TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA
JUROS
TAXA COMERCIAL
Sumário

Baseando-se a execução intentada pelo portador, contra o avalista, apenas numa livrança vencida e não paga, a taxa legal de juros de mora peticionada só pode ser, nela, de acordo com o artº 4º, do Decreto-Lei nº 262/83, de 16 de Junho, a civil (actualmente de 4%, de acordo com a Portaria nº 291/2003 vigente), e não a comercial prevista no parágrafo 3º, do artº 102º, do Código Comercial.

Texto Integral


TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES




18
Largo João Franco, 248 - 4800-413 Guimarães – Telefone: 253 439 900 – Fax: 253 439 999
Correio electrónico: guimaraes.tr@tribunais.org.pt; Internet: www.trg.mj.pt




Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Em Execução Ordinária (para pagamento de certa quantia) pendente, desde 07-08-2014, no Tribunal de Guimarães, movida pelo Banco AA…, SA, a BB…, vencida em 22-01-2013, por este avalizada, relativa a importância, alegadamente, correspondente a obrigações decorrentes do incumprimento de um contrato de locação financeira, peticionou aquele, além do capital em dívida, os juros vencidos desde 26-07-2013 à taxa legal dos juros comerciais e os vincendos.

Em despacho de 04-06-2015, foi decidido: “… indefiro parcial e liminarmente o requerimento executivo, por manifesta falta de título, quanto ao pedido de juros à taxa comercial, devendo os mesmos ser calculados à taxa de 4% ao ano até ao pagamento, de acordo com a Portaria n.° 291/2003, de 8.04”.

Isto com os seguintes fundamentos: “…analisado o requerimento executivo constata-se que o banco exequente alega que ao montante da livrança devem acrescer juros comerciais.
Ora, tendo a presente acção executiva por base um título de crédito, a taxa de juro aplicável às letras e livranças pagáveis em Portugal é a taxa de juros civis.
Com efeito, sendo o titulo executivo a livrança e estando em causa a obrigação cartular, não são de aplicar quaisquer juros estipulados em contrato celebrado entre as partes, pois os juros a ter em conta quando estão em causa títulos de crédito são apenas os juros civis, uma vez que não se está em causa o contrato mas tão só a livrança que constitui o título executivo.
Atendendo ao período compreendido entre o dia de vencimento e o momento actual, a taxa de juros correspondente é de 4% até ao pagamento, de acordo com a Portaria n.°291/2003 de 8-4.
Assim, impõe-se o indeferimento parcial do requerimento executivo quanto ao pedido de juros à taxa comercial por ser manifesta a falta de título executivo quanto àquela taxa, atendendo ao disposto nos art.°s 703°, ai. c) e 726°, n°3, do NCPC.”

A exequente não está conformada, apela para este Tribunal, a concluindo e pedindo: “…o despacho recorrido violou o disposto nos §§ 2º, 3º e 4º do artigo 102º do Código Comercial, e o disposto na Portaria 1105/2004, de 31 de Agosto, e consequentemente, na esteira desta, o disposto nos Avisos da Direcção Geral de Tesouro e Finanças aplicáveis à hipótese dos autos, ou seja os Avisos 9944/2012, de 2 de Junho, 594/2013, de 3 de Janeiro e 8266/2014, de 16 de Julho, pelo que revogando-se o despacho recorrido e substituindo-se o mesmo por acórdão que ordene que a execução prossiga com juros contabilizados, liquidados e vincendos, à taxa de juros comerciais, nos termos dos Avisos consequência do disposto na Portaria 1105/2004, de 8 de Agosto e revogando-se a condenação em custas do ora recorrente, que é também objecto do presente recurso, se respeitará e cumprirá a lei e se fará, em suma, J U S T I Ç A.”

Não consta ter havido contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, nos termos dos nºs 3 e 4, do artº 853º, do CPC.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Sendo pelas conclusões que, sem prejuízo dos poderes oficiosos, se fixa o thema decidendum e se definem os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC) – neste caso, a questão a dirimir consiste em saber se, baseando-se a execução numa livrança, a taxa legal de juros de mora devidos é a civil ou a comercial.

III. FUNDAMENTAÇÃO

De facto, relevam os elementos relatados, documentados nos autos.

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

É cambiário o título executivo dado à execução, sem dúvida – uma livrança.

Com efeito, a exequente, embora referindo-se, no requerimento inicial, ao contrato subjacente, explicitou bem que baseava a execução na livrança, muito embora, e como se vê de caso pensado, logo naquele tenha acrescentado que a mesma dimana do incumprimento de contrato comercial (acto de comércio).

O despacho recorrido distinguiu bem a relação cambiária da subjacente e afirmou que, sendo aquela a causa da obrigação e do inerente crédito, a taxa dos juros de mora devidos é a civil, conforme decorre da Portaria nº 291/2003, de 8 de Abril, e não os comerciais.

De facto, as características abstracção, literalidade, autonomia e incorporação da obrigação no título justificam que esta, em vários aspectos, se subordine a um regime diverso do do negócio causal. Aqui trata-se de saber se tal acontece com a taxa de juro.

A Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças previa, nos nºs 2, dos artºs 48º e 49º, a taxa fixa de 6% para os juros de mora.

O artº 559º do Código Civil, na redacção original, estabelecia que era de 5% ao ano a taxa dos juros legais (a chamada taxa legal ou supletiva).

Era também de 5% a taxa de juro legal (ou supletiva) aplicável aos actos comerciais por força da primitiva redacção do parágrafo 2º, do Código Comercial.

O Decreto-Lei nº 200-C/80, de 24 de Junho, alterou a redacção do artº 559º, do Código Civil, retirando da norma a referência à taxa fixa e estabelecendo que “Os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria”.

Idêntica alteração introduziu o mesmo diploma no parágrafo 2º, do artº 102º, do Código Comercial, que passou a prever a aplicação aos juros comerciais também do disposto no artº 559º, do Código Civil.

Abandonou-se, pois, a fixação da taxa em qualquer daquelas normas, remetendo-a para a Portaria governamental. Não obstante, por via de tal mecanismo, a taxa continuou a ser igual nos dois campos.

Assim, a Portaria nº 447/80, de 31 de Julho, fixou em 15% a taxa legal de juros, enquanto que a Portaria nº 581/83, de 18 de Maio, elevou esta para 23%.

Não se destrinçava, assim, relativamente ao seu quantum, a taxa comercial da taxa civil, embora evidentemente se conservasse a distinção entre as respectivas relações jurídicas e regime.

O Decreto-Lei nº 262/83, de 16 de Junho, alterou o parágrafo 2º e aditou um 3º ao artº 102º, do Código Comercial, que ficou com a seguinte redacção:

“Haverá lugar ao decurso e contagem de juros em todos os actos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se juros e nos mais casos especiais fixados no presente Código.
Parágrafo 1º - A taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito.
Parágrafo 2º - Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artºs 559º, 559º-A e 1146 do Código Civil.
Parágrafo 3º - Poderá ser fixada por portaria conjunta dos Ministros das Justiça e das Finanças e do Plano uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas.”

Mantendo-se, pois, a aplicação do artº 559º, do CC (juros civis) aos juros comerciais (na altura, segundo a Portaria em vigor, de 23% - taxa legal), criou-se a possibilidade de, também por portaria (outra), se fixar uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, daí resultando, a partir de então, taxas diversas em função das diferentes portarias que iam sendo publicadas, ora relativas aos “juros legais”, ora aos juros de créditos aludidos no parágrafo 3º, do Código Comercial.

Sem embargo, pelo artº 4º, do mesmo Decreto-Lei nº 262/83, estabeleceu-se que “O portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais”. Não se optou deliberadamente pelos do Código Comercial mas pelos do Código Civil.

O Assento nº 4/92, do STJ, após intensa polémica, afastou a aplicação às letras e livranças da taxa de 6% prevista na Lei Uniforme e estabeleceu o entendimento de que é aplicável a que decorre do artº 4º, do Decreto-Lei nº 262/83, de 16 de Junho, ou seja, a legal.

Tínhamos, portanto, uma taxa legal, aplicável não só no campo jurídico-civil por força do artº 559º do Código respectivo como também a actos comerciais (também chamada de juros comerciais) em consequência da remissão persistente no parágrafo 2º, do artº 102º, do Código Comercia - taxa legal esta que – repete-se – era a mandada aplicar às letras, livranças e cheques.

E passámos a ter, ainda, a taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais (sendo que o âmbito da previsão normativa do parágrafo 2º ao aludir a “juros comerciais” não coincide com o do parágrafo 3º relativo a “créditos de que sejam titulares empresas comerciais).

As Portarias que subsequentemente foram sendo publicadas distinguiam expressamente, em consonância, a primeira como taxa legal (assim consta nas nºs 339/87, de 24 de Abril, 1171/95, de 25 de Setembro, 263/99, de 12 de Abril, e 291/03, de 8 de Abril); e, a segunda, como taxa supletiva de juros moratórios relativamente a créditos de que sejam titulares empresas comerciais prevista no parágrafo terceiro do artº 102º, do CC (como resulta das nºs 1167/95, de 23 de Setembro, 262/99, de 12 de Abril, 1105/2004, de 16 de Outubro, e 597/2005, de 19 de Julho).

Com esta dicotomia permaneceu, no entanto, o parágrafo 2º, do artº 102º, do Código Comercial, a mandar aplicar aos juros comerciais o artº 559º, do CC.

Entretanto, o Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, que estabeleceu o regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transacções comerciais (definidas como transacções entre empresas ou entre empresas e entidades públicas), transpondo a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29/07, no seu artigo 4º, nº 1, definiu que “Os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transacções previstas no presente diploma são os estabelecidos no Código Comercial”.

Sucedeu, contudo, que, do artº 102º deste compêndio, também concomitantemente alterado, desapareceu a remissão que o seu parágrafo 2º fazia para o artº 559º, do C. Civil quanto aos “juros comerciais” (ou seja, a que mandava aplicar-lhes a taxa legal).

A redacção do preceito ficou então assim:

“Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os actos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código.
§ 1.º A taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito.
§ 2.º Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559.º-A e 1146.º do Código Civil.
§ 3.º Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.
§4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de sete pontos percentuais. “

Não havendo dúvidas que às transacções comerciais em causa e créditos das empresas respectivas são aplicáveis os novos parágrafos 3º e 4º, do artº 102º, do Código Comercial, manteve-se, porém, incólume o disposto no artº 4º, do Decreto-Lei nº 262/83, segundo o qual o portador de letras, livranças ou cheques – sem distinguir a qualidade ou a natureza das pessoas – pode exigir juros legais (que eram os previstos no artº 559º, do CC, como se viu).

Posteriormente, o Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, que substituiu, revogando-o, o DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, transpondo a Directiva nº 2011//7/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011, introduziu ao artº 102º, mais uma alteração:

“§4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de sete pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no parágrafo seguinte”;

E aditou-lhe um parágrafo:

“§5.º No caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais.”

É daqui que nasce o problema.

Ao crédito titulado pela livrança aplica-se a chamada taxa de juro legal, independentemente do negócio causal ou subjacente e da qualidade ou natureza do portador e obrigados, tal como o artº 4º do Decreto-Lei 262/2003 estabeleceu, considerando que tal taxa continua a ser a do artº 559º, do C. Civil?

Ou aplica-se a taxa aludida no parágrafo 3º, do artº 102º, do Código Comercial, caso o negócio subjacente tenha natureza comercial e ocorra entre empresas?

Entendeu o tribunal recorrido que, estando em causa apenas obrigação cartular, os juros são os civis de 4%, de acordo com a Portaria 291/2003, a última que fixou a taxa dos juros legais referidos no artº 559º, nº 1, do CC (e não os de qualquer contrato celebrado entre as partes, como referiu, apesar de, neste caso, não terem sido pedidos juros convencionais mas apenas juros “à taxa legal dos juros comerciais”).

Defende a apelante que “os juros comerciais não são juros ilegais” face ao previsto artº 559º, do CC, salientando a alteração operada no parágrafo 2º do artº 102º, do C. Comercial, que retirou a remissão dos juros comerciais para aquela norma civilística, acrescentando que os juros comerciais são os que derivam de créditos de que sejam titulares empresas comerciais, ou seja, os previstos na Portaria 1105/2004, de 23 de Agosto. E, ainda, que o Assento 4/92 do STJ foi proferido numa altura em que se discutia se a taxa era a da Lei Uniforme ou a dos juros comerciais.

Ora, é verdade que a intervenção legislativa operada pelo Decreto-Lei 262/83 surgiu num peculiar contexto inflacionista e teve por finalidade corrigir, na ordem jurídica interna, a patente distorção entre a taxa de 6% prevista nos nºs 2, dos artºs 48º e 49º da Lei Uniforme, a que Portugal estava vinculado enquanto subscritor dessa Convenção internacional, e a taxa, já então fixada em 23% pela Portaria nº 581/83, aplicável indistintamente tanto aos juros civis como aos comerciais, por força do artº 559º, nº 1, do CC, e da remissão para este do parágrafo 2º, do artº 102º, do C. Comercial.

Contudo, apesar dessa coincidência, distinguiam-se já então perfeitamente os conceitos de “juros legais” e “juros comerciais”. Ao desvincular-se da taxa prevista na Lei Uniforme e ao estabelecer unilateralmente outra para vigorar na ordem jurídica interna, o legislador, bem sabendo das características cambiárias das letras, livranças ou cheques (que, como títulos cambiários, os tornam independentes da relação subjacente e assim alheios à natureza desta), que ao uso de tais títulos recorrem sobretudo os comerciantes e que na sua base estão em regra operações mercantis e ciente daquela distinção conceitual e de regimes, poderia ter optado pelos “juros comerciais”.

Todavia, clara e decisivamente, por certo tendo também em conta que o uso de tais títulos de crédito não se restringe aos comerciantes, que na sua génese podem estar negócios simplesmente civis e sem perder de vista a sua específica natureza cartular e vocação executiva pressupondo certeza, segurança e abstracção – que se não compadecem com tais distinções para efeitos de juros, antes devem compaginar-se com o exercício preciso e seguro do respectivo direito de acção tal como tendencialmente previsto na Lei Uniforme (artºs 28º, 43º, 48º e 49º) e que o torna refractário a discussões sobre a relação subjacente – optou pelos “juros legais”.

De resto, apesar da evolução legislativa e indiferente mesmo à divergência entre o quantum das taxas de “juros legais” e de “juros de créditos de que sejam titulares empresas comerciais” ou mesmo das “transacções comerciais”, a que a sucessão de regimes, designadamente decorrentes da alteração do artº 102º, do Código Comercial, acabou por conduzir, nunca o artº 4º, do Decreto-Lei 262/83, sofreu qualquer alteração, assim se mantendo incólume a possibilidade de, qualquer que seja a pessoa ou o negócio causal, o portador de letras, livranças e cheques exigir “juros legais” pela mora no cumprimento, mas a estes se limitando (o que não significa, evidentemente, que não possa exigir os “juros comerciais” se invocar a relação subjacente, esta os contemplar e o procedimento por que enveredar tal permitir).

Nem mesmo o novo Código de Processo Civil ao deslocar tal matéria do artº 46º para o artº 703º, apesar das dificuldades e divergências interpretativas, abandonou tal referência, continuando a dispor, significativamente, que se consideram abrangidos pelo título executivo os juros de mora, “à taxa legal, da obrigação dele constante” (nº 2), sabendo-se que tal obrigação, no caso das letras, livranças e cheques, é a cambiária e não outra.

É verdade que os “juros comerciais”, enquanto previstos no artº 102º, parágrafo 3º, do Código Comercial e respectivas portarias, são também “legais”. Contudo, não era a esses mas aos juros previstos no nº 1, do artº 559º, do C. Civil (“juros civis”), então aplicável por força da anterior redacção do parágrafo 2º, do artº 102º, daquele velho compêndio, que se referiam o legislador de 1983, o do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (que, tendo em vista conciliar rigor, clareza e concisão na redacção dos preceitos, e aproveitando, inclusivamente, para clarificar o sentido de algumas alterações recentes de interpretação duvidosa, como proclamou no preâmbulo, ao aditar o referido nº 2 ao artº 46º do CPC, não hesitou em manter a referência a “taxa legal”) e o de 2013 (novo código de processo civil).

Como já atrás se salientou, apesar de primitivamente até serem iguais as taxas, sempre se distinguiram e continuam a distinguir o conceito e o regime de “juros legais” e “juros comerciais”, excluindo dos primeiros os respeitantes a “actos de comércio”, “titulares de empresas comerciais” e “transacções comerciais”.

O exposto leva-nos, assim, a acompanhar o entendimento adoptado no Acórdão da Relação de Lisboa de 08-05-2014 Processo nº 38720/06.3YYLSB-A.L1-2, relatado pelo Desemb. Olindo Geraldes. Refere-se neste, em sentido contrário, o Acórdão da Relação de Lisboa de 07-03-2013, proferido no processo 2109/09.6TBMTJ-A.L1-6, o qual, porém, se circunscreve às relações imediatas. Neste nosso caso, em que é executado o avalista, considerando a distinção entre relações mediatas e relações imediatas, tal, como por exemplo, é feita no Acórdão da Relação de Coimbra, de 26-11-2013, processo 4269/10.4TBLRA-A.C1 (Maria Teresa Pardal), ou no desta Relação de Guimarães, de 29-11-2012, processo nº 6890/09.ATBBRG.G1 (Maria Luísa Ramos), nada parece resultar no sentido de que, entre ele e o beneficiário da livrança, interceda qualquer relação de tipo imediato justificativa da aplicação do juro comercial., do qual, data venia, transcrevemos:

“É hoje pacífico, especialmente depois da prolação do assento (equiparado a acórdão de uniformização de jurisprudência) do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de julho de 1992, que nas letras e livranças emitidas e pagas em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de junho, e não a prevista nos n.º s 2 dos artigos 48.º e 49 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (BMJ n.º 419, pág. 75).
É, assim, patente que, no âmbito dos títulos de créditos, como as livranças, existe uma taxa específica para os juros de mora. A especificidade resulta da circunstância de se tratar de títulos de créditos, sendo irrelevante, para o efeito, a natureza jurídica que possa assistir ao credor desses mesmos títulos de créditos. Por isso, independentemente da pessoa do credor, a taxa aplicável aos juros de mora nos títulos de crédito é a que resulta do disposto no art. 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de junho.
A lei foi esclarecedora ao referir-se, expressamente, aos “juros legais”, não podendo esta expressão senão remeter para o disposto no art. 559.º, n.º 1, do Código Civil (CC), onde estão compreendidos os juros legais, com a sua fixação a ser concretizada através de portaria governamental (ABEL DELGADO, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7.ª edição, 1996, pág. 275 e segs., e P. PAIS DE VASCONCELOS, Direito Comercial – Títulos de Créditos, 1990, pág. 138 a 140).
Se, porventura, o legislador tivesse pretendido determinar uma taxa de juros diversa, nomeadamente a aplicação dos juros comerciais, nos termos do art. 102.º, § 3.º, do Código Comercial (CCom), também alterado pelo DL n.º 262/83, tê-lo-ia declarado no texto da lei. Tal não sucedeu, sendo certo ainda que não existe na letra da lei um mínimo de correspondência verbal com semelhante intenção, ainda que imperfeitamente expresso.
Afirmar que inexistem razões para diferenciar a taxa de juros dos créditos titulados por letras, livranças e cheques dos créditos das empresas comerciais, como alegou a Agravante, é o mesmo que dizer que a taxa de juros fixada quer pelo art. 48.º da LULL, quer pelo art. 4.º do DL n.º 262/83, não fez qualquer sentido normativo e, por isso, não podemos sufragar tal alegação, nomeadamente pela consideração das regras da interpretação consagradas no art. 9.º do CC.
Por outro lado, convém precisar que MENEZES CORDEIRO, que a Agravante cita como entendendo que a expressão “juros legais” engloba também os juros comerciais fixados no § 3.º do art. 102.º do CCom., em comentário favorável a acórdão sobre a taxa de juros em caso de mora numa obrigação em moeda estrangeira, não se pronuncia, porém, sobre a problemática ora versada (Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXX, 1988 (III da 2.ª Série), n.º 1, pág. 82 e segs.).
A jurisprudência sobre esta matéria específica tem sido escassa, possivelmente por esta questão ter sido considerada resolvida, designadamente pela doutrina do “assento” do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de julho de 1992.” Já antes, por Acórdão de 18-10-2007, proferido no processo 8273/2007.6, relatado pelo Desemb. Pereira Rodrigues, a mesma Relação havia entendido em sentido idêntico: “I. A taxa de juros aplicável aos títulos de crédito é a taxa geral dos juros civis, actualmente de 4%, e não a taxa de juros prevista na Lei Uniforme, de 6%, por esta última ter sido afastada do nosso ordenamento jurídico. II. O Assento 4/92, de 13 de Julho de 1992, estabeleceu o entendimento de que "nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho e não a prevista nos nºs. 2 dos artigos 48º e 49º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças". III. Com este Assento acabou-se com qualquer discussão, séria e razoável, sobre o tema, mas que agora se tenta retomar pelo facto de a taxa de juros legais ter baixado para 4%, ficando aquém dos 6%, previstos na Lei Uniforme. IV. Mas sem razão, porque o Assento, terá hoje de ser havido, pelo menos, como boa doutrina sobre o regime introduzido pelo artigo 4º do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, e a interpretação oportuna que o douto aresto fez da lei foi de que, para futuro, a taxa de juros aplicável aos títulos de crédito seria a taxa geral dos juros civis e jamais a taxa de juros da Lei Uniforme. V. Apesar de, na data em que foi proferido o Assento em análise, já a taxa dos juros legais estar em manifesta queda, tendo baixado de 23% para 15%, e, como era conjecturável, essa propensão tenderia a manter-se, como, de resto, se veio a verificar, nenhuma ressalva foi feita para a hipótese, previsível, de a taxa de juros legais baixar para nível inferior à taxa de 6% da LULL. VI. Nem era razoável que se fizesse, não só porque estava firmado o entendimento de que a taxa da Lei Uniforme havia deixado de vigorar (por caducidade ou revogação tácita), como também porque as mesmas razões que conduziram à instituição do regime introduzido pelo artigo 4º do Decreto-Lei 262/83, serem de aplicar na situação actual em que a taxa de juros legais passou de 7% para 4%, para baixo da taxa da Lei Uniforme, ou seja, razões de justiça e de igualdade de tratamento em relação a todos os juros de natureza civil. VII. Em todo o caso, as verdadeiras razões que conduziram a que portador da letra ou livrança não fosse discriminado negativamente com uma taxa de juros inferior à dos juros civis legais, ou seja, razões de justiça e de igualdade, são as mesmas que justificam que o mesmo portador da letra não deva agora ser discriminado positivamente com o direito a uma taxa de juros superior à dos juros legais.”

Entendimento, aliás, que esta Relação de Guimarães também perfilhou já no Acórdão de 26-04-2006 Processo 645/06-1, relatado pela Desemb. Rosa Tching. e do qual destacamos também, com o devido respeito:

“A livrança é um título de crédito, pelo qual uma pessoa (subscritor) se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data.
O documento que titula a livrança não é um mero documento probatório, ou seja, um simples meio de prova.
Tem uma função constitutiva e dispositiva. É um requisito necessário para o exercício e transmissão do direito nele mencionado Cfr. Ferrer Correia, in obra citada, pág. 5..
E tem também uma função de legitimação, isto é, dispensa quaisquer outros comprovativos da existência do direito Cfr. António Pereira de Almeida, in, “Direito Comercial”, 3º vol. , pág. 17..
Assim se explica a característica da livrança denominada incorporação do direito no título.
Existe, pois, uma especial relação entre o documento e o direito por força do qual o possuidor do título – e só ele – pode exercer o direito nele mencionado.
Mas, para além da incorporação, a livrança caracteriza-se ainda pelos princípios da literalidade, abstracção e autonomia.
A autonomia tanto pode reportar-se ao direito cartular relativamente ao negócio subjacente como ao direito sobre o título.
Do princípio da abstracção resulta a possibilidade de o negócio cambiário poder preencher uma multiplicidade de funções, não tendo causa própria.
E do princípio da literalidade decorre que o conteúdo, a extensão e modalidade do direito nela incorporado vale exclusivamente em conformidade com o teor do próprio título Neste sentido, vide, Ferrer Correia, in, “Lições De Direito Comercial”, Vol. III, 1966, pág. 40..
Por força deste último princípio, o que releva é apenas e tão só o que está exarado no título e não o que foi convencionado.
Aspectos que não constem do título ou que este directa e imediatamente não define nem objectiva, não podem ser considerados.
Neste sentido, ensina C. Gavalda e J. Stoufflet In, “Droit Commercial, 2- Cheques et Effets de Commerce”, PUF, 1978, pág. 43, citado no Acórdão da Relação de Évora, de 11.04.2000, CJ, ano XXV, tomo II, pág. 278, que “o título representa-se e configura-se como unidade material escrita que não só exclui outros meios de prova, mas também impede a possibilidade de completar as respectivas enunciações através do recurso ou por remessa para as enunciações de outros escritos, ainda que estes sejam conhecidos do portador”.
E refere Gomes Leo in, “Manual De Derecho Cambiário”; Buenos Aires, 1994, pág. 55, também citado no dito Acórdão da Relação de Évora, que “o título cambiário basta-se (deve bastar-se) a si mesmo; é completo no sentido de que tanto o direito do credor como do devedor ficam circunscritos, exclusivamente, pelos termos da declaração cambiária, sem se admitir remissão alguma para documentos estranhos a ela e se, por hipótese, se fizer tal menção no texto, a mesma é cambiariamente irrelevante”.
Mas se assim é, então, nenhuma dúvida temos em afirmar que a referência feita, na livrança dada à execução, ao “financiamento nº. 56031951585”, de nada vale, porquanto remete para elemento que lhe é estranho – documento que titula o referido contrato de financiamento e que nem sequer se mostra junto à livrança como seu anexo ou prolongamento.
Acresce que, de harmonia com o disposto no art. 5º da LULL, aplicável às livranças por força do art. 77º do mesmo diploma a LULL, estando-se perante livrança pagável em época determinada, ou seja, na data do seu vencimento, a estipulação de juros convencionais tem de ser considerada como não escrita.
E afastada que fica, pelas razões acabadas de expor, a possibilidade de se aplicar, aos juros moratórios da livrança dada à execução, a taxa de 12% convencionada no contrato de financiamento subjacente ou causal da emissão da referida livrança, importa, agora, indagar, qual a taxa de juros moratórios nas obrigações cambiárias.
A este respeito, defende ainda a exequente/agravante que, sendo uma Instituição de Crédito sob a forma cooperativa que exerce actividade bancária, de natureza comercial nos termos do disposto no art° 362° do Cód. Comercial, a taxa aplicável é a relativa aos juros comerciais e fixada, nos termos do art. 102°, § 2 e 3 do Código Comercial, na redacção dada pelo DL nº. 32/2003, de 17.02, com referência à Portaria n° 1105/05/2004, de 16 de Outubro e aos Avisos da DGT n° 10097/04, n° 310/05, 6923/2005 e n° 240/2006.
Mas, a nosso ver, continua a carecer de razão.
É que o DL n.º 262/83, de 16 de Junho, criou um regime específico de juros moratórios para as obrigações cambiárias ao estabelecer no seu art. 4º que “O portador de letras , livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais”.
Estes são os juros civis a que alude o art. 559º do C. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo DL 200-C/80, de 24 de Junho.
E se é verdade que o referido DL 262/83, alterando o art. 102º do C. Comercial, estabeleceu no seu § 3 que pode ser fixada por portaria uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais singulares ou colectivas, também não é menos verdade que isso só pode querer significar que foi intenção do legislador estabelecer, no que respeita aos juros moratórios, um regime distinto para as obrigações cambiárias - o do citado art. 4º.
E bem se compreende que seja assim, quer pela natureza dos títulos de crédito que consubstanciam tais obrigações e os princípios da abstracção e da literalidade que os enformam, quer pelo facto de a aplicação da referida taxa supletiva ser determinada pela natureza da actividade desenvolvida pelo credor e estar, por isso, intimamente ligada à relação jurídica causal ou subjacente à emissão do título de crédito cambiário.
De resto, sempre se dirá que esta orientação tornou-se pacífica com a publicação do Assento n.º 4/92, de 17 de Fevereiro In, DR. I-A série, nº. 290 , o qual fixou a seguinte doutrina. “ Nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº. 262/83, de 16 de Junho, e não a prevista nos nºs. 2 dos artigos 48º e 49º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”.
Isto porque considerou-se que, com a entrada em vigor do citado DL n.º 262/83, estes últimos preceitos legais, deixaram de vincular jure gentium o Estado Português, estando excluídos da nossa ordem interna por força da cláusula de recepção geral do direito internacional pactício na nossa ordem interna, consagrada no art. 8º da CRP.
E, a nosso ver, tal doutrina contínua válida e é de manter, em nada colidindo com a nova redacção dada ao §3 do art. 102º do C. Comercial pelo referido DL. n.º32/2003 Segundo o qual “os juros moratórios legais (...). relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça. .
Assim, estando em causa a execução de título cambiário, o direito de acção da exequente/agravante, portadora da livrança, apenas permite, no que concerne aos juros de mora, a exigência do seu pagamento à taxa legal fixada para os juros civis, à data do seu vencimento (4.10.2005), ou seja, 4% ao ano, nos termos do art. 559º do C. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo DL 200-C/80, de 24 de Junho, com referência à Portaria nº. 291/2003, de 8.04.”

Tal entendimento foi também o da Relação do Porto, no Acórdão de 29-05-2006 Processo nº 0652688, relatado pelo então Desemb. E hoje Consº Fonseca Ramos., onde se salienta: “Ademais os juros comerciais previstos no § 3ºdo art. 102º do C. Comercial só são de atender em acções declarativas se o credor for uma empresa comercial – cfr. Ac. da Relação de Évora de 18.3.1999, in CJ 1999, II, 264.”

Por idêntico caminho andou o Acórdão da Relação de Coimbra, de 15-03-2011 Proferido no processo 611/09.9T2AGD.C1, relatado pelo Desemb. Falcão de Magalhães., segundo cujo sumário: “Fundando-se a execução em livrança o exequente apenas pode exigir o montante do capital nela inscrito e os “juros legais” definidos no artº 559º, nº 1 do C. Civil, não lhe sendo lícito peticionar os juros convencionados no mútuo subjacente àquela livrança, ainda que desta conste que “titula esse mútuo”.”

Não se acolhendo, pois, as razões expendidas pela apelante, conclui-se que o despacho recorrido não violou as normas por ela indicadas, pelo que, improcedendo a apelação, deve o despacho ser confirmado.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo apelante – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

Notifique.

Guimarães, 08 de Outubro de 2015


José Amaral


Maria Dolores Sousa


Helena Melo






Sumário (artº 663º, nº 7, CPC):

Baseando-se a execução intentada pelo portador, contra o avalista, apenas numa livrança vencida e não paga, a taxa legal de juros de mora peticionada só pode ser, nela, de acordo com o artº 4º, do Decreto-Lei nº 262/83, de 16 de Junho, a civil (actualmente de 4%, de acordo com a Portaria nº 291/2003 vigente), e não a comercial prevista no parágrafo 3º, do artº 102º, do Código Comercial.