RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário


I- Constitui um dos pressupostos substanciais da fixação de jurisprudência a que se reporta o art. 437o CPP, que a decisão de ambos os acórdãos assente em soluções opostas para a mesma questão de direito, requisito este que se desdobra em três outros pressupostos ou requisitos, conforme vem sendo entendido na jurisprudência e doutrina:

- Que as decisões em oposição sejam expressas e não meramente tácitas ou implícitas;

- Que os dois acórdãos assentem em soluções opostas da mesma questão de direito e a partir de idêntica situação de facto.

- Que a oposição se verifique entre duas decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra, pressuposto a que se dedicará maior atenção.

II- No caso concreto, os dois acórdãos assentam em soluções opostas da mesma questão de direito, pois também o acórdão fundamento autonomizou e apreciou a questão de direito substantivo de saber se o uso da expressão oral, não verbal, é elemento do tipo objetivo previsto no art. 187o do C. Penal, como deixou claro na sua fundamentação - nomeadamente com recurso a jurisprudência e doutrina que citou - , o seu entendimento sobre aquela questão jurídico substantiva, pronunciando-se, tal como o despacho de 1a instância sobre o qual incidiu o recurso, no sentido de aquele mesmo tipo legal não contemplar a sua comissão por meio de escrito, gesto ou imagem.

III- Por outro lado, a oposição verifica-se entre duas decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra, pois este entendimento do acórdão fundamento foi co determinante da sua conclusão no sentido de improcedência do recurso.

IV- A particularidade do acórdão fundamento relativamente ao acórdão recorrido, encontra-se na circunstância de a improcedência do recurso assentar no acórdão fundamento numa pluralidade de razões de ordem fática e jurídica fundamentadoras da sua conclusão sobre a (a)tipicidade da conduta descrita na acusação particular face ao disposto no art. 187o do C. Penal, (entre as quais se conta a posição assumida relativamente à punição de “ofensa” por meio de escrito, gesto ou imagem), enquanto a decisão do recurso objeto do acórdão recorrido, relativamente ao preenchimento do tipo criminal dos art. 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, als. a) e b), do CP, assentou a sua decisão apenas no entendimento adotado no sentido de nada obstar ao « .... preenchimento do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo art. 187.o, n.o 1, do CP, por outro qualquer meio que não verbal (no caso em apreço, por escrito) ...».

V- A circunstância de o acórdão fundamento assentar a decisão do recurso numa pluralidade de razões de ordem jurídica, incluindo a posição que adotou no sentido oposto ao acórdão recorrido, da falta de previsão típica de eventual ofensa praticada por meio não verbal, não desqualifica a solução que adotou sobre a questão jurídica claramente controvertida para efeitos da verificação da oposição de julgados a que se reporta o art. 437o CPP, pois qualquer delas é suficiente para fundamentar, por si, a decisão de improcedência do recurso assumida no acórdão fundamento.

VI- Com efeito, não poderá deixar de entender-se cum grano salis a exigência de que a oposição entre as soluções opostas para a mesma questão de direito, a que se reporta o art. 437o CPP respeite a oposição entre decisões e não entre os seus fundamentos ou entre a decisão e os fundamentos, pois, em rigor, é na fundamentação do acórdão decisório que se expõem os motivos de direito que fundamentam a decisão, como paradigmaticamente se diz no art. 374o no2 CPP.

VII- Deste modo, as diferentes soluções para a questão de direito hão de encontrar-se enunciadas, apreciadas e decididas na parte do acórdão dedicada à fundamentação do recurso e não no seu dispositivo ou decisão que, em regra, apenas contém a enunciação, positiva ou negativa, sobre o provimento ou procedência, total ou parcial, do recurso, para além de outras questões que aí sejam decididas (vd art. 375o CPP), sem indicação ou enunciação da fundamentação de facto e direito em que assenta a decisão, a qual, repita-se, foi antes exposta noutra parte acórdão: a fundamentação.

VIII- Daí que que a distinção em sede de fundamentos ou pressupostos da fixação de jurisprudência, pareça dever fazer-se antes entre fundamentação determinante para a decisão proferida, num e noutro acórdão, não bastando a oposição entre meros argumentos ou razões de direito que não fundamentem, por si, a solução de direito adotada em ambos os acórdãos, máxime quando se trate de meros obiter dicta.

