RESTITUIÇÃO DE POSSE
POSSE
USUFRUTUÁRIO
ESBULHO
Sumário

I – Em sede de providência cautelar de restituição provisória de posse, verifica-se o requisito da posse quando o requerente, na sequência de um acordo segundo o qual lhe iria ser atribuído o usufruto de determinado imóvel, passou a agir como usufrutuário deste, praticando actos materiais correspondentes a esse direito de gozo, independentemente de a sua constituição estar ou não formalizada.
II – Para existir esbulho violento é suficiente que a violência exercida sobre as coisas seja adequada a constranger o possuidor a suportar tal situação contra a sua vontade.

Texto Integral

Processo nº 1552/22.0T8PVZ.P1
(Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 5)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA intentou, no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra BB e CC, pedindo, com inversão do contencioso nos termos do art. 369º do C.P.C., que lhe seja restituída a posse do imóvel identificado no art. 1º do requerimento inicial, se necessário com recurso a arrombamento.
Alegou para tal que foi proprietário do imóvel em causa, onde residiu ininterruptamente, que foi declarado em estado de insolvência, tendo o imóvel sido colocado à venda no âmbito do respetivo processo, avaliado em € 384.000,00, não tendo havido qualquer proposta, e que, sabendo que a venda e a sua consequente entrega ao adquirente seria uma questão temporal, ponderando que a mandara construir, que tem 82 anos e estado de saúde débil, e tomando conhecimento de que os créditos da insolvência rondavam € 150.000,00, em conjunto com o requerido, seu filho, com consentimento dos restantes filhos, auscultou o administrador de insolvência sobre a possibilidade de aquisição pelo requerido, por este valor, para manter o prédio na esfera jurídica familiar e ficar salvaguardada a sua vontade de continuar a usufruir do mesmo até ao final da sua existência, o que ficou assente entre si e os requeridos, já que, entretanto, a pedido do filho, a compra foi realizada também em nome da companheira deste. Após a concretização da venda no processo de insolvência, ficou acordado com os requeridos a celebração de contrato de usufruto a realizar na época da Páscoa, altura em que aqueles regressariam a Portugal, continuando ali a residir com autorização expressa deles, porém, com a pandemia a celebração do contrato ficou adiada até nova oportunidade de deslocação a Portugal.
Alegou ainda que em 8 de Setembro de 2022, os requeridos deslocaram-se à moradia, arrombaram-na e, arrastando-o por um braço, em pijama e chinelos de quarto, puseram-no na rua, procedendo, de imediato à mudança de fechaduras.
Por despacho de 03/11/2022 foi determinada a produção da prova indicada pelo requerente sem audição prévia dos requeridos, nos termos do art. 378º do C.P.C..
Procedeu-se seguidamente à produção de prova.
Após, foi proferida decisão, em 10/11/2022, na qual se decidiu julgar procedente o pedido e decretar a restituição provisória ao requerente da posse do prédio urbano identificado no ponto 1 da fundamentação de facto, tendo-se entendido, quanto à inversão do contencioso, deixar a sua ponderação para momento ulterior à oposição.
Em cumprimento do decidido, o requerente foi restituído à posse do imóvel no dia 21/11/2022.
Notificados os requeridos, os mesmos deduziram oposição, onde, para além de impugnarem o valor da causa, defendem não se verificarem os requisitos do procedimento cautelar, não existindo direito do requerente que lhe permita a tutela possessória, nem esbulho, alegando que apesar de o requerente ter falado com o requerido sobre a possibilidade de um usufruto, nunca aceitou essa solução, por ser inviável dado que a compra ocorreu com recurso a crédito bancário e a instituição de crédito não aceitava a constituição de ónus ou encargos sobre o imóvel, que adquiriram a moradia para sua habitação própria e não houve autorização expressa para que o requerente continuasse a utilizar a casa, antes solicitaram ao administrador de insolvência e à sua colaboradora o envio de carta para entrega, se necessário com recurso ao auxílio da força policial.
Alegaram ainda que, aquando da celebração da escritura, para conciliar os interesses de ambos, propuseram a assinatura de um contrato de comodato por um ano até o requerente arranjar outro local para viver e poder retirar os seus bens e haveres, o que este recusou, pelo que tentaram a entrega da casa com intervenção do administrador de insolvência, sem qualquer resultado, e que o requerente diligenciou pela venda do imóvel intitulando-se seu dono. Quando os requeridos se deslocaram a Portugal em Setembro, porque o requerente se recusou a sair da habitação, contrataram um serralheiro para a mudança das fechaduras e, nessa manhã, pediram para falar com aquele, o qual saiu de casa pelo seu próprio pé e se deslocou para junto do portão de entrada, e comunicaram-lhe que iam proceder à substituição dos canhões das fechaduras, ao que o mesmo disse opor-se, mas sem que tenha existido qualquer violência.
Procedeu-se à audiência final, com inquirição das testemunhas arroladas pelos requeridos.
Após, foi proferida decisão, em 05/02/2023, na qual se decidiu julgar improcedente a oposição, “mantendo a providência decretada na decisão do passado dia 10 de Novembro”.
Por requerimento de 07/02/2023, o A., aduzindo que, por mero lapso, nesta decisão o tribunal não se pronunciou sobre a inversão do contencioso, requereu a correcção da omissão em causa por simples despacho.
Foi, então, proferido o despacho de 22/02/2023, no qual, embora se entendendo não se tratar de um lapso rectificável, mas de uma nulidade, se concluiu que esta nulidade por omissão de pronúncia podia ser suscitada por requerimento e se conheceu da mesma, decidindo-se, “em complemento da decisão de 5 de Fevereiro passado”, suprir a omissão de pronúncia e julgar improcedente o pedido de inversão do contencioso.
Da decisão de improcedência da oposição vieram os requeridos interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1ª. O Tribunal a quo fez errada interp[t][r]etação dos factos produzidos em audiência de julgamento, bem como dos factos constantes dos documentos nº 1 e 2, juntos com a Oposição.
2ª. O Tribunal “a quo” errou na apreciação crítica que fez ao dar como provados os factos dos Pontos 12., 13., 14., 17., 19., 32., 35. e 36. da douta sentença proferida, pelo que devem ser reapreciados e o seu teor reformulado.
