RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário


1. Tendo a criança sido deslocada ilicitamente do Estado-Membro onde residia habitualmente (França) para o nosso país, ainda que não seja ordenado o seu regresso ao abrigo do artigo 13.º, alínea b) da Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980), a competência internacional para decidir a ação de regulação das responsabilidades parentais, instaurada em Portugal, quando a criança se encontrava há 14 dias em Portugal, é regulada pelo artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27-11-2003 (Regulamento Bruxelas II bis), em vigor à data da instauração dessa ação.
2. A atribuição da competência internacional é deferida ao tribunal da residência habitual antes da deslocação ilícita, à data da instauração da ação que visa regular as responsabilidades parentais, exceto se se verificarem as condições da alínea a) ou alínea b), subalíneas i) a iv) do artigo 10.º do referido Regulamento.
3. O artigo 10.º deste Regulamento visa desincentivar que o rapto de crianças (i.e., deslocações ou retenções ilícitas) determine a transferência da competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros onde a criança antes residia habitualmente para os do local para onde foi deslocada ilicitamente.
4. Prevendo este preceito as situações em que a competência dos tribunais onde antes residia habitualmente é transferida para os tribunais do local para onde foi deslocada, o mesmo não fere os princípios do Considerando (12) do dito Regulamento quando aquelas condições, no caso concreto, não se verificam.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou, em 04-02-2022, ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas à criança CC, nascida em .../.../2019, em Bordéus França, contra BB, residente em França, e AA, residente em Borba.
Alegou, em síntese, que os demandados progenitores se encontram separados há um ano, residindo a criança com a progenitora em Portugal, sem que estejam reguladas as responsabilidades parentais.
Posteriormente, em 09-03-2022, foi instaurado pelo progenitor, ao abrigo do artigo 8.º e seguintes da Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, um pedido de regresso da criança a França por ter havido uma deslocação ilícita da mesma para Portugal, que foi tramitado por apenso à ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais (Apenso A).
A tramitação da ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais esteve suspensa até à prolação de decisão final no âmbito do Apenso A.
Em 13-09-2022, no referido Apenso A, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu Acórdão, transitado em julgado 29-09-2022, que revogou o Acórdão da 2.ª instância «(…) na parte em que ordenou o regresso da criança CC a França», decidindo ainda «Recusar ordenar tal regresso ao abrigo do disposto no artigo 13º alínea b) da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças
Retomada a tramitação nesta ação, foram os progenitores e o Ministério Público notificados para, querendo, se pronunciarem sobre a eventual incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do mérito da presente ação. O progenitor sustentou serem os mesmos incompetentes, propugnando, ao invés, o Ministério Público e a progenitora, pela competência dos mesmos.
Em 13-01-2023, foi proferido despacho, que vem a ser o recorrido, que julgou o Tribunal de Vila Viçosa, Juízo de Competência Genérica incompetente internacionalmente para conhecer desta causa, absolvendo os Requeridos da instância.

