FALTA DE EXAME CRÍTICO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário

I - A motivação da convicção probatória do julgador não se basta com a indicação genérica e acrítica dos meios de prova, nem com o registo do seu conteúdo, exigindo-se para a sua completude a realização do respetivo exame crítico, entendido este como a exposição clara dos critérios lógicos seguidos conducentes à formação racional da convicção do tribunal em determinado sentido.
II - Tendo o tribunal “a quo” decidido acolher a versão da ofendida, não podia deixar de explicar as razões pelas quais não se convenceu da negação dos factos ou dos factos alternativos ou paralelos apresentados pelo arguido nas suas declarações. Não o tendo feito, deixou dúvidas sobre o percurso lógico que conduziu à decisão.
III - A simples referência global e genérica aos meios de prova produzidos, subjetivamente apreciados, não permite aquilatar da racionalidade e correção do juízo probatório que permitiu ao julgador decidiu como decidiu, o que se revela inadmissível, pois que a ausência da racionalidade corresponde à ausência de fundamentação. Deste modo se evidencia que a decisão sindicada não respeitou o dever de fundamentação imposto pelo artigo 374.º, nº 2 do CPP, pelo que enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) do CPP.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º471/21.1GBSSB, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia do …, concelho do …, nascido em … 1988, solteiro, residente na Rua …, …, portador do Cartão de Cidadão n.º …, condenado pela da seguinte forma:

- Pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;

- Pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos;

- Condenado no pagamento da indemnização de 1 500,00 € à vítima DD, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e do artigo 5.º, n.º 1, al. a) da lei n.º 104/2009, de 14 de setembro, na sua versão atualizada pela lei n.º 121/2015, de 01.09;

- Condenado no pagamento da indemnização de 2 000,00 € à vítima EE, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal.

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1- Por Sentença proferida a 25 de Janeiro de 2023, no processo n.º 417/21.1GBSSB, que correu termos no Juízos de Competência Genérica de …, Comarca de …, o arguido foi condenado pela pratica em autoria material, em concurso real e efetivo, de:

a) um crime de violência domestica, previsto e punido pelo artigo 152 .º , n.º 1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, sobre DD, na pena parcelar de dois e três meses anos de prisão e,

b) um crime de violência domestica , revisto e punido pelo artigo 152.º n.º1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena parcelar de dois anos e quatro meses de prisão,

c) Operando o cúmulo jurídico, condenado na pena única de três anos de prisão, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, suspensa na sua execução por um período de três anos, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 5 do Código penal;

d) Ao pagamento de indemnização de mil e quinhentos euros á vitima DD;

e) Ao pagamento de dois mil euros á vitima EE.

2- Desta decisão recorre o Arguido, ora recorrente, por com ela não concordar, tendo o recurso como objeto:

a) Erro de julgamento da matéria de facto, quanto aos factos considerados provados 9,10, 13, 15, 16 da douta sentença recorrida, referente ao crime previsto e punido pelo artigo 152.º n.º1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, sobre a Menor EE;

b) Erro de subsunção jurídica do facto provados a 11 da sentença recorrida, referentes ao mesmo crime pelo qual o arguido foi condenado, violando do disposto no artigo 152.º n.º1, b) e n.º 2, 4 e 5 do Código Penal, sobre a Menor EE

3- A douta sentença recorrida dá como factos provados:

4- “O arguido AA e a ofendida DD viveram juntos, como se de marido e mulher se tratassem, durante cinco anos, desde de data não concretamente aturada de ano de 2016 até 18 de junho de 2021, na residência da rua do …, …;

5- Do relacionamento entre o casal nasceu em … de 2017 a menor EE e, em … de 2020, FF;

6- Inicialmente o relacionamento entre o casal era bom, tendo começado a deteriorar-se aquando do nascimento da filha de ambos em 2017, a menor EE, situação que piorou após o nascimento de ambos, em 2020, FF;(…)

9- O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a menor EE, sendo que quando a menor Comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe porca;

10-Se por qualquer motivo a menor EE, entrasse em casa e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e dizia-lhe: “vais levar nas trombas, porca”;