3ª. O teor dos Pontos 20., 22., 23. e 27. da matéria dada como provada mostram à evidência o contrassenso e a errada formulação dos Pontos 12., 13, 14., 17. e 19., da mesma matéria dada como provada.
4ª. O teor do Ponto 32. está em completa contradição com o teor dos Pontos 20., 21., 22., 23. e 27., devendo ser reapreciado e o seu teor alterado.
5ª. O teor dos Pontos 35. e 36. deve ser alterado face a não ter havido violência ou utilização de força física dos Requeridos.
6ª. De igual modo, a alínea d) dos factos não provados deve ser eliminada e o seu teor (afirmativo) integrado nos factos dados como provados.
7ª. A posse do Requerente é uma posse precária, exercida contra a vontade dos legítimos titulares do direito de propriedade plena sobre o prédio objecto dos autos.
8ª. A posse exercida e devolvida ao Requerente é uma posse não titulada. O Requerente não detém qualquer autorização ou prova documental que o autorize ou legitime a permanecer na habitação dos autos.
9ª. A posse do Requerente é abusiva, na medida em que é exercida contra a vontade dos donos legítimos proprietários da habitação dos autos. Vontade e oposição destes que o Requerente sempre conheceu e contrariou.
10ª. Não há e nunca houve qualquer contrato de usufruto ou outro a favor do Requerente sobre a habitação objecto dos autos.
11ª. A moradia objecto dos autos foi adquirida pelos requeridos à Massa Insolvente e não ao Requerente insolvente.
12ª. Como Insolvente, o Requerente não tinha poderes ou a capacidade para limitar ou condicionar o direito à proprie[d]ade plena dos Requeridos.
13ª. Os Requeridos não usaram o uso da força verbal ou física para retirar o Requerente da habitação.
14ª. A utilização da acção directa exercida pelos requeridos foi legítima e é permitida pela lei.
15ª. O acto dos Requeridos de substituir as fechaduras do portão e porta de entrada na habitação é adequada ao fim a que se destinava.
16ª. A decisão do tribunal a quo é desajustada dos factos e circunstância do caso concreto sobre que recai.
17ª. Os Requeridos compraram a habitação objecto dos autos através de empréstimo bancário para sua residência própria e permanente.
18ª. A sentença deve ser revogada e substituída por outra que, desaposse o Requerente e devolva o prédio, objecto dos autos, aos seus legítimos proprietários, os aqui Requeridos.
19ª. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 336º, 874º e seguintes, 1260º e seguintes, 1277º, 1440º, todos do Código Civil, bem como o disposto os artigos 607º nº 4, e no nº 5, in fine do Código do Processo Civil, assim como contraria o disposto no artº 62º da Constituição da República.
Termos em que deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença proferida, sendo esta su[sb][bs]tituída por douto Acórdão que retirando a posse ao Requerente, mande devolver a propriedade plena aos Requeridos da habitação objecto dos autos, e que é constituída pelo prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com a área coberta de 175 m2 e descoberta de 4.815 m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...-... e inscrito na matriz sob o artigo ....
Assim se fazendo Justiça.».
O requerente apresentou contra-alegações, defendendo que o recurso não merece provimento e que deve manter-se a decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) apurar da alteração da matéria de facto indiciada conforme propugnado pelos recorrentes;
b) averiguar, com base na pretendida alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se inexiste fundamento para o decretamento da providência de restituição provisória de posse.
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Vejamos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que os recorrentes deram cumprimento às referidas exigências, especificando os concretos factos que põem em causa e indicando as razões da sua discordância, nomeadamente por referência aos meios de prova que, em seu entender, sustentam a solução que propugnam (com excepção apenas do ponto 12 da matéria de facto, relativamente ao qual os recorrentes não indicam qual a decisão que, em seu entender, deve ser proferida quanto ao mesmo, se deve ser considerado não provado, se deve ser alterada a sua redacção, ficando apenas parcialmente nos factos provados e sendo a restante parte considerada não provada…).
Apreciemos então.
São os seguintes os factos dados como indiciados (lembramos que estamos em sede de providência cautelar, em que a prova é apenas indiciária) na decisão recorrida (transcrição):
«1. Por escritura pública celebrada a 3 de Agosto de 2001, no Segundo Cartório Notarial de Vi-la do Conde, o Requerente, intervindo em seu próprio nome e em representação de DD, na qualidade de procurador, declarou, em nome da sua representada, vender, a si próprio, pelo preço de Esc. 11.500.000$00, já recebido pela vendedora, o prédio urbano composto de casa de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com a área coberta de 175 m2 e descoberta de 4.815 m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ...-... e inscrito na matriz sob o artigo ... [documento 2 junto com o requerimento inicial].
2. A aquisição referida em 1) foi registada a favor do Requerente pela Ap. ... de 19 de Setembro de 2001 [documento 3 junto com o requerimento inicial].
3. Em 17 de Janeiro de 2018, no âmbito do processo nº 2369/17.9T8STS do Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia, foi proferida sentença que declarou o Requerente em estado de insolvência e nomeou o Dr. EE para administrador da insolvência [documento 4 junto com o requerimento inicial].
4. Pela Ap. ... de 22 de Janeiro de 2019, ficou a constar da descrição do prédio identificada em 1) a inscrição do trânsito em julgado da sentença identificada em 3), ocorrido a 8 de Fevereiro de 2018 [documento 3 junto com o requerimento inicial].
5. Em Abril de 2018 foi realizada avaliação do prédio identificado em 1) à ordem processo de insolvência, tendo sido atribuído ao mesmo o valor de € 384.000 [documento 7 junto com o requerimento inicial].
6. O Administrador de Insolvência publicou anúncio de leilão eletrónico do prédio identificado em 1) pelo preço de € 384.000, fixando o prazo de apresentação de propostas entre as 17h00 de 7 de Junho e as 11h00 de 11 de Julho de 2019 [documento 2 junto com o requerimento inicial].
