigatória (enxerto civil), a qualidade de lesado é definida pelo nº 1 do artigo 74º do Código de Processo Penal nos seguintes termos: “O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime , ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.

No exercício do direito de regresso do Banco não está em causa o direito do lesado a ser indemnizado por ter sofrido diretamente danos ocasionados pelo crime ou seja, mediante apreciação de qualquer responsabilidade civil extracontratual de outrem, nomeadamente das arguidas pela prática de facto ilícito, mas apenas o eventual direito do Banco a ser reembolsado do que pagou ao seu cliente, estando este seu crédito já definido.

Nada tendo o direito de regresso da entidade bancária nada a ver diretamente com a apreciação da responsabilidade criminal das arguidas no presente processo crime, o exercício desse direito (de regresso) terá de ser realizado através de ação cível autónoma do processo crime, nos termos gerais de direito, uma vez que é inaplicável ao caso o princípio da adesão obrigatória de que temos vindo a falar.

Ou, como decidiu o julgador a quo, “não tendo o Demandante legitimidade, nem assumindo o mesmo, neste processo, a qualidade de ofendido para efeitos processuais penais, nem a indemnização que peticiona se trata, pois, de uma verdadeira acção de indemnização por danos provocados pelos factos ilícitos culposos, que tenha de ser enxertada na acção penal respectiva, mas de uma acção a interpor autonomamente, na Jurisdição Civil, uma vez paga essa indemnização”.

            A inadmissibilidade legal no presente processo crime do pedido do Banco com base no direito de regresso relativamente ao que pagou ao cliente DD tem como efetivo fundamento o facto desse direito não advir de responsabilidade civil extracontratual e, desde logo, da prática de um facto ilícito. Mas como já se aflorou supra, esta questão pode ser igualmente apreciada na perspetiva de falta de legitimidade do demandante Banco para exercer o seu direito neste processo crime.

            Partindo da definição do conceito de lesado do nº 1, do artigo 74º, do Código de Processo Penal, supra transcrito, torna-se claro que o demandante Banco, não sendo ofendido nem assistente no processo crime, também não tem legitimidade para adquirir a qualidade de lesado, na medida em que não sofreu danos ocasionados pelo crime.

            Decidindo-se, a propósito, no ac. do TRP de 2.12.2020, proc. nº 1846/16.3T9PVZ.P1: “A legitimidade de demandante é definida pela causa de pedir vertida no articulado do pedido de indemnização civil do enxerto cível, à luz do critério previsto no artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ponderado nos termos do disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, "ex vi" do artigo 129.º do Código Penal”.


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            Em síntese e em conclusão:

Tendo o pedido de indemnização civil do demandante BANCO SANTANDER TOTTA S.A. como causa de pedir o seu direito de regresso por ter decidido assumir e restituir ao Cliente DD o valor do prejuízo por este sofrido na sequência da prática do crime de burla informática por força de contrato bancário celebrado entre o Banco e o cliente, vindo as três arguidas apenas acusadas pela indiciada prática, cada uma, sob a forma consumada, um crime de receptação, p. p. pelo artigo 231º, nº 1 do Código Penal, significa que a indemnização solicitada pelo Banco no presente processo crime não tem como causa de pedir a prática de facto ilícito que constitua crime. Tanto basta para concluir que, ao abrigo dos artigos 71º e 74º, nº1, ambos do Código de Processo Penal, que o requerente Banco não tem legitimidade para exercer o seu direito neste processo ou, noutra perspetiva, que se verifiquem os pressupostos para dedução do respetivo pedido neste processo crime.

Pelo que não merece censura o decidido no despacho recorrido ao não admitir o pedido do demandante Banco.

V

Dispositivo

Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do recorrente BANCO SANTANDER TOTTA, S.A e, consequentemente, mantém-se o teor do despacho recorrido .


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Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs.

Coimbra, 7.6.2023.

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