11-No dia 17 de Junho de 2021, em virtude da menor EE ter saído para a rua, pois tinha visto a avó no exterior, o arguido desferiu uma estalada na cara da menor;(…)

13-A atuação do Arguido AA para com a sua filha menor, a ofendida EE, foi cruel e desproporcionada, tanto mais que é uma criança de tenra idade, pois ao agredi-la nos moldes em que o fez, bem sabia que atingiria, como atingiu, aquela e a molestaria fisicamente, conforme molestou, o que quis e conseguiu;

(…)

15- Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar e ofender fisicamente a ofendida EE, sua filha, bem sabendo que a mesma é uma criança, e que de si dependia, o que quis e conseguiu:

16- Com as condutas supra descritas agiu sempre o Arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas proibidas e proibidas por lei;

17- O arguido não tem antecedentes criminais;

18- O arguido tem o 9.º ano de escolaridade e trabalha na área informática, auferindo mensalmente mil e tal euros líquidos;

19- A ofendida ex-companheira do arguido é administrativa em receção de uma clinica medica, licenciada em imagiologia, auferindo oitocentos euros líquidos por mês;

20-Ambos moram atualmente cada um na sua casa, sendo que a EE e um outro filho do ex-casal, mais novo que a irmã EE, residem com a mãe DD;

21- Ambos têm apoio familiar dos seus progenitores.”

4-Para formar a sua convicção, o tribunal a quo baseou-se no depoimento da ofendida, DD, no depoimento das testemunhas seus pais GG e HH, nas informações da Comissão de proteção de crianças e jovens a fls. 56 e 75, assentos de nascimento e certidão de registo criminal respeitante ao Arguido.

5-Quanto aos pais e irmã do arguido, tribunal a quo considerou que apenas estavam presentes nas festas e reuniões familiares, pelo que nada contribuíram para a fixação dos factos e, ignorou as declarações prestadas pela testemunha II.

6- O Recorrente entende que as declarações prestadas pelas testemunhas GG, HH e II (que se encontra transcritas nas motivações do presente Recurso), levam a uma conclusão diversa, no que aos fatos provados diz respeito, no ponto 9, 10, 13, 15, 16.

7-As testemunhas GG e HH apesar de afirmar que o recorrente tinha um comportamento agressivo e autoritário com a menor e, quando chegam á concretização de tais comportamentos, apenas descrevem situações normais de qualquer relacionamento pai/filho no que á educação diz respeito. Relatam episódios referentes a alimentação e, a tentativa do progenitor de que a menor desse primazia a alimentos saudáveis em detrimento de outros menos saudáveis; episódios em que o pai tenta fazer a criança compreender a figura de autoridade e impor regras de forma compreensível para a criança e adequada. Manifestam estas testemunhas uma visão bastante permissiva dos comportamentos da menor, sem a imposição de regras, nem respeito pelas regras imposta pelo progenitor.

8- Quanto á testemunha II, educadora da menor até aos 4 anos de idade, o seu depoimento só ignorado, nem sequer se fazendo menção ao mesmo na sentença.

9-As suas declarações (transcritas nas motivações deste recurso e gravadas no sistema informático do tribunal) ao descrever a Menor EE antes da separação, levam a concluir que a menor não estaria teria sujeita ao que é considerado como provado na sentença recorrida.

10-A testemunha descreve a menor como extremamente alegre, extrovertida, bem disposta, que não tinham baixa auto estima e , que conversava de forma natural e escorreita de episódios que se passariam em casa. Nunca a menor relatou qualquer episódio de agressão, quer física, quer verbal. Nunca reproduziu esses comportamentos com os pares e mantinha um bom relacionamento com o progenitor.

11- Da experiencia da testemunha, uma criança sujeita a constante agressão verbal e psicológica, já para não referir física, demonstra isso no seu comportamento diário, o que não era o caso da menor. O comportamento da mesma sofreu uma modificação, tornando-a mais retraída e sem falar da família, após a separação dos progenitores e não antes.

12- Atendendo às declarações destas testemunhas, o tribunal a quo mal andou ao considerar provado os fatos descritos nos pontos 9,10, 13, 15, 16., devendo a sentença recorrida nessa parte ser revogada, pois muitas dúvidas temos que esses fatos efetivamente se tenham passado.

13- O facto descrito no ponto 11 dos factos provados foi admitido pelo arguido.

14-Embora baste uma mera situação para estarmos perante um crime de violência domestica, nos termos do artigo 152.º do Código Penal, a situação descrita no ponto 11 não é subsumível neste tipo de crime.

15-Para que uma só situação seja bastante para classificar como violência domestica, esta tinha que ser tão intensa e censurável, que comprometa de forma grave o desenvolvimento da personalidade da vitima, pondo em causa a sua dignidade humana, o bem jurídico tutelado pelo crime em causa.

16- O que com o devido respeito, não é um caso. Foi uma situação, que aconteceu no âmbito de uma correção de comportamento (a menor saiu para a rua, quando sabia que não devia faze-lo). Uma situação isolada e sem grandes consequências para a menor.

17- Ainda que por hipótese académica, se entenda que esta ação do Recorrente possa preencher o tipo objetivo do crime de violência domestica, o tipo subjetivo não se encontra preenchido.

18- Defende a teoria da Adequação social que perante “uma conduta socialmente adequada, nunca se chegará a questionar a consciência do ilícito por parte do seu autor, uma vez que o próprio preenchimento do tipo legal do crime não subsiste perante uma ausência completa e generalizada de consciência social”

19- É o que acontece com o “direito de correção” que apenas assiste aos pais.

20-E tanto este “direito de correção” está enraizado ainda na consciência social da comunidade, que a próprio a testemunha II, o defendeu quando questionada pelo Digníssimo Procurador, com ainda o terá transmitido ao Recorrente, quando este a questionou sobre métodos educacionais para gerir o comportamento mais traquina da sua filha EE.

21-Posto isto, não se pode afirmar sem sombra de dúvida que o arguido agiu com dolo.

Pelo contrário, o Recorrente terá agido dessa forma com a sua filha na convicção que estava a exercer o seu dever/ direito de correção, subjacente ao seu dever de educar enquanto progenitor, devendo ser absolvido do crime violência domestica sobre a Menor EE.

22- E tal falta de consciência de censurabilidade estende-se a qualquer tipo de crime que os fatos praticados pelo recorrente possam ser subsumidos.

a) Absolvendo o Arguido da prática p.p. pelo artigo 152.º n.1 d), n.º2,4,5, do Código Penal,

b) Absolver o Arguido

Termina pedindo a revogação parcial da sentença, solicitando a sua absolvição pela prática do crime de violência doméstica sobre EE e, bem assim, a sua absolvição do pagamento da indemnização à mesma vítima.

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o arguido pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. A presente resposta é atinente ao recurso interposto pelo arguido AA, no que concerne à douta decisão judicial que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da sua filha EE.

2. Alegou, em suma, que os factos dados como provados não o deveriam ter sido e que, mesmo os que o próprio assumiu, não consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica, mas sim, o cumprimento do dever de correcção.

3. Em nosso entendimento, não assiste qualquer razão ao arguido.

4. Os factos dados como provados não nos merecem qualquer censura.

5. Factos esses que, quanto a nós, consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica.

6. E, assim sendo, deverá a sentença agora em crime manter-se nos seus exactos termos.”

*

Tendo tido vista do processo, o Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso, atendendo às conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação e considerando as questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

A) Apreciar a existência de nulidade da sentença por insuficiência do exame crítico das provas e por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

B) Caso se não verifique a nulidade referida no ponto anterior, determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP.

C) Verificando-se o invocado erro de julgamento da matéria de facto, determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito em virtude de os factos que o recorrente entende terem resultado provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica praticado sobre a sua filha.

*** II.II - A sentença recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados os seguintes factos:

“1.O arguido AA e a ofendida DD viveram juntos, como se de marido e mulher se tratassem, durante cinco anos, desde data não concretamente apurada do ano de 2016 até 18 de junho de 2021, na residência sita na Rua …, …;

2. Do relacionamento entre o casal nasceu em … a menor EE, e em … de 2020, FF;

3. Inicialmente o relacionamento entre o casal era bom, tendo começado a deteriorar-se aquando do nascimento da filha de ambos em 2017, a menor EE, situação que piorou após o nascimento do filho menor de ambos em 2020, FF;

4. Frequentemente o arguido AA se dirigia à ofendida DD dizendo lhe que “és uma má mãe”, “não sabes fazer nada”, bem como na sequência de discussões ocorridas entre o casal dizia à ofendida “és uma puta, uma porca”;

5. Tais situações ocorriam quer na residência do casal como à frente dos familiares de ambos;

6.Depois do nascimento da menor EE, se a ofendida não quisesse ter relações sexuais, o arguido dizia-lhe “és uma puta” e insinuava que era porque tinha outra pessoa;

7. Sempre que a ofendida chamava a atenção do arguido para o modo agressivo como ele falava com a filha menor EE, este dizia-lhe “não te metas, senão quem levas és tu”;

8. Com o deteriorar da relação, e sempre que o arguido e a ofendida falavam de se separar, aquele dizia-lhe “sais, mas os meninos ficam” e que “lhe retirava os filhos”;

9. O arguido sempre teve um comportamento agressivo e austero com a menor EE, sendo que, quando a menor comia, se sujasse a roupa, a mesa ou o chão, chamava-lhe “porca”;

10. Se por qualquer motivo a menor EE, entrasse em casa, e não trocasse os sapatos da rua pelos de casa, o arguido começava aos gritos com ela e a dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca”;

11.No dia 17 de junho de 2021, em virtude da menor EE ter saído para a rua pois tinha visto a avó no exterior, o arguido desferiu uma estalada na face da menor;

12. O arguido AA quis dirigir à ofendida DD, à data sua companheira, as palavras acima descritas, estando ciente que as mesmas atingiam a sua honra e consideração, e com as ameaças que proferiu, quis causar-lhe receio de ficar privada dos filhos, limitando-lhe a sua liberdade de agir, o que conseguiu;

13. A atuação do arguido AA para com a sua filha menor, a ofendida EE, foi cruel e desproporcionada, tanto mais que é uma criança de tenra idade, pois ao agredi-la nos moldes em que o fez, bem sabia que atingiria, como atingiu, aquela e a molestaria fisicamente, conforme molestou, o que quis e conseguiu;

14. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA, quis maltratar, torturar, humilhar e ofender a ofendida DD, sua companheira, bem sabendo que se encontrava na residência comum do casal, o que quis e conseguiu;

15. Com estas condutas que reiteradamente produziu, o arguido AA quis maltratar e ofender fisicamente a ofendida EE, sua filha, bem sabendo que a mesma é uma criança, e que de si dependia, o que quis e conseguiu;

16. Com as condutas supra descritas agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente de serem as mesmas proibidas e proibidas por lei;

17. O arguido não tem antecedentes criminais;

18. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade e trabalha na área da informática, auferindo mensalmente mil e tal euros líquidos;

19. A ofendida ex-companheira do arguido é administrativa em receção de clínica médica, licenciada em imagiologia, auferindo oitocentos euros líquidos por mês;

20. Ambos moram atualmente cada um na sua casa, sendo que a EE e um outro filho do ex-casal, mais novo que a irmã EE, residem com a mãe DD;

21.Ambos têm apoio familiar dos seus progenitores.

*

B) Factos Não Provados.

Com interesse para a decisão da causa não resultou provado que:

Único. O arguido, por vezes, deferia na menor EE uma chapada, como sucedida se deixasse cair algum objeto ao chão e partisse.”

* II.III - Apreciação do mérito do recurso.

De acordo com as regras da precedência lógica, aplicáveis às decisões judiciais – artigo 608.º, nº 1.º CPC, ex vi do artigo 4.º CPP – cumpre apreciar, primeiramente, os vícios formais da decisão recorrida.

A) Da nulidade da sentença por insuficiência do exame crítico das provas e por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão, nos termos do artigo 379º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 379.º CPP, sentença nula é aquela que se encontra inquinada por vícios decorrentes ou do seu conteúdo ou da sua elaboração. Tal nulidade, ainda que não arguida em recurso, é de conhecimento oficioso, conforme decorre do nº 2 do mesmo artigo.

A nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, ocorre nos casos em que a decisão não contenha fundamentação que inclua o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da convicção probatória realizada com o exame crítico das provas e, bem assim, os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, o que, a nosso ver, manifestamente, sucede na sentença sob recurso por absoluta insuficiência do exame crítico das provas e por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão.

Atentemos no texto da sentença recorrida quanto:

a) À motivação da convicção probatória no que diz respeito à factualidade que constitui o objeto do recurso, ou seja, quanto aos factos que suportaram a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica praticado contra a sua filha:

“O tribunal gizou a sua convicção no depoimento da ofendida, DD, que de modo escorreito e sem hesitação, e, por vezes, espontaneamente emocionada, relatou a factualidade narrada na acusação. A ofendida, DD, não deduziu pedido de indemnização civil nem se constituiu como assistente, donde se conclui não ter qualquer interesse monetário ou de condenação do arguido sem fundamento.

A corroborar o depoimento da ofendida tivemos as testemunhas seus pais, GG e HH, que, em certos factos, foram confirmativas do comportamento delituoso do arguido, embora só testemunharam o que observaram nomeadamente que não viram o arguido a dar chapadas na face da menor EE.

DD revelou-se imparcial porquanto não confirmou o único facto não provado.

A única chapada na face provada através do depoimento da ofendida DD foi a que se mostra mencionada no facto provado onze e que o arguido admitiu.

No mais e no geral o arguido negou a factualidade descrita na acusação.

Os motivos das injúrias e ameaças reiteradas, e chapada na face consistiram no modo como o arguido pretendia educar/corrigir a filha de ambos.(…)

Temos, também, a corroborar o depoimento da ofendida em relação à filha que tem com o arguido, a menor EE, as informações Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de fls.56 e 75.(…)

Face ao modo de execução dos crimes vemos que o arguido agiu com conhecimento e vontade de os praticar. (…)

Os pais e irmã do arguido só estavam presentes em reuniões familiares para celebrações e festas, pelo que nada contribuíram para a fixação dos factos.”

b) À subsunção dos referidos factos ao direito:

“III. Fundamentação Jurídica.

O arguido vem acusado da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal, relativamente a DD, e de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal, relativamente a EE.

Da relação marital ou de união de facto com a ofendida DD nasceu EE.

O bem jurídico a proteger no caso concreto é a pessoa da unida de facto e a pessoa da filha do arguido, quanto à saúde física e psíquica ou emocional, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida na realidade familiar do arguido, não só com agressões físicas, mas também com agressões psíquicas como injúrias, difamações, ameaças causando um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente/arguido e enquanto pessoa com quem ele já anteriormente coabitou.

O arguido cometeu dois crimes de violência doméstica, pois injuriou, humilhou e ameaçou a ofendida DD, o mesmo tendo sucedido com a filha de ambos de tenra idade sobre a qual desferiu agressão física.

Fê-lo com conhecimento e vontade.

Assim se conclui que o arguido cometeu os crimes pelos quais vem acusado.

Não existem causas de exclusão da ilicitude e da culpa.

Estão reunidas todas as condições de punibilidade.”

*

A leitura da sentença sob recurso – mormente no que diz respeito à exposição da convicção probatória que acabámos de transcrever – permite-nos, desde logo, extrair as seguintes conclusões:

- A prova dos factos em referência sustentou-se essencialmente no depoimento da ofendida, que o tribunal considerou “que de modo escorreito e sem hesitação, e, por vezes, espontaneamente emocionada, relatou a factualidade narrada na acusação”, pelo que lhe atribuiu total credibilidade;

- As referências, quer relativamente a tal depoimento, quer quanto aos demais meios probatórios mencionados no excerto transcrito – concretamente os depoimentos das testemunhas GG e HH (pais da ofendida) e informações da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de fls. 56 e 75 – encontram-se feitas sem qualquer reporte a factos concretos e de forma genericamente acrítica.

- No que diz respeito às declarações do arguido limita-se a sentença a referir que “No mais e no geral o arguido negou a factualidade descrita na acusação” e que “Os motivos das injúrias e ameaças reiteradas, e chapada na face consistiram no modo como o arguido pretendia educar/corrigir a filha de ambos”.

- Absolutamente nada aí se consignou relativamente à apreciação crítica de tais declarações, não tendo sequer o tribunal afirmado que decidiu não atribuir credibilidade a tais declarações e menos ainda por que razão o fez.

- Nenhuma referência foi feita ao depoimento da testemunha II (educadora da menor), prestado em audiência na sessão ocorrida em 15.12.2022 e que o recorrente invoca no recurso, entre o mais, para sustentar a impugnação da matéria de facto, pelo que se desconhece se o tribunal o valorou ou não e, tendo-o valorado, se não lhe atribuiu relevância ou credibilidade e porquê.

Para além de a decisão sobre a matéria de facto dever enunciar todos os factos considerados relevantes para a apreciação dos autos – retirados da acusação, do pedido cível e da contestação, quando existam – integrando-os expressamente no elenco dos factos provados e não provados, deverá a mesma, sob pena de nulidade, expor o juízo probatório do julgador em termos claros, coerentes e sem vícios ou contradições intrínsecas que a inquinem. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2 do CPP, depois do relatório e antes do dispositivo, a sentença penal deverá conter a fundamentação, na qual deverão enumerar-se os factos provados e não provados e na qual deverão consignar-se os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal examinadas criticamente. Ou seja, para além da enumeração dos factos provados e não provados, o julgador deverá exarar na fundamentação da sentença os juízos e raciocínios que efetuou e que o levaram decidir quanto à factualidade relevante, devendo concretizar as razões estruturantes da sua convicção, de forma permitir aos destinatários da decisão a reconstrução do percurso mental sustentador do juízo probatório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária. A motivação da convicção probatória do julgador não se basta com a indicação dos meios de prova, nem com o registo do seu conteúdo, exigindo-se para a sua completude a realização do respetivo exame crítico (1), entendido este como a exposição clara dos critérios lógicos seguidos conducentes à formação racional da convicção do tribunal em determinado sentido. Ou seja, o sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema puramente subjetivo de apreciação probatória, mas sim um sistema assente na razão, em presunções probatórias racionalmente fundadas e nas regras de experiência da vida.

Conforme pertinentemente se refere no acórdão desta Relação de 28.03.2023, relatado pelo Desembargador Gomes de Sousa (2) “(…) a fundamentação quer-se assente na razão e não numa apreciação subjetiva insindicável (...). Assim o princípio da livre convicção deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória mas apenas no sentido de o não vincular – como regra geral – a uma valoração probatória pré-definida, porque apenas nisso é livre. Mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites. E o método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão. (…) Ora, conforme acima referimos, confrontando a fundamentação da sentença recorrida na parte relativa à decisão de facto, constatamos que a mesma, após a enumeração dos factos provados, não contém uma motivação crítica do juízo probatório realizado com referência aos elementos de prova constantes dos autos e que sustentaram a seleção factológica, inviabilizando o escrutínio do decidido. Efetivamente, na motivação da decisão de facto o tribunal “a quo” limitou-se a fazer uma referência a alguns meios de prova que terá tido em conta, sem os reportar a nenhum dos factos em concreto que teve por provados, tendo relatado muito brevemente o conteúdo das declarações do arguido no que diz respeito às justificações que apresentou para os comportamentos que admitiu, sendo que relativamente ao cotejo e apreciação crítica de tais depoimentos e declarações nada se escreveu. Com efeito, tendo o tribunal “a quo” decidido acolher a versão da ofendida, não podia deixar de explicar as razões pelas quais não se convenceu da negação dos factos ou dos factos alternativos ou paralelos apresentados pelo arguido nas suas declarações. Não o tendo feito, deixou dúvidas sobre o percurso lógico que conduziu à decisão.

Em suma, o que o tribunal recorrido fez, a nosso ver, foi usar em excesso o seu subjetivismo na apreciação de meios de prova de carácter pessoal – concretamente os depoimentos das testemunhas e declarações do arguido – olvidando-se da razão, ou não tendo exposto de que forma utilizou a razão na apreciação dos referidos meios de prova, o que se revela inadmissível, pois que a ausência da racionalidade corresponde à ausência total de fundamentação.

Resulta, pois, manifesto que a simples referência global e genérica aos meios de prova produzidos não permite aferir a valoração que o tribunal fez dos mesmos para firmar a sua convicção positiva relativamente a cada um dos factos que considerou provados e que enumerou sequencialmente, não se revelando possível aquilatar da racionalidade e correção do juízo probatório que permitiu ao julgador decidiu como decidiu. Dito de outro modo, não contendo a sentença as referências mínimas relativamente à valoração que foi feita das provas produzidas, não se revela possível reconstituir o percurso lógico seguido pelo julgador subjacente à decisão que em concreto incidiu sobre cada um dos factos relevantes tidos por provados e por não provados. Deste modo se evidencia que a decisão sindicada não respeitou o dever de fundamentação imposto pelo artigo 374.º, nº 2 do CPP, pelo que enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, nº 1.º, al. a) do CPP.

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À semelhança do que explanámos acima relativamente à exposição da motivação da convicção probatória, também a subsunção dos factos em causa no presente recurso à norma penal que tipifica o crime de violência doméstica se revela manifestamente insuficiente, não tendo o tribunal cuidado de explicitar as razões pelas quais as condutas do arguido relativamente à sua filha – às quais se restringe o objeto do recurso – integram o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos previstos no artigo 152º do CP pelo qual aquele foi condenado.

Assim, considerando a que a declaração de nulidade determinará a remessa dos autos ao tribunal recorrido para o respetivo suprimento, afigura-se-nos revestir-se de utilidade a sinalização de tal insuficiência, que consubstancia também a nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, alínea a), primeira parte, por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP, de que igualmente padece a sentença recorrida.

Somos assim a concluir que, para além de ser nula por omissão do exame crítico das provas, a sentença é também nula por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão.

A decisão que antecede relativa à verificação de nulidade da sentença prejudica obviamente o conhecimento das restantes questões acima enunciadas.

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Nesta conformidade, impõe-se determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da sentença com suprimento das nulidades assinaladas, com reflexo apenas na condenação pelo crime de violência doméstica praticado contra a ofendida EE, filha do arguido – uma vez que apenas este constitui objeto do recurso – devendo a sentença reformada deixar intocada a condenação do arguido quanto ao crime de violência doméstica praticado contra a ofendida DD, em virtude de tal decisão se encontrar transitada em julgado, mostrando-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.

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III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, por razões diversas das invocadas no recurso, em conceder provimento ao mesmo, decidindo consequentemente:

- Declarar nula a sentença recorrida por omissão do exame crítico das provas e por falta de exposição suficiente dos motivos de direito que fundamentaram a decisão, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a), primeira parte, por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

- Determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da sentença pelo mesmo tribunal, devendo a sentença reformada proceder ao suprimento das nulidades assinaladas, com reflexos apenas na condenação pelo crime de violência doméstica praticado contra a ofendida EE e deixando intocada a condenação do arguido quanto ao crime de violência doméstica praticado contra a ofendida DD.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 25 de maio de 2023

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

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1 Cfr. a este propósito o Acórdão do STJ, proferido no proc. nº 733/17.2JAPRT.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt. e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2005 disponível no sítio do TC, no qual podemos ler que o exame crítico deverá ser feito de molde a permitir“(…) ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária (…)”

2 Disponível em www.dgsi.pt.