7. Não foi apresentada qualquer proposta de aquisição na sequência do anúncio.
8. O Requerente residia no prédio identificado em 1).
9. Sabendo que seria uma questão de tempo até a moradia ser vendida e que estaria obrigado a entrega-la a quem a adquirisse, livre de pessoas e coisas, devido à sua idade, ao seu estado de saúde derivado do diagnóstico de doença cancerígena no intestino e na próstata e à circunstância de ali residir desde os anos 90, o Requerente falou com os filhos sobre a possibilidade de um deles comprar o imóvel.
10. O Requerido manifestou interesse na compra.
11. Acompanhado do sobrinho FF, o Requerente reuniu no escritório do Administrador de Insolvência com elementos da sua equipa por forma a saber a quanto ascendiam os créditos reclamados e auscultar da possibilidade da compra pelo Requerido pelo preço correspondente, ficando a saber que o valor dos créditos era de cerca de € 150.000 e que o interesse deveria ser concretizado através da apresentação de proposta de aquisição.
12. Em face das informações obtidas e tendo em conta a diferença entre o valor da avaliação e o dos créditos, o Requerente falou com os filhos sobre a alternativa da venda por valor próximo da avaliação e recebimento do montante remanescente após pagamento dos credores e a possibilidade de a moradia ficar a pertencer a um elemento da família e de, por sua vez, continuar a usufruir dela até ao fim da sua existência.
13. Os filhos do Requerente deram o seu assentimento à compra pelo Requerido e sua companheira de dez anos, atendendo ao interesse do pai de continuar a habitar na moradia.
14. Ficou assente entre Requerente e Requeridos que estes comprariam a moradia, mas constituiriam usufruto a favor daquele por forma a que dela continuasse a usufruir até ao fim dos seus dias.
15. O Requerente foi informado que os Requeridos iriam recorrer a crédito bancário e só no caso de obterem financiamento avançariam para o negócio [resposta ao artigo 10º da oposição].
16. O projeto referido em 14) não foi transmitido à instituição bancária financiadora [resposta ao artigo 13º da oposição].
17. Devido a dúvidas sobre o modo de concretizar o referido em 14), o Requerido consultou Advogado com vista a obter aconselhamento.
18. Na sequência do referido em 17) e da elaboração, pelo Advogado, de uma minuta que previa um “contrato de comodato” pelo prazo de um ano, o Requerido transmitiu ao Requerente ser essa a solução que pretendia, dando-lhe a possibilidade de alterar a redação de algumas cláusulas, designadamente a referente ao prazo.
19. O Requerente recusou devido ao acordo referido em 14).
20. Devido à recusa referida em 19), a pedido dos Requeridos, em 6 de Dezembro de 2019, pelas 11h30, FF remeteu à colaboradora do Administrador de Insolvência, Dr.ª GG, email com o seguinte teor:
“venho pelo presente email dar conta de uma situação familiar bastante complexa e constrangedora relativo à relação do Sr. BB com o Sr. AA.
Este processo e todas as diligências foram sendo realizadas sempre de forma clara e transparente com vossas excelências e igualmente do Sr. BB (filho) para com o Sr. AA (pai). O Sr. BB e CC compram a casa e o Sr. AA assina um contrato de comodato que salvaguarda ambas as partes. Houve sempre contactos entre eles e foi tudo com a devida antecedência explicado. No entanto, desde o pagamento do sinal que a atitude do Sr. AA mudou. E com a entrega do contrato de comodato com a devida antecedência, para ter tempo de alterar ou corrigir o que fosse necessário a situação complicou-se. O Sr. AA recusa a assinatura. No dia 3 de Dezembro o Sr. BB e a Sr.ª CC regressam a Portugal e dia 5 falam pessoalmente com o Sr. AA e a sua posição mantém-se. Recusa-se a assinar o comodato. Há aqui uma teimosia característica da sua personalidade mas ao mesmo tempo uma atitude de arrogância pois o mesmo não entende os sacrifícios pessoais e monetários que o Sr. BB e a Sr.ª CC fazem para adquirir este imóvel.
Face ao exposto, o Sr. BB e a Sr.ª CC mantém a data e hora da escritura mas vem pedir a vossas excelências as diligências necessárias para proceder à desocupação do imóvel e respetivos bens do insolvente AA.
Não é fácil para nós o pedido que fazemos e estamos inteiramente ao vosso dispor para qualquer esclarecimento ou dúvida que tenham face a esta situação confrangedora.
Se for necessário um requerimento ao processo para formalizar o nosso pedido, estamos disponíveis” [resposta ao artigo 16º da oposição].
21. A colaboradora do Administrador de Insolvência identificada em 20), pelas 15h04 do mesmo dia, acusou a receção do email referido em 20) e informou “o AJ pode avançar com o pedido de auxílio de Órgão de Polícia Criminal para que o insolvente desocupe a casa. Ou seja a Polícia irá ao local e obrigar o Sr. AA a sair. Contudo, os compradores terão o mesmo poder a partir do momento em que realizarem a escritura. Pelo que aguardo que me informem se será necessário pedir a intervenção da polícia na medida em que, como sabem, o contacto que temos com o insolvente é através de v/exª” [resposta ao artigo 16º da oposição].
22. Pelas 18h23 do dia em referência, FF remeteu novo email à referida colaboradora com o seguinte conteúdo “é intenção do Sr. BB e a Sr.ª CC que o Sr. Administrador de insolvência avance com o pedido de auxílio à Polícia. Este pedido é feito antes da escritura mas a concretização do mesmo não tem que ser necessariamente antes da escritura. É uma decisão que foi muito bem ponderada e pela qual eu lamento” [resposta ao artigo 16º da oposição].
23. Em 9 de Dezembro de 2019, pelas 16h30, a colaborada identificada em 20) respondeu ao email referido em 22) acusando a receção e informando “teremos de notificar insolvente, nomeadamente por carta registada para que abandone o imóvel e só depois disso é que poderemos avançar com o pedido de auxílio de órgão de polícia criminal.
Nesse sentido a carta seguirá via CTT dando o prazo de 10 dias para que desocupe o imóvel, findo o qual será enviada a polícia ao local” [resposta ao artigo 16º da oposição].