IX- A questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência ou oposição deve assumir um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, deve integrar «... a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obiter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica.».

X- No caso vertente, a tomada de posição do acórdão fundamento no sentido de não ser punível pelo art. 187o C.Penal potencial ofensa feita por escrito, gestos ou imagens, mediante escrito, não constitui mero obter dictum ou argumento lateral ou coadjuvante de solução já alcançada por via jurídica diferente, antes se assume como uma das razões jurídicas, paritariamente exposta e fundamentada ao lado de outras, em que assentou o julgamento do acórdão fundamento sobre a atipicidade da factualidade descrita na acusação rejeitada.

Texto Integral



ACÓRDÃO


Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I.


relatório


1. AA, arguido nestes autos, vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.09.2022, proferido em recurso no âmbito do processo em epígrafe – acórdão recorrido -, invocando oposição entre este e o acórdão de 20.02.2019, igualmente do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo 316/17.7T9SEI.C1 e publicado no site oficial da dgsi – acórdão fundamento -, cuja certidão se juntou.


2. Apresenta motivação do recurso, extraindo dela as seguintes


« CONCLUSÕES:


1. No domínio da mesma legislação, o Tribunal da Relação de Coimbra proferiu dois acórdãos que, para a mesma questão fundamental de direito, perfilham soluções opostas.


2. A questão fundamental de direito traduz-se, em ambos os casos, em saber se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal.


3.No acórdão da Relação de Coimbra, datado de 20.02.2019, proferido no âmbito do processo 316/17.7T9SEI.C1 - acórdão fundamento -, a questão jurídica foi decidida no sentido de que se deve considerar “ (...) não penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva cometida por escrito, gesto ou imagem.”, absolvendo-se, em consequência, o arguido.


4.Diferentemente, no acórdão daquela mesma Relação, de 29.09.2022, decidiu-se que “Afirmar ou propalar são acções que, por sua natureza, podem lograr o resultado a que tendem não apenas oralmente como também por outros meios a tanto aptos (postular ou difundir um facto), e até em particular e para o que aqui nos importa através de escrito (especialmente idóneo).” e, consequentemente, manteve-se a condenação o arguido.


5.Não tendo havido alteração legislativa relativamente a esta matéria durante o intervalo da prolação dos acórdãos, e sendo dissonantes as decisões preconizadas, impõe-se esclarecer por meio de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência o seguinte: pode ou não o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal, ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal?


6.Face a todo exposto, e tendo em consideração que ambos os acórdãos transitaram em julgado e não são susceptíveis de recurso ordinário, impõe-se que seja fixada jurisprudência.


Termos em que se requer seja fixada jurisprudência sobre a questão jurídica que se suscita.»


3. O MP no Tribunal da Relação de Coimbra veio apresentar a resposta a que se reporta o artigo 439.o, n.o 1, do CPP, nos seguintes termos:


«1. O recorrente AA veio interpor recurso extraordinário de fixação jurisprudência do acórdão proferido no âmbito deste processo em 29/09/2022 uma vez que, no seu entendimento, o mesmo se encontra em oposição com o decidido também por este Tribunal da Relação no processo no 316/17.7T9SEI.C1 em acórdão de 20/02/2019, publicado em www.dgsi.pt e do qual junta certidão.


2. No acórdão proferido neste processo, foi decidido julgar improcedente o recurso interposto pelo ora recorrente, o qual clamava pela sua absolvição com o argumento de que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva p. e p. pelo art. 187.o, n.o 1, e 183o, no 1, als. a) e b), do Código Penal, não era punível quando cometido por outro qualquer meio que não o verbal, como quando, no caso em apreço, o arguido emprega expressões por escrito -através de carta.


3. Ou seja, decidiu-se, em tal acórdão, que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva p. e p. pelo art. 187.o, n.o 1, e 183o, no 1, als. a) e b), do Código Penal podia ser cometido através de escrito, nomeadamente carta dirigida a um organismo, serviço ou pessoa colectiva - no caso, a Câmara Municipal de Coimbra.


4. No acórdão em oposição, entendeu-se que a ausência da remissão, no caso do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva p. e p. pelo citado art. 187o, no 1, para o art.182o do C. Penal implica que se considere em princípio não penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva cometida por escrito, gesto ou imagem.