Inconformada, a progenitora interpôs recurso de apelação, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1ª. Os presentes autos iniciaram-se em 04 de fevereiro de 2022, a requerimento do Ministério Público e foram intentados contra os Requeridos AA, a aqui Apelante, e BB, para regulação das responsabilidades parentais relativamente à menor CC, nascida a .../.../2019.
2ª. Porém, foram suspensos em 10.03.2022, face ao pedido, constante do Apenso A, do Requerido BB de regresso da menor a França, que foi recusado por Acórdão de 13 de setembro de 2022 do Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado, ao abrigo do disposto no artigo 13.º alínea b) da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
3ª. Agora, a Mma Juíza “a quo” proferiu a sentença recorrida, em que decidiu pela incompetência internacional do Tribunal para conhecer a presente acção de regulação das responsabilidades parentais e, consequentemente absolveu os Requeridos da instância, por ter entendido que, na fixação da competência internacional do Tribunal, não será de aplicar o preceituado no artigo 8.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, mas sim o disposto no artº 10º do mesmo Regulamento por, segundo a mesma sentença, “a presença da criança em Portugal ter tido origem na já mencionada deslocação ilícita”.
4ª. Ora, o Tribunal de Vila Viçosa – Juízo de Competência Genérica é internacionalmente competente para regular as responsabilidades parentais da menor CC.
5ª. Ao assim não o ter entendido, a Mma Juiza “a quo” desconsiderou todos os factos que integraram a decisão do Supremo Tribunal de Justiça ao ter recusado ordenar o regresso da menor a França, ao abrigo do disposto no artigo 13.º alínea b) da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, designadamente o facto de “exist(ir)e um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.”
6ª. assim como desconsiderou os critérios do superior interesse da menor e da proximidade, cruciais e indispensáveis para a tomada da decisão acerca da competência internacional do tribunal.
Vejamos:
7ª. A menor CC, na data em foram instaurados os presentes autos, tinha residência habitual em Portugal.
8ª. Na verdade, como se verifica da conjugação dos factos dados como provados no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - que aqui são dados como reproduzidos - resulta demonstrado que, em 4 de fevereiro de 2022, era efectivamente em Portugal – Borba - que a menor CC residia, onde tinha e tem fixado o seu centro de vida e a sua estabilidade.
9ª. Em fevereiro de 2022, a menor CC tinha uma maior integração em Portugal do que em França, tendo, a partir de 22.01.2022, sido em Portugal que a menor passou a ter a sua residência, na Rua ..., ... Borba, conjuntamente com a sua Mãe e irmã.
10ª. Também a partir dessa data, os convívios entre a menor e as famílias foram estreitados, visto que quer a família paterna quer a materna residem em Portugal, respectivamente, no Redondo e em Borba, tendo-se estreitado e intensificado as relações.
11ª. Como tal, ao abrigo do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para regular as responsabilidades parentais da menor CC.
12ª. A Mma Juiza “a quo”, na determinação do conceito de residência habitual, devia ter considerado o local onde a menor se encontra radicada e tem organizada a sua vida quotidiana.
13ª. Todavia, a Mma Juíz “a quo” valorizou apenas a deslocação ilícita da menor e desconsiderou os factores de excepção que condicionaram e impediram o regresso da menor a França.
14ª. Pois, não é pelo facto de se ter verificado uma deslocação ilícita da menor, nem pelo facto de a menor ter chegado a Portugal em 22.01.2022 que, não se pudesse concluir que, em 04.02.2022 (data instauração destes autos), a menor já tivesse residência habitual em Portugal.
15ª. Veja-se a propósito o que consta no Acórdão do STJ, de 20/01/2009, Processo n.º 08B2777, disponível no respectivo sítio do itij, por reporte ao guia prático para aplicação do citado Regulamento, “a determinação caso a caso pelo juiz implica que enquanto o adjectivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto”. (sublinhado é nosso)
16ª. Nessa apreciação e integração do conceito de residência habitual, a Mma Juiz “a quo” devia ter considerado, designadamente, o grau de integração da menor em ambiente social e familiar, as condições, a regularidade, as razões da sua permanência no território, a sua nacionalidade, os conhecimentos linguísticos, os laços familiares, o que, todavia, não fez.
17ª. Por outro lado, nesse mecanismo de integração do conceito de residência habitual, a Mma Juiza “a quo” também não atendeu que só com a chegada a Portugal é que a menor adquiriu estabilidade, um ambiente social e familiar que, com a separação dos progenitores ocorrida no início de 2021, deixou de ter em França.
18ª. Porquanto, tal como consta dos factos provados constantes do referido Acórdão do STJ, do Apenso A, em França, os direitos e interesses da menor estavam condicionados, decorrentes das necessidades e dificuldades que a sua Progenitora atravessava.
19ª. Assim, só após a sua chegada a Portugal é que a menor, para além do apoio e dos convívios mais próximos com a família materna, adquiriu melhores condições socio-económicas decorrentes do melhoramento das condições que a mudança para Portugal trouxe à sua Progenitora.
20ª. Veja-se, a propósito, um extracto do identificado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça onde se refere “resulta dos factos provados que a situação pessoal, económica e profissional da mãe da criança CC e, em consequência, as condições de vida do seu agregado familiar em França, eram praticamente insustentáveis. Nesse contexto afigura-se ter sido perfeitamente legítimo e, no seu próprio interesse e dos filhos, que ela tenha decidido procurar melhores condições de vida para si e para a sua família em Portugal, onde, aparentemente, possui apoio familiar mais alargado. O facto de a criança CC ter sido trazida de França pela sua mãe, sendo facto ilícito com efeito ao nível do exercício do direito de custódia por parte do pai, acaba por ser uma consequência inevitável do drama vivido pelo agregado familiar que todos integravam, cujas repercussões importa, no seu interesse, minorar.”
21ª. Assim, como explica António José Fialho (Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, Almedina, 2021, pág. 136), “a residência é o lugar onde a Criança reside habitualmente, ou seja, o local onde tem organizada a sua vida, com maior estabilidade, frequência, permanência e continuidade, onde desenvolve habitualmente a sua vida e se encontra radicada”.
22ª. Acrescentando que “o critério da atribuição da competência em função da residência, com carácter de estabilidade, permanência e frequência, é também aquele que adequa as disposições de direito interno às disposições de direito convencional ou europeu que regulam a competência internacional (art.º 5º da Convenção da Haia de 1996 e 8º do Regulamento Bruxelas II bis)
23ª. Assim, dúvidas não restam que a menor, à data em que foram instaurados os presentes autos, já tinha fixado a sua residência habitual em Portugal,
24ª. Sendo, consequentemente, os Tribunais portugueses internacionalmente competentes para regular as responsabilidades parentais da menor CC
Sem conceder,
25ª. dos presentes autos, de resto, não constam quaisquer factos que possam ser integradores do conceito de residência habitual da menor em França, à data da instauração dos presentes autos.
26ª. Os autos, aliás, desconhecem, por completo, para além das enormes dificuldades socio-económicas que a Progenitora atravessava em França – que determinaram o seu regresso para Portugal - quais os factos que, em concreto, poderiam ser integradores da residência habitual da menor em França.
27ª. Fixar-se como internacionalmente competente os Tribunais Franceses para regular as responsabilidades parentais de uma menor de 3 anos que vive há mais de um ano em Portugal é permitir a decisão final que venha a ser proferida no âmbito dos autos de regulação das responsabilidades parentais, não terá em conta, nem poderá ter, o real e próximo acompanhamento, médico, psicológico, escolar da menor, que reside em Portugal, nem outros fatores relevantes como condições sociofamiliares em que a menor está integrada e são vitais para a mesma, como o Supremo Tribunal de Justiça admitiu ao ter reconhecido a situação de excepção de não regresso da menor ao país de origem
28ª. Como tal, o decretamento da incompetência dos Tribunais Portugueses para dirimir o litígio é verdadeiramente atentatório do princípio do superior interesse do Menor, bem como, do princípio da proximidade.
29ª. Princípios fundamentais e essenciais para dirimir e regular as responsabilidades parentais da Menor.
Outrossim sem conceder,
30ª. ainda que se entenda, e se considere que à data da instauração da presente acção, a menor CC tinha a sua residência habitual em França - o que apenas se considera por mera lógica de raciocínio jurídico -, sempre há que atender aos princípios do superior interesse da menor e à proximidade para, no caso, se determinar a competência internacional dos Tribunais Portugueses.
31ª. Comparando as estadias da menor CC em cada um dos dois países, resulta evidente que a permanência em Portugal, é mais estável e duradoura do que a estadia que a menor teve em França.
32ª. Não há dúvida de que, vivendo a menor há mais de um ano em Portugal, país onde tem a sua família materna e paterna, com excepção do progenitor que está em França, e onde frequenta o estabelecimento de ensino, onde tem os seus amigos, as suas actividades, as suas rotinas, a sua residência, o médico que a acompanhada, os seus brinquedos e a sua Mãe e irmã, com quem tem um vínculo forte, serão os Tribunais Portugueses, pela proximidade, que estão em melhor condições de regular as responsabilidades parentais desta menor.
33ª. França é, atendendo ao superior interesse da menor, um país com o qual a mesma menor não tem qualquer ligação.
34ª. Não obstante se possa considerar que houve uma deslocação ilícita, a qual foi legitimada/justificada pela verificação dos pressupostos previstos do artigo 13.º, alínea b), da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, sempre ter-se-á que atender ao superior interesse da menor e ao critério da proximidade, os quais postulam que seja atribuída a competência aos Tribunais Portugueses para a regulação das responsabilidades parentais.
35ª. Na atribuição da competência internacional do Tribunal não há apenas que considerar o artº 10º do identificado Regulamento mas também há que considerar o disposto no artº 12º do identificado Regulamento, onde se dispõe que:
“ As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério de proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.
36ª. Assim, e conforme defende o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.03.2012, in proc. 703/11.4TBLNH.L1-1 “em sede de aferição da competência internacional do tribunal de um Estado-Membro para conhecer de uma acção de regulação do exercício do poder paternal, as regras comunitárias não devem ser aplicadas de uma forma mecânica, simplista, antes se impõe que a regra geral do nº 1, do artº 8º, seja aplicada sob reserva (como o refere o nº 2, do artº 8º), não olvidando nunca o superior interesse da criança e o critério da proximidade (ou como refere o artº 15º, o tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular)”.
37ª. Pois, na apreciação da determinação da competência para regular as responsabilidades parentais, o princípio da proximidade tem um caracter primordial
38ª. Veja-se, designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de outubro de 2017, que vem reafirmando o princípio da proximidade e onde se pode ler que “Temos para nós que face à nota (12) daquele Regulamento (Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003) e na esteira do Ac. da Rel. de Lisboa de 12/7/2012, Proc.º n.º 1327/12.4TBCSC.L1.2, relatado por Sérgio Almeida, que o critério decisivo para a determinação da competência em sede de responsabilidade parental não é tanto a residência habitual mas sim a proximidade. Ou seja, a residência habitual é uma decorrência ou manifestação da proximidade, enquanto critério aferidor, e não o contrário.”
39ª. Assim, verificando-se a maior proximidade da menor relativamente à ordem jurídica portuguesa, deve ser o Tribunal de Vila Viçosa o competente para a regulação das responsabilidades parentais da menor CC, já que é o que melhor corresponde ao superior interesse na criança, na medida em que é o que se encontra melhor colocado para conhecer do processo.
40ª. Atento os factos que resultaram provados no identificado Acórdão do STJ do Apenso A, o superior interesse da menor e da proximidade sobrepõem-se à regra constante do artº 10 do Regulamento.
41ª. Ao não se ter entendido de acordo com o explanado nesta alegação e conclusões, na sentença recorrida, violaram-se, designadamente, as disposições legais nelas citadas.
42ª. Pelo que deve, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e, em sua substituição, ser proferido douto Acórdão que determine a competência internacional do Tribunal Português para regular as responsabilidades parentais da menor CC.»

Não foi apresentada resposta ao recurso.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a questão a decidir consiste em saber se os Tribunais Portugueses e, em concreto, o Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa, são competentes internacionalmente para conhecer e decidir a ação de regulação do exercício das responsabilidades da criança CC.

B- De Facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a apreciação do presente recurso constam do antecedente Relatório, sem prejuízo do que mais se concretizará na análise da questão a decidir.

C- Do conhecimento da questão colocada no recurso
Como supra enunciado, a questão decidenda consiste em aferir se os Tribunais Portugueses e, em concreto, o Juízo de Competência Genérica de Vila Viçosa, são competentes internacionalmente para conhecer e decidir a ação de regulação do exercício das responsabilidades da criança CC.
A decisão recorrida respondeu negativamente a esta questão.
Teve em considerando na fundamentação do decidido a aplicação ao caso dos artigo 8.º, n.º 1, e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27-11-2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, assentando o seu raciocínio, essencialmente, em três premissas, a saber: (i) a presença da criança em Portugal teve origem numa deslocação ilícita, aplicando-se, por essa razão, o artigo 10.º do dito Regulamento, não se enquadrando a situação nas situações previstas nas alíneas a) e b) do mesmo preceito; (ii) O facto do Acórdão do STJ proferido no Apenso A, em 13-09-2022, ter julgado ser contrário ao superior interesse da criança a sua entrega ao progenitor, não significa que a residência habitual daquela, a 04-02-2022, se tinha fixado em Portugal; e (iii) as demais circunstâncias assinaladas pelo Ministério Público e pela progenitora, como demonstrativas da integração e de uma ligação particular da criança a Portugal, designadamente, o facto de frequentar uma creche no Redondo e estar inscrita no Centro de Saúde de Borba, ocorreram em momento posterior ao da apresentação da petição inicial que deu origem aos presentes autos, não podendo, por esse motivo, ser valoradas para efeitos de atribuição da competência aos tribunais portugueses por a criança à data da ação, a criança ter a sua residência habitual em França.
A recorrente discorda, defendendo que a decisão recorrida desconsiderou todos os factos que levaram o STJ a recusar o regresso da criança a França e a invocar o artigo 13.º, alínea b), do Convenção de Haia de 1980; que esses factos devem ser considerados e que, por via dos mesmos, atendendo ao superior interesse da criança e ao critério da proximidade, deve prevalecer a aplicação do Considerando (12) do Regulamento sobre o artigo 10.º do mesmo.
Vejamos, então.
Estando em causa uma situação transfronteiriça que envolve dois Estados-Membros da União Europeia (Portugal e França) e verificando-se a deslocação da criança de França para Portugal, sem consentimento de um dos progenitores, à determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, por força do artigo 8.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, aplicam-se as normas constantes de convenções internacionais que vinculem o nosso país, bem como as disposições de instrumentos comunitários aprovados pela União Europeia.
Incidindo a controvérsia sobre a competência internacional do tribunal português onde foi intentada a ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, aplica-se o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27-11-2003, doravante, Regulamento Bruxelas II bis ou Regulamento[1] ( alterado pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004 do Conselho, de 2-12-2004[2], relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria de responsabilidade parental, e que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000), em vigor à data da instauração da ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais.[3]
A Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980)[4] esgotou a sua aplicação ao caso presente com a prolação do Acórdão do STJ de 13-09-2022 e com o ali decidido em relação à deslocação ilícita da criança e com a recusa de ordenar o regresso da mesma a França, louvando-se para o efeito no artigo 13.º, alínea b), da referida Convenção.
Todavia, a deslocação ilícita da criança para Portugal continua a ter reflexos na atribuição de competência internacional ao tribunal do país/local para onde foi deslocada, como decorre do artigo 10.º do Regulamento Bruxelas II bis.
A sentença recorrida socorreu-se precisamente desse normativo para fundamentar a decisão recorrida e considerar que o tribunal português não tem competência internacional para a ação.
Importa referir, ainda que em traços largos, o regime que emana da Regulamento Bruxelas II bis em relação à questão da atribuição de competência internacional aos tribunais envolvidos num conflito transfronteiriço.
Começando pelo seu Considerando (12), onde se encontra escrito:
« (12) As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.»
Os Considerados de um instrumento jurídico comunitário, contêm a fundamentação do dispositivo (articulado) do ato e ajudam-nos a compreender a motivação subjacente ao que veio a ser plasmado no articulado. Consequentemente, funcionam como elemento adjuvante de interpretação do articulado.
Do Considerando (12) do Regulamento Bruxelas II bis decorrem dois princípios fundamentais na aplicação deste regulamento. Por um lado, que as regras que regem na determinação da competência foram concebidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade (pelo que assim devem ser interpretadas e aplicadas) e, por outro lado, que a competência deve ser atribuída ao Estado-Membro da residência habitual da criança, exceto em determinadas situações de mudança da residência habitual ou de acordo dos titulares da responsabilidade parental.
Princípios este que devem ser conjugados com o princípio da igualdade de tratamento de todas as crianças enunciado no Considerando (15).
Os artigos 8.º a 15.º do Regulamento Bruxelas II bis estabelecem as regras segundo as quais, em matéria de responsabilidade parental, se determina a competência dos tribunais dos Estados-Membros.
O artigo 8.º, n.º 1, enuncia uma regra geral, prescrevendo que são competentes os tribunais do Estado-Membro onde a criança resida habitualmente à data em que o processo foi instaurado no tribunal.
Por sua vez, o n.º 2, estipula que esta regra geral é aplicável «sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º».
Ou seja, verificadas as circunstâncias a que aludem estes preceitos, cede a regra geral e a determinação da competência rege-se pelas regras estabelecidas naqueles preceitos.
Para a análise do caso dos autos releva especialmente o artigo 10.º que estabelece as regras para determinação da competência internacional dos tribunais envolvidos em caso de «rapto da criança», ou seja, como se refere no corpo do preceito «Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança (…).»
Estipula este artigo 10.º do seguinte modo:
«Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e:
a) Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou
b) A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:
i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,
ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),
iii) o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do nº 7 do artigo 11º,
iv) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.»

No essencial, este preceito prevê a manutenção da competência dos tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente antes da deslocação ou retenção ilícitas (corpo do preceito).
Cessa esta continuação de competência quando, passando a criança a ter residência habitual noutro Estado-Membro, tal se verifique durante, pelo menos, um ano após a data em que do seu paradeiro tenha ou deva ter tomado conhecimento a pessoa titular do direito de guarda, verificando-se ainda, cumulativamente, o seguinte: a) estar a criança integrada no seu novo ambiente; b) não ter sido apresentado pelo mesmo titular, no prazo de um ano a contar daquele conhecimento, qualquer pedido de regresso da criança às autoridades do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida, como decorre do das alíneas a) e b) do preceito, e quanto a esta última, ainda é preciso que se verifique alguma das condições das subalíneas i) a iv).
Embora o Regulamento Bruxelas II bis utilize o critério da «residência habitual» da criança para a atribuição de competência ao tribunal do Estado-Membro onde a criança tenha essa residência habitual, não define o conceito.
Sendo que também não remete a densificação do mesmo para os ordenamentos internos dos Estados-Membros.
O Tribunal de Justiça (doravante, TJ) já foi chamado a pronunciar-se sobre a interpretação do conceito «residência habitual» na aceção do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas II bis em situações em que a deslocação da criança era lícita, nomeadamente, no Acórdão de 02-04-2009 (C-523/07 Korkein hallinto-oikeus – Finlândia)[5], no Acórdão proferido em 22-12-2010 (C497/10 PPU/Mercredi/Chaffe)[6] e no Acórdão de 28-06-2018 (C-512/17)[7].
Resulta da interpretação levada a cabo pelo TJ, e como consta do Acórdão de 22-12-2010, que «(…) o conceito de «residência habitual» do artigo 8.º, n.º 1, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que corresponde ao local que traduz algum grau de integração da criança num ambiente familiar. Para o efeito, nomeadamente a duração, regularidade, condições e motivos da permanência no território de um Estado-Membro e da deslocação da família para esse Estado, a nacionalidade da criança, o local e as condições de frequência escolar, os conhecimentos linguísticos e a família e as relações sociais da criança nesse Estado devem ser levadas em consideração. Compete ao tribunal nacional determinar a residência habitual da criança, tendo em conta todas as circunstâncias específicas de cada caso concreto.» (sublinhado nosso)
Em consonância com esta interpretação, também na jurisprudência nacional encontramos decisões que têm densificado o conceito «residência habitual».
Vejam-se, paradigmaticamente, o Acórdão do STJ, de 28-01-2016[8], com o seguinte sumário:
«I - O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11, que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, de 29-05, alargou o âmbito da competência no tocante às questões de responsabilidade parental, com a finalidade de garantir igualdade de tratamento entre crianças, dispondo em relação a todos os filhos menores, independentemente da existência, ou não, de um vínculo matrimonial entre os pais e da conexão da questão relativa a responsabilidades parentais com eventual processo de dissolução do casamento.
II - Tal Regulamento – directamente aplicável na nossa ordem jurídica – contém, entre o mais, regras directas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas, estabelecendo, como regra geral, no seu art. 8.º, n.º 1, a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental.
III - O TJUE, por Acórdão de 22-12-2010, considerou que a determinação do conceito de residência habitual há-de ser feita à luz das disposições do dito Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando 12.º, daí resultando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.
IV - De acordo com esta jurisprudência, o conceito de “residência habitual” corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar, sendo que para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta num Estado-Membro, outros factores suplementares (v.g. a duração, a regularidade, as condições e as razões de permanência num território de um Estado-Membro ou da mudança, a nacionalidade da criança, a idade e, bem assim, os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado-Membro) devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional.»
No mesmo sentido, entre outros, Acórdão da Relação de Lisboa, de 15-09-2022, o Acórdão da Relação de Lisboa de 07-07-2022.
Também a doutrina tem acompanhado a interpretação do TJ.[11]
Todos estes contributos, podem resumir-se nas seguintes linhas orientadoras:
O conceito de residência habitual da criança não é definido pelo artigo 8 .º, n.º1 do Regulamento Bruxelas II bis.
O TJ, bem como a jurisprudência nacional, com vozes concordantes na doutrina, tem considerado que se trata de um conceito autónomo (não remetendo o regulamento para as leis internas dos Estados-Membros), e tem interpretado o conceito de «residência habitual» da criança na aceção do artigo 8.º, n.º 1, como o local que revele que haja uma determinada integração da criança num ambiente social e familiar, competindo ao tribunal do Estado-Membro aferir os fatores que, no caso concreto, determinam que a decisão a proferir respeitam os princípios basilares estabelecidos no dito regulamento (em conformidade, aliás, com o disposto na Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças em relação ao conceito de «residência habitual» também ali utilizado – cfr. artigos 8.º, e 13.º), ou seja, o princípio do superior interesse da criança e, em particular, o critério da proximidade (Considerando (12), bem como o princípio da igualdade de tratamento de todas as crianças (Considerando (15).
Os fatores a ponderar são variáveis em função do caso concreto, mas podem, exemplificativamente, ser tidos em conta: a duração e regularidade da permanência da criança no território de um Estado-Membro; as razões e as condições da mudança e da permanência; a nacionalidade da criança, a sua idade; a situação escolar; o conhecimento da língua; os laços familiares e afetivos da criança com outras pessoas residentes no Estado-Membro, etc.
Todavia, não se pode olvidar que o artigo 10.º do Regulamento Bruxelas II bis, ainda que na sua previsão faça apelo ao critério da residência habitual e que a interpretação deste conceito esteja em consonância com a interpretação do TJ em relação ao mesmo, na aceção do artigo 8.º, n.º1 do Regulamento, estabelece regras específicas em relação à atribuição de competência internacional quando a criança se encontra ilicitamente no Estado-Membro onde foi instaurada a ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Donde decorre que se não estiverem preenchidos os pressupostos do artigo 10.º do Regulamento que afastam a atribuição de competência internacional ao tribunal do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual antes da deslocação ou retenção ilícita para a atribuir ao tribunal do Estado-Membro para onde foi deslocada ilicitamente, a competência internacional continua a ser deferida àquele (tribunal do Estado-Membro onde residia habitualmente antes da deslocação ilícita).
O recentíssimo Acórdão do STJ, de 02-02-2023, tirado por unanimidade, numa situação com contornos muito similares à dos presentes autos por a deslocação da criança para Portugal, pela mãe, também ter sido declarada ilícita, embora o regresso não tivesse sido ordenado ao abrigo do artigo 13.º, alínea b), da Convenção de Haia de 1980, tendo a ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais dado entrada quando a criança se encontrava no nosso país há seis dias, pronunciou-se no sentido da aplicação do artigo 10.º do Regulamento Bruxelas II bis atribuindo a competência ao tribunal do Estado-Membro onde a criança se encontrava antes da deslocação ilícita até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro, desde que, simultaneamente, se verifique alguma das condições previstas na alínea a) ou na alínea b) do mesmo artigo, como se lê no seu sumário:
«I. De acordo com a jurisprudência do TJUE, em conformidade com a definição de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança» (art. 2.º, n.º 11, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11, e art. 3.º da Convenção de Haia de 1980), a legalidade de uma deslocação ou retenção é apreciada em função dos direitos de guarda atribuídos nos termos do direito do Estado-Membro da residência habitual da criança antes da sua deslocação ou retenção.