24. Por escritura pública outorgada em 10 de Dezembro de 2019, no Cartório Notarial do Dr. HH, sito na Alameda ..., ..., freguesia ... e ..., Vila Nova de Gaia, o Administrador de Insolvência identificado em 3) declarou, nessa qualidade, vender aos Requeridos, pelo preço de € 150.000, na proporção de um meio para cada um, o prédio urbano identificado em 1), livre de ónus e encargos, o que estes declararam aceitar e que o imóvel se destinava a habitação própria permanente [documento 6 junto com o requerimento inicial].
25. Na escritura identificada em 24) os Requeridos declararam que, para a aquisição do imóvel, solicitaram ao Banco 1..., S.A. um empréstimo no montante de € 125.000 que naquela data haviam recebido e que lhes era concedido pelo prazo de 444 meses a contar do dia 2 ao abrigo do Regi-me Geral de Crédito a habitação, confessando-se solidariamente devedores e que para caução e garantia de todas as responsabilidades assumidas, nomeadamente, juros que fossem devidos e ainda despesas judiciais e extrajudiciais que para efeitos de registo se fixavam em € 5.000, constituíam hipoteca a favor do Banco e que o empréstimo e a hipoteca se regulavam, ainda, pelas cláusulas do documento complementar [resposta aos artigos 19º, 20º da oposição].
26. Na cláusula 10ª nº 2 do documento complementar referido em 25) ficou a constar “sem prejuízo de quaisquer outros direitos que lhe sejam conferidos por lei ou pelo presente contrato, constituem causa bastante e fundamentada de resolução do presente contrato, as que, designadamente se indicam: (…)
c) alienação, oneração ou arrendamento d(s) bem(ns) objeto da(s) hipoteca(s) sem o consentimento do Banco, sendo que no caso do arrendamento, a autorização do Banco depende de o respetivo contrato fazer menção expressa a que o imóvel se encontra hipotecado para garantia do presente empréstimo, bem como à obrigatoriedade do arrendatário depositar a renda na conta de depósito à ordem identificada na cláusula primeira, nº 1” [resposta aos artigos 21º, 22º da oposição].
27. No dia 11 de Dezembro de 2019, pelas 00h44, a pedido dos Requeridos, FF remeteu email à colaboradora do Administrador de Insolvência identificada em 20) com o seguinte conteúdo: “venho por este meio solicitar a vossas excelências a marcação de uma reunião com o objetivo de esclarecer o Sr. BB e a Sr.ª CC relativo às diligências a efectuar para a retirada do Sr. AA da casa.
Hoje no notário conhecemos o Dr. EE, mas acabamos por não falar do assunto, primeiro porque estávamos no notário a tratar da escritura e, quando a escritura terminou, o Dr. EE teve que sair de imediato pois tinha outros compromissos agendados.
De salientar que o Sr. BB e a Sr.ª CC no próximo dia 17 de Dezembro irão regressar a Inglaterra, pelo que era importante esta reunião para esclarecer dúvidas relacionadas com este processo. Os mesmos quando vieram a Portugal vinham com 2 objetivos: o 1º era a assinatura do comodato por parte do Sr. AA e a permanência na casa deste; o 2º era a escritura propriamente dita.
Uma vez que o Sr. AA recusou a assinatura do comodato tudo o que estava planeado alterou-se completamente.
A data e hora ficam ao vosso critério uma vez que a nossa disponibilidade é total” [resposta ao artigo 27º da oposição].
28. Pelas 8h53 do mesmo dia, a destinatária do email identificado em 27) respondeu informando “temos pouca disponibilidade de agenda até ao próximo dia 17dez2019 pelo que questiono se seria suficiente um telefone ou, caso entendam que o queiram fazer presencialmente, se poderão deslocar ao escritório esta tarde às 14h30” [resposta ao artigo 27º da oposição].
29. Em momento anterior à entrada do processo de insolvência, o Requerente diligenciou pela publicação de anúncio para a venda do prédio identificado em 1) no site A... [resposta ao artigo 27º da oposição].
30. No final do ano de 2020 o imóvel identificado em 1) estava a ser anunciado para venda nos sites da imobiliária[s] “B...” e “C...” e nas visitas o Requerente intitulava-se proprietário do mesmo, informando que estava em nome do Requerido [resposta ao artigo 28º da oposição].
31. Ao ter conhecimento dos anúncios de venda, em 8 de Janeiro de 2021, o Requerido solicitou à imobiliária “B...” a anulação dos mesmos [resposta ao artigo 29º da oposição].
32. O Requerente continuou a habitar na moradia, ininterruptamente, à vista de todos, sem qualquer oposição dos Requeridos até 8 de Setembro de 2022.
33. Na data referida em 32), cerca das 9h00, pessoa sob as ordens dos Requeridos partiu e substituiu do canhão das fechaduras do portão de acesso ao logradouro e partiu a fechadura da porta de acesso à moradia.
34. O Requerido entrou na moradia e, acedendo ao primeiro andar onde o Requerente se encontrava envergando pijama e chinelos de quarto, trouxe-o para o exterior da moradia e depois até ao portão junto da via pública.
35. Aí chegado, o Requerido empurrou o Requerente para o passeio exterior, tendo a Requerida encerrado o portão cuja fechadura já havia sido trocada.
36. Subsequentemente, o técnico que acompanhava os Requeridos mudou a fechadura da porta de entrada da moradia.
37. Os Requeridos ficaram no interior do prédio não deixando o Requerido ingressar no mesmo apesar dos seus pedidos.
38. Face à persistência do Requerente em aceder à habitação, após a mudança das fechaduras, os Requeridos pediram a intervenção da GNR de Vila do Conde, que se deslocou ao local e lavrou um auto de ocorrência [resposta ao artigo 36º da oposição]
39. Na presença da GNR, os Requeridos recusaram a entrada no imóvel pelo Requerente, que pedia para ir buscar objetos pessoais e roupas, permitindo que um militar da GNR realizasse essa diligência [resposta ao artigo 37º da oposição].