5. Isto é, seguiu-se a tese, neste segundo acórdão, de que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva p. e p. pelo art. 187.o, n.o 1, e 183o, no 1, als. a) e b), do Código Penal não se mostra configurado quando cometido através de escrito, nomeadamente uma carta dirigida contra um organismo, serviço ou pessoa colectiva - no caso, a Fundação ....


6. Ambas as decisões foram proferidas no âmbito da mesma legislação e mostram-se transitadas em julgado.


7. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a assinalar a exigência da verificação de vários requisitos para que se esteja perante uma oposição de julgados, sendo um deles o de que as decisões contraditórias sejam relativas à mesma questão/identidade de factos.


8. Ora, no caso em apreço, surgem-nos algumas dúvidas sobre se tal requisito se mostra verificado.


9. É que, no caso do acórdão proferido no processo no 316/17.7T9SEI.C1, pese embora se tenha também analisado a questão do cometimento do crime p. e p. pelo art. 187o, no 1, do C. Penal quando a ofensa é transmitida ao visado através de um escrito (tendo-se concluído pela negative), não foi esse o motivo primeiro pelo qual se decidiu que não se mostrava configurado o referido crime.


10. Na verdade, o que se decidiu em tal acórdão foi que “estamos, portanto, perante uma carta escrita pelo arguido aos assistentes em que se manifesta em relação aos estatutos de uma fundação os quais, na sua opinião, não estão a ser respeitados. As expressões utilizadas não consubstanciam a imputação de qualquer facto, pelo que não se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime p. e p. pelo art. 187o do Cod. Penal”.


11. E só depois é que se referiu que “Aliás, mesmo que existissem factos necessários ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no art. 187o, no 1, do Código Penal, sempre poderíamos dizer que esses factos não preencheriam também os elementos objectivos do crime porquanto o arguido fê-lo através de uma carta, ou seja, por escrito e o art. 187o do Código Penal não remete expressamente para a equiparação prevista no art. 182o do Código Penal”.


12. No entanto, caso se entenda que ambas as decisões se reportam efectivamente à mesma questão/identidade de factos, afigura-se estarem preenchidos os pressupostos para apreciação do recurso interposto para fixação de jurisprudência, relativamente à questão suscitada.»


4. O senhor Procurador-Geral Adjunto neste STJ, a quem o processo foi com vista em conformidade com o preceituado no artigo 440.o do CPP, pronunciou-se pela não verificação dos requisitos substanciais previstos no artigo 437.o do CPP – oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito –, motivo pelo qual o recurso extraordinário interposto deve, em conferência, ser rejeitado [artigos 440.o, n.os 3 e 4 e 441.°, n.° 1, do C.P.P]», o que faz assentar, em síntese, nas seguintes razões:


- Em ambos os acórdãos, em cada caso concreto, são diferentes as situações de facto, como diferentes são as normas jurídicas interpretadas e aplicadas.


Efectivamente, no caso do acórdão recorrido, estamos perante um caso em que, perante os factos dados como provados na sentença, se entendeu estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal previsto no arto 187o no 1 do CP e 183o no 1 alíneas a) e b) do CP. Considerou-se, ainda, que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, não obstante o arto 187o do CP ao não remeter para o arto 182o, pode ser praticado por meio escrito.


Por sua vez, o acórdão fundamento entendeu que a acusação particular não descrevia “factos que constituem os elementos objectivos do tipo legal de crime em apreço.” E, considerando ser este um motivo de rejeição da acusação, nos termos do no 3 do arto 311o do CPP; manteve a decisão da 1a instância.


No acórdão recorrido, o preceito cuja interpretação está em causa é o arto 187o no 3 do CP; no acórdão fundamento, o preceito cuja interpretação está em causa é o arto 311o do CPP.


É verdade que o acórdão fundamento – embora essa questão não fosse objecto do recurso –, na sua fundamentação, afirmou que «aliás, mesmo que existissem factos necessários ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no art. 187o, no 1 do Código Penal, sempre poderemos dizer que, esses factos não preencheriam também os elementos objectivos do crime porquanto o arguido fê-lo através da de uma carta, ou seja por escrito e o art. 187o do Código Penal não remete expressamente para a equiparação prevista no art. 182o do Código Penal».


