INIBIÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) Nº. 2201/2003 DE 27/11
RESIDÊNCIA HABITUAL
DESLOCAÇÃO ILÍCITA
Sumário


I - A atribuição da competência internacional em questões de responsabilidades parentais é definida em função do superior interesse da criança, fixando como elemento de conexão o critério da residência habitual e da proximidade geográfica na medida em que esses tribunais estarão em melhores condições para apreciar e decidir sobre a situação da criança ( cfr. art. 8º do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro).
II- A atribuição da competência dos tribunais do Estado da residência habitual da criança é justificada pelo melhor conhecimento da sua situação e do seu estado de desenvolvimento, da possibilidade de adoção das decisões necessárias em tempo útil e da eficácia jurídica das decisões que lhe digam respeito.
III- Segundo a jurisprudência do TJUE, o conceito de residência habitual para efeitos daquele regulamento deve ter uma interpretação autónoma, à luz do contexto das regras e dos fins prosseguidos pelo mesmo no contexto da responsabilidade parental, referidos no considerando 12: a competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais é definida em função do superior interesse da criança, alcançado através do princípio da proximidade.
IV- Daí se dizer que a residência habitual para efeitos daquele art. 8º do regulamento deve ser entendida como o local que revela uma certa integração da criança num ambiente social e familiar deve apresentar estabilidade e regularidade, características determinadas por certos indícios do caso concreto que traduzem a integração social e familiar da criança.
V- Todavia, se na pendência do processo, ocorrer uma deslocação lícita da residência habitual da criança para outro Estado-Membro, o tribunal onde pende o processo só mantém a sua competência, verificadas as condições taxativas previstas no artigo 9º, n.º 1, do mesmo Regulamento.
VI- Encontra-se melhor colocado para decidir a causa ( inibição das responsabilidades parentais) o tribunal português numa situação, como a dos autos, em que é em Portugal que a criança, atualmente com 8 anos de idade, reside desde os 4 anos de idade juntamente com os tios maternos (desde 2017), a quem foi entregue a guarda da criança e declarada a situação de abandono (por parte dos progenitores) pela autoridade administrativa espanhola; é em Portugal que estão os laços familiares maternos (inclusive a avó materna com quem convive); é em Portugal que frequenta a escola; é a língua portuguesa a que aprendeu a escrever e a falar; é em Portugal que fez e mantêm amizades; é em Portugal que a criança se mostra bem integrada na vida escolar e social.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I- RELATÓRIO:

Nos presentes autos de inibição ao exercício das Responsabilidades Parentais referentes à menor AA e  em que são os seus progenitores os requeridos e requerentes os seus tios maternos, à guarda dos quais a menor se encontra (desde 2017, temporariamente e,  de forma permanente, desde 2018) por decisão da autoridade administrativa espanhola, foi proferida a seguinte decisão:

“ (…)
Por despacho de 15.06.2021, com os fundamentos ali aduzidos, decidiu-se determinar que a tramitação a adoptar nos autos era – apenas e tão só – a prevista no artigo 52º, do RGPTC, bem assim, indeferiu-se a prolação de decisão provisória relativa à menor AA.
No mesmo despacho, na sequência de, no requerimento inicial, fazer-se referência a um procedimento em ... foi solicitada informação sobre a sua natureza e objecto daquele.
Nessa sequência, ao abrigo do princípio da cooperação e confiança mútua entre os tribunais dos vários Estados-Membros, subjacente ao Regulamento Bruxelas II bis, determinou-se que se oficiasse aos mencionados autos por forma a alertar o “Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ...” (processo para oposición de medidas en protección menores 158/2019) sobre a possibilidade de se estar perante uma situação de litispendência prevista no artigo 19º, nº 2 e 3, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, do Conselho de 27.11.2003, bem assim, se solicitasse, concomitantemente, informação quanto ao procedimento que nele se encontra pendente – designadamente, se destina a regular as responsabilidades parentais da menor, com indicação do respectivo pedido e causa de pedir – cfr. despacho de 15.06.2021/refª ...63.

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Em 22.11.2021 foi junto oficio proveniente do “Servicio Comum Partido Judicial de ... – Julgado de Procedencia”.
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Em 25.01.2022 foi junto novo oficio proveniente do “Juzgado de Primera Instancia, Numero 3 de ..., com o número de processo 158/2019, informando que o procedimento ali pendente tinha por objecto “ a oposição formalizada por BB e CC (pais biológicos da menor AA)à resolução administrativa emitida pelo Conselho de igualdade política social e conciliação da Junta de ... em 14.03.2019, pela qual foi indeferido o pedido de reintegração familiar e a revogação da declaração de abandono da menor.”
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Por despacho de 26.01.2022 solicitou-se o envio de anexos que deveriam ter acompanhado a comunicação de 25.01.2022, bem assim que fosse prestada informação sobre o estado do procedimento.
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Em 30.03.2022 foi junto aos autos ofício proveniente do aludido Juzgado de Primera Instancia de ..., para “conhecimento” daqueles e para “demais fins apropriados” informando que, “em 31.01.2022 foi proferida sentença de acompanhamento, na qual concorda anular a situação administrativa de desamparo da menor e as resoluções de acolhimento em família alargada emitidas posteriormente, com a devolução da menor aos pais biológicos. A referida resolução não é definitiva. Contra o mesmo recurso poderá ser interposto a um tribunal superior”.
Mais procederam à junção de competente decisão proferida no âmbito daqueles autos.
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No âmbito da mencionada sentença, datada de 31/01/2022, e emitida o Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ..., com interesse para a questão em análise, foram considerados os seguintes factos:

- a menor AA nascida em ... (...) no dia .../.../2013, foi objecto de declaração administrativa de abandono provisório por Resolução do Conselho da Igualdade da Junta de ... (delegação territorial de ...) de 26 de Janeiro de 2017, ratificada por Resolução de 26 de Abril de 2017;
- mais tarde, em 23 de Novembro de 2017, foi proferida nova Resolução, agora de acolhimento familiar temporário com os tios maternos, DD e EE, os aqui requerentes, residentes em ..., acolhimento esse que veio a ser convertido em permanente por Resolução de 1 de Março de 2018;
- em 17 de Outubro de 2018, por estarem interessados na recuperação do pleno exercício da autoridade parental, os progenitores requereram a cessação da tutela por parte da Administração Pública (art. 172.2 do Código Civil espanhol), que lhes foi negada por esta em Resolução Administrativa de 14 de Março de 2019 (este artigo 172.2 do Código Civil espanhol, preceitua nos seguintes termos “1 “Durante el plazo de dos años desde la notificación de la resolución administrativa por la que se declare la situación de desamparo, los progenitores que continúen ostentando la patria potestad pero la tengan suspendida conforme a lo previsto en el apartado ..., o los tutores que, conforme al mismo apartado, tengan suspendida la tutela, podrán solicitar a la Entidad Pública que cese la suspensión y quede revocada la declaración de situación de desamparo del menor, si, por cambio de las circunstancias que la motivaron, entienden que se encuentran en condiciones de asumir nuevamente la patria potestad o la tutela.
Igualmente, durante el mismo plazo podrán oponerse a las decisiones que se adopten respecto a la protección del menor.
Pasado dicho plazo decaerá el derecho de los progenitores o tutores a solicitar u oponerse a las decisiones o medidas que se adopten para la protección del menor. No obstante, podrán facilitar información a la Entidad Pública y al Ministerio Fiscal sobre cualquier cambio de las circunstancias que dieron lugar a la declaración de situación de desamparo.
En todo caso, transcurridos los dos años, únicamente el Ministerio Fiscal estará legitimado para oponerse a la resolución de la Entidad Pública.
Durante ese plazo de dos años, la Entidad Pública, ponderando la situación y poniéndola en conocimiento del Ministerio Fiscal, podrá adoptar cualquier medida de protección, incluida la propuesta de adopción, cuando exista un pronóstico fundado de imposibilidad definitiva de retorno a la familia de origen” – disponível no site https://www.conceptosjuridicos.com/codigo-civil-articulo-172/).

- inconformados com uma tal Resolução, tomada em matéria de protecção de menores, que lhes negou a revogação da declaração de abandono e a reintegração familiar da filha, os progenitores deduziram oposição, que originou o procedimento n.º ...19 no Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ...;
- a sentença a que vimos fazendo referência, na sua fundamentação, faz a seguinte apreciação:
“(…) o Princípio de primazia do interesse superior da menor, cuja aplicação resulta sempre plena de dúvidas e inseguranças na busca do que, sem certeza total, devemos considerar como sendo o mais benéfico, tanto no presente como no futuro, e para o qual não há provas infalíveis. Pois bem, neste caso, não existe uma opinião especializada sobre a situação e evolução emocional da criança e sobre as repercussões que o regresso aos seus pais poderia ter sobre ela. A este respeito, é certo que os relatórios acompanhamento e controlo são escassos, uma vez que o ficheiro administrativo da menor foi transferido para os serviços sociais correspondentes em Portugal e o acompanhamento desde então pela entidade pública andaluza tem sido muito escasso. Existe apenas um sucinto relatório datado de 9/12/2020 no qual no qual a Comissões de
Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) relata que os tios maternos são bons cuidadores e que o menor está a desenvolver-se bem a todos os níveis.
Além disso, foi realizado um exame judicial do menor. AA, de 8 anos de idade, expressou que se encontrava bem com os seus tios; que não se lembrava da última vez que viu seus pais, que se lembrava deles mais ou menos; que não os via há três anos e que não gostaria de ver os seus pais, embora não apresentasse razões precisas para tal. Foi também sensível e envolvida nas atuais discrepâncias e distanciamento entre os cuidadores de acolhimento (os seus tios) e os seus pais e foi séria e distante durante a entrevista. Com base nestas provas, não podemos negar que a menor vive com a sua tia e tio maternos há vários anos, desde o final de 2017, e que, nesta situação, ela obteve uma certa estabilidade. No entanto, não se pode deduzir de tal cenário que o regresso da menor aos seus pais seria prejudicial para ela. Neste sentido, não podemos confundir a instabilidade ou desapego que a menor possa apresentar com seus progenitores a curto prazo, que pode ser minimizado com os oportunos planos que se estabeleçam a respeito, com a conveniência de persistir no acolhimento familiar e considerando que tal medida é de maior ou melhor qualidade a médio e longo prazo para o menor do que aquela de que desfrutaria com os seus pais biológicos.
Como indica o Ministério Público no seu relatório de conclusões favorável ao retorno, a menor tem oito anos de idade; não está na família de acolhimento há muito tempo e encontra-se numa idade muito apropriada para retomar uma relação pessoal com os seus pais, entendendo que é do interesse da menor estar e viver com eles e não manter uma situação que implique uma separação definitiva dos seus pais. Deve também, ter-se em conta que a falta de contacto com os pais biológicos é motivada por vários fatores que não lhe são inteiramente imputáveis, tais como a distância geográfica do local de residência da menor, as dificuldades de deslocamento que provocou a pandemia existente e as mais recentes discrepâncias familiares, surgidas entre os pais biológicos e os adotivos, uma vez que procuraram o retorno da menor.
Temos de fazer notar, além disso, os danos que causam à menor tal cenário de confronto, o que de modo algum favorece a manutenção das devidas e obrigatórias referências parentais e os contactos e visitas da menor com os seus pais, que foram drasticamente reduzidos. Evidenciou-se a recusa dos pais adotivos à transferência da menor para a sua exploração judicial na primeira data assinalada pelo órgão judicial para o efeito Y a interposição de uma ação em maio de 2021 perante os tribunais portugueses para que lhe seja atribuída a responsabilidade parental sobre a menor em demérito dos seus progenitores. Requerimento cuja existência foi comunicada pelo Tribunal judicial da Comarca ... para os efeitos previstos no art.º. 19 do Regulamento CE 2201/2003 e que foi respondido por este órgão judicial no sentido de expor o objeto e finalidade do presente processo. (…)”.
- Nessa sequência, a mencionada sentença concluiu no sentido de ser de revogar “a declaração administrativa de abandono da menor e as subsequentes resoluções de acolhimento permanente em família alargada e recusa de integração familiar” com a consequente “extinção da tutela sobre a menor por parte da Administração Pública e o retorno da menor com seus progenitores para o exercício ordinário da autoridade parental”.
- (…) e a final decidiu ser de:
- dar sem efeito “a declaração administrativa de abandono e demais resoluções posteriores de acolhimento em família extensa e recusa de reintegração familiar” ditadas pelo demandado Conselho de Igualdade, Políticas Sociais e Conciliação da Junta de ... (delegação territorial de ...);
- restituir o exercício da autoridade parental da menor aos seus pais biológicos, Sr.ª BB e Sr. FF, sem prejuízo do estabelecimento pela entidade pública de um plano de reinserção e acoplamento progressivo da menor com seus pais e uma vez, reentrada, da supervisão do núcleo familiar pelos Serviços Sociais da localidade de residência da menor”;
- a sentença proferida é impugnável através de recurso de apelação para a Audiência Provincial de ..., a interpor no prazo de 20 dias úteis seguintes à notificação”. – cfr. decisão junta aos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
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Por despacho de 30.05.2022/refª ...27, na sequência da decisão exarada pela Autoridade Judiciária ... e acima referida, determinou-se, além do mais, que fosse cumprido o disposto no art.º 25.º do RGPTC, facultando o imediato exercício do contraditório aos requerentes.
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Nessa sequência os requerentes, em 26.05.2022, vieram aos autos pronunciar-se e insurgir-se quanto aos termos daquela decisão proferida pelo Juzgado de Primera Instancia, requerendo a final que nestes fosse proferida decisão a:

“A) Declarar a competência deste Tribunal de Família para decidir da presente acção e, consequentemente, determinar o seu prosseguimento, designadamente, por aquela sentença emanar de Tribunal incompetente, que não acatou o critério da residência habitual da menor nem atentou no critério de proximidade, como dispõe o art.º 8.º, n.º 1, do referido Regulamento, entre outros; por se verificar ferida de nulidade por violação do contraditório, entre outros; por não acautelar o superior interesse da menor; por não acatar a manifestada oposição da menor ao regresso aquando da sua audição presencial, entre outros, em conformidade com o acima exposto.
Sem prescindir, consequentemente, pedem ainda, se digne:
B) Regular provisoriamente com caracter urgente o exercício das responsabilidades parentais desta menor de modo a confiar a mesma à guarda e cuidados dos requerentes, tios maternos.” – requerimento de 26.05.2022/refª ...86.
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O Digno Ministério Público, em 03.07.2022, em face do requerimento junto pelos requerentes em 26.05.2022, emitiu parecer e com os fundamentos ali aduzidos e aqui dados por reproduzidos, em sentido contrário, pugnou pela verificação da excepção da incompetência internacional do Tribunal, a qual é absoluta e de conhecimento oficioso e, nessa sequência, que se abstenha de conhecer do pedido, absolvendo os requeridos da instância. – promoção de 03.07.2022/refª ...87.
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Sendo este o estado dos autos – sendo certo que não se olvida que se desconhece se aquela decisão já transitou em julgado, contudo e considerando a questão objecto de apreciação, tal afigura-se irrelevante –, considerando e vertendo aqui os elementos acima consignados, o que dizer?

II- Enquadramento jurídico:

Tendo em vista a apreciação da (in)competência internacional deste Tribunal, importa reter, desde logo, que a questão da competência internacional em matéria do exercício das responsabilidades parentais relativas a crianças que residam num Estado Membro da União Europeia é definida – como os próprios requerentes reconhecem – pelo Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27.11.2003, que derroga a aplicação dos arts. 62º e 63º do Código de Processo Civil. [O Reino Unido nos termos do artigo 3.º do protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, manifestou o desejo de participar na aprovação e aplicação do regulamento.]
Assim, este Regulamento é aplicável às matérias civis relativas « relativas à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental», de acordo com a definição contida nos seus artigos 1.º (n.º 1, alínea b) e n.º 2 e 2.º, n.º 7 [responsabilidade parental], nela se incluindo o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva, por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança e, em particular, o direito de guarda, o direito de visita, a tutela, a curatela e outras instituições análogas, bem como a designação e funções de qualquer pessoa ou organismo encarregado da pessoa ou dos bens da criança e da sua representação ou assistência, a colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição e ainda as medidas de protecção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens.
Deste modo, quando uma matéria específica de responsabilidade parental seja, de acordo com o direito nacional, uma medida de «direito público», tal como a colocação da criança ao cuidado de uma família ou instituição de acolhimento, o Regulamento é, pois, aplicável.
Daí que, conforme decorre do artigo 2.º, nos. 1 e 4, o Regulamento seja extensível a qualquer decisão proferida por autoridades sociais e de protecção de menores, já que têm competência nas matérias que por ele são abrangidas, motivo pelo qual a sua aplicação não é limitada às decisões proferidas por tribunais (independentemente da sua designação – acórdão, sentença ou decisão judicial).
De acordo com os artigos 8.º a 15.º do Regulamento é estabelecido um sistema de normas de competência que fixam critérios para determinar quais os tribunais de um Estado-Membro competentes em matéria de responsabilidade parental.
Vale aqui, além da base correspondente ao art. 8.º, nº4 da Constituição da República e ao art. 288º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia, o corpo do n.º 1 do art. 65º do Código de Processo Civil [“Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais (…)”.]
Acresce que, como bem se refere no Ac. da RC de 23.04.2013 (processo n.º1211/08....), a determinação da respectiva competência pelo Tribunal português, face às regras emergentes do Regulamento, situa-se num domínio de intervenção oficiosa (obrigatória) do Tribunal nacional onde o processo foi instaurado, como decorre expressamente do artigo 17 do Regulamento: “[o] tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado-Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara-se oficiosamente incompetente” – cfr. disponível em www.dgsi.pt.
Note-se que a aplicação temática do Regulamento ao caso concreto – referimo-nos ao âmbito material de aplicação do Regulamento em função do pedido aqui formulado pelos Requerentes – decorre da circunstância de a pretensão de inibição do exercício das responsabilidades parentais estar inquestionavelmente abrangida no que o Regulamento refere como “limitação ou à cessação da responsabilidade parental” (art. 1.º, nº1, alínea b) e nº2, a), do Regulamento).
Atente-se que, de acordo com o considerando introdutório do próprio Regulamento referido à questão da competência (Considerando 12), “as regras de competência em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.”
Esta intenção concretiza-se no articulado do Regulamento nas disposições constantes da Secção 2, designadamente no art. 8.º, nº1, segundo o qual “os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.”
A propósito, com indicação de múltipla jurisprudência do TJUE, Anabela Susana Gonçalves, in Revista Julgar, nº47 (Maio/Agosto 2022), Ed. Almedina, sobre o novo Regulamento Bruxelas II ter (a partir de 01 de agosto de 2022) que reformula e substitui o Regulamento Bruxelas bis (este aplicável aos autos), com pertinência para a questão que ora vimos a apreciar (na medida em que, no essencial, mantém os princípios subjacentes àquele, havendo, porém, que fazer a prévia correspondência aos artigos respectivos),     refere: “O Regulamento Bruxelas II ter mantém o princípio da estabilidade da jurisdição do tribunal da residência habitual da criança. De acordo com o considerando 21, «quando ainda não exista qualquer processo pendente em matéria de responsabilidade parental e quando a residência habitual da criança seja alterada na sequência de uma mudança de residência legítima, a competência deverá acompanhar a criança, a fim de manter a proximidade. Para os processos em curso, a segurança jurídica e a eficiência da justiça justificam que a competência seja mantida até que esses processos culminem com uma decisão definitiva ou sejam arquivados por qualquer outra razão».
Todavia, nesta situação é possível que o tribunal que está a julgar a questão, nas circunstâncias descritas no artigo 12º do Regulamento, transfira a competência para o Estado-Membro onde a criança esteja a residir na sequência de uma mudança legítima de residência legítima.
Ainda assim, a competência geral do tribunal da residência habitual da criança cede, de acordo com o artigo 7º, nº2, perante as regras de competência previstas: no artigo 8 (prolongamento da competência quanto ao direito de visita); artigo 9º (competência em caso de rapto internacional de crianças); artigo 10º (escolha do tribunal).” – cfr. págs. 55-56.
O princípio fundamental das normas de competência previstas é o de que o foro mais adequado é o tribunal competente do Estado Membro de residência habitual da criança, sendo certo que o n.º 2 do art. 8.º ressalva, do seu âmbito de aplicação, as situações dos arts. 9.º e 10.º.
Ademais, a questão da competência é determinada no momento em que o processo for instaurado no tribunal.
Uma vez instaurado o processo no tribunal competente, em princípio este mantém a sua
competência mesmo que a criança passe a ter residência habitual noutro Estado-Membro no decurso do processo (de acordo com o princípio da perpetuatio fori).
Por conseguinte, a alteração da residência habitual da criança na pendência do processo não implica, por si só, a alteração da competência no processo pendente.
Note-se que o artigo 15.º prevê que – se tal servir o superior interesse da criança – o processo pode ser transferido, total ou parcialmente, em determinadas condições, do tribunal competente para conhecer do mérito para um tribunal de outro Estado-Membro para o qual a criança se tenha deslocado.
Voltando caso dos autos, o que dizer?
Dos elementos reunidos nos autos resulta que a criança AA efectivamente encontra-se aos cuidados dos requerentes, porém, em execução de uma medida de protecção – de acolhimento familiar – aplicada, em 2017, pelo Conselho da Igualdade, Políticas Sociais e Conciliação da Junta de ... (delegação territorial de ...), após ter sido declarada em estado de abandono.
Em face do exposto, inexistem dúvidas de que aquela residia em ... aquando do início desse procedimento, que transitou, no ano de 2019, para o Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ..., devido à oposição dos progenitores ao indeferimento, pela referida autoridade administrativa, do pedido de revogação da declaração de abandono da descendente, com vista à sua reintegração familiar.
Não se olvida que, aquando dessa transição, a AA já se encontrava a viver em Portugal. Porém, tal verificava-se – como se verifica – em regime de acolhimento e não de residência, continuando sujeita, aliás, à tutela da Administração Pública que actuou em defesa do seu superior interesse.
Daí que, em bom rigor e tal qual bem refere a Digna Procuradora na promoção que antecede, não se possa falar verdadeiramente numa alteração da residência habitual da criança.
Porém, ainda que assim se entendesse, seria a mesma irrelevante por se ter verificado no decurso do processo, iniciado na autoridade administrativa espanhola com competência em matéria de protecção, salvo se o Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ... decidisse usar a faculdade prevista no artigo 15.º do Regulamento (o qual dispõe que: “Excepcionalmente, os tribunais de um Estado-Membro competentes para conhecer do mérito podem, se considerarem que um tribunal de outro Estado-Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspectos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança.”).
Sucede que, in casu, tal não se verificou.
Aliás e ao invés, aquele Juzgado apreciou o seu mérito – conforme sentença proferida e acima referida –, conforme era da sua competência.
Nessa sequência, nos termos do artigo 8º, nº 1, do Regulamento Bruxelas II-A, este Tribunal carece de competência para conhecer desta causa.
Em síntese.
Tendo a Autoridade Judiciária ... assumido a competência para tratar as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais referentes à pequena AA, haverá que concluir, por força do disposto no artigo 8º, nº1, do aludido Regulamento de Bruxelas II-A, que este Tribunal carece de competência internacional para conhecer do pedido formulado pelos requerentes.
A infracção das regras de competência internacional é causa da excepção dilatória da incompetência absoluta (arts. 96º, alínea, a), e 577º, alínea a), do Código de Processo Civil).
A mencionada excepção pode ser conhecida em qualquer fase do processo e implica a absolvição da instância dos requeridos (arts. 576º, nº 2 e 590º, nº1 do Código de Processo Civil).
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Atento o acima decidido, sem necessidade de mais considerações, julga-se prejudicada a apreciação do demais requerido.
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III- Decisão:

Nestes termos, na presente acção intentada pelos Requerentes, DD e EE, decide-se julgar verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infracção das regras de incompetência internacional, e, em consequência, absolve-se da instância os Requeridos, BB e CC,    relativamente à questão da inibição /limitação do exercício das responsabilidades parentais atinentes à menor AA.
Custas a cargo dos requerentes, sem prejuízo do decidido quanto ao benefício de apoio”.”