40. Cerca das 18h00 os Requeridos voltaram a pedir a intervenção da GNR em virtude de II, amiga da filha do Requerente, JJ, na presença destes, ter saltado o muro de vedação e entrado no logradouro a fim de forçar a entrada na habitação, o que levou a nova deslocação da entidade policial [resposta aos artigos 38º, 39º da oposição].
41. Os Requeridos apuraram que no interior da habitação existiam diversos bens pessoais e muitas peças de vestuário pertencentes a JJ criando-lhes a convicção que esta também habitava a casa [resposta ao artigo 41º da oposição].
42. Em 23 de Setembro de 2022, JJ deslocou-se ao prédio identificado em 1) procedendo ao levantamento dos objetos referidos em 41), bem como dos veículos matrícula ..-..-VZ e ..-..-QS, algum vestuário, produtos de higiene pessoal, produtos de alimentação e documentos pertencentes ao Requerente [resposta ao artigo 40º da oposição].
43. Através do Mandatário, os Requeridos remeteram ao Requerente missiva datada de 13 de Outubro de 2022 para este, no prazo máximo de 30 dias, retirar do prédio todos os seus bens móveis e demais pertenças e o veículo matrícula QO-..-.. [resposta ao artigo 42º da oposição].
44. O Requerente aufere uma pensão de reforma de cerca de € 400 não tendo possibilidade de arrendar uma habitação.
45. Devido às situações referidas em 37) e 44), o Requerente abrigou-se na casa da sua ex-mulher a quem a filha de ambos pediu auxílio.
46. O processo de insolvência identificado em 3) foi encerrado por despacho proferido em 9 de Março de 2022, que declarou cessado o procedimento de exoneração por força do pagamento integral dos créditos sobre a insolvência, com ordem de entrega de € 1.938,42 ao insolvente [documento 5 junto com o requerimento inicial].».
Tendo sido dados como não indiciados os seguintes factos (transcrição):
«a) na data referida em 32) os Requerentes pediram para falar com o Requerente, o qual saiu pelo seu próprio pé e deslocou-se para junto do portão de entrada;
b) após um breve diálogo entre Requerente e Requerido, por este foi comunicado que iriam proceder à substituição dos canhões das fechaduras do portão de entrada e da porta principal da casa, tendo para o efeito informado que estava ali presente um serralheiro para executar o serviço;
c) ao que o Requerente disse que se opunha, além de que não estava à espera dessa atitude dos Requeridos;
d) tudo se passou sem uso de força física ou de violência verbal por parte dos Requeridos.».
Os recorrentes põem em causa os pontos 12, 13, 14, 17 e 19 da matéria de facto.
Relativamente ao ponto 12, embora, como se disse, não aleguem qual a solução que pretendem, percebe-se do que consta da motivação de recurso que a sua discordância prende-se com o facto de este ponto mostrar a vontade do requerente, mas daí não se poder retirar a posição do requerido sobre essa questão, e com o facto de interpretar o teor do mesmo como pretendendo dizer que o requerente pretendia “com a venda do imóvel, pagar os débitos, receber o montante remanescente, e ainda continuar a residir na referida habitação como se a sua situação de insolvente nada viesse alterar”.
Ora, o ponto 12 não contempla qualquer matéria respeitante à posição do requerido perante a vontade que terá sido manifestada pelo requerente, seu pai. Aliás, nem sequer aborda qual era na altura a vontade do requente, apenas se refere à circunstância de o requerente ter falado com os filhos dando-lhes conta de duas alternativas que existiam para resolver o assunto: uma deixar que o imóvel fosse vendido normalmente na insolvência por valor próximo da avaliação e receber o remanescente do preço que não fosse necessário para pagar aos credores, a outra ficar o imóvel a pertencer a um elemento da família, continuando ele a usufruir da mesma até ao fim da sua vida.
E quanto à interpretação que os recorrentes fazem do teor deste ponto, em face do qua acabou de se dizer, manifestamente resulta que também não têm razão. Com efeito, não decorre que o requerente quisesse “sol na eira e chuva no nabal” como dizem os recorrentes na motivação, percebendo-se perfeitamente que a obtenção do remanescente ocorria na primeira alternativa e a continuação a residir na casa ocorria na segunda alternativa, nunca se falando de qualquer hipótese de o requerente ficar na casa e simultaneamente receber o remanescente do preço da venda, nem isso constando do ponto 12 da matéria de facto.
Quanto ao ponto 14 da matéria de facto, os recorrentes defendem que deve ser eliminado, pois o acordo aí referido nunca existiu, alegando que “acabaram por aceder comprar para que a casa ficasse na família, permitindo que o requerente ali permanecesse por mais algum tempo para lhe dar tempo para arranjar outro espaço para residir, pois sabiam precisar da moradia para a habitar logo que regressassem de Inglaterra, onde estavam emigrados”.
Ora, nada disso resulta da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos prestados nas duas diligências de produção de prova (que o tribunal ouviu na íntegra, e não só as passagens indicadas no recurso), incluindo aqueles que os recorrentes transcreveram. Pois resulta unanimemente dos depoimentos das testemunhas KK, GG (que integravam a equipa de colaboradores do administrador de insolvência), FF (sobrinho do requerente e primo do requerido) e JJ (filha do requerente e irmã do requerido) que o que se pretendeu foi efectivamente salvaguardar a posição do insolvente, ora requerente, para que, devido à sua idade e condição de saúde, pudesse continuar a viver na casa, que era a sua habitação até então, enquanto fosse vivo – nas palavras da testemunha FF, “a ideia principal era o tio não ficar numa situação em que tivesse que ir para a rua”, explicando que “a ideia foi sempre juntar o útil ao agradável, o tio ficava na casa e o BB fazia um bom negócio e daí a 10-15 anos, quando regressasse, poderiam viver na casa”, e reafirmando que o “tio não teria que sair”. Ou seja, nem a estada do requerente na casa era temporária apenas até arranjar outro local para viver, nem os recorrentes estavam para regressar em breve de Inglaterra, não estando necessitados da casa no curto prazo. Note-se até que, atento o tamanho da casa, resultante do depoimento da testemunha JJ, havia espaço mais do que suficiente para requerente e requeridos ali ficarem a viver juntos.