Contudo, é sabido que a jurisprudência do STJ considera que a oposição de julgados, para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência, deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (Vide acórdão do STJ, de 17.06.2010, processo no 1/08.0 FAVRS.E1-A.S1; acórdão do STJ, de 27.06.2019, Proc. n.o 1958/15.0T9BRG.G1-A.S1).


O mesmo será dizer que, no acórdão fundamento, não se decidiu se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal, embora em sede de fundamentação tal questão tivesse sido aventada.


5. Cumprido o disposto no artigo 417o no2 ex vi do artigo 448o, ambos do CPP, o arguido veio responder tecendo diversas considerações sobre os fundamentos do recurso, nomeadamente quanto às dúvidas suscitadas pelo MP relativamente à verificação de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.


6. Efetuado o exame preliminar a que se refere o n.o 2 do artigo 440.o do CPP e colhidos os vistos, o processo foi remetido à conferência, nos termos do n.o 4 do mesmo preceito, a fim de proferir decisão sobre a rejeição ou o prosseguimento do recurso, nos termos do art. 441o CPP.


Cumpre decidir.


II.


fundamentação


1. Dos artigos 437.o/1/2/3 e 438.o/1/2, do CPP, resulta, tal como é entendimento pacífico da jurisprudência do STJ (vd, por todos, PEREIRA MADEIRA, Código de Processo Penal, Comentado, 2016, p. ,1469), que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende, antes de mais, da verificação dos seguintes pressupostos (a) formais:


- Legitimidade [e interesse em agir] do recorrente, o que se verifica no caso presente, porquanto o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ora recorrido, negou provimento ao recurso aí interposto pelo arguido ora recorrente, AA, da decisão de 1a instância que o condenara pela prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal; tempestividade, o que se verifica igualmente no caso presente, porquanto o arguido interpôs o presente recurso no prazo de 30 dias, contado do trânsito em julgado do acórdão da relação ora recorrido; identificação do acórdão fundamento, ou seja, o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontrará em oposição, indicando que aquele acórdão, proferido pelo TRC em 20.02.2019, no âmbito do processo 316/17.7T9SEI.C1 se encontra publicado em www.dgsi.pt; trânsito em julgado do acórdão fundamento, que ocorreu em 27.03.2019


2. Preenchidos os apontados pressupostos de ordem formal impõe-se verificar agora do preenchimentos dos seguintes pressupostos ( b) substanciais:


- Que dois acórdãos do STJ, das relações ou de uma das relações e do STJ, hajam sido proferidos no domínio da mesma legislação;


- Que ambos os acórdãos hajam decidido a mesma questão de direito;


- Que a decisão de ambos os acórdãos assente em soluções opostas para a mesma questão de direito, requisito este que se desdobra em três outros pressupostos ou requisitos, conforme vem sendo entendido na jurisprudência e doutrina:


- Que as decisões em oposição sejam expressas e não meramente tácitas ou implícitas;


- Que os dois acórdãos assentem em soluções opostas da mesma questão de direito e a partir de idêntica situação de facto.


- Que a oposição se verifique entre duas decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra, pressuposto a que se dedicará maior atenção.


Vejamos, então, da verificação dos enunciados pressupostos substanciais no caso concreto.


2.1. No caso presente não há dúvida que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação relevante, pois tanto o acórdão da Relação de Coimbra de 29.09.2022 – acórdão recorrido -, como o acórdão da Relação de Coimbra de 20.02.2019 - acórdão fundamento -, foram proferidos na vigência da atual redação do art. 187o do C.Penal, que prevê o crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, cuja 1a versão foi introduzida no C. Penal pelo DL 48/95 de 15 de março, apenas alterada pela Lei 59/2007 de 4 de setembro, sendo certo que é sobre a interpretação daquela norma incriminadora que se suscita a invocada oposição de julgados.


2.2.1. Parece-nos ser igualmente fora de dúvida que no caso presente tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento se pronunciaram em termos opostos sobre a mesma questão de direito, que é a de saber se o crime de Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva previsto no artigo 187o C. Penal pode ser cometido por escrito, gesto ou imagem, como julgou o acórdão recorrido, ou se aquele tipo legal não contempla tal hipótese, como, inversamente, entendeu o acórdão fundamento.


