INJÚRIA
Sumário

O que é absolutamente necessário para se aquilatar se determinada palavra/expressão deve ser considerada injuriosa não são os dicionários mas sim o contexto em que as mesmas foram dirigidas.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

O arguido AA foi submetido a julgamento, no âmbito do qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (na parte que interessa):

“Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, julga-se a acusação pública parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:

a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal;

b) Condenar o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea c) e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, por cada um dos crimes;

c) Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz um montante total de 900,00 € (novecentos euros);”

Inconformado com a referida sentença, na parte em que absolveu o arguido dos crimes de injúria, dela recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. Foi deduzida acusação, sob forma de processo comum e perante de tribunal singular contra o arguido AA, imputando-lhe, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, a prática de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, 182.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, e de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea c) e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

2. Porém, o tribunal ad quo decidiu “Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal”

3. É desta parte da decisão de que se recorre, uma vez que o Ministério Público não se conforma com os fundamentos da mesma, impondo-se uma decisão diversa, no sentido de: ser dado como provado o facto 17. que constava na acusação pública e, em consequência que o facto g) seja expurgado dos factos dados como não provados; e, ser o arguido condenado pela prática dos crimes de injúria agravada pelos quais veio acusado.

4. Foram violadas pela sentença as seguintes normas: artigo 127.º do Código de Processo Penal; e artigos 181 e 184.º do Código Penal.

5. Nos termos do artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, vem o Ministério Público, em cumprimento do seu ónus enquanto recorrente indicar:

6. Os Concretos pontos de facto que considera incorretamente como julgados [al. a)]: Ponto g), da matéria de facto dado como não provada: “O arguido sabia, ainda, que as expressões que utilizou e dirigiu aos Militares BB e CC, mencionadas nos factos n.ºs 8 e 10 (quanto à expressão “palhaços”), eram adequadas e susceptíveis de ofender, como ofenderam, a honra e a consideração não só pessoais, mas também profissionais, enquanto Militares e membros de uma força pública, em especial, no exercício das suas funções, qualidade que bem conhecia, pelo facto de aqueles se encontrarem uniformizados e em pleno exercício das suas funções e, não obstante esse conhecimento, quis proferi-las.”

7. As Concretas provas que impõem decisão diversa: [al. b)]: As regras da experiência comum – artigo 127.º do Código de Processo Penal.

8. O Ponto de facto que deveria constar na matéria dada como provada: Facto 17 da acusação: “O arguido sabia, ainda, que as expressões que utilizou e dirigiu aos Militares BB e CC, mencionadas no artigo 10.º e 12.º, eram adequadas e suscetíveis de ofender, como ofenderam, a honra e a consideração não só pessoais, mas também profissionais, enquanto Militares e membros de uma força pública, em especial, no exercício das suas funções, qualidade que bem conhecia, pelo facto de aqueles se encontrarem uniformizados e em pleno exercício das suas funções e, não obstante esse conhecimento, quis proferi-las”.

9. Em sede de sentença, quanto à motivação que levou o tribunal a dar como não provado consta a seguinte fundamentação “O facto g) deu-se como não provado, uma vez que se considera, através das declarações do próprio arguido, que o mesmo não pretendia, com as expressões “deficientes” e “palhaços”, ofender a honra e consideração dos Militares.”

10. Em suma, além de se basear nas declarações do arguido, entendeu o Tribunal que que os militares da GNR ofendidos, estão sujeitos à crítica objectiva por parte da generalidade dos cidadãos, o que leva possam ser proferidas expressões “rudes e indelicadas” contra os mesmos.

11. Atendendo ao momento de tensão e à lesão provocada no joelho do arguido, considerou o tribunal ad quo que as expressões, embora grosseiras, deveriam ser inseridas no âmbito das críticas a que as forças militarizadas estão sujeitas, especialmente, em momentos de tensão, não tendo as mesmas gravidade suficiente para preencher os elementos objectivos do tipo legal em causa.

12. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não podemos concordar com o entendimento do tribunal, impondo-se uma decisão diversa e compatível com as regras da experiência comum, nomeadamente com o sentimento de honra da generalidade da população, com desvalor intrínseco das palavras proferidas pelo arguido aos militares da GNR e com a suscetibilidade do homem médio considerar que tais palavras dirigidas por terceiro à sua pessoa são ofensivas e uma forma de tratamento intolerável.

13. Por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, sendo tal raciocínio, no caso concreto, de simples apreciação, já que as expressões utilizadas são comuns em todo o território nacional, pertencendo ao “arsenal” de insultos conhecidos pela generalidade da população.

14. Quando o arguido apelidou os militares da GNR de “deficientes”, “palhaços” e aludiu à sua cabeça como “cornos” excedeu tanto o direito à crítica que assiste aos cidadãos (in casu, ao arguido) relativamente à intervenção dos órgãos policiais bem como o “poder de encaixe” que tais membros das forças de segurança (in casu, os ofendidos) devem estar dotados, partindo para a ofensa pessoal dos ofendidos.

15. Tais palavras, na forma em que foram dirigidas, ultrapassam a mera descortesia e deselegância, não se encaixando em qualquer plano de falta de instrução e/ou educação do arguido, nem correspondendo a qualquer expressão ou vernáculo eufemístico português de menor gravidade.

16. Com a expressão “deficiente”, o arguido quis claramente colocar em causa as capacidades físicas e, sobretudo, as intelectuais dos militares da GNR, justificando a intervenção dos mesmos com um eventual défice de cognição intelectual ou de raciocínio que os levou a actuar erraticamente.

17. O arguido apelidou também os militares da GNR de “palhaços”, resultando das regras da experiência comum que tal expressão é marcadamente ofensiva, pertencendo ao leque de insultos mais gravosos e populares da língua portuguesa actual, sendo a mesma, devido à forte depreciação que acarreta, susceptível de ferir a honra de qualquer pessoa, seja ela civil ou militar.

18. Os militares da GNR não são palhaços, nem exercem qualquer profissão lúdica. São agentes do Estado dotados de autoridade pública, devendo a sua pessoa ser respeitada tanto quando estão em exercício de funções como quando estão fora de serviço.

19. Quanto à expressão “vou-te partir os cornos”, considera-se que ao arguido aludir, ainda de forma indirecta, que os militares da GNR tinham “cornos”, o mesmo incorreu além da prática de dois crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a), e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, também na prática dos 2 crimes de injúria agravada pelo qual foi absolvido.

20. Ser militar da GNR não significa estar sujeito ao livre escárnio da população enquanto está fardado e em exercício de funções, muito menos por parte daqueles com que os militares interagem directamente e devem fazer valer a sua autoridade.

21. Dificilmente se consegue estabelecer algum tipo de autoridade relativamente a alguém que apelida directa e presencialmente de “palhaço” o agente do Estado.

22. O exercício de funções públicas por parte dos ofendidos não pode ser justificação para a conduta do arguido, como também não poderia, aliás, caso o arguido dirigisse tais expressões a outro agente do Estado lato sensu (como por exemplo, um médico, professor, magistrado, oficial de justiça, etc).

23. Consideramos que tal interpretação do artigo 181.º do Código Penal efecutada pelo tribunal ad quo, não se compadece com a ratio legis do preceito legal, sendo de reforçar que a circunstância de praticar tal crime na pessoa de um militar da GNR é, ainda, uma agravante e não uma causa de exclusão da ilicitude atípica.

24. Laborou em erro o tribunal ad quo quando decidiu, baseando-se nas regras da experiência comum e nas declarações do arguido dar como não provado a factualidade impugnada, uma vez que tal posição é contrária a tais regras, ao entendimento do “homem médio” e ao sentimento da generalidade da população.

25. As palavras e expressões utilizadas contra os referidos militares e o tom elevado com que as mesmas foram ditas evidenciam o tom vexatório e ofensivo que não permite, de modo algum, considerar-se como socialmente adequadas – ou penalmente insignificantes - de serem reproduzidas contra figuras que representam o poder coercitivo do Estado de Direito e que fiscalizam a ordem pública.

26. É indesmentível que o arguido forçosamente queria e sabia – e não podia ignorar – que ao dirigir aos militares da GNR as expressões que dirigiu ofendia aqueles militares, na sua honra, consideração pessoal e social, enquanto elementos das forças de segurança no exercício das suas funções.

27. Impondo-se que a matéria de facto dada como provada e como não provada em sede de sentença seja alterada, no sentido de se dar como provado o facto 17. que constava na acusação pública.

28. Pese embora sejam conhecidas pelo ora signatário a crescente “tendência” jurisprudencial de alargar o leque de expressões que, ainda que ofensivas para a maioria da população, não se inserem no tipo legal em causa, dessa forma restringindo o âmbito de aplicação da norma, considera-se que, ainda assim, em consequência da alteração à matéria de facto defendida em sede do presente recurso, o arguido deverá ser condenado pela prática dos crimes de injúria agravada pelos quais foi absolvido em sede de sentença, uma vez que a sua conduta é susceptível de preencher os elementos objectivos e subjectivos do tipo penal em causa.

29. Tendo em conta as finalidades preventivas gerais e especiais em apreço nos presentes autos, e, em especial, à ausência de antecedentes no registo criminal do arguido, consideramos como justa, adequada, suficiente e proporcional, apta a assegurar as finalidades preventivas em causa nos presentes autos e compatível com a culpa do recorrente, a aplicação de uma pena de multa pela prática de ambos os crimes, devendo ser preferida à pena de prisão.

Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e, em consequência, ser a sentença recorrida parcialmente revogada e substituída por outra na qual conste nos factos dados como provados o facto 17. da acusação pública, expurgando o facto g) dos factos dados como não provados e, em consequência, que condene o arguido pela prática de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, o que se requer aos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora.

Assim sendo feita a costumada Justiça.”

#

O arguido respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1.ª

Nos termos do artigo 272.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos e as medidas de polícia são as previstas na lei.

2.ª

De acordo com o disposto nos artigos 272.º n.º 3 in fine e 18.º da Constituição da República Portuguesa, a GNR deve defender e garantir os direitos fundamentais do arguido, designadamente, o direito à integridade física e psíquica ( artigo 25.º n.º 1 da Constituição) , o direito à liberdade e à segurança ( artigo 27.º n.º 1 da Constituição) e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade que postula a liberdade geral de acção (artigo 26.º n.º 1 da Constituição).

3.ª

Ao solicitarem a identificação do arguido, os elementos da GNR tinham que observar o disposto no artigo 1.º da Lei n.º 5/95 de 21/02, mas não cumpriram o disposto nos números 1 e 2 do referido artigo 1.º , pelo que a solicitação é nula, era nula, nos termos do artigo 1.º n.º 3 da referida Lei n.º 5/95 de 21/06.

4.ª

Face a tal nulidade da solicitação, o arguido tinha o direito de resistência contra tal solicitação, nos termos do disposto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa.

5.ª

A patrulha da GNR era comandada, pelo guarda BB, que foi quem elaborou o auto de notícia; constando do mesmo que passou, junto ao Bar …, na …, “tendo visualizado junto à sua entrada cerca de 10 indivíduos a consumir bebidas alcoólicas”.

6.ª

Um desses indivíduos era o arguido, mas não estava a consumir nenhuma bebida alcoólica.

7.ª

A entrada do Bar, a alegada via pública, era a esplanada do Bar; esplanada essa que fica, na frente, no passeio contiguo à porta de entrada do Bar, onde essas 10 pessoas, incluindo o arguido, estariam a consumir essas alegadas bebidas alcoólicas.

8.ª

O funcionamento da esplanada estava autorizada nos termos do artigo 12.º-A da Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021 de 27/11, que foi aditado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 2-A/2022 de 7/1.

9.ª

O guarda BB escreveu que solicitou a identificação, ao arguido, porque estava a beber bebidas alcoólicas na via pública, mas é um falso justificativo porque, além do arguido já não estar a beber nenhuma bebida, a “via pública” era a esplanada do Bar, local onde se podiam consumir bebidas; razão por que o fundamento alegado para justificar a solicitação da identificação é falso.

10.ª

Apesar da nulidade da solicitação da identificação, nos termos do disposto no artigo 1.º n.ºs 1, 2 e 3 da Lei n.º 5/95 de 21/02 e do direito de resistência do arguido, nos termos do artigo 21.º da Constituição da República, o guarda CC agarrou o arguido por trás, deu-lhe uma joelhada, provocou-lhe uma lesão no joelho, derrubou-o para o chão, algemou-o e deixou-o no chão a contorcer-se com dores.

11.ª

Perante a lesão dos seus direitos, sentindo-se humilhado, amesquinhado, sofrendo dores intensas, o arguido disse que os elementos da GNR eram deficientes, o que configura o seu direito de critica, de protesto, de indignação em reacção à deficiente actuação dos elementos da GNR.

12.ª

Apesar do uso da palavra deficientes serviu para o arguido criticar e protestar contra a lesão dos seus direitos e da violação do disposto nos artigos 272.º n.ºs 1 e 2, 27.º n.º1, 25.º n.º 1, 26.º n.º 1 e 21.º da Constituição da República Portuguesa e 1.º n.ºs 1, 2 e 3 da Lei n.º 5/95 de 21/02, o guarda BB deteve-o, privando-o do seu direito à liberdade.

13.ª

O arguido foi condenado, por 2 crimes de ameaça agravada, por ter proferido a expressão: “vou-te partir os cornos”

14.ª

Esta expressão está proferida no singular, motivo pelo qual só pode ser – só foi – dirigida a uma pessoa, que foi o elemento da GNR CC, que o agarrou o arguido por trás, lhe desferiu uma joelhada, que o atirou ao chão, que o algemou, que lhe provocou uma lesão no joelho, que lhe provocou intensas dores, que o deixou sentado no chão a contorcer-se com dores, que o humilhou e amesquinhou.

15.ª

De acordo com as regras da lógica e da experiência comum, tem que se considerar que a expressão “ vou partir-te os cornos” , no singular, foi dirigida ao guarda CC e não ao guarda BB, pelo que deve ser absolvido do crime de ameaça agravada na pessoa deste.

16.ª

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, página 979, a expressão “Partir/Quebrar os cornos a alguém” significa “dar uma sova” e, na página 3460, “Sova” significa “dar uma tareia, dar uma surra”.

17.ª

Embora o arguido não tivesse interposto recurso da sentença, o Tribunal pode e deve, com fundamento no poder/dever que lhe confere o artigo 410.º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal, absolver o arguido do crime de ameaça na pessoa do guarda BB.

18.ª

O Tribunal decidiu absolver o arguido de 2 crimes de injúria agravada p. e p. pelos artigos 181.º n.º 1, 184.º e 132.º n.º 2 alínea l), todos do Código Penal.

19.ª

Considerou não provado o facto 17 da acusação, que constitui o ponto de facto g) da sentença.

20.ª

Defende o Ministério Público que o Tribunal violou os artigos 127.º do CPP e os artigos 181.º e 184.º do Código Penal, ao considerar não provado o referido ponto de facto g).

21.ª

Contudo, com o devido respeito, o Ministério Público não deu cumprimento ao disposto no artigo 412.º n.º 3 alínea b) do CPP, porque não indicou as concretas provas que impõem decisão diversa, visto que se limita a indicar “as regras da experiência comum”, que nem indica quais sejam, sendo que estas não são provas.

22.ª

O recorrente tinha que indicar as passagens da gravação que impõem decisão diversa, motivo por que, não o fazendo, o recurso deve ser rejeitado.

23.ª

O contexto em que foi utilizada a palavra “deficientes” é o que consta do n.º 1 supra desta motivação.

24.ª

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, na página 1083 , lê-se que “deficiente” significa “ Que é insuficiente; que tem falta, carência ou deficiência do que é necessário, normal ou requerido”.

25.ª

A função foi exercida de forma deficiente, ou seja, de forma insuficiente, muito aquém do que é exigido pelo Direito (vide o n.º 1 supra da motivação), pelo que os elementos da GNR foram deficientes /insuficientes na forma como trataram o arguido, como actuaram em relação a ele.

26.ª

O arguido limitou-se a exercer o seu direito de critica, de protesto, de indignação contra a lesão dos seus direitos e das normas jurídicas que os protegem.

27.ª

Conforme consta das conclusões 1.ª a 12.ª, os elementos da GNR não respeitaram os princípios e as normas jurídicas a que estavam vinculados, designadamente, os artigos 272.º e 18.º da Constituição da República.

28.ª

Tinham, também, que respeitar os direitos fundamentais do arguido, designadamente, o direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º n.º 1 da Constituição), o direito à integridade física e psíquica (artigo 25.º n.º 1 da Constituição) e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º da Constituição).

29.ª

Tinham, igualmente, que observar o disposto no artigo 1.º da Lei n.º 5/95 de 21/02.

30.ª

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, na página 2724, pode ler-se que “palhaço” significa “pessoa que parece não ter princípios reguladores do seu comportamento, que toma atitudes contraditórias conforme as situações”.

31.ª

A expressão “ vou-te partir os cornos” está no singular, motivo pelo qual só está dirigida a uma pessoa.

32.ª

A língua tem um valor de uso, de significação, que não pode ser contornado, porquanto é, nessa base, que os falantes da língua comunicam entre si.

33.ª

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, na página 979, a expressão “Partir/Quebrar os cornos a alguém” significa “dar uma sova” e, na página 3460, “Sova” significa “dar uma tareia, dar uma surra”.

34.ª

É notório que a expressão não tem a carga ofensiva que lhe atribui o Ministério Público.

35.ª

O Tribunal interpretou e aplicou bem o direito, em face da situação concreta, visto que considerou todo o contexto, ou seja, o facto total.

36.ª

Ponderou os actos praticados pelo arguido; mas, também, os actos praticados pelos elementos da GNR.

37.ª

O que o arguido fez tem que ser reconduzido ao seu direito de crítica, de indignação, de revolta, de reacção ao espezinhamento dos seus direitos, designadamente, do seu direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º n.º 1 da Constituição), à integridade física e integridade psíquica (artigo 25.º n.º 1 da Constituição) e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade ( artigo 26.º n.º 1 da Constituição).

38.ª

O arguido não quis ofender os elementos da GNR.

39.ª

Quis exprimir o seu protesto, a sua indignação contra o desrespeito dos seus direitos, contra a inobservância do artigo 1.º da Lei n.º 5/95 de 21/02, também, porque estava com dores intensas.

40.ª

Foi humilhado, vexado, amesquinhado.

41.ª

O comportamento do arguido consubstancia uma crítica à actuação injustificada, injusta e ilegal de que foi vítima.

Nestes termos, far-se-á JUSTIÇA!”

#

Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.

#

APRECIAÇÃO

Quanto às questões a apreciar importa referir o seguinte:

O único recurso que existe foi o interposto pelo Ministério Público, solicitando a alteração da matéria de facto (o facto não provado sob a al. g) deve ser considerado como provado) e, em consequência, deve o arguido ser condenado também pela prática de dois crimes de injúria conforme lhe era imputado.

Apesar de não ter recorrido, o arguido na resposta à motivação de recurso, entende que “… o Tribunal pode e deve, com fundamento no poder/dever que lhe confere o artigo 410.º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal, absolver o arguido do crime de ameaça na pessoa do guarda BB”.

Entende o arguido que estando provado que o arguido proferiu a expressão “vou partir-te os cornos”, no singular, a mesma deve ser considerada dirigida apenas ao guarda CC e não também ao guarda BB.

Ora, se é certo que os vícios da sentença previstos no nº 2 do artº 410º do C.P.P. são do conhecimento oficioso, não é menos certo que o arguido não recorreu, designadamente impugnando a matéria que se considerou provada sob o nº 10, na parte em que se refere que a referida expressão (e as outras) foram dirigidas aos dois guardas.

Por outro lado, não se vislumbra qualquer contradição entre a circunstância de a expressão ter sido proferido no singular e ter-se considerado que a mesma era dirigida aos dois guardas, até porque nada do que o arguido alega na conclusão 14ª, de modo a ter que se considerar que a referida expressão foi dirigida apenas ao guarda CC, consta no elenco dos factos provados.

Assim sendo, o que que há apreciar é apenas o que é delimitado pelas conclusões do recurso interposto pelo Ministério Público, conforme acima se referiu.

#

A decisão de facto contida na sentença recorrida é do seguinte teor:

“A. Factos provados

Da produção de prova efectuada na audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

Da acusação pública

1. No dia 30 de Janeiro de 2022, pelas 02h10, uma Patrulha da GNR de …, formada pelos Militares BB e CC, dirigiu-se ao estabelecimento de restauração e bebidas, denominado “Bar …”, sito na estrada de …, na ….

2. Os referidos Militares da GNR dirigiram-se, uniformizados, à entrada do aludido estabelecimento, com vista a averiguar se o mesmo ainda se encontrava aberto, uma vez que o seu horário de funcionamento terminava às 02h00 e ainda se encontravam vários indivíduos a consumir bebidas alcoólicas no local.

3. Fizeram-no no exercício das suas funções de segurança da ordem e tranquilidades públicas e de cumprimento da legalidade.

4. Nessa ocasião, o arguido encontrava-se na via pública, em frente ao aludido estabelecimento comercial.

5. De seguida, aqueles Militares da GNR solicitaram-lhe a sua identificação.

6. Em resposta, o arguido disse que não se identificava.

7. Perante a recusa reiterada de o arguido se identificar e de forma a evitar uma escalada de violência física, os Militares da GNR algemaram-no, para que pudessem proceder à sua identificação.

8. Após, o arguido, dirigindo-se aos Militares BB e CC, e proferiu as seguintes expressões “vocês são uns deficientes”.

9. De imediato, foi-lhe dada ordem de detenção, foi conduzido à viatura da GNR e posteriormente transportado até ao Posto Territorial da GNR da …, sito na Rua … na ….

10. No momento em que se encontrava no interior das instalações daquele Posto Territorial da GNR, o arguido, dirigindo-se aos Militares BB e CC, proferiu diversas vezes, as seguintes expressões “vou-te partir os cornos”, “vai para o caralho”, “vou fodê-los”, “palhaços” e “estás fodido”.

11. Posteriormente, o arguido foi transportado até ao Hospital …, sito em …, para receber assistência médica.

12. Ali chegado, quando se encontrava no interior daquelas instalações hospitalares, o arguido, dirigiu-se ao militar CC e proferiu as seguintes expressões “deixa, à noite logo aparecem lá à tua casa”.

13. Em consequência das expressões proferidas pelo arguido, do tom que utilizou e da maneira como o fez, os Militares da GNR BB e CC sentiram-se ofendidos na sua honra e consideração pessoal e profissional e sentiram ainda receio pela sua integridade física.

14. O arguido conhecia o conteúdo e o sentido das expressões que proferiu na ocasião supra descrita, as quais pretendia que fossem ouvidas por Militares da GNR BB e CC, o que sucedeu.

15. O arguido proferiu as expressões referidas nos factos n.ºs 10 e 12, que dirigiu aos Militares BB e CC, em tom sério, intimidatório, de forma exaltada e de molde a fazer crer que estava firmemente decidido a concretizar tais palavras.

16. O arguido sabia que tais afirmações, pelo seu teor e pela forma como foram proferidas, eram adequadas a fazer os aludidos Militares recear, como, efectivamente, sucedeu, pela sua integridade física e, todavia, quis proferi-las.

17. Ao dirigir aos Militares BB e CC, as expressões acima referidas, o arguido estava ciente da qualidade de Militares da GNR dos mesmos e que, aquando dos factos acima descritos, estes se encontravam no exercício das suas funções e, todavia, quis actuar do modo descrito.

18. O arguido actuou de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiram de as adoptar.

Da contestação

19. Em consequência da algemagem, o arguido sofreu uma lesão no joelho, que lhe provocou fortes dores.

Das condições pessoais e socioeconómicas

20. O arguido é consultor imobiliário.

21. Aufere uma remuneração variável, em função das vendas.

22. Vive em casa própria, sozinho.

Dos antecedentes criminais

23. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

*

B. Factos não provados

Da produção de prova efectuada na audiência de julgamento não resultaram provados os seguintes factos:

Da acusação pública

a) Na circunstância referida em 4., o arguido estava a consumir bebidas alcoólicas, e encontrava-se muito agitado e agressivo.

b) De seguida, o militar BB questionou o arguido se o mesmo se encontrava bem e se precisava de algum auxilio por parte da patrulha da GNR.

c) Em reacção, o arguido proferiu, de forma rude, contra os referidos Militares da GNR as expressões “não é preciso nada, o que é que estão aqui a fazer ?!”.

d) Os Militares da GNR solicitaram a identificação do arguido porque o mesmo se encontrava a consumir bebidas alcoólicas na via pública.

e) Na circunstância referida em 6., o arguido esbracejava furiosamente.

f) Na circunstância referida em 12., o arguido dirigiu-se também ao Militar BB.

g) O arguido sabia, ainda, que as expressões que utilizou e dirigiu aos Militares BB e CC, mencionadas nos factos n.ºs 8 e 10 (quanto à expressão “palhaços”), eram adequadas e susceptíveis de ofender, como ofenderam, a honra e a consideração não só pessoais, mas também profissionais, enquanto Militares e membros de uma força pública, em especial, no exercício das suas funções, qualidade que bem conhecia, pelo facto de aqueles se encontrarem uniformizados e em pleno exercício das suas funções e, não obstante esse conhecimento, quis proferi-las.

Da contestação

h) A certa altura, porque o arguido virou a cabeça para o lado visto que estava numa posição incómoda, o Militar CC disse “estás a resistir” e deu-lhe uma joelhada na perna do arguido, atingindo-o no joelho, torcendo-lhe o mesmo.

i) O arguido não estava a consumir nenhuma bebida, no momento em que os Militares da GNR o abordaram.

j) O arguido não teve consciência do que fez ou disse.

*

Consigna-se que os restantes factos (ou partes deles) constantes da acusação pública e da contestação, não foram dados como provados, porquanto continham expressões conclusivas, de direito e/ou eram irrelevantes para a decisão a proferir.

*

C. Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A decisão sobre o elenco dos factos dados como provados e não provados, resulta da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento (cfr. artigo 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), tendo a mesma sido apreciada à luz das regras da lógica e da experiência comum, segundo o princípio da livre apreciação da prova, conforme o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Ora vejamos.

O arguido esteve presente na audiência de julgamento e prestou declarações que se mostraram, em parte, objectivas, coerentes, corroboradas por parte das testemunhas por si arroladas.

As testemunhas BB e CC, ambos Militares da GNR, prestaram depoimento também de forma clara, objectiva e, por isso, credível, sendo que foram coincidentes e coerentes entre si.

Quanto à testemunha DD, Bombeiro, a mesma prestou, igualmente, um depoimento claro e preciso, sendo também credível.

No que diz respeito às testemunhas EE, namorada do arguido, FF, amigo do arguido, e GG, funcionária do “Bar …”, considera-se, igualmente, que os seus depoimentos foram, no essencial (exceptuando uma parte a que se fará referência), claros, objectivos, coerentes e, por isso, credíveis.

Primeiramente, refira-se que o arguido admitiu a prática dos factos n.ºs 8 e 10 (quanto às expressões “vai para o caralho” e “palhaços”).

Ademais, confirmou igualmente os factos n.ºs 9 e 11.

No que diz respeito aos factos n.ºs 1 a 4, 10 (na restante parte que o arguido não admitiu), 12 e 13, os mesmos provaram-se através dos depoimentos do Militares da GNR, sendo que, nenhuma outra prova produzida nos presentes autos infirmou esta parte dos factos.

Diga-se ainda, quanto à expressão “vou-te partir os cornos”, constante do facto n.º 10, que a mesma foi presenciada pela testemunha DD, que já se encontrava no Posto, e que a reproduziu espontaneamente e ipsis verbis, em sede de audiência de julgamento.

Quanto aos factos n.ºs 5, 6 e 7, deram-se os mesmos como provados através, igualmente, dos depoimentos dos Militares da GNR, apesar de o arguido os ter negado.

Assim, o arguido mencionou que os Militares apenas lhe solicitaram a sua identificação já no Posto Territorial.

A versão do arguido, no que concerne a estes factos, não tem outro suporte probatório, nomeadamente, nos depoimentos das outras testemunhas presentes, EE e FF, que, nesta parte, não foram sequer coerentes entre si.

Desta forma, considera-se que as declarações do arguido, quanto à identificação, não foram suficientes para contrariar a versão apresentada pelos Militares da GNR, ainda que não se tenha provado o motivo pelo qual foi solicitada a identificação, sendo que não se provou o facto d).

Quanto aos factos n.ºs 14 a 18, o Tribunal formou a sua convicção através das regras da experiência comum, conjugadas com os restantes factos que se deram como provados.

O facto n.º 19 provou-se, além das declarações do arguido, bem como do depoimento das testemunhas EE e FF, e ainda através dos documentos por si juntos aos autos, em sede de contestação e, posteriormente, no requerimento datado de 14-10-2022.

No que diz respeito aos factos n.ºs 20 a 22, os mesmos provaram-se através do teor das declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento, sendo que não existem, nesta parte, razões para crer que as mesmas não sejam verdadeiras, uma vez que foram claras e espontâneas.

Refira-se que o arguido não soube precisar o montante mensal, ainda que médio, que aufere, tendo, após se ter requisitado um esforço nesse sentido, mencionado que nos últimos seis meses auferiu um montante total de cerca de 3.500,00 €, o que não mereceu credibilidade, atendendo às regras da experiência comum.

Assim, referiu o arguido que aufere montantes consoante os imóveis que vende, sendo que nada vender, nada recebe, o que está de acordo com o que acontece comummente na sua profissão.

Posto isto, não se concebe de que forma o arguido poderia ter vendido um ou mais imóveis e ter recebido a comissão de apenas 3.500,00 €, o que se mostra desajustado dos valores habitualmente praticados no mercado, sendo que o mesmo também não juntou aos autos qualquer prova documental nesse sentido.

Por este motivo, não se deu como provado que o arguido auferiu, nos últimos seis meses, a quantia total de cerca de 3.500,00 €.

Por fim, o facto provado n.º 23 resulta da prova documental junta aos autos, mais concretamente, do teor do Certificado do Registo Criminal do arguido (junto no dia 17-10-2022).

Quanto aos depoimentos das testemunhas HH (Enfermeiro) e II (Bombeiro), os mesmos não tiveram relevância para a prova dos factos, porquanto aqueles já não se recordavam, em concreto, das expressões que ouviram o arguido dirigir aos Militares da GNR.

*

No que diz respeito aos factos não provados, veja-se o seguinte.

Os factos a) a c) e e) não se provaram pelos seguintes motivos.

Os Militares da GNR mencionaram, ambos, todos estes factos.

Contudo, também resultou dos depoimentos de ambos os Militares que o arguido estaria a “mandar bocas” para os mesmos, motivo pelo qual se dirigiram a este.

Posto isto, considera-se que a primeira abordagem ao arguido pelos Militares terá ocorrido em virtude dessa situação, e não pelo facto de o arguido estar a consumir bebidas alcoólicas.

Quando ao facto de o arguido estar a consumir bebidas alcoólicas, ambos os Militares da GNR referiram que aquele tinha na mão uma garrafa de cerveja, quando estes o abordaram.

Porém, as testemunhas EE e FF mencionaram, de forma convicta, que nenhum deles, incluindo o arguido, tinha nenhuma bebida/garrafa na mão.

Neste aspecto, subsistindo dúvidas sobre este facto, porque as versões apresentadas pelas testemunhas da acusação e as da defesa foram contraditórias, e igualmente seguras, sendo uma dúvida séria e razoável, tem que ser resolvida a favor do arguido, por respeito a um dos princípios basilares em matéria de direito penal, o princípio da presunção da inocência, na vertente da regra do in dubio pro reo.

Destarte, veja-se que “não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte da Constituição da República Portuguesa) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-03-2009, relator: Soreto de Barros, processo n.º 07P1769, disponível in www.dgsi.pt.

Contudo, diga-se que esta dúvida, sobre se o arguido estava a consumir bebidas alcoólicas, não permite afirmar que o mesmo não estava a consumi-las, conforme por si afirmado, pelo que se deu como não provado o facto i).

O facto d) deu-se como não provado porque se deu, igualmente, como não provado o facto a), sendo que este estava na decorrência daquele.

No que concerne ao facto f), o Militar CC mencionou que o facto n.º 12 foi dirigido apenas a si, uma vez que era este quem estava perto do arguido nessa ocasião, motivo pelo qual se deu como não provado que estas expressões tenham sido também dirigidas ao Militar BB.

O facto g) deu-se como não provado, uma vez que se considera, através das declarações do próprio arguido, que o mesmo não pretendia, com as expressões “deficientes” e “palhaços”, ofender a honra e consideração dos Militares.

No que diz respeito ao facto h), apesar de o arguido o ter declarado, entende-se que não são credíveis, nesta parte, as suas declarações, sendo que o mesmo afirmou que estava virado para a parede, e ainda assim disse qual o joelho do Militar que atingiu o seu joelho, deliberadamente.

Ora, estando o arguido de costas para o Militar, nunca conseguiria saber qual o joelho deste que o teria atingido.

Ademais, o Militar CC, que procedeu à algemagem, foi muito claro nesta parte, adiantando que, em situações em que há alguma resistência por parte dos arguidos, por vezes é necessário fazer alguma força, sendo situações que se desenrolam muito rápido.

Neste aspecto, atribuiu-se mais credibilidade ao Militar CC, porque pareceu mais espontâneo e sincero, pelo que se deu este facto como não provado.

Para concluir, o facto j) não se provou, uma vez que não se considera que, apesar das dores sentidas pelo arguido, o mesmo não estivesse consciente do que estava a fazer ou dizer.

Assim, ainda que estivesse a sentir fortes dores, sabia que estava perante Militares da GNR, uniformizados e no exercício das suas funções, não lhe tirando, essas dores, a sua liberdade, consciência e voluntariedade.”

#

Entende o recorrente que a matéria da al. g) dos factos não provados deve ser considerada provada, pois que as palavras “deficientes” e “palhaços” dirigidas pelo arguido aos guardas da G.N.R., tendo em conta as regras da experiência comum, não podem deixar de ser consideradas como ofensivas da honra ou consideração dos mesmos.

Por outro lado, entende também o recorrente que a expressão “vou-te partir os cornos”, para além de consubstanciar uma ameaça, conforme foi entendido na sentença recorrida, contem também uma injúria, pois que imputa aos guardas que os mesmos têm cornos.

Ora, desde logo quanto a esta última pretensão do recorrente, parece ser óbvio a sua falta de razão.

Com efeito, a evidente inexistência de cornos na cabeça dos srs. guardas leva a que, sem necessidade de mais considerações, a imputação indirecta que os mesmos os possuem seja completamente inócua.

Quando se profere a expressão em causa, evidentemente o que se pretende é ameaçar com agressão física e não afirmar que o “ameaçado” tem cornos.

Já quanto às duas palavras – “deficientes” e “palhaços” – a questão é mais complicada.

Escreveu-se a este propósito na sentença recorrida:

“As expressões, dirigidas aos Militares da GNR – deficientes e palhaços -, não obstante serem desrespeitosas, sem dúvida, entende-se que não são suficientes para assumirem dignidade penal, e, assim, preencherem o crime de injúria.

Note-se que, estas expressões foram dirigidas aos Militares num momento de tensão, após o algemagem, e quando se encontrava sob fortes dores no joelho (cfr. facto n.º 19).

Assim, ainda que sejam expressões grosseiras, considera-se que se devem inserir no âmbito das críticas a que as forças militarizadas estão sujeitas, em momentos de tensão, não atingindo gravidade suficiente para verificar este tipo legal de crime.

Posto isto, considera-se que estas expressões não são ofensivas da honra ou consideração dos Militares do GNR, não preenchendo, desta forma, o tipo legal objectivo do crime de injúria.

Destarte, entende-se que a conduta do arguido não preenche o elemento típico objectivo do crime de injúria.”

Dispõe o artº 180º, nº 1, do C.P. que comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”.

Trata-se de atribuir responsabilidade criminal a quem colocar em crise a honra e/ou consideração de alguém, direito esse que é protegido nos termos do artº 70º, nº 1, do Cód. Civil - “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” -, do artº 26º, nº 1, do Constituição da República Portuguesa – “a todos é reconhecido ao direito ao bom nome e reputação” – e do artº 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10/12/1948 - “ninguém sofrerá ataques à sua honra e reputação”.

A honra é o conjunto de valores éticos de cada pessoa, que tem que ver com a sua dignidade subjectiva, e a consideração tem que ver com o reflexo nos outros dessa dignidade, ou seja, a forma como os outros consideram cada pessoa. (assim: Comentário Conimbricense ao Cód. Penal, I, pág. 607 e Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, pág. 79).

É por todos aceite que “o crime de difamação é um crime de perigo abstracto-concreto, isto é, um crime em que basta a possibilidade de ofensa à honra e consideração, sem necessidade de concretização do perigo, mas em que tal perigo terá de ser concretamente possível” – Ac. da Rel. de Coimbra de 13/6/01, C.J., 3, 53 (no mesmo sentido, entre outros: Acs. da Rel. de Coimbra de 25/2/98, C.J., I, 57 e de 12/7/00, IV, 46, da Rel. de Évora de 23/6/98, C.J., III, 287 e da Rel. do Porto de 2/3/05, C.J., 2, 201).

Afastemos desde logo as considerações linguísticas feitas pelo arguido na sua resposta ao recurso, com apelo ao dicionário.

Com efeito, e como se considerou na sentença recorrida, não restam dúvidas que nas circunstâncias em que foram proferidas as referidas palavras, as mesmas são desrespeitosas para com os srs. guardas. Certamente que se o arguido pretendesse criticar a conduta dos srs. guardas por ser “deficiente” não lhe chamaria “deficientes”. Tal como certamente não lhes pretendia transmitir que os mesmos eram do tipo de “pessoa que parece não ter princípios reguladores do seu comportamento, que toma atitudes contraditórias conforme as situações”.

O que é absolutamente necessário é analisar não os dicionários mas sim o contexto em que as expressões foram dirigidas.

É inquestionável que se tem registado nos últimos tempos um certo alargamento do que se costuma apelidar de liberdade de expressão, na dicotomia com honra e consideração, designadamente quando estão em causa forças policiais no exercício das suas funções, como é o caso.

É inquestionável que a liberdade de expressão é um bem fundamental, com consagração no artº 10º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Igualmente tem consagração no artº 37º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, o qual, na parte que nos interessa, dispõe: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio …”

Parece-nos, desde logo, duvidoso que a liberdade de expressão tenha algo a ver com o que está em causa nestes autos. A liberdade de expressão tem mais que ver com a liberdade de expressar o pensamento (neste caso seria pela palavra) e não nos parece que proferir as expressão em causa tenha que ver com a divulgação de um qualquer pensamento.

Mas mesmo que assim não se entenda, é também inquestionável que a liberdade de expressão tem limites, desde logo referidos no nº 2 do artº 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem:

“ O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.” (realce nosso)

Terá que ser encontrado, pois, um justo equilíbrio entre o nº 1 e o nº 2 do referido artº 10º

A questão está em como é que deve ser ponderado esse equilíbrio, não por referência a uma abstracção, mas tendo em conta o caso concreto que está em causa.

Tem sempre que se considerar quem é que diz as palavras (na terminologia do artº 181º do C.P.), a quem são dirigidas, qual a relação que existe entre elas, em que zona do país é dirigida, em que meio cultural e/ou social se insere.

É também incontrovertido que as palavras proferidas não encerram qualquer imputação de factos.

O que está em causa é saber se o arguido ao ter proferida as referidas palavras afectou de tal forma a honra ou a consideração dos srs. guardas que merece censura penal.

Conforme consta no nº 1 do artº 181º do Cód. Penal, pode estar em causa a honra ou a consideração.

É sabida a diferença entre uma e outra: “A honra é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, rectidão, carácter. A “consideração” é o valor atribuído por alguém ao juízo do público, isto é, do apreço ou, pelo menos, da não desconsideração que os outros tenham por ele. (cfr. Beleza dos Santos, RLJ 3152-142)”.

E mais adiante. “… aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena.”.

Bem sei que há uma tendência, já concretizada noutras latitudes, de resolver estas questões pela via meramente civil. Essa tendência, porém, não nos deve levar a, enquanto existir o artº 181º do Cód. Penal, fazer uma leitura do mesmo mais “condescendente”.

Também é certo que a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Pois, voltando a Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).

Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37)

Aplicando estas considerações ao caso concreto, acompanhamos o que se entendeu na sentença recorrida.

Na verdade, e sem por em causa, como não pôs a sentença recorrida, que as referidas palavras são desrespeitadoras, há que considerar as demais circunstâncias do caso.

Em primeiro lugar há que referir que a alegada ilegal actuação dos srs. guardas não encontra qualquer tipo de suporte na matéria que se considerou provada e mesmo que encontrasse, sempre a forma de oposição ou de resistência não poderia passar pelo proferimento das palavras em causa.

Em segundo lugar, está provado que o arguido proferiu a palavra “deficientes” depois de ter sido algemado e sofrer por isso fortes dores.

Estava já, pois, o arguido numa situação de “inferioridade física”.

Não se provou que mais alguém estivesse presente e/ou se ouviu o proferimento da referida palavra.

Por outro lado, quanto à palavra “palhaços”, está provado que a mesma foi proferida já no interior do posto da g.n.r., para onde o arguido foi conduzido, pelo que certamente, quando muito, terá sido ouvida por mais algum elemento da g.n.r. que aí se encontrasse.

E foi proferida no meio de outras expressões que se consideraram ameaçadoras, tudo dentro do mesmo circunstancialismo.

É sabido que a intervenção do direito penal deve constitui a última ratio da intervenção nas relações socias.

E se não somos adeptos da tese de que os elementos das forças de segurança devem ter as “costas infinitamente largas” para que tudo o que lhes seja dito ou feito tenha uma “malha” menos apertada, em termos de censura penal, é também nosso entendimento que no caso concreto tal censura penal se mostraria algo exagerada, tendo em conta todo o circunstancialismo descrito.

Com refere o Prof. Beleza dos Santos, repetindo, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis”.

Entendemos, assim, que nada há a censurar na sentença recorrida.

#

DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

#

Sem tributação.

#

Évora, 14 de Março de 2023

Nuno Garcia

António Condesso

Edgar Valente