Donde, a resposta dada ao ponto 14 está de acordo com o que resultou da prova produzida, conforme bem se explicou na fundamentação da decisão recorrida, em termos consonantes com o que decorre da audição dos depoimentos. Deve, pois, manter-se o mesmo.
No que concerne aos pontos 13, 17 e 19, os recorrentes pretendem a alteração da respectiva redacção (ou a eliminação no caso do ponto 13).
Desde logo quanto ao ponto 19, cuja redacção os recorrentes pretendem que seja “o requerente recusou assinar o contrato de comodato, proposto pelo filho BB, devido ao facto de pretender ficar na moradia até ao fim dos seus dias”, se verifica que não lhes assiste razão, em face do que já se disse a propósito do ponto 14, posto que efectivamente resultou indiciada a existência do acordo aí referido, sendo que as testemunhas referidas FF e JJ confirmaram, inequivocamente e sem dúvidas, que foi precisamente por ter sido “prometido” o “usufruto” ao requerente que este recusou celebrar o contrato de comodato (para além de ter ficado desconfiado por não conhecer esta figura jurídica e se ter convencido de que seria semelhante a um arrendamento, tendo que deixar a casa ao fim de um ano). E se é certo que o requerente queria ficar na casa até ao fim dos seus dias, não é menos certo que tal não resultou de um capricho do mesmo, que disso se lembrou a posteriori, mas do que tinha sido previamente acordado por si e todos os seus filhos, incluindo o requerido (recorrendo mais uma vez às palavras da testemunha FF: “o BB sempre prometeu o usufruto ao tio”, “depois é que mudou por causa do advogado”).
Quanto ao ponto 13, insurgem-se os recorrentes porque a sua redacção dá a ideia de que “se tratou de uma transacção entre o requerente pai e os restantes filhos”, devendo a redacção ser “os filhos do requerente não se opuseram à compra pelo requerido…”.
Também aqui não lhes assiste razão. Os irmãos do requerido não se limitaram a não se opor à compra do imóvel por parte deste, eles efectivamente concordaram com essa solução, tendo manifestado uma atitude activa e não passiva quanto à questão, até porque se colocava a questão de o requerido poder vir a sair beneficiado desta situação, pela circunstância de o imóvel valer muito mais do que o preço que iria pagar pelo mesmo. Tal é o que resulta da prova produzida, consistente nos depoimentos das testemunhas, já referidas, FF e JJ, que explicaram ter existido uma reunião entre o requerente e todos os filhos, para resolver o que fazer, sendo que o único dos filhos que tinha condições para obter crédito bancário para adquirir a casa era o requerido, tendo sido por isso o escolhido, com o acordo de todos (como explicou a testemunha FF, “todos eles tiveram possibilidade de avançar”, mas o único que reuniu condições para o fazer foi o requerido), dando mais relevo a esta questão do que à eventual existência de benefício para o requerido por adquirir a casa por preço inferior ao seu valor. Houve, portanto, um acordo (que não tem que ser uma transacção, como aduzem os recorrentes), enquanto tomada de posição de todos de assentimento da solução encontrada (sendo irrelevante para o caso saber se juridicamente esse acordo era ou não necessário).
Relativamente ao ponto 17, aduzem os recorrentes que “A consulta pelo Requerido a um advogado teve, isso sim, como objectivo ficar a saber como proceder para garantir que o requerente seu pai ficasse na moradia por algum tempo e apenas enquanto os requeridos não necessitassem de ocupar a mesma, ou seja por mais alguns anos, mas poucos anos e sempre com data à vista”. Como já se analisou a propósito dos pontos anteriores, o que ficou acordado não foi o requerente ficar na casa apenas enquanto os requeridos não necessitassem de a ocupar, por poucos anos e com data certa, mas sim continuar a morar lá, sem qualquer prazo, enquanto vivesse. Portanto não foi essa a razão da consulta do advogado por parte do requerido.
Voltemos às palavras da testemunha FF: o primo falou com ele, dando-lhe conta de insegurança, por ter receio que o “tio arranjasse alguma companhia” ou que “algum irmão quisesse ir viver para a casa”, pelo que ele aconselhou-o a ir falar com um advogado, o qual, “face às inseguranças do BB”, “propôs-lhe, não um usufruto, mas um comodato” (e segundo a testemunha, “aí é que foi o erro”, porque “o BB prometeu sempre o usufruto ao tio” e “depois é que mudou por causa do advogado”). Resulta, pois, claro que, quando o requerido foi aconselhar-se com o advogado ainda tinha na ideia a figura do usufruto, apenas tinha dúvidas sobre a posição em que poderia ficar em caso de o pai encontrar alguma companheira ou de algum irmão ir viver para a casa, tendo sido o advogado quem lhe falou na figura do comodato. Logo, não se pode dizer, como pretendem os recorrentes que “o Requerido consultou Advogado com vista a obter aconselhamento sobre que tipo de contrato poderia ou deveria celebrar com seu pai”, não devendo ser esta a redacção do ponto 17, que se deve manter tal como está.
Ainda nesta parte não assiste, assim, razão aos recorrentes.
Pretendem ainda os recorrentes que deve ser alterada a redacção do ponto 32 da matéria de facto, para que passe a ser do seguinte teor: “O Requerente habitou na moradia até 08 de Setembro de 2022, mas sempre com oposição dos requeridos”. Para o efeito, convocam os depoimentos das testemunhas GG e FF e os documentos a que aludem os pontos 20, 21, 22, 23 e 27 da matéria de facto.
Ora, a testemunha GG apenas sabia que houve a troca de correio electrónico que se encontra plasmada nestes pontos da matéria de facto, sendo-lhe transmitido que os requeridos afinal pretendiam que o requerente desocupasse o imóvel, o que aconteceu quatro dias antes da celebração da escritura de compra e venda, em Dezembro de 2019, e não confirmou que tenha chegado a ter lugar a notificação a que se alude no ponto 23.
Por sua vez, a testemunha FF explicou que, na sequência de o tio não querer assinar o contrato de comodato, houve um encontro entre ele, o requerente e o requerido, em que o requerente manteve a sua posição, pois estava muito desconfiado com o tipo de contrato em causa e com o facto de, na minuta, constar o prazo de 12 meses (apesar de a testemunha dizer que isso era só a minuta e que poderia ser colocado outro prazo, fosse 5 ou 10 anos, no contrato). Perante isso, o requerido disse ao pai “se tu não assinares vou ter que ir contigo para tribunal”.