2.2.2 Do mesmo modo, as soluções de direito opostas não assentam em diferentes situações de facto, pois tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento pronunciaram-se inequivocamente sobre situações de facto idênticas, na medida em que a pretensa ofensa ao tipo legal previsto no art. 187o do C. Penal teve por base a emissão de escrito contra pessoa coletiva, em ambos os casos, concluindo o tribunal recorrido ser tal conduta punível pelo art. 187o do C. Penal e o acórdão fundamento em sentido oposto, ou seja, no sentido de que o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal, não pode ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal.


Quanto à referência do MP no tribunal recorrido ao diferente enquadramento processual em que ambos os acórdãos foram proferidos, em virtude de o acórdão recorrido ter decidido recurso de condenação proferida em 1a instância após audiência de julgamento e o acórdão fundamento ter decidido recurso interposto de despacho do juiz de julgamento que, nos termos do art. 311o no3 d), rejeitou acusação particular por ser a mesma manifestamente infundada em virtude de os factos não constituírem crime, é tal diferença irrelevante no caso presente. Tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento puseram termo ao processo (cf. art. 97o no1 als a) e b), CPP), ainda que em fases processuais diversas, sem que esta circunstância interfira com a constatação de que os dois acórdãos, relativamente à mesma questão de direito, assentaram em soluções opostas, com que o artigo 437o enuncia o fundamento do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Como diz o ora recorrente na resposta a que se reporta o art. 417o no2 CPP, «... pese embora sejam diferentes as fases processuais em que a questão se coloca (...) em ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) a questão material central que foi (para além do mais) colocada à consideração dos decisores foi a de saber se as cartas enviadas pelos arguidos constituíam ou não crime p. e p. pelo artigo 187.o do C. P.».


A questão suscitada na resposta do MP no tribunal recorrido e no parecer do MP no STJ, remete-nos antes para a questão de saber se, dados os termos em que foi proferido o acórdão fundamento, se verifica a necessária oposição entre decisões e não entre decisão e fundamentos, como é geralmente qualificada.


2.2.3. Por último, cumpre ajuizar se tem razão o MP no STJ ao afirmar que no acórdão fundamento não se decidiu se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal, uma vez que tal questão não foi objeto do recurso e só em sede de fundamentação foi aventada, o que afasta a verificação de oposição de julgados, pois é sabido que a jurisprudência do STJ considera que a oposição de julgados, para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência, deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (Vide acórdão do STJ, de 17.06.2010, processo no 1/08.0 FAVRS.E1-A.S1; acórdão do STJ, de 27.06.2019, Proc. n.o 1958/15.0T9BRG.G1-A.S1).


Vejamos.


2.2.3.1. Em primeiro lugar, não tem razão o MP ao pretender que a questão de saber se o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, al. a) e b) do Código Penal, pode ou não ser cometido por escrito, gesto, imagem ou qualquer outro meio de expressão não verbal, não foi objeto do recurso decidido pelo acórdão fundamento e só em sede de fundamentação foi aventada.


Apesar de o acórdão fundamento não indicar expressamente as questões que entendia constituírem o objeto do recurso a decidir, resulta suficientemente do seu teor - tal como do confronto com o despacho de 1a instância então recorrido -, que o acórdão fundamento identificou e apreciou a questão de saber se o crime p. e p. pelo art. 187o do C.Penal podia ser praticado por escrito ou, antes se apenas podia ser cometido verbalmente, enquanto elemento objetivo do tipo, juntamente com os demais elementos típicos:


- A afirmação ou propalação de factos inverídicos;


- Que sejam suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima e


- Que o agente ativo não tenha fundamento para, em boa fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros.


Com efeito, é o que pode ler-se do amplo trecho do acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 20.02.2019, no âmbito do processo 316/17.7T9SEI.C1que, como aludido, julgou improcedente recurso do despacho proferido em 1a instância que rejeitara acusação particular nos termos do art. 311o no3 d) CPP, ou seja, por entender ser a acusação manifestamente infundada por os factos não constituírem crime, decisão esta que vem fundamentada – no que respeita ao crime p. e p. pelo art. 187o do C.Penal aqui em causa –, que a seguir se transcreve.


« (...) No caso vertente é imputado ao arguido a prática de um crime p. e p. pelo arto 187o do C.Penal. ... São elementos objectivos do tipo a afirmação ou propalação de factos inverídicos; que esses mesmos factos sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima; c que o agente activo não tonha fundamento para, em boa fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros.


