TÍTULO EXECUTIVO
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
REQUERIMENTO EXECUTIVO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário

I - A decisão liminar que o juiz profere ao abrigo do art.º 726º, nº 2, al. a), do Código de Processo Civil, a indeferir o requerimento executivo por manifesta falta de título executivo, não viola o princípio do contraditório nem constitui uma decisão surpresa relativamente ao exequente se não for precedida de notificação àquela mesma parte para se pronunciar sobre a questão; antes deve a situação ser enquadrada como de contraditório diferido, no interesse de ambas as partes, dada a absoluta possibilidade de recurso, ao abrigo do art.º 853º, nº 3, do Código de Processo Civil.
II - Constitui título executivo, também fora do processo de insolvência, após o seu encerramento, de acordo com o art.º 233º, nº 1, al. c), do CIRE, a sentença homologatória da lista de créditos reconhecidos pelo administrador de insolvência e graduação de créditos, transitada em julgado.
III - Não releva como diferença, para efeito de caso julgado e de formação de título executivo, o facto de a sentença de verificação e graduação de créditos ser ou não ser simplesmente homologatória da lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência.

Texto Integral

Proc. nº 10540/22.5T8PRT.P1 (apelação)
Comarca do Porto - Juízo de Execução do Porto – J 1

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Desemb. Francisca Mota Vieira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
No processo de execução de sentença para pagamento de quantia certa, em que são exequentes AA e BB, residentes na Rua ..., ..., ... ..., Gondomar, sendo executado CC, residente na Avenida ..., ..., 3º, ... Póvoa do Varzim, após algumas vicissitudes processuais, também relacionadas com a fixação da competência do tribunal em razão da matéria, com remessa dos autos do Juízo de Comércio de Santo Tirso (onde tiveram o nº 799/12.1TBPVZ) para o Juízo de Execução do Porto (onde foram redistribuídos com o nº 10540/22.5T8PRT), logo este tribunal, por despacho fundamentado de 13.6.2022, concluiu pela rejeição oficiosa da execução, por manifesta falta de título executivo, determinando a sua extinção, “ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º, nº 2, al. a), 734º, nº 1, todos do CPC.
Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os exequentes, produzindo alegações que culminaram com as seguintes CONCLUSÕES:
«A) Da nulidade da Sentença:
I. Ao proferir decisão de Indeferimento Liminar do requerimento executivo sem conceder previamente aos Exequentes a possibilidade de se pronunciarem, violou o Tribunal a quo o princípio do contraditório, previsto no nº 3 do art. 3º do CPC.
II. A referida decisão pôs fim à causa, verificando-se assim a nulidade prescrita no nº 1 do art. 195º do CPC,
III. Sendo que a nulidade por violação da formalidade legalmente prevista implica a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal a quo, por violação de um princípio estruturante do processo civil.
B) Da Decisão proferida pelo Tribunal a quo:
IV. Não podem os Recorrentes conformar-se com a Decisão que indeferiu liminarmente o requerimento executivo, desde logo porque os fundamentos que a sustentam se encontram em manifesta contradição com as disposições legais aplicáveis.
V. A referida Decisão conclui pela falta de título executivo, invocando como fundamento que a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos não aprecia de mérito o crédito exequendo, limitando-se o Tribunal a homologar a lista que lhe é apresentada pelo Administrador de Insolvência apenas e tão só para efeitos de graduação e pagamento dos créditos pelo produto dos bens apreendidos para a massa.
Vejamos,
VI. Da Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, proferida no apenso G, dada como título à execução, resulta que o crédito dos ora Recorrentes foi devidamente reclamado e reconhecido pelo Administrador de Insolvência,
VII. Que analisou a Reclamação de Créditos apresentada, fundamentada em transacção judicialmente homologada no proc. nº 69/10.0TBPVZ-B, que correu termos no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim, que consta nos autos como anexo à referida Reclamação.
VIII. É ao Administrador de Insolvência que incumbe, como resulta desde logo do disposto nos arts. 128º e 129º do CIRE, analisar as reclamações de créditos apresentadas, bem como os créditos que resultem da contabilidade do devedor, e estabelecer a lista dos credores reconhecidos, com a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, as eventuais condições suspensivas ou resolutivas e o valor dos bens integrantes da massa insolvente sobre os quais incidem garantias reais de créditos pelos quais o devedor não responda pessoalmente.
IX. O crédito reclamado pelos Exequentes, ora Recorrentes, depois de reconhecido pelo Administrador de Insolvência, foi então graduado e homologado pelo Tribunal, no âmbito do processo de insolvência do Executado, que correu termos no Tribunal de Comércio de Santo Tirso, Juiz 7, sob o nº 799/12.1TBPVZ.
X. A mencionada Decisão transitou em julgado em 06-04-2015, conforme resulta da respectiva Certidão (Cfr. Doc. 2 anexo ao requerimento executivo).
XI. Como resulta da alínea c) do nº1 do art. 233º do CIRE, a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos constitui título executivo suscetível de ser utilizado pelos credores,
XII. E o mesmo pode ser utilizado após o encerramento do processo de insolvência, no qual não foi satisfeito o direito do credor.
XIII. A sentença de verificação e graduação de créditos constitui uma verdadeira sentença condenatória,
XIV. E, ao contrário do que resulta da sentença proferida pelo Tribunal a quo, aprecia de mérito o crédito,
XV. Desde logo porque sobre o Juiz não recai uma tarefa de homologação automática, mas antes o desempenho da função de, no exercício das funções de controlo da legalidade, verificar a conformidade substancial e formal do crédito reclamado,
XVI. Tendo para o efeito ao seu dispor todos os elementos disponíveis e sindicados pelo Administrador de Insolvência no exercício das funções que lhe são legalmente acometidas.
Em suma,
XVII. A Decisão de Indeferimento Liminar violou, pois, as disposições legais aplicáveis, designadamente o art. 3º, nº 3 e 195º, 1 do CPC, encontrando-se consequentemente ferida de nulidade, que aqui se argui.
XVIII. A referida decisão violou o disposto no art. 233º, nº1 alínea c), do CIRE, bem como os arts. 128º e 129º do referido normativo e o art. 703º, nº 1, al. a) do CPC, dos quais resulta a força executiva conferida à sentença de verificação e graduação de créditos, bem como as especiais funções de sindicância dos créditos que legalmente acometidas ao Administrador de Insolvência e servem de base à actuação do Tribunal.
XIX. Violou igualmente o art. art. 703º, nº 1, al. a) do CPC ao desconsiderar o outro título executivo constante dos autos – a Sentença que homologou a Transacção no Processo nº 69/10.0TBPVZ-B, que correu termos no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim.» (sic)

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Notificado o executado para a execução e para os termos do recurso, não ofereceu contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Com efeito, está para apreciar e decidir:
1. Se ocorre nulidade processual, por violação do contraditório, quando o tribunal indefere liminarmente um requerimento executivo sem ouvir o exequente sobre a causa jurídica desse indeferimento;
2. Se o documento dado à execução é um título executivo.
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III.
Relevam aqui os factos do relatório que antecede e ainda o que mais vier a ser considerado relativamente à decisão de cada uma das duas questões a resolver nesta sede de recurso.
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IV.
Conhecendo…
1- Nulidade processual por preterição do contraditório
Os apelantes alegam que o tribunal rejeitou a execução, por falta de título executivo sem que os tivesse ouvido previamente sobre a matéria, assim tendo violado princípio do contraditório e cometido uma nulidade processual nos termos dos art.ºs 3º, nº 3 e 195º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Pois bem..., aconteceu efetivamente o tribunal competente ter indeferido o requerimento executivo e julgado extinta a execução antes de ter tomado qualquer diligência executiva e sem que tivesse ouvido os exequentes/recorrentes sobre aquela possibilidade. Fê-lo por considerar manifesta a falta de título executivo, com base nos art.ºs 726º, nº 2, al. a) e 734º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Note-se que já anteriormente, a 8.3.2022, o Juízo de Comércio de Santo Tirso (proc. 799/12.1TBPVZ) proferira despacho liminar de indeferimento do requerimento executivo, mas, por decisão posterior, de 21.4.2022, declarou tal despacho nulo e sem efeito. Daí que, para todos os efeitos, a decisão agora recorrida corresponde a um despacho liminar de indeferimento em que a execução seguiu no traslado, em separado, no juízo de execução, tudo se passando, designadamente para efeito da forma de processo executivo (art.º 550º, nº 2, al. a), do Código de Processo Civil), como se a execução seguisse no próprio processo[1].
Dispõe o art.º 3º, nº 3, que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Nesta norma radica a matriz do princípio do contraditório, segundo o qual, mesmo no sentido tradicional --- em quase toda a sua dimensão, desde a reforma do processo civil de 1995 ---, qualquer das partes tem o direito de conhecer a pretensão contra si deduzida e o direito de pronúncia prévia à decisão, ainda que esta seja de conhecimento oficioso. Através dele, a lei assegura às partes o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações e provas por elas efetuadas. Consagra-se o direito de as partes serem ouvidas como ato prévio a qualquer decisão que venha a ser proferida no processo, entendendo-se, hodiernamente mais do que isso, a possibilidade de as partes intervirem em juízo em termos de influenciarem (pelos argumentos de que fizerem uso) a decisão a proferir.[2]
A propósito, Lebre de Freitas escreve[3]: «A esta conceção[4], válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo».
É no plano da aplicação do Direito que nos situamos no caso em análise: Saber se, antes de ter proferido o despacho de indeferimento da execução, o tribunal deveria ter dado à exequente a possibilidade de se pronunciar sobre o sentido dessa decisão relativa à falta de título executivo.
Tratando-se do conhecimento oficioso de uma questão processual[5], em princípio, não pode ser proferida sem prévio convite de ambas as partes a tomarem posição sobre ela, só estando o tribunal dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade, como se extrai do referido art.º 3º, nº 3. Evita-se deste modo a decisão-surpresa, tão cara ao princípio do contraditório.
São, assim, por regra, proibidas as decisões surpresa, até mesmo no âmbito do procedimento cautelar comum, cujas regras são subsidiariamente aplicáveis aos procedimentos cautelares nominados, não obstante o seu caráter urgente, como resulta com toda a evidência da conjugação dos art.ºs 3º, nº 2, 363º, 366º, nº 1 e 376º, nº 1. O tribunal deve ouvir o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.[6]
Com efeito, ouvir ou não ouvir ambas as partes não é um poder discricionário do juiz, mas um poder vinculado que tem de se manifestar através de uma decisão fundamentada que permita compreender as razões pelas quais o juiz optou por ouvir ou não ouvir aquela parte, maxime, quando a decisão é não ouvir, por ser esta a exceção. O requerido sofre, nestas condições, com base numa decisão surpresa, quase sempre um efeito pernicioso na sua esfera jurídica, independentemente de poder vir a reverter a situação, pelo posterior exercício do contraditório.
Não é descabido chamar aqui também à colação o princípio da igualdade de armas. Este revela-se na paridade simétrica da posição de todas as partes perante o tribunal. Tal princípio impõe que o tribunal coloque as partes numa situação de equilíbrio ao longo de todo o processo, do ponto de vista dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respetivas teses: a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticos, sempre que a sua posição perante o processo é equiparável, e um jogo de compensações, gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigualdade objetiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte meios processuais não atribuíveis à outra.[7]
Assim caminhando para a aproximação ao caso concreto, da teoria à prática, importa afinar se, no caso sub judice, o tribunal violou o contraditório e proferiu uma decisão surpresa justificativa de alguma nulidade.
Temos para nós que a resposta, não sendo evidente, deve, no entanto, ser negativa.
Ainda em tese geral, para que o tribunal deva proceder à audição complementar das partes não basta que pretenda aplicar uma norma por elas não invocada; é necessário que o enquadramento legal realizado seja manifestamente diferente do sustentado pelos litigantes. Deverá ser uma subsunção lotada pela sua originalidade, pelo seu carácter invulgar e singular, objetivamente considerado.[8] Se o tribunal faz assentar a sua decisão sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com que a parte podia razoavelmente contar, não é de qualificar como decisão-surpresa.
Se à primeira vista, este raciocínio vale para as decisões materiais e, sobretudo, do fundo ou mérito da causa, deve valer também para as questões processuais que assistem ao interesse das partes, como é o caso da existência de título executivo enquanto pressuposto da execução.
Quando o exequente instaura a execução, fá-lo sabendo que o respetivo requerimento não pode deixar de ser acompanhado de título executivo, enquanto seu pressuposto específico e essencial, de onde conste a obrigação exequenda. O título é a base da execução, por ele se determinando, além do mais, o seu objeto, o fim e os limites da ação executiva (art.º 10º, nºs 5 e 6 do Código de Processo Civil). É pelo título que se afere do grau de certeza e se segurança exigíveis que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva.
O autor ou o exequente conhece, deve conhecer, os casos em que o juiz vai apreciar ou pode apreciar liminarmente os pressupostos processuais da ação ou da execução. Sabendo-o, é imediatamente colocado na condição de poder influenciar essa decisão liminar que se lhe seguirá imediatamente. Pode, por isso, justificar ou motivar ali o título apresentado, explicando na própria peça inicial os motivos pelos quais instaurou a execução, com base em determinado documento ou documentos.
Referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[9] que, nestes casos, a parte contra quem se decide já teve oportunidade de, ativamente, influenciar o sentido da decisão proferida, desde logo dada a natureza da questão (pressuposto da execução).
Como também se tem vindo a argumentar, a prévia audiência dos sujeitos processuais está naturalmente prejudicada em sede de intervenção liminar: se se exigisse a audição da parte antes de um indeferimento liminar, este deixaria de ser liminar. Por isso, nesta fase, deve ter-se como naturalmente excluída a necessidade de audição do requerente. A sua sujeição a um despacho liminar de indeferimento sempre se tem como pressuposta.[10]
O que o juiz não pode é deixar de ouvir a parte contrária, devendo citá-la ou notificá-la (conforme os casos), deste modo lhe abrindo a faculdade de se pronunciar também sobre a matéria dos pressupostos da ação executiva. É com esta citação que se cumpre o contraditório e se evita a decisão surpresa. Mas é de tal ordem a especialidade do despacho liminar que, mesmo relativamente ao réu/executado, o contraditório se concretiza depois da decisão --- um pouco à semelhança do que pode acontecer nalguns procedimentos cautelares ---, só depois dela se realizando a citação do réu, simultaneamente, para os termos do recurso e para os termos da causa nos casos em que há indeferimento liminar da petição inicial (na ação declarativa - art.º 641º, nº 7, do Código de Processo Civil); regra que, por ter carater geral, tem aplicação também no processo de execução, ao abrigo do art.º 551º, nº 1 do mesmo código.[11]
Mal se compreenderia que, ainda antes de cumprido o contraditório do réu/executado (antes da sua citação/notificação), se concedesse uma segunda oportunidade ao autor/exequente para se pronunciar sobre os pressupostos da execução, para só depois da decisão o demandado/executado ser chamado pela primeira vez à realidade processual, assim, sem poder influenciar aquela que então seria a decisão liminar. Estaria a ser violado o princípio da igualdade das partes e da igualdade de armas no desenvolvimento do processo.
O que a lei processual admite é uma reação do autor após decisão liminar ao estipular uma absoluta possibilidade de recurso da mesma decisão para a Relação, assim, “independente do valor da causa e da sucumbência”, “das decisões de indeferimento liminar da petição de ação (…)” (art.º 629º, nº 3, al. c), do Código de Processo Civil); regra que vigora em termos semelhantes para o processo executivo, conforme disposição privativa desta espécie processual. Determina o art.º 853º, nº 3, também do Código de Processo Civil: «Cabe sempre recurso do despacho de indeferimento liminar, ainda que parcial, do requerimento executivo, bem como do despacho de rejeição do requerimento executivo preferido ao abrigo do disposto do artigo 734.º.».
É esta a forma de reação colocada à disposição do autor/exequente relativamente à decisão liminar desfavorável, não podendo afirmar-se, no caso, que a exequente não tem a possibilidade de se pronunciar sobre a questão da falta de título executivo. Quem não teve essa possibilidade e, nesta medida, não colhe qualquer vantagem sobre a exequente --- quiçá alguma desvantagem --- é o executado, apenas citado depois da sua prolação.
Assim sendo, não há qualquer decisão surpresa no proferimento de um despacho liminar de rejeição da execução, posto que é a própria lei a prevenir expressamente esse fundamento específico para tal rejeição. A imposição de um despacho liminar prévio a um despacho liminar constitui uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz qualquer sentido a prolação de um despacho anterior[12]. A lei prevê o que tem sido chamado de contraditório diferido, dada a ampla admissibilidade legal de recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e em situação de igualdade das partes.[13]
Decorre do exposto que não há violação do contraditório desfavorável à exequente nem decisão-surpresa no despacho de indeferimento liminar, pelo que inexiste também a nulidade processual indicada pelos apelantes.
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2. O documento dado à execução é um título executivo?
O documento que serve de base à execução é uma sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo de insolvência do executado, no dia 19.3.2015, mais concretamente uma sentença homologatória da lista de créditos e graduação elaborada pelo Sr. administrador de insolvência, proferida ao abrigo dos art.ºs 129º e 130º, nº 3, do CIRE[14], tendo transitado em julgado no dia 6.4.2015 (cf. certidão judicial junta com o requerimento executivo).
Naquele mesmo processo especial, foi proferido despacho de encerramento por insuficiência da massa insolvente, nos termos do art.º 230º, nº 1, al. e) e do art.º 232º, nºs 1, 2 e 7, do CIRE (cf. certidão judicial junta com o requerimento executivo). É este um caso de encerramento do processo por inutilidade da sua prossecução, dada inexistência de património para satisfação dos próprios encargos do processo.
Entendeu o tribunal que os exequentes não estão munidos de título executivo porque, tratando-se de uma sentença homologatória da lista de créditos reconhecidos, não aprecia o mérito do crédito exequendo, limitando-se a homologar a lista apresentada somente para efeitos de graduação e pagamento dos créditos pelo produto dos bens apreendidos para a massa, não se enquadrando nas situações a que alude o art.º 233º, nº 1, al. c), do CIRE.
Será assim?
Resulta daquele art.º 233º, nº 1, al. c), que, encerrado o processo de insolvência, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência, “os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência”.
Claramente, na hipótese de não se verificarem as situações de existência de um plano de insolvência ou de um plano de pagamentos, com as limitações que deles decorram, considerando ainda as restrições resultantes de um pedido de exoneração do passivo restante em função do que dispõe o art.º 242º, nº 1, do CIRE[15], uma vez encerrado o processo de insolvência, os credores da insolvência podem exercer livremente os seus direitos contra o devedor. Recuperam então as faculdades de exercício dos seus créditos; passam a poder exercer, de novo, os seus direitos, contra o devedor (sem os espartilhos do processo de insolvência ou as limitações que resultam do plano de insolvência ou do art.º 242º, nº 1, do CIRE).
Aquela al. c) do nº 1 do art.º 233º do CIRE atribui o valor de título executivo a várias decisões proferidas no âmbito do processo de insolvência, não sendo elas apenas as sentenças homologatórias do plano de insolvência e do plano de pagamentos, mas também as sentenças de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior de créditos, conjugadas ou não (quando necessário), com a sentença homologatória do plano de insolvência.
A verificação do passivo do devedor, na insolvência, constitui um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, compreendendo a fase da reclamação de créditos (art.ºs 128º e seg.s), saneamento (art.º 136º), instrução (art.º 137º), discussão e julgamento da causa (art.ºs 138º e 139º) e sentença (art.º 140º, todos do CIRE). Neste processo predomina o dispositivo, devendo o juiz fazer assentar a sua decisão nos factos alegados pelas partes (art.º 11º, a contrario, do CIRE). Ainda assim, o Sr. administrador de insolvência tem o dever de apreciar não apenas os créditos reclamados pelos seus titulares --- a quem devem enviadas pelos credores --- mas também os que constem dos elementos da contabilidade do devedor ou advenham por outra forma ao seu conhecimento. Reconhecê-los-á, ou não, em lista própria. A lista dos credores reconhecidos contém necessariamente a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, as taxas de juro moratórios aplicável, condições, valor dos bens integrantes da massa que se encontrem onerados pelas garantias do crédito e demais elementos previstos no nº 2 do citado art.º 129º, em ordem a uma adequada identificação de credores, créditos, garantias e condições, para efeito de uma correta graduação.
Os credores reconhecidos e não reconhecidos podem impugnar a lista de créditos reconhecidos e a lista de créditos não reconhecidos pelo Sr. administrador de insolvência, nos termos do nº 4 do art.º 129º e do art.º 130º do CIRE. No caso da lista de créditos reconhecidos (pelo administrador de insolvência), na falta de impugnação, o juiz profere de imediato sentença de verificação e graduação de créditos, a qual, salvo erro manifesto, se limita há respetiva homologação e graduação dos créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta (art.º 130º, nº 3). Este último segmento normativo foi aditado pelo Decreto-Lei nº 57/2022, de 25 de agosto e é posterior à data em que, nos autos, foi proferida a sentença homologatória de verificação e graduação de créditos.
Havendo impugnações, os autos prosseguem a sua tramitação normal, com o exercício do direito de resposta, produção de prova, apresentação de parecer da comissão de credores, saneamento do processo, realização de audiência e prolação de sentença que verifique e gradue os créditos (art.ºs 131º a 140º do CIRE).
Também no despacho saneador, o juiz declara verificados com valor de sentença os créditos incluídos na respetiva lista e não impugnados, salvo o caso de erro manifesto (art.º 136º, nº 1). E, de acordo com o nº 6 do mesmo artigo, o despacho saneador tem, quanto aos créditos reconhecidos, a forma e o valor de sentença, que os declara verificados e os gradua em harmonia com as disposições legais.
Nas situações em que (cumpridas as formalidades legais, designadamente as relativas ao exercício do contraditório), a lista de créditos reconhecidos pelo Sr. administrador de insolvência não é impugnada pelos vários interessados, e o tribunal profere logo sentença homologatória da verificação e graduação de créditos, tal decisão não pode deixar de ter o mesmo valor jurídico da sentença final, proferida após a produção de provas. Uma e outra decisões têm, na própria expressão legal, valor de sentença; em qualquer uma das situações, o juiz decide o incidente declarativo da verificação e graduação de créditos tendo este processado a estrutura de uma causa, visando-se uma decisão definitiva do litígio, com o respetivo trânsito em julgado (art.ºs 17º, nº 1, 130º, nº 3, 136º, nº 6 e 140º do CIRE e art.ºs 152º, nº 2, 607º e 619º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Se os interessados não impugnam os créditos reconhecidos pelo Sr. administrador de insolvência e o juiz homologa a verificação dos créditos e os gradua, sem que, mais uma vez, aqueles reajam à sentença, não recorrendo dessa decisão final, que transita em julgado, não há fundamento legal para que tal sentença não constitua título executivo, na media em que fixa o crédito de cada credor e o gradua, para efeito do processo de insolvência. Naquelas sentenças, sejam elas homologatórias ou não, é reconhecido o direito de crédito de cada credor, desde logo para efeito da execução universal que é o processo de insolvência (art.º 1º do CIRE). Só com a formação daquele título se poderá formar caso julgado oponível a todos os credores do devedor insolvente que concorrem entre si para satisfazerem as suas pretensões creditórias pelas forças do património do insolvente, com variadas garantias dos seus créditos e consequentes prioridades diversificadas nos pagamentos.
Por idêntica razão, o (novo) título executivo assim formado --- com as regulares garantias de defesa e cumprimento do princípio do contraditório --- vale fora daquele processo especial, após o seu encerramento, por força do art.º 233º, nº 1, al. c), do CIRE, relativamente às quantias de crédito cujo pagamento os credores graduados ali não lograram obter.
A título exemplificativo, colhe-se do acórdão da Relação do Porto de 6.9.2021[16]:
«Não existe qualquer disposição legal a conferir eficácia restrita da sentença de verificação e graduação de créditos ao processo de insolvência e, ao invés, da qualificação de tal decisão judicial como título executivo no art. 233º nº 1 c) do CIRE resulta precisamente o oposto, pois tal qualificação está ali prevista exactamente para poder ser utilizada pelo credor depois do encerramento daquele processo e em vista do exercício, por si, do seu direito contra o devedor.
Com a atribuição da natureza de título executivo àquela decisão, mais não se faz do que facultar aos credores um meio processual para realizarem coercivamente os seus créditos insatisfeitos pelas forças de património que não foi apreendido no processo de insolvência, evitando duplicações desnecessárias de procedimentos declarativos para verificação dos seus créditos.»
A sentença de verificação e graduação de créditos, ainda que consista numa sentença homologatória da verificação ed graduação efetuada pelo administrador de insolvência, define e acerta o crédito de cada credor, com suficiente segurança, dispensando-o de maior indagação sobre a existência do direito de crédito que consubstancia, fazendo presumir a existência e exigibilidade da obrigação exequenda. É, pois, obviamente, e ao contrário do que se defende na decisão recorrida, uma sentença de mérito, porque conhece e decide em substância, ou seja, do fundo da matéria para a qual é vocacionado o respetivo incidente declarativo.
Para efeito de execução e, especialmente, do art.º 703º, nº 1, do Código de Processo Civil, onde taxativamente se identificam as espécies de títulos executivos legalmente admissíveis, a sentença de verificação e graduação de créditos constitui título executivo, como sentença condenatória[17], ao abrigo da respetiva al. a); assim, porque pressupõe o reconhecimento de um certo direito de crédito (que pode até não coincidir com o valor do crédito reclamado) e a sua subsequente graduação em confronto com os restantes créditos objeto de verificação e graduação, a fim de se proceder ao seu pagamento pelas forças do património do insolvente.[18]
A sentença homologatória de verificação e graduação, transitada em julgado, produz efeitos dentro e fora do processo de insolvência (neste caso, após o seu encerramento), sendo, por isso, um título executivo utilizável pelos credores graduados do insolvente cujos créditos permaneçam parcial ou totalmente por satisfazer, podendo o título valer por si só ou em conjugação com a sentença homologatória do plano de insolvência, se for esse o caso.
De resto, tem sido defendida a admissão da exequibilidade mesmo nas ações constitutivas e de simples apreciação positiva quando delas decorre a condenação implícita no cumprimento de determinada obrigação.[19]
Concluindo, a sentença homologatória da verificação e graduação de créditos que foi dada à execução, transitada em julgado que se encontra, constitui título executivo para efeito da presente execução, de acordo com o art.º 233º, nº 1, al. c), do CIRE e com art.º 703º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, dispondo os exequentes de título executivo, revoga-se a decisão recorrida, não havendo fundamento para o seu indeferimento por “manifesta falta de título”.
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Custas da apelação pelos recorrentes, por não ter havido oposição do recorrido e terem aqueles tirado proveito do recurso (art.º 527º, nº 1, parte final, do Código de Processo Civil), levando-se em conta a taxa de justiça paga pela sua interposição.
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Porto, 24 de fevereiro de 2023
Filipe Caroço
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Cf. despacho de 21.4.2022, pelo qual se determinou a remessa dos autos para o Juízo de Execução da Comarca do Porto.
[2] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 25.
[3] Introdução ao Processo Civil, 3ª edição, 2013, pág.s 124 e 125.
[4] Refere-se à conceção tradicional.
[5] O mesmo aconteceria no caso de conhecimento de uma questão de direito material.
[6] Mesmo quando, nesta sede, o tribunal decide não ouvir o requerido antes de conhecer do pedido, a lei assegura o contraditório através do direito à oposição exercitável depois da decisão ou mesmo do direito ao recurso, nos termos do art.º 372º, nº 1, al.s a) e b).
[7] Idem, Lebre de Freitas, pág.s 136 e 137.
[8] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 32.
[9] Ob. cit., pág. 32.
[10] Cf. acórdão da Relação do Porto de 28.10.2021, proc. 3164/20.3T8VLG-A.P1, in www.dgsi.pt, em que se discute uma apreciação liminar da execução, mesmo em processo d execução que seguiu a forma sumária.
[11] Neste sentido, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 2010, 13ª edição, pág. 459.
[12] A propósito da rejeição do recurso
[13] Acórdãos da Relação do Porto de 4.11.2008, proc. 0826336, da Relação de Coimbra de 27.8.2018, proc. 5500/17.0T8CBR.C1, acórdão da Relação de Lisboa de 27.9.2017, proc. 10. 847/15. 8T8LSB-D.L1-4, in www.dgsi.pt.
[14] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[15] Segundo o qual “não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período de cessão”.
[16] Proc. 265/18.1T8AMT-B.P1, in www.dgsi.pt.
[17] Ainda que assim não se entendesse, sempre seria um documento a que, por disposição especial (art.º 233º, nº 1, al. c), do CIRE) a lei atribui força executiva.
[18] Acórdão da Relação de Évora de 30.6.2021, proc. 644/17.1T8STR-B.E1 (estes a propósito da sentença de qualificação da insolvência, mas com referência relevante à sentença de verificação e graduação de créditos), acórdão da Relação de Guimarães de 10.3.2022, proc. 2901/21.3T8GMR.G1 (este, a propósito de uma sentença homologatória de plano de pagamentos), acórdãos da Relação do Porto de 6.11.2012, proc. 901/10.8TBPNF-M.P1 (quanto à força da sentença homologatória da verificação dos créditos) e de 28.4.2014, proc. 2609/11.8TBPDL-K.P1, todos in www.dgsi.pt.
[19] Cf., entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.1.2015, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. I, pág. 51.