Sucede, porém, que depois deste encontro, o requerido não voltou a falar com o pai e celebrou a escritura de compra e venda, pelo que nem voltou a ser colocada a questão da assinatura do contrato de comodato, nem foi transmitido ao requerente que tinha de sair, nem que estivesse pendente qualquer acção em tribunal para o efeito (que não estava), situação que se manteve até 8 de Setembro de 2022, durante quase 3 anos.
Ademais, questionado sobre se, não obstante o sucedido no tal encontro, “o tio continuou a viver lá”, “com o consentimento do primo”, a testemunha FF respondeu que sim, aduzindo “ele sabia que o pai não tinha onde viver”.
Logo, perante esta factualidade, bem concluiu o tribunal recorrido que o requerente continuou a habitar “sem qualquer oposição dos requeridos”, posto que a manifestação de oposição teria que ser perante o próprio requerente, não sendo suficiente uma manifestação de vontade feita perante terceiros, sem qualquer consequência, e da qual o requerente não teve qualquer conhecimento. Até ao dia 08/09/2022 não foi dito ao requerente que tinha que sair de casa nem que os requeridos não queriam que ele lá continuasse…
Deve, pois, manter-se a redacção do ponto 32, não assistindo razão aos recorrentes nesta parte.
Os recorrentes pretendem ainda a alteração dos pontos 35 e 36 da matéria de facto, com base no depoimento da testemunha LL (serralheiro), passando a ter a seguinte redacção:
- o ponto 35: “Requerente e Requerido desceram as escadas e vieram a conversar até ao portão exterior, tendo a Requerida encerrado o portão, cuja fechadura já havia sido trocada”;
- o ponto 36: “De seguida, o técnico que acompanhava os requeridos concluiu os trabalhos da mudança da fechadura da porta de entrada da moradia”.
No que concerne ao ponto 35, verifica-se que este respeita apenas ao sucedido quando o requerente já se encontrava junto ao portão, sendo o momento anterior referido no ponto 34, onde já consta que o requerido trouxe o requerente para o exterior da moradia e depois até ao portão (e na motivação da decisão inicial explica-se que “afigura-se que o trajeto entre o corredor onde encontrou o Requerido, ao nível do primeiro andar e o portão poderá ter sido pacífico”), sendo irrelevante se esse percurso foi feito a conversar ou em silêncio, posto que não se indiciou que fosse de forma agressiva.
Pelo que, quanto ao ponto 35, o que se impõe averiguar é unicamente se se deve manter o seu teor, ou se apenas deve constar que a requerida encerrou o portão depois de o requerente estar no exterior do mesmo.
Quanto a esta questão, há que anotar que, para além de resultar dos depoimentos das testemunhas que acorreram ao local aquando do sucedido (JJ, filha do requerente e irmã do requerido, II, amiga desta, e MM, militar da G.N.R.) que houve uma situação de discussão, estando os intervenientes nervosos, nomeadamente o requerente e a requerida, não sendo crível que o requerente saísse para o exterior do portão da residência de livre vontade, sem nada questionar, nem ao menos fazer menção de mudar de roupa, já que estava em pijama e de chinelos, numa manhã de Setembro (que já não se pode considerar propriamente com temperatura quente, para mais quando se trata de uma pessoa de mais de 80 anos de idade), verificam-se quanto ao depoimento da testemunha LL as reservas colocadas na motivação da sentença recorrida, não se afigurando ser o mesmo de molde a infirmar (para mais em sede de prova indiciária, como aquela em que nos encontramos) a prova decorrente da conjugação daqueles depoimentos e das declarações de parte prestadas pelo requerente, que, como se disse na decisão inicial, foram consideradas na parte em que foram credibilizadas pela restante prova produzida, e nessa medida.
Como se diz na decisão recorrida, esta testemunha “deu uma versão dissonante daquela que o Requerido apresentou à testemunha FF sobre o que se passou a seguir” e “no confronto com o depoimento do militar da GNR, MM, verificamos grandes discrepâncias, não havendo motivos para duvidar do relato deste. Por outro lado, não é crível que o Requerente, em pijama, aceitasse deslocar-se para o passeio sem um engodo ou sem violência e assim se mantivesse depois de ter sido encerrado o portão apesar de ficar do lado de fora”.
Assim, ainda nesta parte, não assiste razão aos recorrentes.
Quanto ao ponto 36, para além de se verificarem as fragilidades apontadas ao depoimento da testemunha que indicam os recorrentes como fundamento para a pretendida alteração, esta é irrelevante para a questão a decidir, não tendo qualquer utilidade para a apreciação do mérito da causa.
Com efeito, é irrelevante para o caso se os trabalhos de mudança da fechadura da porta de entrada já estavam em curso e apenas foram concluídos após o requerente se encontrar fora do portão da residência, ou se a mudança dessa fechadura ocorreu na totalidade após aquele momento.
Sendo irrelevante tal factualidade, sempre não haveria que conhecer da impugnação deduzida quanto à mesma (neste sentido cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 334, nota 526, e, entre outros, o Ac. do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), C.J.S.T.J., tomo I, pág. 13, e o Ac. da R.P. de 05/11/2018, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, com o nº de processo 3737/13.0TBSTS.P1).
Pelo que, também nesta parte, não é possível dar razão aos recorrentes.
Finalmente, defendem os recorrentes que a matéria da alínea d) dos factos não provados deve passar a constar dos factos provados.
Não lhes assiste, porém, razão, posto que não estamos perante um facto, mas perante uma conclusão.
Na realidade, dizer que “tudo se passou sem uso de força física ou de violência verbal” não constitui um facto da vida, mas uma conclusão a retirar de factos concretos. Perante os factos concretos que descrevam o sucedido é que o juiz da causa vai concluir se existiu ou não “uso de força física” ou “violência verbal”.
Tratando-se de matéria conclusiva, não há lugar à sua inclusão nos factos (provados ou não provados).