(...) No caso vertente e tendo presente os elementos objectivos do tipo temos que concluir que os mesmos não constam da acusação particular. Na verdade da acusação particular não resultam descritos factos que constituem os elementos objectivos do tipo legal de crime em apreço. (...) Estamos, portanto, perante uma carta escrita pelo arguido aos assistentes em que se manifesta em relação aos estatutos de uma fundação dos quais na sua opinião não estão a ser respeitados. As expressões utilizadas não consubstanciam a imputação de qualquer facto, pelo que não se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime p. e p. pelo arto 187 do Cod Penal


Aliás, mesmo que existissem factos necessários ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no art. 187o, no 1 do Código Penal, sempre poderemos dizer que, esses factos não preencheriam também os elementos objectivos do crime porquanto o arguido fê-lo através da de uma carta, ou seja por escrito e o art. 187o do Código Penal não remete expressamente para a equiparação prevista no art. 182o do Código Penal.


Conforme podemos ler no douto Acórdão do TRL de 24-01-2013 "O tipo objectivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de "factos inverídicos", capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de "juízos de valor" ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria.


Este específico aspecto não é tão linear como à primeira vista poderia parecer na medida em que, ao invés do que sucede com os crimes de difamação e injúria previstos nos artigos 180.o e 181.o do Código Penal, inexiste relativamente à ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva prevista no artigo 187.o do mesmo diploma uma qualquer norma que alargue as margens de punibilidade do tipo aos comportamentos escritos, gestuais, por imagem, ou outro tipo de expressão distinta da verbal.


E o certo é que a norma remissiva do artigo 187.o, n.o 2 do Código Penal não inclui o artigo 182,o do mesmo diploma. Esta ausência da remissão para o artigo 182.o implica que se considere em princípio não penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva cometida por escrito, gesto ou imagem.


Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa 2008. p, 509), outra interpretação "violaria o princípio da legalidade". (Ac da RelPorto cit e que seguimos)


No mesmo sentido o douto acórdão do TRP de 3-4-2013 onde podemos ler, no seu sumário, "IV - "Afirmar ou propalar" factos inverídicos pressupõe que a ofensa seja feita verbalmente, tanto mais que, o no 2 do art. 187o do CP não remete para o disposto no art. 182o do CP, o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aqui (art, 187o do CP) aplicável. Mesmo em relação aos crimes previstos nos arts. 180o e 181o do CP, caso não existisse a equiparação consagrada no art. 182o do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, por escrito também não eram punidas."


Portanto, os factos narrados na acusação não constituem crime. » - FIM DE CITAÇÃO (interpolado no original, negrito aqui acrescentado).


Após este trecho, o acórdão fundamento passou a analisar o teor da acusação particular no que concerne à imputação ao arguido de dois crimes de injurias e difamação agravada previsto e punido nos artigos 180o e 181o ambos do C. Penal alegadamente praticados na pessoa dos assistentes pessoas singulares, relativamente aos quais entende que «... não se vislumbra quaisquer factos passíveis de atentarem contra a honra ou a dignidade dos assistentes» [concluindo que] não se mostra preenchido quer o elemento objectivo do crime de difamação, quer o do crime de injúrias imputado ao arguido.


O acórdão fundamento afirma por fim, que: « Nessa medida, bem andou o tribunal ao rejeitar a acusação.


Nestes termos, se decide, negando provimento ao recurso, confirmar o despacho recorrido.»


2.2.3.2. Ou seja, contrariamente ao que parece entender o MP no STJ, não obstante as diferenças formais entre a estrutura do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, constata-se que não só o acórdão fundamento autonomizou e apreciou a questão de direito substantivo de saber se o uso da expressão oral, não verbal, é elemento do tipo objetivo previsto no art. 187o do C. Penal, como deixou claro na sua fundamentação (supra transcrita) - nomeadamente com recurso a jurisprudência e doutrina que citou - , o seu entendimento sobre aquela questão jurídico substantiva, pronunciando-se, tal como o despacho de 1a instância sobre o qual incidiu o recurso, no sentido de aquele mesmo tipo legal não contemplar a sua comissão por meio de escrito, gesto ou imagem.


Entendimento este que foi co determinante da sua conclusão no sentido de improcedência do recurso, confirmando o despacho de 1a instância que, nos termos do art. 311o no3 d), CPP, rejeitara a acusação particular por ser a mesma manifestamente infundada em virtude de os factos descritos na acusação a rejeitar não constituírem crime, dado que ( como se diz no acórdão fundamento):


- A carta enviada não continha afirmação ou propalação de factos inverídicos;


- Que fossem suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima;


- Que o arguido, que a enviou, tivesse fundamento para, em boa fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros, e


- Porque o tipo legal previsto no artigo 187o do C. Penal apenas pune ofensas feitas oralmente, não abrangendo as feitas por escrito, gesto ou imagem.


O acórdão fundamento assentou, pois, a sua decisão na atipicidade da conduta descrita na acusação particular rejeitada pelas concretas razões de facto e de direito agora sumariadas entre as quais se conta a solução que adotou relativamente à questão de direito agora enunciada em último lugar - o tipo legal previsto no artigo 187o do C. Penal apenas pune ofensas feitas oralmente, não abrangendo as realizadas por escrito, gesto ou imagem – ainda que a falta de um só daqueles elementos do tipo objetivo fosse suficiente para ditar a improcedência do recurso decidida pelo acórdão fundamento.


2.2.3.3. A particularidade do acórdão fundamento relativamente ao acórdão recorrido encontra-se, assim, na circunstância de a improcedência do recurso assentar ali numa pluralidade de razões de ordem fática e jurídica fundamentadoras da sua conclusão sobre a (a)tipicidade da conduta descrita na acusação particular face ao disposto no art. 187o do C. Penal, (entre as quais se conta a posição assumida relativamente à punição de “ofensa” por meio de escrito, gesto ou imagem), enquanto a decisão do recurso objeto do acórdão recorrido, relativamente ao preenchimento do tipo criminal dos art. 187.o, n.o 1, e 183.o, n.o 1, als. a) e b), do CP, assentou a sua decisão apenas no entendimento adotado no sentido de nada obstar ao « .... preenchimento do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo art. 187.o, n.o 1, do CP, por outro qualquer meio que não verbal (no caso em apreço, por escrito) ...».


A circunstância de o acórdão fundamento assentar a decisão do recurso numa pluralidade de razões de ordem jurídica, incluindo a posição que adotou no sentido oposto ao acórdão recorrido, da falta de previsão típica de eventual ofensa praticada por meio não verbal, não desqualifica a solução que adotou sobre a questão jurídica claramente controvertida para efeitos da verificação da oposição de julgados a que se reporta o art. 437o CPP, pois qualquer delas é suficiente para fundamentar, por si, a decisão de improcedência do recurso assumida no acórdão fundamento.


Com efeito, sem cuidar aqui de interpretação mais ampla e detalhada, não poderá deixar de entender-se cum grano salis a exigência de que a oposição entre as soluções opostas para a mesma questão de direito, a que se reporta o art. 437o CPP respeite a oposição entre decisões e não entre os seus fundamentos (como se refere no parecer do MP no STJ) ou entre a decisão e os fundamentos, pois, em rigor, é na fundamentação do acórdão decisório que se expõem os motivos de direito que fundamentam a decisão, como paradigmaticamente se diz no art. 374o no2 CPP. Deste modo, as diferentes soluções para a questão de direito hão de encontrar-se enunciadas, apreciadas e decididas na parte do acórdão dedicada à fundamentação do recurso e não no seu dispositivo ou decisão que, em regra, apenas contém a enunciação, positiva ou negativa, sobre o provimento ou procedência, total ou parcial, do recurso, para além de outras questões que aí sejam decididas (vd art. 375o CPP), sem indicação ou enunciação da fundamentação de facto e direito em que assenta a decisão, a qual, repita-se, foi antes exposta noutra parte acórdão: a fundamentação.


2.2.3.4. Daí que que a distinção em sede de fundamentos ou pressupostos da fixação de jurisprudência, pareça dever a fazer-se antes entre fundamentação determinante para a decisão proferida, num e noutro acórdão (nestes termos, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (Regime do Decreto-Lei no 303/2007 ), Quid Juris, 2009 p. 315), não bastando a oposição entre meros argumentos ou razões de direito que não fundamentem, por si, a solução de direito adotada em ambos os acórdãos, máxime quando se trate de meros obiter dicta. Na verdade, como se diz no acórdão do STJ de 2 de outubro de 2014 (rel. Lopes do Rego), em termos que nos parecem válidos para o processo penal, «(...)2. O preenchimento deste requisito [que exista um conflito jurisprudencial, suscetível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art. 688o do CPC], supõe que as soluções alegadamente em conflito:


- Correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica - não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;


- Têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;


- A questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obiter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica.».


Também Castro Mendes, ao analisar as diversas questões em que desdobra a oposição de decisões, diz que (para além das demais características que enuncia) a oposição entre decisões deve respeitar a questão fundamental, o que nos parece valer integralmente para o que se exige em processo penal relativamente ao acórdão fundamento (vd infra 2.2.3.5.). Aquele professor carateriza então o caráter fundamental da questão nos seguintes termos::


-« As questões decididas nos dois acórdãos devem ser fundamentais. Sobre este ponto chocam-se duas correntes jurisprudenciais – uma só admite o recurso para o tribunal pleno de decisão oposta a decisão, excluídos os juízos que porventura se façam em oposição na fundamentação de uma e outra; outra admite o recurso para o tribunal pleno de questões resolvidas entre os fundamentos da decisão, desde que a resolução das mesmas fosse decisiva para a decisão final. Parece-nos que é esta segunda corrente, mais liberal, que está de harmonia com o espírito da lei, que admite o recurso para o tribunal pleno ainda que porventura não tenha efeito na solução causa (arts 768o/3 e 770o»


No caso vertente, a tomada de posição do acórdão fundamento no sentido de não ser punível pelo art. 187o C.Penal potencial ofensa feita por escrito, gestos ou imagens, mediante escrito, não constitui mero obter dictum ou argumento lateral ou coadjuvante de solução já alcançada por via jurídica diferente, antes se assume como uma das razões jurídicas, paritariamente exposta e fundamentada ao lado de outras, em que assentou o julgamento do acórdão fundamento sobre a atipicidade da factualidade descrita na acusação rejeitada.


2.2.3.5. Note-se, por último - em obiter dictum que julgamos justificar-se -, que o entendimento ora exposto relativamente à relevância da oposição de direito entre apenas um de uma pluralidade de fundamentos que tenham determinado a decisão proferida pelo acórdão fundamento, e a solução jurídica unitariamente seguida no acórdão recorrido, não colide com a natureza e efeitos próprios dos acórdãos de fixação de jurisprudência, contrariamente ao que se verificaria caso se seguisse entendimento simétrico para o acórdão recorrido.


Com efeito, sendo o AFJ eficaz no processo em que o recurso foi interposto (art. 445oCPP), não pode conceber-se fixação de jurisprudência que não permitisse que a decisão recorrida fosse revista (art. 445o no2 CPP) quando a decisão uniformizadora fosse contrária à adotada no acórdão recorrido, o que efetivamente se verificaria, pois o AFJ, conhecendo apenas de um de diversos fundamentos determinantes da decisão recorrida, não podia levar à alteração da decisão recorrida porque esta subsistiria assente em algum ou alguns dos restantes fundamentos que a tivessem determinado.


Diferentemente, nada obsta a que a oposição de julgados verificada relativamente apenas a um dos fundamentos determinantes da decisão tomada no acórdão fundamento, dê origem a fixação de jurisprudência nos termos do art. 437o CPP, pois salvaguarda-se desse modo a finalidade uniformizadora da fixação de jurisprudência sem afetar minimamente o seu papel, concomitante, de remédio jurídico por via de recurso, uma vez que a decisão do acórdão fundamento em nada é alterada pela fixação de jurisprudência.


Nada obsta, pois, à solução assimétrica – diversa para o acórdão fundamento e para o acórdão recorrido – nos casos de pluralidade de fundamentos de direito igualmente determinantes para a decisão do recurso.


2.3. Concluindo-se, pois, pela verificação de todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário de jurisprudência deve o presente recurso prosseguir – cf. artigos 437o, 440o e 441o, do CPP.


III


Dispositivo


Pelo exposto, acorda-se em julgar verificada a oposição de julgados e, em conformidade, ordenar o prosseguimento do presente recurso, nos termos do artigo 441, no 1, in fine, do CPP.


Sem custas.


Supremo Tribunal de Justiça, 11 de maio de 2023


António Latas (Juiz Conselheiro relator)


José Eduardo Sapateiro (Juiz Conselheiro adjunto)


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro adjunto)