II. No caso dos autos, de acordo com o direito espanhol, que corresponde ao direito do Estado-membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação, a transferência da residência do menor dependia do consentimento expresso ou tácito dos seus dois progenitores, salvo se houvesse decisão judicial que autorizasse a progenitora a deslocar o menor.

III. Concluindo-se que a deslocação do menor para Portugal foi uma deslocação ilícita, é aplicável o disposto no art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, de acordo com o qual os tribunais do Estado-Membro, onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro, desde que, simultaneamente, se verifique alguma das condições previstas na al. a) ou na al. b) do mesmo artigo.

IV. Assim, segundo a interpretação dos arts. 8.º e 10.º do Regulamento n.º 2201/2003 realizada pelo TJUE, e ainda que se entendesse, por aplicação da regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, que o menor tinha adquirido uma nova residência habitual em Portugal, os tribunais portugueses apenas poderiam declarar-se internacionalmente competentes se uma das condições alternativas enunciadas neste art. 10.º, alíneas a) ou b) estivesse igualmente preenchida, o que não sucede no caso dos autos.»

Na fundamentação do decidido, escreveu o STJ o seguinte:
«Sobre a interpretação deste artigo 10.º e a sua articulação com o artigo 8.º do Regulamento, num caso similar ao que é objecto deste recurso, o TJUE pronunciou-se no Despacho de 10/04/2018 (processo C‑85/18) com o seguinte dispositivo:
“O artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, e o artigo 3.º do Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares, devem ser interpretados no sentido de que, num litígio como o que está em causa no processo principal, no qual um menor que tinha a sua residência habitual num Estado‑Membro foi deslocado por um dos seus progenitores de forma ilícita para outro Estado‑Membro, os tribunais desse outro Estado‑Membro não são competentes para decidir sobre um pedido relativo ao direito de guarda ou à fixação de uma pensão de alimentos em relação a esse menor, na falta de indicações de que o outro progenitor concordou com a sua deslocação ou não apresentou um pedido de regresso do menor.” [negrito nosso]»

Acrescentando a seguir:
«Da fundamentação do referido despacho do TJUE, consta o seguinte:

“41 - a competência do tribunal de um Estado-Membro em matéria de responsabilidade parental relativa a um menor que tenha sido deslocado ilicitamente não deve ser determinada com base na regra de atribuição de competência geral prevista no artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, enunciada nas questões prejudiciais, que prevê o caso de uma deslocação lícita para outro Estado-Membro (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C-497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.º 42).

42 -Com efeito, em conformidade com o artigo 8.º, n.º 2, do Regulamento n.º 2201/2003, a regra de atribuição de competência geral prevista no n.º 1 do referido artigo é aplicável sob reserva, nomeadamente, do disposto no artigo 10.º deste regulamento, que prevê uma regra especial em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de um menor.”. [negritos nossos]

Concluiu o TJUE (ponto 50. da fundamentação) que:

“[M]esmo supondo que o menor em causa tenha, no processo principal, adquirido uma nova residência habitual na Roménia, na aceção deste regulamento, importa constatar que, como foi recordado no n.º 46 do presente despacho, o referido tribunal só pode declarar-se competente, em aplicação do artigo 10.º do referido regulamento, em vez dos tribunais do Estado-Membro onde esse menor tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação se uma das condições alternativas enunciadas neste artigo 10.º, alíneas a) e b), estiver igualmente preenchida.”.

Com efeito, o TJUE reafirmou nessa decisão a doutrina já defendida no Acórdão do mesmo tribunal de 01/07/2010 (processo n.º C-211/10 – Doris Povse vs Mauro Alpago), de que o Regulamento n.º 2201/2003 visa dissuadir os raptos de menores entre Estados-Membros e de que o rapto ilícito de um menor não deve, em princípio, ter por consequência a transferência da competência dos tribunais do Estado-Membro onde o menor residia habitualmente imediatamente antes da sua deslocação para os tribunais do Estado-Membro para o qual a criança foi levada, mesmo na hipótese de, após o rapto, o menor ter adquirido residência habitual neste último Estado-Membro (concluindo, no caso ali em apreciação, que, por esse motivo, deve ser feita uma interpretação restritiva das condições enunciadas no artigo 10.º, alínea b), sub-alínea iv), do Regulamento n.º 2201/2003, consideração, porém, que não releva para o caso dos presentes autos).»

Concluindo o STJ no aresto que vimos citando:
«3.3. Aqui chegados, segundo a interpretação dos artigos 8.º e 10.º do Regulamento n.º 2201/2003 realizada pelo TJUE, e ainda que se entendesse, por aplicação da regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, que o menor AA tinha adquirido uma nova “residência habitual” em Portugal, os tribunais portugueses apenas poderiam declarar-se internacionalmente competentes, em aplicação do artigo 10.º, em vez dos tribunais de Espanha onde o menor tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação, se uma das condições alternativas enunciadas neste artigo 10.º, alíneas a) ou b) (e respectivas sub-alíneas), estivesse igualmente preenchida, o que não sucede no caso dos autos.

Deste modo, conclui-se que os tribunais espanhóis mantêm a competência internacional para apreciar o litígio à luz do regime consagrado no Regulamento n.º 2201/2003, devendo proceder a pretensão do progenitor Recorrente.»

Ora, no caso dos autos, resulta da matéria de facto dada como provada no Apenso A que a pequena CC nasceu e tinha a sua residência habitual em França, onde vivia com a mãe e onde também reside o pai, passando semanas alternadas com cada um deles, e foi deslocada ilicitamente para o nosso país, pela mãe, sem consentimento do pai, o qual, face à lei francesa exercia, conjuntamente com a mãe, as responsabilidades parentais, cabendo a ambos a decisão sobre o local onde a criança deverá fixar a sua residência (cfr. ponto 3), c), do Acórdão proferido no Apenso A).
Também decorre que a presente ação foi instaurada decorridos que estavam 14 dias após a sua deslocação para Portugal.
Estipulando o artigo 16.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento que a data relevante para aferir da competência internacional é a data em que processo foi instaurado, o curto período de permanência da criança em Portugal, à data da instauração da presente ação, não permite concluir que a sua residência habitual fosse no nosso país.
É certo que o já citado Acórdão do TJ de 22-12-2010 (C‑497/10 PPU/Mercredi/Chaffe) veio enfatizar a necessidade de se valorizar na aferição do conceito de residência habitual que «(…) para distinguir a residência habitual de uma simples presença temporária, a residência habitual deve, em princípio, ter uma certa duração para traduzir uma estabilidade suficiente. No entanto, o regulamento não prevê uma duração mínima. Com efeito, para a transferência da residência habitual para o Estado de acolhimento, importa sobretudo a vontade do interessado de aí fixar, com intenção de lhe conferir um carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses.”(§51).»

Sendo que esse fator, aliado aos demais que os referidos arestos mencionam para densificar o que se deve considerar residência habitual, e atendendo ao apurado no caso em apreço quanto à integração social e familiar da criança no local onde se encontra, indicam que a criança foi deslocada com a intenção e vontade da progenitora se radicar no país para onde a deslocou aqui fazendo o seu centro de vida estável e, consequentemente, fixar a residência habitual da criança no nossos país.
Porém, o momento temporal a levar em conta para aferir do conceito «residência habitual» é o da entrada da ação e não todo o circunstancialismo posterior. E essa regra tem como escopo desincentivar as deslocações ilícitas e que as mesmas sejam inconsequentes no que concerne à determinação da competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros para onde são deslocadas ilicitamente.
E, salvo o devido respeito por opinião contrária, o superior interesse da criança, aferido em face do critério da proximidade, na densificação do conceito «residência habitual», não se encontra arredado da previsão do artigo 10.º do Regulamento, uma vez que o preceito estabelece as condições em que é afastada a atribuição de competência internacional ao tribunal da anterior residência habitual da criança.
Não se nos afigura, assim, que ofenda os superiores interesses da criança deslocada ilicitamente (independentemente de não ter sido ordenado o seu regresso por aplicação do artigo 13.º, alínea b) da Convenção de Haia de 1980, como sucedeu no caso em apreço), não atribuir competência ao tribunal onde antes residia habitualmente.
Uma coisa é a criança não ser obrigada a regressar ao local onde antes da deslocação residia habitualmente; outra bem diferente, é retirar competência internacional para dirimir as questões da regulação do exercício das responsabilidades parentais ao tribunal onde antes residia habitualmente, quando a criança se encontrava há escassos dias no local para foi deslocada, sem consentimento e à revelia de um dos progenitores, manifestando este ativamente, junto das entidades judiciais competentes, a sua vontade quanto ao regresso da criança ao local onde antes residia habitualmente.
Na caso em análise, os factos apurados, repete-se, evidenciam que, à data da instauração da presente ação, não se encontravam verificadas qualquer das condições previstas na alínea a) ou alínea b) do artigo 10.º do Regulamento Bruxelas II bis.
Em relação à alínea a), fiou provado no Apenso A que o progenitor à data da deslocação não tinha dado o seu consentimento para a deslocação, e o mesmo era necessário em face da lei francesa, tendo-se oposto à sua permanência no nosso país e pugnando pelo meio processual adequado pelo regresso da filha a França.
No que diz respeito à alínea b), do mesmo artigo 10.º, a pequena CC à data da instauração da ação, decorrido apenas 14 dias desde a sua deslocação, não residia no nosso país há um ano, nem tão pouco se verificava qualquer das condições previstas nas subalíneas da referida alínea b) do artigo 10.º.
Donde, a competência internacional para aferir da presente ação não pode ser deferida ao tribunal onde a ação de regulação das responsabilidades foi instaurada.
A decisão recorrida alcançou fundamentadamente a mesma conclusão, pelo que nenhuma censura nos pode merecer.
Nestes termos, improcede a apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 15-11-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

__________________________________________________
[1] Pulicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L338, de 23-12-2003.
[2] Pulicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L367, de 14-12-2014.
[3] O Regulamento Bruxelas II bis foi revogado pelo Regulamento (EU) 2019/111, do Conselho de 22-06-2019, mas este apenas entrou em vigor em 01-08-2022.
[4] Concluída em Haia em 25-10-1980 e aprovada pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11-05, publicado no DR, 1.ª série, n.º 108, de 11-05-1983.
[5] Acessível em https://interlex-portal.eu/FindLaw/Doc/CourtAct/4778253, tendo sido colocada a seguinte questão prejudicial: «(…) o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a interpretação a dar ao conceito de «residência habitual» na aceção do artigo 8.º, n.º 1, do regulamento, nomeadamente quando a criança tem uma residência permanente num Estado-Membro, mas reside noutro Estado-Membro, levando aí uma vida peripatética.»
[6] Acessível em http://curia.europa.eu/júris/document.jsf;jsessionid, tendo-lhe sido colocada a seguinte questão prejudicial: «(…) como interpretar corretamente o conceito de «residência habitual» na aceção dos artigos 8. sobre questões relativas ao direito de guarda, nomeadamente quando, como no caso do processo principal, o litígio diz respeito a uma criança que é legalmente transferida pela mãe para um Estado-Membro diferente do da sua residência habitual e aí permanece apenas alguns dias quando o tribunal do Estado de partida for instaurado.»
[7] Acessível em
https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=203428&pageIndex=0&doclang=en&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=3990665, tendo-lhe sido colocada a seguinte questão prejudicial: «(…) o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, como interpretar o conceito de «residência habitual» da criança na aceção do artigo 8.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003 e , nomeadamente, quais os elementos a utilizar para determinar o local de residência habitual de um menor, em circunstâncias como as do presente processo.»
[8] Processo n.º 6987/13.6TBALM.L1.S1, em www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 7505/20.0T8LSB-A.L1-6, em www.dgsi.pt. Todavia este Acórdão veio a ser revogado pelo Acórdão do STJ, de 02-02-2023 (proc. n.º 7505/20.0T8LSB-A.L1.S1), disponível na mesma base de dados.
[10] Processo n.º 7429/21.9T8LRS-B.L1-7, em www.dgsi.pt
[11] Veja-se, assim, ANTÓNIO JOSÉ FIALHO, A competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de responsabilidade parental, in Revista Julgar nº 37 Janeiro-Abril de 2017, p. 13-35; ANABELA SUSANA GONÇALVES, Competência em matéria de responsabilidades parentais (Artigos 7º a 21º), in Revista Julgar, 47, Maio-Agosto 2022, p. 51-66; e ANA RITA OLIVEIRA SOUSA NOGUEIRA LOPES, O princípio do superior interesse da criança na regulamentação das responsabilidades parentais pela União Europeia, Universidade do Minho, 2017, pp. 59 e segs.
[12] Acórdão do STJ, de 02-02-2023, proc. n.º 7505/20.0T8LSB-A.L1.S1, em www.dgsi.pt