JULGAMENTO
AUSÊNCIA DO ARGUIDO
NULIDADE
Sumário

Importa harmonizar o princípio da presunção de inocência, articulado com o princípio in dubio pro reo, afastando a total desresponsabilização do arguido em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento. Segundo o art.º 333.º (epigrafado “Falta e julgamento do arguido notificado para a audiência”), n.º 1, “[s]e o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde início da audiência.”. Deste modo, mostra-se afastado o sistemático o bloqueio provocado pelo princípio da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência de julgamento, articulando harmoniosamente o direito do arguido «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», nos termos do n.º 2 do art.º 32.º da CRP, com a salvaguarda do interesse público na administração célere, mas eficiente da Justiça.
No caso sub judice, a arguida, ora recorrente, regularmente notificada, faltou injustificadamente às três sessões da audiência de julgamento designadas inicialmente. Foi proferido despacho, informando existir informação nos autos de que [a arguida e o arguido] já não se encontram em território nacional e considerando a sua presença desnecessária, realizando-se o julgamento de acordo com o disposto nos números 1 e 2 do art.º 333.º. Após produção da prova e produzidas as alegações, o tribunal designou data para a leitura do acórdão, nos termos do art.º 373.º.
Do exposto flui que o arguido, caso viole as obrigações decorrente do TIR, ausentando-se para parte incerta, não pode ser desresponsabilizado em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento. Nestes casos, regularmente notificado para a data do início da audiência de julgamento, tem de aceitar que a mesma se realize na sua ausência, com as sessões entendidas como necessárias, sendo representado, para todos os efeitos legais, pelo seu defensor.
Mesmo relativamente à leitura da sentença ou acórdão, não se vislumbram motivos para alterar o acima referido entendimento
Situação diversa é a notificação da sentença, com a qual não se confunde a notificação da data para a sua leitura. Com efeito, em obediência ao disposto no artigo 113º nº 10 do Código Processo Penal a notificação da sentença, no caso do julgamento nos termos do artigo 333º, não poderá ser considerada como efetuada ao arguido ausente mediante a notificação ao seu defensor. O nº 10 do artigo 113º impõe que a sentença seja notificada, quer ao arguido, quer ao seu defensor. Trata-se de uma imposição que encontra a sua justificação pelo facto de a sentença constituir ato processual através do qual se conhece a final do objeto do processo. Por isso, terá de conjugar-se este normativo com o disposto no artigo 333º nº 5 do Código Processo Penal. É que, conforme ressalta do teor do nº 5 do artigo 333º, a sentença terá de ser notificada pessoalmente ao arguido, não se incluindo “nos efeitos possíveis” referidos no nº 4 do artigo 334º a notificação da sentença. (…) Neste caso, a notificação pessoal da sentença traduz-se numa garantia de defesa do arguido, com destaque para o direito de recurso, o que não ocorre com a notificação para a leitura da sentença. Como se expôs supra, considerando-se que a arguida foi notificada pessoalmente da sentença (…), nos termos impostos no nº 5 do artigo 333º do Código Processo Penal, encontram-se garantidos todos os direitos constitucional e processualmente consagrados, pelo que nulidade alguma foi cometida.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I-Relatório.

No Juízo Central Cível e Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum colectivo n.º 20/15.0F1EVR, tendo sido, após a realização do julgamento, produzido o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto e no âmbito do quadro legal traçado, acordam os juízes que constituem este Tribunal Coletivo em julgar parcialmente procedente a acusação e, consequentemente, decidem:

(…)

2. Absolver a arguida AA pela prática, como coautora, de dois crimes de fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 103.º, n.º1, alínea b) do RGIT, na redação da Lei 60-A/2005, de 30 de dezembro, com referência aos artigos 108.º, 117.º, n.º1, alíneas b) e c), 120.º, n.º1, 121.º do CIRC ( BB); de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6.º, n.º1, 7.º, n.º3, 103.º, n.º1, alíneas a) e b) e 104.º, n.º1 e n.º2, alínea b) do RGIT, na redação da Lei 60-A/2005, de 30 de dezembro, e 30.º, n.º2, do Código Penal, com referência aos artigos 27.º, n.º1, 19.º a 26.º, 41.º e 78.º e do CIVA e, convolando a acusação, condenar a arguida AA pela prática, como coautora, em concurso real e efetivo, de:

e) Um crime de fraude fiscal qualificada (BB) p. e p. pelos artigos 6.º, n. º1, 7.º, n. º3, 103.º, n. º1, alíneas a) e b) e 104.º, n.º 2, al. b), na redação da Lei 64-B/2011, de 30 de dezembro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

f) Um crime de fraude fiscal qualificada (AA) p. e p. pelos artigos 6.º, n. º1, 7.º, n. º3, 103.º, n. º1, alíneas a) e b) e 104.º, n.º 2, al. b) do RGIT, na redação da Lei 64-B/2011, de 30 de dezembro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

g) Um crime de fraude fiscal qualificada (CC) p. e p. pelos artigos 6.º, n. º1, 7.º, n. º3, 103.º, n. º1, alíneas a) e b) e 104.º, n.º 3 do RGIT, na redação da Lei 64-B/2011, de 30 de dezembro, na pena de 3 (três) anos de prisão;

h) Unificar as penas fixadas nas alíneas e) a g), condenando a arguida AA na pena única de 5 (cinco) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo subordinada ao dever de a arguida (e/ou o coarguido DD), no período da suspensão, pagar o montante de €5.398.156,18 (cinco milhões trezentos e noventa e oito mil cento e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos) – quantia que corresponde à indemnização infra – devendo a arguida nos primeiros quatro anos entregar a quantia anual de €1.000.000,00 (um milhão de euros) e a quantia de €1.398.156,18 (um milhão trezentos e noventa e oito mil cento e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos) no último ano do prazo da suspensão, juntando aos autos o respetivo comprovativo de cada um desses depósitos.”

Inconformada, a arguida AA interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. A audiência de julgamento, que decorreu em sete sessões, ocorreu na ausência da arguida, aqui recorrente.

2. A arguida, ora recorrente não requereu, nem deu o seu consentimento para que a audiência tivesse lugar na sua ausência.

3. No âmbito dos presentes autos, a recorrente foi constituída arguida em 3 de março de 2016.

4. Na mesma data prestou Termo de Identidade e Residência, nele mencionando como sua residência “Monte ., …” (fls. … dos autos).

5. A recorrente foi regularmente notificada das datas da 1ª, 2ª e 3ª sessões de julgamento, que tiveram lugar, respetivamente, em 30 de setembro de 2019, 7 de outubro 2019 e 14 de outubro 2019, por via postal simples com prova de depósito datada de 27/05/2019, dirigida à morada constante do TIR.

6. A quando da 1ª sessão, a Meritíssima Juiz Presidente proferiu despacho considerando que a presença da arguida desde o início de julgamento não era indispensável para a descoberta da verdade, pelo que entendeu que o mesmo deveria iniciar-se.

7. A aqui recorrente não foi notificada para comparecer às sessões de julgamento que ocorreram nos dias 21 de outubro de 2019, 4 de novembro de 2019, 9 de dezembro de 2019 e 6 de janeiro de 2020, correspondentes, respetivamente, às 4ª, 5ª, 6ª e 7ª sessões, esta última dedicada à leitura do acórdão.

8. Tal facto configura a nulidade insanável prevista no artigo 119, al. c), do CPP.

9. Das disposições do CPP resulta que o julgamento só pode realizar-se na ausência do arguido quando o mesmo haja sido notificado para comparecer e não compareça, apesar de advertido da possibilidade de o julgamento se realizar mesmo que não compareça.

10. Com efeito, nesta matéria a regra é a de que é obrigatória a presença do arguido na audiência (artigo 332, nº 1 do CPP) sendo exceção a realização do julgamento na ausência do arguido.

11. Por outro lado, o artigo 61, nº 1, alínea a) e o artigo 333, nº 3 do mesmo diploma preveem os direitos de o arguido estar presente em todos os atos processuais que lhe digam respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência, mesmo que o julgamento se inicie na sua ausência.

12. Ora, a efetividade destes direitos pressupõe que o arguido seja notificado sempre que, iniciado o julgamento em data para que tenha sido notificado, este continue numa nova data.

13. De outro modo, impedir-se-ia, na prática, a materialização desses mesmos direitos, como doutamente é explanado no Acórdão deste Venerando Tribunal, proferido no Processo 1812/17.1PBBRR.E1, de 02-07-2019.

14. No sentido decidiu também este Venerando Tribunal no Processo 112/15.6 GESLV.E1, de 23-01-2018.

15. E esta tem sido a tendência da jurisprudência mais recente, designadamente e entre outros, do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 180/13.5CGMR.G1, de 27-01-2020.

16. Verificando-se a nulidade insanável consagrado a alínea c) do artigo 119 do CPP deve a mesma ser declarada.

17. Nos termos do artigo 122 do CPP a citada nulidade torna inválidos os atos em que se verifica – neste caso, a quarta, quinta, sexta e sétima sessões da audiência de julgamento - bem como os que deles dependerem, como é o caso do acórdão recorrido igualmente contaminado, e implica a repetição dos atos viciados.

18. O que se requer seja determinado por este Venerando Tribunal.”

Pugnando, sinteticamente, pelo seguinte resultado:

“NESTES TERMOS, Deve o presente recurso ser considerado procedente por provado, declarando-se a nulidade da quarta, quinta, sexta e sétima sessões da audiência de julgamento, bem como a nulidade do douto acórdão recorrido, e determinada a repetição dos atos viciados.”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, defendendo, sinteticamente, que (transcrição):

“1. A decisão do Tribunal “a quo” não violou qualquer norma legal.

2. O julgamento foi efectuado na ausência da ora recorrente o que ocorreu por sua própria vontade, sendo que estando a mesma sujeita a TIR, tinha total consciência de que faltando, sem nada comunicar ou justificar, violava frontalmente as obrigações que sobre si impendiam, já que o estatuto de arguido não confere apenas direitos, mas sim também deveres (cf. artigo 196.º do CPP).

3. No essencial, a arguida/recorrente, ao prestar TIR obrigou-se a comparecer em julgamento, a não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde pudesse ser encontrada, sendo que ficou ciente de que o incumprimento destes deveres legitimou a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tinha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º do CPP.

4. A recorrente foi regularmente notificada da data em que se realizou efectivamente o julgamento, de acordo com a lei - artigo 333.º, n.ºs 1 e 2 do CPP -, tendo-lhe sido assegurados todos os direitos de defesa ─ artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP ─ já que esteve representada por defensora e veio a ser notificada, pessoalmente, do acórdão proferido.

5.Comprovado nos autos que a arguida se encontraria em local incerto do Brasil, desconhecendo-se o seu paradeiro, mostravam-se frustradas todas as diligências para notificar a arguida, ora recorrente, das sessões de audiência em causa (4.ª, 5.ª, 6.ª e 7.ª).

6. Mas, mesmo em relação às audiências para as quais a recorrente não foi notificada (por impossibilidade de o Tribunal o fazer dada a ausência da recorrente), sempre a arguida foi representada por defensor sendo-lhe assegurado o direito de comparência e de prestar declarações até ao encerramento da audiência ao abrigo do estatuído no artigo 333.º, n.º 3, do CPP.

7. A ausência da arguida e a falta de comunicação aos autos de nova morada onde pudesse ser notificada, por força do disposto no artigo 196.º, n.º 3, alíneas b), c) e d), do CPP, legitimou a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tinha o direito ou o dever de estar presente, e bem assim a realização da audiência na sua ausência, em todas as sessões de julgamento, inclusive na leitura do acórdão.

8. Nesta questão, é bem elucidativo o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo n.º 42/21.2PAPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt, quando bem decide que:

“Sumário:

I – A notificação do arguido para a morada constante do Termo de Identidade e Residência (TIR) da data designada para a audiência é indispensável para que se possa dar início à mesma.

II – Estando devidamente comprovado no processo o desconhecimento do paradeiro do arguido, que se ausentou para parte incerta em incumprimento das obrigações decorrentes do TIR, não é obrigatório expedir aviso postal para morada constante do TIR da data designada para a continuação da audiência, sendo de aplicar o disposto no artigo 196º, nº 3, alínea d) do Código de Processo Penal.

III – Quando a omissão na sentença dos factos atinentes à personalidade e condições de vida do arguido radiquem na impossibilidade de realizar prova sobre esses factos (por o arguido não ter estado presente na audiência, o seu paradeiro ser comprovadamente desconhecido e não se vislumbrar prova viável nesse sentido) não se verifica qualquer vício decisório, designadamente o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.”

9. Não se verifica, pois, sem margem para dúvida, a invocada a nulidade insanável consagrada na alínea c) do artigo 119.º do CPP.”

Pugnando, sinteticamente, pelo seguinte resultado:

“Somos, pois, de parecer que o recurso interposto pela arguida AA não merece provimento.”

3

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

Questão única – Ocorre ou nulidade emergente da omissão de notificação da recorrente de ulteriores sessões da audiência de julgamento designadas após as três primeiras, que lhe foram devidamente notificadas.

*

B. Decidindo.

Questão única – Ocorre ou nulidade emergente da omissão de notificação da recorrente de ulteriores sessões da audiência de julgamento designadas após as três primeiras, que lhe foram devidamente notificadas.

Vejamos os factos processuais relevantes para a presente decisão (transcrição):

1 - Em 03.03.2016, a recorrente prestou termo de identidade e residência (TIR), indicando como sua residência “Monte …, …”. (fls. … dos autos).

2 - No dia 10.05.2019 foi proferido despacho judicial (ref. …) com o seguinte teor: “atendendo ao número de testemunhas arroladas na acusação e tendo em vista evitar deslocações infrutíferas e minimizar os inconvenientes pessoais pela deslocação ao Tribunal por parte dos diversos intervenientes processuais, entende-se ser necessário agendar, desde já, três sessões para a realização da audiência de julgamento, com a produção de prova que infra se irá programar.

Assim, para a realização da audiência de julgamento perante Tribunal Colectivo, a realizar nas instalações do Juízo Local de …, local onde deve ocorrer a comparência das pessoas que na audiência devem intervir (artigo 312.º do Código de Processo Penal), designo:

- o dia 30 de Setembro de 2019, pelas 09h30m, para interrogatório e eventual audição dos arguidos e inquirição das duas primeiras testemunhas indicadas na acusação; a continuar na parte da tarde, a partir das 14h00m, para inquirição das testemunhas n.ºs 3 a 6 identificadas na acusação;

- o dia 7 de Outubro 2019, pelas 09h30m, para inquirição das testemunhas n.ºs 7 a 11 identificadas no rol da acusação; a continuar da parte da tarde, a partir das 14h00m, para inquirição das testemunhas n.ºs 12 a 17 identificadas na acusação;

- o dia 14 de Outubro 2019, pelas 09h30m, para inquirição das testemunhas n.ºs 18 a 23 identificadas no rol da acusação; a continuar da parte da tarde, a partir das 14h00m, para inquirição das restantes testemunhas identificadas na acusação e das que, eventualmente, vierem a ser indicadas pela defesa;”

3 - A recorrente foi notificada do despacho judicial mencionado em 2., por via postal simples (referência: …) com prova de depósito datada de 29/05/2019 (ref. …), dirigida à morada constante do TIR.

4 - Na sessão da audiência de julgamento de 30.09.2019 (acta ref. …), foi proferido pela Exm.ª Sr.ª Juíza Presidente, verificando que a arguida ora recorrente e o arguido DD não se encontravam presentes, o seguinte despacho: “No que concerne aos arguidos AA e DD mostrando-se os mesmos regularmente notificados para o julgamento, existindo informação nos autos de que já não se encontram em território nacional e não se considerando absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência, ao abrigo do artigo 333.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, decide-se dar início ao julgamento relativamente a estes arguidos (…).”

5 – Foram designadas e tiveram lugar, para além das sessões marcadas no despacho mencionado em 2., sessões da audiência de julgamento em 21.10.2019, 04.11.2019 e 06.01.2020 (2), tendo ocorrido nesta última a leitura do acórdão.

6 – A recorrente não foi notificada e não compareceu às sessões referidas em 5.

Decidindo: É inequívoco que, nos termos do art.º 332.º, n.º 1, é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo das excepções que o mesmo normativo prevê. Esse princípio materializa na lei ordinária a garantia constitucional de um processo penal equitativo (art.º 20.º, n.º 4 da CRP), no qual estão asseguradas todas as garantias de defesa do arguido (art.º 32.º, números 1 e 5 da Lei fundamental). Como vimos, o próprio art.º 332.º, n.º 1 in fine prevê a operatividade do princípio da obrigatoriedade da presença do arguido “sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos nºs 1 e 2 do artigo 334.º”. Vale a pena referir aqui o sentido que o legislador visou com esta excepção, introduzida pelo DL n.º 320-C/2000, de 15.12, com a reprodução parcial do respectivo preâmbulo: “… A aplicação das normas do Código de Processo Penal revela que ainda persistem algumas causas de morosidade processual que comprometem a eficácia do direito penal e o direito do arguido «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», nos termos do Nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, tornando-se assim imperioso efectuar algumas alterações no processo penal de forma a alcançar tais objectivos. Para a consecução de tais desígnios, introduz-se uma nova modalidade de notificação do arguido, do assistente e das partes civis, permitindo-se que estes sejam notificados mediante via postal simples sempre que indicarem, à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, a sua residência, local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha e não tenham comunicado a mudança da morada indicada através da entrega de requerimento ou da sua remessa por via postal registada à secretaria onde os autos se encontram a correr nesse momento. No caso de notificação postal simples, o funcionário toma cota no processo com indicação da data da expedição e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal depositará o expediente na caixa de correio do notificando, lavrará uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto desse depósito, e envia-la-á de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação. (…) Se for impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente, apõe-lhe a data e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente. Nestas situações não se justifica a notificação do arguido mediante contacto pessoal ou via postal registada, já que, por um lado, todo aquele que for constituído arguido é sujeito a termo de identidade e residência (artigo 196º, Nº 1), devendo indicar a sua residência, local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha. Assim sendo, como a constituição de arguido implica a sujeição a esta medida de coacção, justifica-se que as posteriores notificações sejam feitas de forma menos solene, já que qualquer mudança relativa a essa informação deve ser comunicada aos autos, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento. Deste modo, assegura-se a veracidade das informações prestadas à autoridade judiciária ou policial pelo arguido (…) Atendendo ao facto de uma das principais causas de morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado. Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, prevista no Nº 2 do artigo 32º da Constituição, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso de o juiz não ter certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação. Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento, razão que possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples, nos termos acima expostos, e, por outro, permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material. (…) Com efeito, se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos Nº 2 a Nº 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no Nº 6 do artigo 117º.”

Assim, flui do exposto que importa harmonizar o princípio da presunção de inocência, articulado com o princípio in dubio pro reo, afastando a total desresponsabilização do arguido em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento. Segundo o art.º 333.º (epigrafado “Falta e julgamento do arguido notificado para a audiência”), n.º 1, “[s]e o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde início da audiência.”. Deste modo, mostra-se afastado o sistemático o bloqueio provocado pelo princípio da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência de julgamento, articulando harmoniosamente o direito do arguido «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», nos termos do n.º 2 do art.º 32.º da CRP, com a salvaguarda do interesse público na administração célere, mas eficiente da Justiça. No caso sub judice, a arguida, ora recorrente, regularmente notificada, faltou injustificadamente às três sessões da audiência de julgamento designadas inicialmente. Foi, como vimos, proferido despacho, informando existir informação nos autos de que [a arguida e o arguido] já não se encontram em território nacional e considerando a sua presença desnecessária, realizando-se o julgamento de acordo com o disposto nos números 1 e 2 do art.º 333.º. Após produção da prova e produzidas as alegações, o tribunal designou data para a leitura do acórdão, nos termos do art.º 373.º. Segundo o Acórdão da Relação de Coimbra de 08.05.2018 proferido no processo n.º 3/12.2GBCBR.C1.C1 (Relatora Maria Pilar de Oliveira) (3): “Os recorrentes não compareceram à primeira sessão do julgamento apesar de notificados e foi determinado que o julgamento se realizasse na sua ausência nos termos do artigo 333º, nº 1 do Código de Processo Penal, tendo o tribunal considerado que não era absolutamente indispensável para a descoberta da verdade a sua presença desde o início da audiência. Nesse momento já constava dos autos informação policial de que os arguidos não se encontravam na residência que indicaram no TIR e que seu o paradeiro era desconhecido, o que tornava inócuo tomar medidas para obter a sua comparência. Não requereu a Defensora dos arguidos que estes fossem ouvidos na segunda data designada nos termos do nº 3 do artigo 333º citado. Assim a 2ª sessão, realizada a hora diferente da inicialmente marcada, teve lugar na ausência dos arguidos recorrentes, assim como a sessão de leitura do acórdão, sendo certo que no caso de ter sido expedido aviso para notificação dos arguidos das datas dessas sessões tal formalidade não lograria obter o resultado pretendido, assegurar o direito de estarem presentes. Das disposições do CPP, parece evidenciar-se que o julgamento só pode realizar-se na ausência do arguido quando haja sido notificado para comparecer e não compareça, sendo advertido da possibilidade de o julgamento se realizar mesmo que não compareça (outra das advertências expressas que constam do TIR por imposição do disposto no artigo 196º, nº 3, alínea d) do Código de Processo Penal) (…) Tal regime [o regime de obrigatoriedade de notificação do arguido] supõe necessariamente que não tenha sido o próprio arguido a inutilizar o seu direito a estar presente na audiência de julgamento, através do incumprimento das obrigações decorrentes do TIR e mormente da obrigação de comunicar a mudança de residência de modo a poder efectivamente ter conhecimento das datas em que se realizam as audiências. Uma vez documentado nos autos, como no caso ocorre, que o arguido se encontra em local desconhecido e que, por consequência, não é possível dar-lhe conhecimento efectivo das datas de audiência de julgamento, não faria qualquer sentido considerar que seria obrigatório, sob pena de nulidade, expedir aviso postal para morada que já não é a do destinatário, antes sendo de aplicar o disposto no artigo 196º, nº 3, alínea d) do Código de Processo Penal preceituando que o incumprimento das alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência nos termos do artigo 333º. Da conjugação destes preceitos o que concluímos é que a notificação (envio de aviso postal simples para a morada indicada) é indispensável para que se dê início à audiência, mas não o é para a sua continuação, sempre que ocorra incumprimento das obrigações decorrentes do TIR, podendo o arguido ser representado por defensor. Com efeito, a lei alude a todos os autos processuais nos quais tenha o direito a estar presente, apenas se podendo excepcionar os que a lei igualmente prevê. Ora, apenas em relação ao início da audiência se exige prévia notificação, sendo esse o sentido da remissão da alínea d) do artigo 196º, nº 3 para o artigo 333º do Código de Processo Penal. Mesmo que assim não se entendesse, pelas razões aludidas sobre a previsão do artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal, nunca se poderia considerar que a falta de cumprimento da formalidade de notificação quando o paradeiro do arguido é desconhecido porque incumpriu as obrigações decorrentes do TIR, não podendo a notificação lograr o seu efeito útil por sua culpa exclusiva, constitui nulidade. Sempre se deveria considerar mera irregularidade por decorrência do disposto nos artigos 118º e 123º o Código de Processo Penal que se encontraria sanada por não ter sido arguida em tempo.”

Do exposto flui que o arguido, caso viole as obrigações decorrente do TIR, ausentando-se para parte incerta, não pode, como vimos, ser desresponsabilizado em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento. Nestes casos, regularmente notificado para a data do início da audiência de julgamento, tem de aceitar que a mesma se realize na sua ausência, com as sessões entendidas como necessárias, sendo representado, para todos os efeitos legais, pelo seu defensor.

Mesmo relativamente à leitura da sentença ou acórdão, não se vislumbram motivos para alterar o acima referido entendimento: Como consta do Acórdão da Relação do Porto de 13.06.2018, proferido no processo n.º 786/15.8GAFLG.P1 (relatora Maria Ermelinda Carneiro): Conforme decorre do nº 4 do artigo 334º para o qual remete o nº 7 do artigo 333º do Código Processo Penal “sempre que a audiência tiver lugar na ausência do arguido, este é representado, para todos os efeitos possíveis, pelo defensor.” Retornando aos autos, nada tendo sido requerido pela ilustre defensora oficiosa nos termos consentidos pelo artigo 312º, nº 2 do Código Processo Penal, após a produção de toda a prova e findas as alegações, nos termos do disposto no artigo 361º do Código Processo Penal, teve-se a discussão por encerrada, tendo sido designada data para a leitura da sentença nos termos do disposto no nº 1 do artigo 373º do Código Processo Penal. Ora, tendo a audiência decorrido na ausência da arguida encontrava-se a mesma representada pela sua defensora nos termos nº 4 do artigo 334º para o qual remete o nº 7 do artigo 333º do Código Processo Penal supra aludidos, nos quais entendemos incluir-se a notificação para a leitura da sentença. Situação diversa é a notificação da sentença, com a qual não se confunde a notificação da data para a sua leitura. Com efeito, em obediência ao disposto no artigo 113º nº 10 do Código Processo Penal a notificação da sentença, no caso do julgamento nos termos do artigo 333º, não poderá ser considerada como efetuada ao arguido ausente mediante a notificação ao seu defensor. O nº 10 do artigo 113º impõe que a sentença seja notificada, quer ao arguido, quer ao seu defensor. Trata-se de uma imposição que encontra a sua justificação pelo facto de a sentença constituir ato processual através do qual se conhece a final do objeto do processo. Por isso, terá de conjugar-se este normativo com o disposto no artigo 333º nº 5 do Código Processo Penal. É que, conforme ressalta do teor do nº 5 do artigo 333º, a sentença terá de ser notificada pessoalmente ao arguido, não se incluindo “nos efeitos possíveis” referidos no nº 4 do artigo 334º a notificação da sentença. (…) Neste caso, a notificação pessoal da sentença traduz-se numa garantia de defesa do arguido, com destaque para o direito de recurso, o que não ocorre com a notificação para a leitura da sentença. Como se expôs supra, consideramos que a arguida tendo sido notificada pessoalmente da sentença (…), nos termos impostos no nº 5 do artigo 333º do Código Processo Penal, encontram-se garantidos todos os direitos constitucional e processualmente consagrados, pelo que nulidade alguma foi cometida, designadamente a nulidade insanável que lhe é assacada. Nem se nos lobriga razão para entendimento divergente. Efetivamente, qual o efeito útil que poderia ocorrer com a nulidade deste ato? A consequência seria a nulidade da reabertura da audiência e do ato de leitura da sentença, sanando-se a referida nulidade com a reabertura da audiência após notificação da arguida para o efeito, procedendo-se então à leitura da sentença na presença da arguida. Sentença da qual a mesma arguida foi já pessoalmente notificada e dela tomou devido conhecimento mediante notificação pessoal. (…) Ao notificar-se a arguida pessoalmente da sentença, nos termos impostos pelo nº 5 do pré-citado artigo 333º do Código Processo Penal revelam-se salvaguardados todos os direitos da arguida. (…) Já o ato processual de leitura pública da sentença não visa dar oportunidade ao arguido para exercer a sua defesa. Trata-se de um ato de mera comunicação do conteúdo da decisão final proferida no processo, após a produção de prova em que o arguido já exerceu plenamente a sua defesa (ou teve oportunidade de o fazer, querendo), terminando, em caso de condenação, com uma breve alocução dirigida ao arguido pelo juiz, exortando-o a corrigir-se – artigo 375º nº 2 do Código Processo Penal. Ora, para esse ato – de leitura da sentença – não existe disposição legal que determine a obrigatoriedade da presença do arguido, nem da sua notificação expressa para estar presente. Aliás, se a lei estabelece a obrigatoriedade de notificação pessoal da sentença ao arguido na situação prevista no nº 5 do artigo 333º do Código Processo Penal, não se compreenderia que impusesse a notificação pessoal do arguido para estar presente no ato de leitura pública da sentença. Se assim fosse, mal se entenderia que o legislador estabelecesse como regra geral, no artigo 373º nº 1 do Código Processo Penal, que encerrada a audiência de produção de prova, o presidente procedesse à leitura da sentença imediatamente após as alegações orais. A proceder o argumento invocado pela recorrente, igualmente sustentado na jurisprudência citada, sempre que a audiência decorra na ausência do arguido nos termos permitidos pelo artigo 333º nº 2 do Código Processo Penal, o tribunal não poderá proceder à leitura da sentença em conformidade com o disposto no artigo 373º nº 1 do Código Processo Penal, impondo-se-lhe que interrompa a audiência para notificar a arguida para a leitura da sentença, solução que manifestamente contraria a própria letra e o espírito da lei. Aliás, entre os atos processuais que a lei determina que sejam obrigatoriamente notificados ao arguido, para além do defensor, contam-se a acusação, a decisão instrutória, a designação de dia para julgamento e a sentença, para além da aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do PIC – artigo 113º nº 10 do Código Processo Penal. Entre tais atos não se mostra incluído o da notificação da designação de dia para a leitura da sentença, pelo que, “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”. (…) [A]ssim, não padece[…] de qualquer invalidade a realização do ato de leitura da sentença a que não está presente o arguido que, regularmente notificado para a audiência de julgamento, optou por se alhear do que nela iria proceder-se.”

Com efeito e de forma, quanto a nós decisiva, sendo a audiência contínua (art.º 328.º, n.º 1) e prevendo a lei que, com excepção das situações previstas no art.º 373.º, nº 1, a leitura da sentença seja lida imediatamente após a deliberação e votação que, por sua vez, se sucedem imediatamente ao encerramento da discussão, não faria sentido introduzir uma (des)necessária dilação para uma eventual notificação do arguido, excepcionando sem qualquer razão aquele regime regra.

A que acrescem, no caso dos autos, todas as razões já invocadas, ou seja, fundamentalmente, o incumprimento das obrigações emergentes do TIR, o paradeiro desconhecido da arguida e, consequentemente, a inutilidade notória de qualquer tentativa de notificação da mesma, seja para fim fosse.

O recurso é, assim, totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Diploma a que pertencerão as menções normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Diferentemente do alegado, não ocorreu nenhuma sessão no dia 09.12.2019, tendo apenas sido lavrada uma “cota” com o agendamento da sessão de julgamento do dia 06.01.2020. (ref. 29830949)

3 No mesmo sentido, vide Acórdão da Relação de Guimarães de 26.04.2022 proferido no processo 42/21.2PAPTL.G1.