É desta decisão que vem interposto recurso pelos requerentes, os quais terminam o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que se transcreve):

“1. O Tribunal de Portugal, particularmente e em concreto o Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Família e Menores ..., é o Tribunal competente para conhecer da submetida acção para apreciar e julgar.
2. O processo intentado no Tribunal ... (...) pelos requeridos/progenitores contra o Conselho de Igualdade, Políticas Sociais e Conciliação da Junta de ... (de ...), a impugnar a conferida e reiterada declaração de abandono, que corre termos no Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ..., sob o n.º 158/2019, e o processo em epígrafe intentado ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 1907.º, 1918.º e 1919.º do CC e 52.º do RGPTC, pelos recorrentes contra os progenitores (requeridos) da menor, AA, que corre termos no Juízo de Família e Menores ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o n.º 3008/21...., são processos distintos, pelo que aquele não impede a apreciação e julgamento deste último intentado no Tribunal português, que se afigura manifestamente competente.
3. Além de que a sentença proferida pelo Tribunal ... não transitou em julgado por ter havido interposição de recurso para o respectivo Tribunal superior de ... (ao que tudo indica, interposto pelo referido Conselho de Igualdade, Políticas Sociais e Conciliação da Junta de ...) - como se verifica do ofício junto aos autos principais a 23.08.2022 – ref.ª ...80.
4. A menor AA, nascida a .../.../2013, reside na cidade ..., desde Novembro de 2017, pelo que há 5 anos, com carácter habitual e permanente.
5. Em Portugal, ..., a menor iniciou a sua formação escolar (pré-escolar e escolar), encontra-se neste ano lectivo de 2022/2023 a frequentar o 4.º ano de escolaridade, do 1.º ciclo, do ensino básico, tem as actividades extracurriculares, fala e escreve correcta e fluentemente o português, que se afigura a sua língua materna.
6. É na cidade ..., que tem os seus colegas, amigos e familiares, mormente os requerentes, seu tios maternos e padrinhos de baptismo, mas também os demais tios maternos (irmãos da mãe), os primos e avó materna, que tratam a menor como se fossem os verdadeiros pais, que a orientam, educam, satisfazem as suas necessidades básicas e elementares e ainda procuram sempre agradar e dar o que lhe pode trazer um acréscimo à alegria de viver.
7. Foi em Portugal, com os recorrentes e demais família, que a menor readquiriu a confiança, a estabilidade emocional e psicológica, onde se encontra plenamente integrada, em segurança, estável e feliz.
8. Abandonada pelos pais desde a nascença até aos 4 anos de idade, quando chegou a Portugal, a menor padecia de melancolia, entre outros, como referiu o médico que a assistiu e avaliou.
9. A competência internacional afere-se pelo critério da residência habitual e da proximidade e, ainda, pelo superior interesse da menor.
10. O conceito de “residência habitual”, a que alude o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27.11.2003, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar,            conceito          interpretado    em       conformidade com     a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, e no mesmo sentido, entre outros, o acórdão de 12.07.2016, do Tribunal da Relação de Guimarães, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Anabela Miranda Tenreiro, no âmbito do p.º n.º 1691/15.3T8CHV-A.G1, disponível na internet.
11. A menor encontra-se a residir em Portugal há mais de 5 anos com os tios/recorrentes, mas não em regime de acolhimento, sob a tutela da Administração Pública de Espanha, como quando se encontrava entregue a família de acolhimento de ....
12. Mas mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, materialmente a residência habitual e permanente da menor é em Portugal, onde tem organizada a sua vida familiar, social e escolar em termos de estabilidade e permanência, plenamente integrada há quase 5 anos, o que não é de escamotear por via da alegação de aspectos formais que não correspondem à realidade.
13. A situação da menor ficou definida no âmbito da instância protectiva e não judicial, por oposição dos progenitores, até à maioridade da menor, pelo que se suspendeu assim, a “ pátria potestas” dos progenitores/requeridos, reunindo os cuidadores, recorrentes, todos os poderes-deveres inerentes às responsabilidades parentais, como se alcança do despacho proferido em 11.07.2019, no âmbito do processo administrativo n.º ...8..., da Procuradoria do Juízo de Família e Menores ..., do Ministério Público da Comarca ... – junto aos autos com a petição inicial como documento ....
14. O princípio fundamental das normas de competência previstas é o de que o foro mais adequado é o tribunal competente do Estado-Membro de residência habitual da criança.
15. A questão da competência é determinada no momento em que o processo judicial (e não o administrativo) for instaurado no tribunal, e a verdade é que quando o presente processo judicial foi instaurado a menor já residia em Portugal há quase 4 anos; e quando o outro processo judicial foi intentado pelos progenitores no Tribunal ... contra a Administração Pública de Espanha a fim de impugnar a conferida e reiterada declaração de abandono, a menor já se encontrava a residir em Portugal com carácter habitual e permanente há mais de 2 anos.
16. No superior interesse da menor e da residência com carácter habitual e permanente da menor, que se situa na cidade ..., em Portugal, o Juízo de Família e Menores ... afigura-se o Tribunal competente para conhecer da presente acção e pedido que lhe foram apresentados e submetidos para apreciar e julgar.
17. Em face do exposto e das disposições legais invocadas, não se verifica a incompetência absoluta, decorrente da infracção das regras de incompetência internacional, do Juízo de Família e Menores ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., pelo que a presente acção deverá prosseguir os seus trâmites para ser apreciada e julgado pelo referido Tribunal de Portugal.
Termos em que pede a V. Exas. se dignem dar provimento ao presente recurso e, consequentemente, se dignem revogar a douta sentença recorrida, em conformidade com o acima alegado, com as legais consequências.”.
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Foram apresentadas contra-alegações pelo MP pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido por despacho datado de 17-03-2023, como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Após remessa, o recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido.
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II - Delimitação do objeto do recurso

A questão decidenda a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em aferir sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação desta ação de inibição das responsabilidades parentais.
 