No sentido da exclusão da matéria conclusiva do elenco dos factos provados da sentença, por via do disposto no art. 607º, nº 4, do C.P.C., cfr. o Ac. do STJ de 29/04/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, e o Ac. da R.E. de 28/06/2018, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de proc. 170/16.6T8MMN.E1.
Como se refere neste último acórdão, “na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito”, pelo que, “mesmo no âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada” dessas afirmações, devendo ser eliminado qualquer ponto da matéria de facto que “integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões”.
Em face do referido, para além de não ser dada razão aos recorrentes, há ainda que retirar da matéria de facto não provada da sentença recorrida a referida alínea d).
Portanto, vista a prova produzida, nos termos analisados, e tudo quanto acabou de se expor, não resulta que aquela imponha decisão diversa (cfr. art. 662º, nº 1, do C.P.C.) sobre os pontos impugnados da matéria de facto, antes pelo contrário, apontando aquela precisamente no sentido decidido na primeira instância.
Pelo que, não merece provimento a impugnação da matéria de facto.
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Passemos à segunda questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão dos recorrentes é a que consta dos factos indiciados na decisão recorrida e já transcritos.
Conforme resulta do disposto no art. 377º do C.P.C, são requisitos da providência de restituição provisória de posse, a posse (que constitui o direito ameaçado do requerente), o esbulho e a violência.
A posse pode definir-se como a “afectação material de uma coisa corpórea”, sendo o apossamento “o acto pelo qual se coloca uma coisa nessa situação de afectação material ex novo” ou “a apropriação material de uma coisa”, obtida através da “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1993, págs. 459 e 460).
“Os casos paradigmáticos da tutela possessória relacionam-se com o exercício de poderes de facto sobre coisas susceptíveis de constituírem objecto de direitos reais de gozo: os direitos de propriedade, de usufruto, de servidão predial, de superfície, de uso e habitação ou de habitação.
Mas ainda que falte a titularidade de qualquer desses direitos reais, a simples prova dos poderes de facto que normalmente correspondem à sua exteriorização é suficiente para motivar a procedência da pretensão cautelar” (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, Procedimentos cautelares especificados, Almedina, Março de 2001, pág. 30).
No caso, dos factos indiciados resulta que o requerente continuou a habitar a moradia, ininterruptamente e à vista de todos, na sequência do acordo que originou a compra do imóvel pelos requeridos, e que incluía que aquele ali se mantivesse na qualidade de usufrutuário.
O requerente, portanto, a partir do acordo referido no ponto 14 passou a agir como usufrutuário do imóvel, praticando actos materiais correspondentes a esse direito de gozo, independentemente de a sua constituição estar ou não formalizada (veja-se até que uma das formas de constituição do direito de usufruto é a usucapião – art. 1440º do C.C. – a qual pode ter lugar mesmo que a posse seja não titulada, apenas variando nesse caso o prazo para a sua verificação, como decorre dos arts. 1294º e 1296º do C.C.).
Note-se que o que se visa proteger é somente a posse, independentemente dos seus respectivos caracteres, pelo que até seria irrelevante que já tivesse havido oposição anterior dos requeridos à manutenção da posse do requerente. De todo o modo, no caso não ficou indiciado que tivesse havido essa oposição perante o requerente.
E sendo assim, o requerente tinha direito a ver protegida a sua posse mesmo perante os proprietários, só podendo ser alterada essa situação mediante recurso a uma acção judicial.
Ademais, no caso, como bem se analisou na decisão recorrida (e na decisão inicialmente proferida, antes da audição dos requeridos), houve também esbulho (a posse do requerente foi-lhe retirada, ficando privado de utilizar e fruir o imóvel) e este ocorreu com violência, atentos os factos constantes dos pontos 33 a 37.
Apenas se acrescenta a jurisprudência constante dos Acs. da R.P. de 12/09/2022, com o nº de processo 1507/22.4T8MTS.P1, e da R.G. de 04/04/2017, com o nº de processo 1053/16.5T8BCL.G1, ambos publicados em www.dgsi.pt, permitindo-nos citar a seguinte passagem do primeiro dos referidos acórdãos quanto ao conceito de esbulho violento: “na actualidade é, claramente, prevalecente o entendimento de que, para esse efeito, é suficiente que do esbulho resulte um obstáculo à continuidade do exercício da posse, que a violência (acção física) exercida sobre as coisas seja meio adequado de constranger uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade”.
A solução não seria diferente acaso estivesse em causa a situação de comodato (ainda que não formalizado em documento escrito) que foi indicada pelos recorrentes como tendo sido aquela que pretenderam, na medida em que a lei confere ao comodatário a tutela possessória, mesmo contra o comodante (art. 1133º do C.C.).
Ademais, salienta-se que, como se disse na decisão recorrida, aos requeridos não era permitido recorrer à acção directa, “em nenhuma circunstância”, “já que durante todo esse lapso de tempo poderiam ter requerido as medidas judiciais adequadas à sua investidura na posse”.
Com efeito, nos termos do art. 336º, nº 1, do Código Civil, o recurso à força só é lícito quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito.
Sendo que a acção directa deixará de ser lícita quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
Os requeridos tiveram quase três anos para recorrer ao tribunal para efectivar o seu direito, não o fizeram e, decorrido este tempo, deslocaram-se à residência do requerente e lograram colocá-lo para fora, em pijama e de chinelos, impedindo o seu regresso à casa, que era a sua habitação, tratando-se de uma pessoa de idade e com problemas de saúde (cfr. ponto 9), além de ser pai do requerido, o qual tem para consigo deveres de respeito e assistência.
Não há, pois, quaisquer dúvidas da ilicitude do recurso dos requeridos à acção directa, actuação que nunca poderia ser sancionada judicialmente, nem de que estão preenchidos os requisitos de que depende o decretamento da providência de restituição provisória de posse.
Não merece, assim, acolhimento a pretensão dos recorrentes no sentido da procedência da oposição.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pelos requeridos e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em:
a) retirar a alínea d) do elenco dos factos não provados;
b) negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos recorrentes (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 04/5/2023.
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa