FACTOS COMPLEMENTARES
CONSIDERAÇÃO PELO JULGADOR
CONTRADITÓRIO
ABUSO DO DIREITO
TU QUOQUE
CONSEQUÊNCIAS
Sumário

I. A introdução de factos complementares, decorrentes da instrução da causa (Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil ), só é possível no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa.
II. Não tendo a apelante desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal de primeira instância, está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art.º 5º.
III. Num contexto em que a empresa administradora do condomínio praticou graves irregularidades (v.g., levantamento de quantias em numerário no montante total de 16.990€; realização de quotização extraordinária para realização de obras, não tendo tais obras sido realizadas; pagamentos em numerário sem emissão de recibos pelo fornecedor; omissão de pagamento a fornecedor de € 18.114), a reclamação pela empresa administradora do pagamento das faturas de prestação de serviços correspondente aos últimos meses de contrato (€ 4.797), neste específico contexto contratual, deverá ser paralisada pelo instituto do abuso de direito na modalidade de tu quoque.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
AB, Lda.  instaurou a injunção que esteve na origem desta acção contra Condomínio CD,  tendo peticionado a condenação deste no pagamento da quantia de 10.727,76€, sendo 10.174,60€, a título de capital e de 451,16€, a título de juros.
No caso sob apreciação, a A deduziu os pedidos de condenação do R, com fundamento em responsabilidade civil contratual.
Alegou a Autora que:
§ celebrou um contrato de gestão de condomínios, com o Réu, que consistiu na prestação de tais serviços, mediante o pagamento de avença mensal;
§ o Réu não procedeu ao pagamento de prestações mensais, no valor total de 4.797€, correspondente a facturas vencidas entre Junho e Agosto de 2019;
§ o Réu não procedeu ao pagamento da quantia de 3.444€, correspondente a serviços contratados com uma empresa do grupo da Autora, e relativos aos meses de Junho a Setembro de 2019, tendo o Réu assumido tal pagamento, pelo que pretende ser reintegrada no seu património de tal montante;
§ assumiu, ainda, o pagamento - em representação do Réu- da quantia de 1.816,46€, devidas a terceiros, pelo aquele, pelo que pretende ser reintegrada no seu património de tal montante.
Deduzindo oposição, sustentou o réu que:
§ A Autora praticou crimes de abuso de confiança que prejudicaram o Réu em cerca de €143.520,02, tendo sido apresentada queixa-crime;
§ A autora levantou €16.990 da conta bancária sem qualquer justificação;
§ Em 2017 e 2018, a Autora recebeu fundos de quotização extraordinária no valor de €50.000 para reparação e substituição das portas de acesso e vão adjacentes, tendo tal quantia sido utilizada em reparações não previstas no orçamento, não sendo realizadas as obras que determinaram a quotização extraordinária;
§ A autora gastou todo o fundo de reserva constituído ao longo dos anos, deixando-o negativo em €19.872;
§ Apesar da autora alegar a celebração de um contato de prestação de serviços de limpeza com o requerido, tal contrato não foi celebrado por escrito, tratando-se de um contrato consigo mesmo, razão pela qual, em 23.10.2019, por carta, o requerido invocou a anulação de tal contrato verbal;
§ As faturas reclamadas pela autora de €1.816,46 e €117,14 nunca foram enviadas ao Réu.
Concluiu pela improcedência da ação e sua absolvição dos pedidos.
Após julgamento, foi proferida sentença que absolveu o réu de todos os pedidos.
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
«
1 - A A. pretende obter do Réu o pagamento de 9 Facturas, não pagas pelo Réu respeitantes a prestação de serviços que efectuara em benefício do Réu, na constância de um contrato de prestação de serviços;
2 - A sentença recorrida julgou o pedido improcedente.
3 - Da decisão sobre a matéria de facto, a recorrente discorda do seguinte:
4 - No n.º 3 da mesma deverá constar apenas que o Réu mandou realizar uma auditoria às contas do condomínio, por sugestão da A.
5 - Quanto ao ponto 5 a) apenas deve considerar-se provado que, para fazer face a alguns pagamentos, a A. levantou algumas quantias em numerário; pois que foram verificados pelo Revisor Oficial de Contas elementos documentais que suportavam esses levantamentos e a sua aplicação.
6 - No ponto 5 b) deverá acrescentar-se que a decisão de não efectuar essas obras foi aprovada pelo Recorrido, em acta da assembleia de condóminos de 27 de Maio de 2019, acta 19.
7 - O ponto 5 c) deve ser eliminado, pois os pagamentos em numerário foram todos apurados e identificados de acordo com documentos existentes na contabilidade do condomínio, como demonstrado nos anexos IV e V do Relatório de auditoria. A não emissão de recibos pelo fornecedor apenas é imputável a este.
8 - O ponto 5 d) deve ser eliminado, pois não existia dívida certa, uma vez que estava em contencioso E a assembleia de condóminos reconheceu isso, decidindo que se haveria analisar melhor a situação, como consta da acta 19 da assembleia de condóminos
9 - Do ponto 6, apenas deve constar que o Réu não pagou as Facturas referidas, nada se tendo apurado quanto a uma queixa crime.
10 - Ao elenco dos factos provados constantes da sentença, com as correcções acima elencadas, deverão ser acrescentados os seguintes:
11 - “O Réu não procedeu ao pagamento das seguintes Facturas emitidas pela A.: FA2019/52, de 1/06/2019; FA 2019/61, de 1/07/2019; FA 2019/69 de 1/08/2019; FA 2019/75, de 1/09/2019, do montante de 861,00Euros (700+ IVA) cada uma, as quais totalizam a quantia de 3.424,00 Euros, respeitando as mesmas aos serviços de limpeza das partes comuns do edifício”;
Estes serviços foram prestados desde Janeiro de 2016, até Setembro de 2019, por acordo com o R. conforme ampla documentação nos autos.
12 - “A conta bancária do Réu esteve penhorada pela quantia de 4.372,13 Euros entre 16 de Fevereiro de 2018 e dia indeterminado de Maio de 2018, não podendo o saldo da mesma ser inferior aquela importância, durante esse período, o que era do conhecimento do Réu”
Este facto está documentado em extractos bancários juntos aos autos e na acta da assembleia de condóminos de 8 de Março de 2018 - acta 18 junta aos autos.
13 - “Devido ao facto de a conta bancária do Condomínio Réu ter estado bloqueada pelo montante de 4.372,13 Euros a partir de 16 de Fevereiro de 2018, a A. efectuou, a partir desta data diversos pagamentos por conta do Réu, os quais ia recuperando à medida das disponibilidades da conta bancária, sendo que à data de 30 de Junho de 2019, saldo credor a favor da A. era de 1.816,46 Euros, conforme Factura 11/11 e o seu anexo com a conta corrente”
Estes movimentos foram comprovados pelo ROC e constam do seu relatório
14 - “O Réu não procedeu ao pagamento da Factura 11/12, pela quantia de 83,00 Euros correspondente ao saldo da conta corrente da caixa”;
Este valor foi verificado pelo ROC e consta do seu relatório.
15 - Quanto aos factos não provados constantes da sentença recorrida: Quanto à alínea a), nada a opor;
16 - Quanto à alínea b) dos factos não provados, o conteúdo desta baseia-se num equívoco, pois que os serviços de limpeza foram prestados pela própria A, como amplamente documentado nos autos, através de orçamentos, contas e pagamentos feitos pelo recorrido à recorrente. Deve ser eliminado;
17 - A alínea c) dos factos não provados também deve ser eliminada. Os factos a que se refere devem ser considerados provados, pois foram comprovados pelo ROC e referidos pelo mesmo quer no Relatório escrito, quer no depoimento prestado em audiência
18 - Quanto ao Direito, a sentença recorrida parte de uma falsa premissa, que é a de entender que o contrato existente entre recorrente e recorrido foi resolvido por este, por incumprimento contratual daquela;
19 - Mas, o que consta dos autos é que a Recorrente esteve no pleno exercício das suas funções até 3 de Setembro de 2019, sendo certo que nessa data declarou não se candidatar à renovação do contrato, conforme acta n.º 21, junta aos autos.
20 - Existiu entre as partes um contrato de prestação de serviços previsto no art.º 1154.º do Código Civil, aplicando-se ao mesmo as disposições sobre o mandato: art.º1157.º e seguintes do mesmo Código.
21 - O mandante, ora recorrido, não cumpriu as obrigações constantes do art.º 1167.º: as da alínea b) ao não pagar as Facturas 1 a 7, referidas na Petição; e as da alínea c) ao negar o pagamento das Facturas 8 e 9 da Petição.
22 - Os contratos devem ser pontualmente cumpridos, nos termos do disposto nos art.ºs 406.º e 762.º Civil.
23 - Como o recorrido não fez, o deverá, nos termos dos art.ºs 805.º e 806.º do mesmo Código Civil ser condenado a pagar a indemnização em juros, como referido na Injunção.
Deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que julgue a acção procedente.
*
Contra-alegou o apelado, propugnando pela improcedência da apelação.
Foi proferido despacho a conferir o contraditório às partes em virtude deste Tribunal da Relação pretender aplicar o instituto do abuso de direito.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Impugnação da decisão da matéria de facto;
ii. Se o Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito ao julgar a ação improcedente.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1- Em 27-09-2011, A e R acordaram em que a primeira prestaria serviços de gestão do condomínio constituído pelo 2.º (acordo e exame do doc. junto com a Oposição como proposta);
2- O valor mensal da avença devida pelo cumprimento do acordo referido em 1 era, no ano de 2019, de 1.599€ (acordo);
3- Tendo-se o Réu apercebido da existência de várias irregularidades na gestão do condomínio, a saber, não pagamento do contrato de manutenção de elevadores, pagamentos em numerário e sem emissão de recibos, mandou realizar uma auditoria às contas do condomínio (acordo quanto à realização de auditoria e exame do doc. junto, correspondente ao seu suporte);
4- Em 03-09-2019, em assembleia de condóminos, - e na sequência de vários pedidos de esclarecimento e documentação relativos à gestão do condomínio - a Autora assumiu - perante os condóminos presentes que não dispunha de condições para se candidatar à gestão do condomínio do Réu, no ano subsequente (cfr. exame da correspondente acta, cuja cópia foi junta com a Oposição)
5- Tendo sido feita a análise da gestão levada a cabo pela Autora, conclui-se que:
a. Realizou levantamento de quantias em numerário, no montante total de 16.990€, sem apresentar justificação documental para o efeito (doc. 4, com a Oposição);
b. Foi realizada uma quotização extraordinária, para realização de obras para reparação e substituição das portas de acesso e vãos adjacentes da entrada e substituição do videoporteiro de algumas fracções, não tendo tais obras sido realizadas;
c. Procedeu a pagamentos em numerário, em montantes não concretamente apurados, sem que tenha ocorrido a correspondente emissão de recibos pelo fornecedor;
d. A Autora omitiu o pagamento à empresa Tyssen, responsável pela manutenção dos elevadores do condomínio, entre Novembro de 2016 e Junho de 2019, no valor total de 18.114€; (cfr. relatório de auditoria)
6- O Réu não procedeu ao pagamento das facturas da Autora [corrige-se o erro de escrita da sentença], relativas a prestações mensais, abaixo identificadas de 1.06.2019, FA 2019/50, 1.07.2019, FA 2019/59 e 1.08.2019, FA 2019/67 (acordo quanto ao não pagamento e exame dos docs. juntos sob os n.ºs 1 a 3 com o Req. de 01-07.2021), em virtude de se considerar lesado em montante muito superior, conforme queixa crime que apresentou e que deu origem a autos de inquérito, atualmente pendentes no MP.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Impugnação da matéria de facto
A apelante pretende que sejam aditados os seguintes factos provados:
11- “O Réu não procedeu ao pagamento das seguintes Facturas emitidas pela A.: FA2019/52, de 1/06/2019; FA 2019/61, de 1/07/2019; FA 2019/69 de 1/08/2019; FA 2019/75, de 1/09/2019, do montante de 861,00Euros (700+ IVA) cada uma, as quais totalizam a quantia de 3.424,00 Euros, respeitando as mesmas aos serviços de limpeza das partes comuns do edifício”;
12- “A conta bancária do Réu esteve penhorada pela quantia de 4.372,13 Euros entre 16 de Fevereiro de 2018 e dia indeterminado de Maio de 2018, não podendo o saldo da mesma ser inferior aquela importância, durante esse período, o que era do conhecimento do Réu”
13- “Devido ao facto de a conta bancária do Condomínio Réu ter estado bloqueada pelo montante de 4.372,13 Euros a partir de 16 de Fevereiro de 2018, a A. efectuou, a partir desta data diversos pagamentos por conta do Réu, os quais ia recuperando à medida das disponibilidades da conta bancária, sendo que à data de 30 de Junho de 2019, saldo credor a favor da A. era de 1.816,46 Euros, conforme Factura 11/11 e o seu anexo com a conta corrente”
14-  “O Réu não procedeu ao pagamento da Factura 11/12, pela quantia de 83,00 Euros correspondente ao saldo da conta corrente da caixa”.
No que tange ao facto 12, o mesmo não foi oportunamente alegado pela apelante pelo que está completamente vedado equacionar o seu aditamento (cf. Artigo 5º, nº1, do Código de Processo Civil ).
Quando aos demais factos, os mesmos não coincidem com o que foi oportunamente alegado pela autora no requerimento injuntivo, a saber:
3- Também no âmbito do contrato celebrado, e desde 2016, a requerente, a pedido da requerida, prestou serviços de limpeza das zonas comuns do condomínio, efetuados através de uma empresa Qualipura, a quem pagou, sendo que a requerida não procedeu ao pagamento das faturas referentes a esses serviços e que a seguir se discriminam: a) FA 2019/52 de 1.6.2019 no valor de €861; b) FA 2019/61 de 1.7.2019 no valor de €861; c) FA 2019/69 de  1.8.2019 no valor de €861; d) FA 2019/75 de 1.9.2019 no valor de €861;
5. A requerente procedeu ainda ao pagamento por conta e ordem da requerida de várias despesas desta no montante total  de €1.816,46, tendo emitido a competente fatura, 11/11, datada de 1.4.2020, constatando em anexo à mesma os movimentos de conta corrente discriminados;
6- A requerente procedeu ainda ao pagamento por conta e ordem da requerida de várias outras despesas desta no montante total de €117,14, tendo emitido a competente altura, 11/12, datada de 1.4.2020, constando em anexo à mesma, os movimentos de conta corrente devidamente discriminados.
Ou seja, os factos que a apelante pretende que sejam aditados constituem uma reconfiguração, nova versão, com aditamentos e alterações, dos factos oportunamente alegados nos artigo 4º a 6º do requerimento injuntivo.
Atenta a causa de pedir nestes autos, os factos que a apelante pretende adicionar ao elenco dos factos provados assumem a natureza de factos complementares, nos termos do Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil. Tais factos só poderiam ser introduzidos no processo no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa (cf. também: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2017, Pinto de Almeida, 1758/10, de 6.9.2022, Graça Amaral, 3714/15, de 30.11.2022, Barateiro Martins, 23994/16; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de  11.12.2018, Moreira do Carmo, 2053/14, de 13.9.2022, Moreira do Carmo, 3713/16; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2019, Castelo Branco, 11605/18). Em qualquer dessas circunstâncias, assiste à parte beneficiada pelo facto complementar e à contraparte a faculdade de requererem a produção de novos meios de prova para fazer a prova ou contraprova dos novos factos complementares – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 32.
Não tendo a apelante desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal, está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art.º 5º (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 860) ou, segundo Alberto dos Reis, ocorreria erro de julgamento por a sentença/acórdão se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp.. 145-146). Note-se que a ampliação da matéria de facto (Artigo 662º, nº 2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade alegada, tempestivamente, pelas partes, não constituindo um sucedâneo do mecanismo sucedâneo do Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil).
Improcede, sem mais, a pretendida alteração da matéria de facto.
No que tange ao facto 3, sustenta a apelante que deve apenas manter-se o segmento que refere que o Réu mandou realizar uma auditoria às contas do condomínio por sugestão da Autora. Invoca, para tal, a ata 19.
O tribunal a quo fundamentou a resposta ao facto 3 assim:
«Relativamente ao ponto 3 da decisão de facto, atentou-se aos depoimentos das testemunhas ER, AM, bem como aos documentos que correspondem à auditoria realizada e às trocas de correspondência entre as partes.»
A apelante limita-se a expressar discordância, invocando uma ata, sem apreciar os meios de prova valorados pelo tribunal a quo.
Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil,
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova  produzida em primeira instância.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.5.2016, Maria Amélia Ribeiro, 1393/08, «É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum» (sublinhado nosso).
No Acórdão da Relação do Porto de 6.3.2017, Miguel Morais, 632/14, afirma-se, confluentemente, que:
« (…)  tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas, nos termos do art.º 607º, nº 4), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando, designadamente, reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos ou indicar, de forma acrítica, um determinado documento.
Deste modo, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do art.º 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante.»[3]
Deste modo e exemplificativamente, não observa tal ónus o apelante que sustenta apenas que o tribunal a quo faz uma incorreta valoração da prova produzida, uma vez que baseou a sua convicção na prova produzida pelas testemunhas de uma parte, nomeadamente o seu filho e a sua nora, não lançando o tribunal a quo mão de qualquer outro elemento de prova que permita de forma segura dar esse facto como assente.
Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto”, http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf , analisa a questão nestes termos:
« (…) tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), (…), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos.
Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova carreados para os autos.
E ainda que não existam obstáculos formais a que um determinado facto seja julgado provado pelo Tribunal mediante o recurso a um único depoimento a que seja atribuída suficiente credibilidade, não deve perder-se de vista a falibilidade da prova testemunhal quotidianamente comprovada pela existência de depoimentos testemunhais imprecisos, contraditórios ou, mais grave ainda, afetados por perjúrio.
Neste contexto, é facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas, v.g., documentais, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada» (sublinhado nosso).
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.2011, Álvaro Rodrigues, 1079/07, afirmou-se que:
«A lei impõe ao recorrente que indique (concretamente) os depoimentos em que se funda, não sendo suficiente indicar um conjunto de testemunhas que depuseram a determinado a facto (mesmo que venham devidamente identificadas pelos nomes e outras referências), para depois se concluir, sem mais, que ouvidos os seus depoimentos se deveria decidir diferentemente.
Importa alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta do depoimento ou parte dele.
É exatamente esse o sentido da expressão legal «quais os concretos meios probatórios de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida» (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: «Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida»!
Com efeito, trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o Recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detetada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.»
Revertendo a caso em apreço, a apelante não cumpriu tal ónus porquanto omitiu, na totalidade, uma apreciação crítica sobre a formulação da convicção expressa pelo tribunal a quo, razão pela qual se rejeita a impugnação neste segmento.
Quanto ao facto provado sob 5, al. a), entende a apelante que deve apenas ficar provado que, para fazer face a alguns pagamentos, a Autora levantou algumas quantias em numerário. Invoca, para tal, o documento junto pelo ROC junto com a oposição do qual decorrerá que o relator encontrou, na contabilidade do condomínio, elementos documentos que lhe permitiram determinar a aplicação dos montantes levantados em numerário, especificando-os nos anexos IV e V do relatório.
O tribunal a quo fundamentou a resposta nestes termos:
«No que respeita ao ponto 5 da decisão de facto, atentou-se ao exame do relatório da auditoria realizada, cujo teor foi confirmado pela testemunha ER, que é ROC, tendo deposto de modo absolutamente isento, rigoroso e preciso, peloque mereceu credibilidade.
Mais se atentou, para demonstração das diversas alíneas constantes do ponto 5, aos depoimentos das testemunhas ER, AM, MI, AM e GP, que confirmaram a referida factualidade, tendo revelado conhecimento directo dos factos, em virtude de o primeiro ter realizado a auditoria referida nos autos, de VL, ter assumido a administração do condomínio e de os restantes serem condóminos, tendo, em diversos momentos, acompanhado a gestão do condomínio/R.»
Mais uma vez, a apelante não cumpriu, devidamente, o seu ónus impugnatório, aplicando-se o que foi dito anteriormente quanto ao facto 3.
Mesmo que assim não fosse, resulta do relatório a p. 8 que «A análise dos movimentos bancários de 2017, relevou a existência de levantamentos em numerário no valor global de 16.690€, que de acordo com a administração terão sido utilizados para pagamento de serviços diversos (reparações, serviços de limpeza) – Anexo VI.» Ou seja, o relatório invocado pelo apelante não sustenta a posição do apelante. Acresce que a testemunha PR (ROC que efetuou o relatório sobre as contas do Condomínio respeitantes ao período de 2017 a junho de 2019) foi bastante pormenorizado, esclarecendo que os levantamentos em numerário ocorreram a partir de 4.1.2027, mas o primeiro pagamento em numerário sinalizado ocorreu em 17 de outubro, consoante anexo IV.
Pretende o apelante que seja acrescendo ao facto 5 al. b) que a decisão de não efetuar essas obras foi aprovada pelo recorrido, em ata da assembleia de condóminos de 27 de maio de 2019.
Trata-se de facto complementar cuja introdução no processo nesta fase é inviável pelas razões já acima enunciadas. Mesmo que assim não fosse, a testemunha MM foi bastante precisa sobre tais obras, esclarecendo que a autora começou por indicar a necessidade das mesmas, propondo quotas extraordinárias e, posteriormente, veio dar o dito por não dito, afirmando que bastariam umas reparações em vez de substituição.
Entende a apelante que a al. c) do facto 5 deve ser eliminado pois os pagamentos em numerário foram todos apurados e identificados de acordo com documentos existentes na contabilidade do condomínio, como demonstrado nos anexos IV e V do relatório de auditora, sendo que a não emissão de recibos pelo fornecedor apenas é imputável a este.
Mais uma vez, a apelante não cumpriu, devidamente, o seu ónus impugnatório, aplicando-se o que foi dito anteriormente quanto ao facto 3.
Mesmo que assim não fosse, os anexos IV e V não sustentam a posição da apelante porquanto o anexo IV  reporta-se a uma lista de pagamentos feita à  Forstop no valor global de € 17.342 e o Anexo V contem uma lista de pagamentos efetuados sem fatura no montante total de € 22.078,36, não se extraindo diretamente destes documentos as ilações que o apelante pretende sustentar. A testemunha PR esclareceu que apurou que a Forstop já não existia e tinha sido liquidada desde 9.3.2017, o que não impediu a autor de lhe efetuar, posteriormente, pagamentos sinalizados na contabilidade (Anexo IV)…
Quanto à questão da falta da emissão de recibos pelos fornecedores, se era o caso, então não cabia à autora proceder aos respetivos pagamentos (cf. Artigo 787º, nº 2, do Código Civil).
Quanto à al. d) do facto 5, entende a apelante que a mesma deve ser eliminada pois não existia dívida certa, uma vez que estava em contencioso e a assembleia de condóminos reconheceu isso.
Mais uma vez, a apelante não cumpriu, devidamente, o seu ónus impugnatório, aplicando-se o que foi dito anteriormente quanto ao facto 3.
Mesmo que assim não fosse, o facto em causa decorre do teor do relatório no ponto 3, Campo 5 relativo a “Saldos de terceiros reportados a 30 de junho de 2019”.
De todo o modo, na ata em causa o que consta é que: « Gerou-se, de seguida, algum debate acerca deste assunto, tendo a generalidade dos condóminos sido de opinião que deveriam ser pagas as faturas das avenças que são reconhecidamente devidas, isto é , aquelas que não suscitam quaisquer dúvidas, e que , atento ao que aquela empresa reclama do passado, a situação terá que ser melhor analisada, com o apoio da assessoria jurídica.»
A ata não precisa valores em dívida, reporta-se a uma assembleia realizada em 27.5.2019, sendo que as dívidas provadas se reportam ao período de novembro de 2016 a junho de 2019. Os valores provados são também contemporâneos da realização da assembleia, sendo que o alegado contencioso só faria sentido para o passado e não para o período em causa. Em suma, a ata não tem as virtualidades que o apelante esboça.
As testemunhas AS (condómina que desempenhou funções de ligação entre os condóminos e a Autora como administradrora; a partir dos minutos 13 e 25 do seu depoimento) , MM ( a partir do minuto 14) e GP (a partir do minuto 15) esclareceram esta questão da dívida à Thyssen em termos totalmente conformes com o provado. O litígio tinha sido anterior e tinha dado azo a um acordo de pagamento, o qual não foi cumprido pela autora. O litígio não estava pendente aquando da assembleia de 27.5.2019.
Sustenta a apelante que do facto 6 apenas deve constar que o réu não pagou as faturas referidas, nada se tendo apurado quanto à queixa-crime. Afirma a apelante que «nada se apurou sobre o conteúdo de uma queixa crime referida pelo Réu na sua oposição: apenas juntou, como documento 7 anexo a esta, a primeira folha de uma participação, desconhecendo-se o conteúdo da mesma e o seu estado
Resulta dos depoimentos de AS, MM e , sobretudo, de GP (este era também ligação entre os condóminos e a autora, tendo desempenhado um papel central tendo em vista a cessação da atividade da autora e o apuramento integral das suas responsabilidades)  que os condóminos ficaram bastante irritados quando se aperceberam das irregularidades da administração feita pela autora, da qual resulta que a autora será devedora de quantias ao réu (v.g. pagamentos recebidos pela autora e que não entraram na contabilidade do Condomínio) tendo tomado a decisão de formular participação-crime e não pretendendo satisfazer mais qualquer crédito invocado pela autora. Para este efeito, não se exige que se prove o teor da participação, tratando-se de um facto acessório.
Entende a apelante que a alínea b) dos factos não provados deve ser eliminado. Não se percebe a pretensão de eliminar um facto não provado porquanto, a ocorrer, a mesma é inconsequente para a sorte do processo. Todavia, sempre se dirá que bem andou o tribunal a quo ao considerar tal facto como não provado porquanto inexiste prova do referido acordo.
Finalmente, sustenta a apelante que o facto não provado sob c) (“Que a Autora tenha assumido, ainda, e realizado o pagamento – em representação do Réu – da quantia de 1.816,46€ devida a terceiros”) deve ser considerado provado porque foi comprovado pelo ROC e pela relatório.
Sem razão. Em primeiro lugar, o que consta do relatório no Capítulo “Saldos de terceiros reportados a 30 de junho de 2019” não coincide sequer com este valor de €1.816,46. Em segundo lugar, a autora não fez prova da existência destes pagamentos, nomeadamente com a junção de quitação respetiva.
Improcede a impugnação da matéria de facto na sua totalidade.
Se o Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito ao julgar a ação improcedente
Resulta da matéria de facto provada que, em 27.9.2011, a autora e o Réu celeberam um contrato de prestação de serviços de gestão de condomínio. Trata-se de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam as disposições dos Artigos 1154º e 1156º do Código Civil, aplicando-se subsidiariamente o regime do mandato.
Em função da matéria de facto que persiste provada, a Autora reclama o pagamento de três faturas de junho a agosto de 2019 atinentes a honorários da gestão do condomínio.
O contrato de prestação de serviços só cessou em 3.9.2019 (cf. facto 4), razão pela qual, em princípio, o pagamento dos honorários seria devido.
Está provado que o Réu não procedeu ao pagamento de tais faturas em virtude de se considerar lesado  em montante muito superior.
E, de facto, resulta da matéria de facto provada sob 3 e e 5 que, durante a prestação do seu serviço ao Réu, a Autora incorreu na prática de inúmeras irregularidades que prejudicaram o Réu, adotando más práticas de administração que passaram:
§ Pelo levantamento de quantias em numerário, no montante total de 16.990€, sem apresentar justificação documental para o efeito;
§ Pela realização de uma quotização extraordinária, para realização de obras para reparação e substituição das portas de acesso e vãos adjacentes da entrada e substituição do videoporteiro de algumas fracções, não tendo tais obras sido realizadas;
§ Por pagamentos em numerário, em montantes não concretamente apurados, sem que tenha ocorrido a correspondente emissão de recibos pelo fornecedor;
§ Pela omissão de pagamento ao fornecedor Tyssen, responsável pela manutenção dos elevadores do condomínio, entre Novembro de 2016 e Junho de 2019, no valor total de 18.114€.
Afigura-se-nos que a reclamação pela Autora do pagamento das faturas de prestação de serviços, neste específico contexto contratual, deverá ser paralisada pelo instituto do abuso de direito, na modalidade de tu quoque.
Nos termos do Art.º 334º do Código Civil, «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito
O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2022, Aguiar Pereira, 8281/17).
«O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objetivo. Quer isto dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento subjetivo. Evidentemente: a presença ou a ausência de tais elementos poderão, depois, contribuir para a definição das consequências do abuso» (Menezes Cordeiro, “Do abuso de direito: Estado das questões e perspetivas”, in ROA, 2005, Vol. II, 20.III., acessível no portal da Ordem dos Advogados).
No que tange ao parâmetro da boa fé, «O direito deve ser exercido honestamente, como deveria ser exercido por uma pessoa de bem. Inscreve-se neste âmbito um tipo característico de má fé cuja reação é tradicionalmente designada “exceptio doli” e também o tipo de exercido inadmissível recentemente denominado “tu quoque” que se traduz na proscrição da invocação e do aproveitamento da ilicitude própria, da própria torpeza, e que corresponde o velho brocardo nemo auditur turpitudinem suam allegans. Trata-se de situações em que o exercício é inaceitavelmente contrário aos padrões de honestidade que devem reger as relações entre pessoas de bem» (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed, Almedina, p. 233). Ainda no âmbito do parâmetro da boa fé, «O direito deve ser exercido de modo não danoso, ou do modo menos danoso possível. O princípio do mínimo dano exige que, no exercício, o titular evite causar danos a terceiros e que, se assim não for possível, exerça o direito de modo a causar o mínimo possível de danos» (Op. Cit., p. 234). «Existe abuso de direito, por violação dos limites impostos pela boa fé (de que o princípio da proporcionalidade é um subprincípio), se houver desproporção grave entre o benefício do titular exercente do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.2.2021, António Magalhães, 119458/16).
No que tange aos bons costumes, os mesmos «implicam uma referência para critérios éticos supra legais, para as coordenadas éticas regentes na sociedade e na Ordem Social, uma referência que extra-sistemática através da qual o Direito procura encontrar, fora dos seus quadros reguladores formais, critérios de decisão e de valor que o transcendam e que, nessa medida, o dominam.  (…) Trata-se de uma normatividade imanente na sociedade, de um dever-ser imanente no ser, que não se encontra muitas vezes nas palavras da lei, mas que é respeitado no exercício do direito pelas pessoas de bem» (Op. Cit., pp. 235-236). «Os bons costumes são aqui perspetivados como o mínimo ético-jurídico que deve balizar o exercício de qualquer posição jurídica» (Elsa Vaz Sequeira, Teoria Geral do Direito Civil, UCE, 2022, p. 203). Na formulação de Menezes Cordeiro (coord.) Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, pp. 931-932, «correspondem a regras de conduta sexual e familiar aceites na sociedade e a códigos deontológicos vigentes em certos setores (advogados, médicos ou jornalistas, como exemplos)».
Pode haver um comportamento abusivo sempre «que se viola o fim económico ou social do direito, ou seja, a intenção normativa que lhe subjaz, o seu substrato axiológico. Isto não implica a funcionalização desse direito. Trata-se tão-somente de reconhecer a estrutura material do direito, à qual vai buscar (…) não só a sua essência, como o seu próprio fundamento ontológico. O direito é o produto da harmonização de ambas as estruturas» (Elsa Vaz Sequeira, Teoria Geral do Direito Civil, UCE, 2022, p. 203). «(…) implica interpretar a norma que concede o direito; caso este tenha um sentido funcional, a sua ultrapassagem dá azo a uma atuação estranha ao direito considerado, o que não é, tecnicamente, um abuso: apenas uma violação de normas que restrinjam o exercício ou lhe cometam funções» (Menezes Cordeiro (coord.) Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, p. 932).
Na jurisprudência e a este propósito, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2021, Luís Espírito Santo, 1920/18:  A figura do abuso de direito prevista no art.º 334.º do CC, revestindo cariz amplo e multifacetado, abrange o exercício do direito que é feito de molde a extrapolar a sua finalidade própria e típica, afastando-se do fundamento axiológico para o qual foi concedido pelo sistema jurídico ao seu titular, prosseguindo o escopo da obtenção de um benefício que lhe seria vedado se tivesse agido de acordo com os ditames da boa fé, segundo o imperativo do art.º 762.º, n.º 2, do CC, e com prejuízo sensível para os interesses de outrem.
Na jurisprudência do STJ ressaltam, entre outros, os seguintes arrestos quanto à caracterização geral da figura:
§ «A figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, Santos Bernardino, 3934/07);
§ «O instituto do abuso de direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial, são meios de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da ação, o faz de uma maneira que, objetivamente, e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de justiça, prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.4.2022, Fernando Batista, 1670/13).
O Artigo 334º do Código Civil estatui a ilegitimidade do exercício abusivo do direito, mas não determina as sanções que lhe devem corresponder.
A sanção do ato abusivo é variável e deve ser determinada, consequentemente, caso por caso de acordo com as circunstâncias específicas do comportamento concretamente assumido pelo titular do direito.
Assim, o abuso de direito pode ser fonte de responsabilidade civil desde que no exercício abusivo se verifiquem os requisitos próprios da responsabilidade delitual: ato abusivo; dano; culpabilidade e nexo de causalidade entre o dano e o facto abusivo – cf., por todos, CUNHA DE SÁ, Abuso de direito, Almedina, 1997, pp. 637-646. E, tendo em conta o princípio da restauração natural (Artigo 562º do Código Civil), a sanção para o ato abusivo pode consistir na necessidade de reposição da situação anterior ao abuso.
Estando em causa a prática de atos jurídicos, de negócios jurídicos, em particular, a sanção adequada pode consistir na invalidade do negócio celebrado.
Outra consequência do carácter abusivo do exercício do direito é a de constituir, a favor do lesado, uma pretensão de omissão de tal exercício e a de paralisação de certos efeitos jurídicos – cf. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, II Vol., 2ª ed., 1996, p. 493. É o caso paradigmático de um contraente que induz a contraparte a celebrar negócio jurídico com preterição de forma legal e, subsequentemente, pretende valer-se da nulidade.
Outros efeitos possíveis são: a extinção do direito subjetivo; limitações ao seu conteúdo; obstáculos à aquisição de uma posição jurídica; constituição de um direito diverso na esfera de outrem; nulidade de exercício – cf.: CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, 2004, p. 840, Nota 933; Elsa Vaz Sequeira, Teoria Geral do Direito Civil, UCE, 2022, p. 204.
No caso em apreço, entendemos que a modalidade de abuso de direito que ocorre é o tu quoque.
Ensina Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, p. 209, que «A ideia básica reside no seguinte: aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo a outrem, o acatamento de consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur. Caso o pretendesse fazê-lo, a sua atuação seria detida pela exceção tu quoque.» Há que exigir um nexo muito estrito entre a situação violada pelo abusador e aquela de que este se pretende prevalecer. Refere-se a este propósito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2011, Silva Gonçalves, 2018/07, que «a fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído; está em jogo um vetor axiológico intuitivo, expresso em brocardos como ”turpitudinem suam allegans non auditur” [ninguém, alegando a sua própria torpeza, deve ser ouvido] ou “equity must come with clean hands” ». Numa outra formulação, ocorre abuso de direito na modalidade tu quoque quando alguém desrespeita um contrato e vem depois exigir à outra parte o seu cumprimento – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.10.94, Silva Pereira, 0077262
É esse precisamente o caso em apreço.
Consoante se viu supra, a Autora incorreu em incumprimento, grave e reiterado, do contrato de prestação de serviços, adotando comportamentos que manifestamente contrariam os propósitos subjacentes à celebração do contrato, causando prejuízos relevantes ao réu Condomínio. Num contexto desta índole, e não estando o réu ressarcido dos prejuízos causados por tais atuações, integra abuso de direito a conduta da autora de vir exigir o pagamento de mensalidades do contrato de prestação de serviços em causa, como se a autora tivesse cumprido o mesmo sem sobressaltos.
A consequência que mais se adequa a este abuso de direito é a paralização da pretensão da autora, julgando-se a ação improcedente.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a improcedência da ação embora com fundamento diverso do adotado na primeira instância.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 30.5.2023
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
                                              
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
[3] No mesmo sentido, cf. Acórdão da Relação do Porto de 5.11.2018, Domingos Fernandes, 26376/15.