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III – Fundamentação

A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório da decisão recorrida, cujo teor se dá por reproduzido.

IV- Fundamentação jurídica:

Como se evidencia do despacho recorrido o tribunal a quo propendeu para o entendimento de que se verificava a sua incompetência internacional para os termos da ação, por:
- em primeiro lugar, não ter ocorrido uma verdadeira alteração da residência habitual da criança por “ a criança AA efectivamente encontra-se aos cuidados dos requerentes, porém, em execução de uma medida de protecção – de acolhimento familiar – aplicada, em 2017, pelo Conselho da Igualdade, Políticas Sociais e Conciliação da Junta de ... (delegação territorial de ...), após ter sido declarada em estado de abandono; inexistem dúvidas de que aquela residia em ... aquando do início desse procedimento, que transitou, no ano de 2019, para o Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ..., devido à oposição dos progenitores ao indeferimento, pela referida autoridade administrativa, do pedido de revogação da declaração de abandono da descendente, com vista à sua reintegração familiar; não se olvida que, aquando dessa transição, a AA já se encontrava a viver em Portugal; porém, tal verificava-se – como se verifica – em regime de acolhimento e não de residência, continuando sujeita, aliás, à tutela da Administração Pública que actuou em defesa do seu superior interesse; Daí que, em bom rigor …não se possa falar verdadeiramente numa alteração da residência habitual da criança;
-em segundo lugar, ainda que assim se entendesse, seria a mesma irrelevante por se ter verificado no decurso do processo, iniciado na autoridade administrativa espanhola com competência em matéria de protecção, salvo se o Juzgado de Primera Instancia Numero 3 de ... decidisse usar o art. 15º o que não se verificou”.
Deste entendimento dissentem os recorrentes alegando que o tribunal recorrido é o internacionalmente competente para a ação, atento o critério do superior interesse da menor e da residência com carácter habitual e permanente da menor, que se situa na cidade ..., em Portugal, o Juízo de Família e Menores ....
Vejamos.
Estamos no âmbito de escolha do tribunal para conhecer o pedido de inibição das responsabilidades parentais referentes à menor AA, a residir em Portugal com seus tios maternos, ora requerentes e à guarda de quem se encontra a criança desde 2017, a eles entregue no âmbito de uma medida tutelar de acolhimento decretada pela autoridade administrativa espanhola, a qual declarou o estado de abandono pelos progenitores da criança, ambos casados, sendo que a mãe tinha nacionalidade portuguesa e o pai espanhola, e ambos residem em ..., onde residiu a menor até aos 4 anos, tendo a mesma atualmente 8 anos de idade, pelo que a competência internacional (extravasa o território nacional) terá de ser analisada no quadro da legislação comunitária que vincula o Estado Português como seu estado-membro – cf- artº 59º do CPC.
Situando-se o litígio no âmbito de território da EU e atenta a data da propositura da ação (28-05-2021) aplica-se o Regulamento 2201/2003, do Conselho da União Europeia, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (também denominado de Regulamento “Bruxelas II bis”), que vincula os Estados-Membros, com exceção da ....
Este regulamento com entrada em vigor em 1 de Agosto de 2004 e aplicável a partir de 1 de Março de 2005, com exceção dos artigos 67º a 70º, que são aplicáveis desde aquela primeira data, surge no seguimento do Regulamento Bruxelas II (Regulamento n.º 1347/2000, do Conselho da União Europeia de 29 de Maio de 2000), e veio alargar as regras de reconhecimento mútuo e de execução do anterior regulamento a todas as decisões sobre responsabilidades parentais, garantir à criança o direito de manter o contacto com ambos os pais, e dissuadir o rapto parental das crianças dentro da Comunidade.
A decisão recorrida por tratar de uma relação transnacional, encontra a sua solução nos artºs 8.º a 15.º deste Regulamento, normas que regulamentam a responsabilidade parental.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artº 8º “Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal”.
O nº 2 do art. 8º dispõe: “ O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º”
Verificando-se que a criança AA, à data da propositura da presente ação, vivia e vive com os tios maternos em ..., Portugal desde 2017, a quem foi entregue pela autoridade administrativa espanhola que a retirou dos progenitores, residentes em ..., e declarou o estado de abandono da criança, tal tenderá a determinar a competência dos tribunais portugueses para a pronúncia do pedido formulado a respeito da inibição do exercício das responsabilidades parentais a ela respeitantes.
Por outro lado, tal só não acontecerá se se verificar qualquer das situações previstas nos arts. 9º, 10º e 12º do mesmo Regulamento.
Em qualquer dos casos, a atribuição da competência internacional em questões de responsabilidades parentais é definida em função do superior interesse da criança, fixando como elemento de conexão o critério da residência habitual e da proximidade geográfica na medida em que esses tribunais estarão em melhores condições para apreciar e decidir sobre a situação da criança.
A atribuição da competência dos tribunais do Estado da residência habitual da criança é justificada pelo melhor conhecimento da sua situação e do seu estado de desenvolvimento, da possibilidade de adoção das decisões necessárias em tempo útil e da eficácia jurídica das decisões que lhe digam respeito.
Segundo a jurisprudência do TJUE, o conceito de residência habitual para efeitos daquele regulamento deve ter uma interpretação autónoma, à luz do contexto das regras e dos fins prosseguidos pelo mesmo no contexto da responsabilidade parental, referidos no considerando 12: a competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais é definida em função do superior interesse da criança, alcançado através do princípio da proximidade.
Daí se dizer que a residência habitual para efeitos daquele art. 8º do regulamento deve ser entendida como o local que revela uma certa integração da criança num ambiente social e familiar deve apresentar estabilidade e regularidade, características determinadas por certos indícios do caso concreto que traduzem a integração social e familiar da criança.
Estes fatores reportam-se, nomeadamente à nacionalidade da criança, à sua idade, à duração, à regularidade, às condições e razões da permanência da criança no território de um Estado-Membro, às razões da sua mudança, aos laços familiares e sociais que a criança tiver nesse Estado-Membro- acórdão de 2 de abril de 2009 TJUE.
Sem embargo, como já referimos a competência dos tribunais do Estado da residência habitual da criança cede perante as situações previstas no nº2 do art. 8º do regulamento.
Ora, no caso concreto é em Portugal que a criança AA, atualmente com 8 anos de idade, reside desde os 4 anos de idade juntamente com os tios maternos (desde 2017), a quem foi entregue a guarda da criança e declarada a situação de abandono (por parte dos progenitores) pela autoridade administrativa espanhola; é em Portugal que estão os laços familiares maternos (inclusive a avó materna com quem convive); é em Portugal que frequenta a escola; é a língua portuguesa a que aprendeu a escrever e a falar; é em Portugal que fez e mantêm amizades; é em Portugal que a criança se mostra bem integrada na vida escolar e social.
Diante do exposto, qualquer ação, por via da qual se pretenda definir, regular ou alterar o exercício das responsabilidades parentais quanto à criança AA terá de correr termos perante os tribunais portugueses.
Na verdade, em ... não tem residência habitual.
Aliás, diga-se, que não se vê como se possa afirmar, perante o suporte factual supra descrito, que a residência da criança em Portugal é meramente ocasional ou temporária.
Apenas porque a sua entrega aos tios maternos foi no âmbito de uma medida tutelar ditada por uma autoridade administrativa espanhola?
E as medidas tutelares até serem revogadas e alteradas não têm estabilidade e permanência? Tanto têm que a vivência da criança junto dos tios e legitimada por tal medida decretada pela autoridade espanhola dura desde que a criança tem memória de si mesma, desde os 4 anos de idade e ininterruptamente até aos seus atuais 8 anos.
Acresce que a criança tem como referência principal os seus tios maternos, seus cuidadores desde que tem memória, e da sua audição feita no âmbito do processo judicial que corre termos em ..., resultou a sua integração num meio que identifica como o seu meio natural e familiar e que se localiza em Portugal e a sua vontade de permanecer neste país. Aliás, aquela audição da criança está prevista expressamente no mais recente regulamento de 2019, nos termos do qual se lê ( art. 21º) “ter devidamente em conta as opiniões da criança, em função da sua idade e maturidade”, como aliás também assim ocorria na vigência do regulamento de 2003. A criança tem 8 anos, idade em que tem já noção do que é residir num ou noutro país e já pode expressar a sua opinião. Afinal quais os vínculos sociais, afetivos, culturais estabelecidos pela criança em ... e que justifiquem que sejam os tribunais deste Estado a decidir os aspetos essenciais da sua vida? Na realidade, não se identifica qualquer elemento de conexão com este Estado, para além de os progenitores aí residirem, e a criança ali ter residido durante um período limitado de tempo ( até à tenra idade de 4 anos).
Nesta medida, tem de se concluir que a integração desta criança num ambiente social e familiar se faz e, sempre se fez em mais de metade da sua vida existencial, por referência a este país-Portugal- e à sua família alargada aqui residente, nomeadamente materna, e não num país onde não tem quaisquer referências, sejam afetivas ( nem se lembra da última vez que viu os pais), linguísticas ou culturais, pelo que a residência habitual a considerar é efetivamente a situada neste Estado, sendo, assim, os tribunais nacionais competentes para a presente ação de inibição das responsabilidades parentais.
Diga-se que tal só não aconteceria se se verificasse qualquer das situações previstas nos arts. 9º, 10º e 12º do mesmo Regulamento.
O art. 10º (Competência em caso de rapto da criança) regula situações alheias à situação em apreço.
Quanto ao art. 12º ( extensão da competência), prevê que essa extensão de competência possa ocorrer no âmbito de outros processos, que não tenham por objecto um pedido de divórcio separação ou anulação de casamento, mas sim um pedido de outro género, com o qual se relacione “ qualquer questão relativa à responsabilidade parental”. Mas, nesse caso, exigem-se, como requisitos complementares da extensão de competência, que a criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e a sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança – als. a) e b) do nº 3 citado.
Trata-se, nesta norma, de um alargamento da competência verificada no âmbito de um processo onde deva ser apreciado determinado pedido que, por este se relacionar com uma questão de exercício da responsabilidade parental, abrangerá também essa questão de responsabilidade parental.
Este nº 3 não prevê, assim, uma autónoma ou complementar solução de competência internacional, relativamente à do art. 8º, desde que verificados os pressupostos das alíneas a) e b), mas apenas uma situação de alargamento de uma competência previamente reconhecida para a apreciação de um pedido com o qual se relaciona a questão de responsabilidade parental a decidir, não ocorrendo todos os seus pressupostos, nomeadamente a competência ter sido aceite por todas as partes.
O art. 9º (Prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança) estabelece pressupostos de prévia intervenção judicial que, no caso, salvo o devido respeito, igualmente não se verificam.
Com efeito, e se bem que houve um prévio processo administrativo e que se convolou, segundo a lei espanhola, num processo judicial, nos termos do qual em 2022 foi proferida sentença em que se ordenou a entrega da criança aos progenitores, na verdade o que se verificou é que com a decisão da entrega da criança aos cuidados dos tios maternos, em 2017, ocorreu uma alteração da residência habitual da criança.
Prevê o artigo 9º do já citado Regulamento, sob o título “Prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança” o seguinte:
“1. Quando uma criança se desloca legalmente de um Estado-Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência, em derrogação do artigo 8º, durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão, sobre o direito de visita proferida nesse Estado-Membro antes da deslocação da criança, desde que o titular do direito de visita, por força dessa decisão, continue a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança.”
Significa, assim, este normativo que, em caso de alteração (legal) da residência habitual da criança, o Tribunal que antes decidiu, ao abrigo do princípio da proximidade consignado no artigo 8º do Regulamento, da regulação das responsabilidades parentais, tem ainda competência, a título excecional, no espaço de 3 meses a contar dessa deslocação, para conhecer e alterar a anterior decisão por si proferida, desde que o titular do direito de visita, por força dessa outra decisão, continue a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança.
E, no caso se bem que os progenitores continuem a residir em ..., na verdade não se verificou aquela alteração da decisão no espaço de 3 meses a contar da deslocação.
Não ocorrendo, assim, esta condicionante, e verificando-se uma alteração legal da residência habitual da criança para outro Estado-Membro, cessa a competência internacional do tribunal onde a criança tinha inicialmente a sua residência habitual, ou seja, no caso, os tribunais espanhóis para apreciar os presentes autos.
Ora, como assim, em nosso julgamento, falece já, de modo superveniente, a competência internacional dos Tribunais espanhóis para a decisão ora em causa.
Na decisão recorrida, é sustentado que “ Uma vez instaurado o processo no tribunal competente, em princípio este mantém a sua competência mesmo que a criança passe a ter residência habitual noutro Estado-Membro no decurso do processo (de acordo com o princípio da perpetuatio fori).”. Para o efeito alude ao considerando 21 do novo regulamento de 2019 transcrito na publicação da “Julgar” nº 47 por Anabela Susana Gonçalves, nos termos do qual se lê «quando ainda não exista qualquer processo pendente em matéria de responsabilidade parental e quando a residência habitual da criança seja alterada na sequência de uma mudança de residência legítima, a competência deverá acompanhar a criança, a fim de manter a proximidade. Para os processos em curso, a segurança jurídica e a eficiência da justiça justificam que a competência seja mantida até que esses processos culminem com uma decisão definitiva ou sejam arquivados por qualquer outra razão».
Todavia, nesta situação é possível que o tribunal que está a julgar a questão, nas circunstâncias descritas no artigo 12º do Regulamento, transfira a competência para o Estado-Membro onde a criança esteja a residir na sequência de uma mudança legítima de residência legítima.”
Sem embargo, aquela mesma autora ressalva, a respeito daquele regulamento de 2019, o seguinte:
“ Ainda assim, a competência geral do tribunal da residência habitual da criança cede, de acordo com o artigo 7º, nº2, perante as regras de competência previstas: no artigo 8 (prolongamento da competência quanto ao direito de visita); artigo 9º (competência em caso de rapto internacional de crianças); artigo 10º (escolha do tribunal).” – cfr. págs. 55-56.”.
Ou seja, aplicando tais considerandos ao regulamento de 2003, aqui aplicável, ressalva aquele princípio da estabilidade da jurisdição do tribunal da residência habitual da criança conforme aquelas exceções previstas no regulamento de 2003 e supra referidas: dos art.s 9º, 10º e 12º.
E como vimos, nenhum destes desvios à solução constante do art. 8º que acima se enunciou se verifica no caso em apreço, sendo certo que o art. 9º apenas prevê, além do mais, o prolongamento da competência do anterior tribunal “durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão, sobre o direito de visita proferida nesse Estado-Membro antes da deslocação da criança….”, o que não ocorreu no caso concreto.
Como impressivamente se lê no AC da RP de 06-03-2018, in dgsi ( relator Rui Moreira) “ Com efeito, numa análise que expressamente se reconhece e pretende simples, de um regime legal como aquele que trata de se aplicar, podemos dizer que a regulação das responsabilidades parentais relativas a uma criança exigem, em homenagem ao seu próprio interesse, que é o “superior” interesse a considerar, o mais rigoroso conhecimento possível das suas condições e circunstâncias de vida. Tal conhecimento será tão mais alcançável quanto se procure e alcance no tribunal da área de residência da criança, e não num tribunal da residência dos seus pais.”
No caso concreto, repare-se quão mais adequado é o apuramento e conhecimento de tais circunstâncias por um tribunal português, da área de residência da criança, do que por um tribunal espanhol.
Assim, e caso se entendesse que o tribunal de ... seria o competente para apreciar os presentes autos dentro daquela lógica que preside ao atual considerando 21º e tal como foi orientada a decisão recorrida, o certo é que o superior interesse da criança desaconselha fortemente que esta ação seja apreciada e decidida naquele país.
Efetivamente, um conflito aberto entre os tios e os progenitores transparece do caso vertente e que ressuma da fundamentação constante da decisão judicial proferida naquele processo em ....
Perante este quadro factual e porque em sede de audição da criança também ali se verificou que esta sente neste momento uma forte oposição à presença dos progenitores ( “ nem se lembrava da última vez que viu seus pais, que se lembrava deles mais ou menos; que não os via há três anos e que não gostaria de ver os seus pais, embora não apresentasse razões precisas para tal”), entendemos que o tribunal melhor colocado para decidir a causa é o tribunal português.
Na verdade, é cá que a criança poderá ser ouvida com a regularidade necessária por psicólogos ou técnicos especializados para o efeito, que permita a sua reaproximação aos progenitores.
Obviamente, esta decisão não contende de todo em todo com a decisão definitiva que vier a ser proferida pelo tribunal em ... quanto ao processo judicial espoletado pelos progenitores, porquanto e ainda que aquela decisão imponha o restabelecimento das responsabilidades parentais a serem exercidas pelos progenitores e entrega da criança aos progenitores e a ser resolvido em termos de executoriedade da decisão, a decisão a ser proferida nos presentes autos irá apreciar se aquelas responsabilidade parentais poderão ou não ser alvo de inibição ou limitação.
Por conseguinte, nesta altura, a única decisão que privilegia o superior interesse desta concreta criança é conferir competência aos tribunais portugueses para apreciar os presentes autos de processo de inibição das responsabilidades parentais.
É certo que para a definição daquelas responsabilidades também haverá de ser procurada factualidade respeitante aos progenitores da criança e suas circunstâncias. Mas esse conhecimento poderá ser mais facilmente obtido por um tribunal português, do que o apuramento das circunstâncias de vida da criança, em Portugal, por um tribunal espanhol. Além de que, como se disse, o interesse superior a atender é o da criança e não o dos seus progenitores.
Tem, pois, todo o sentido quer a regra constante do art. 8º, nº 1 do Regulamento 2201/2003, quer a sua aplicação ao caso em apreço, mas na interpretação supra referida e não na interpretação dada na decisão recorrida.
Atento o exposto e na procedência das alegações de recurso revoga-se a decisão recorrida e declara-se competente o tribunal recorrido.
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V. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida e declara-se competente o tribunal recorrido.
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Custas pela parte vencida a final ( cfr. art. 527º do CPC).
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Guimarães, 11 de maio de 2023

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes