CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIMES DE AMEAÇA E DE INJÚRIA
REVOGAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO
Sumário


I- Não integra o crime de violência doméstica o ato singelo de a arguida, no interior da habitação, ter dirigido à ofendida, que é sua mãe, com 75 anos de idade e apresenta um quadro de demência em estado moderado correspondente a provável demência de Alzheimer, e expressado-lhe “filha da puta, fodo-te os cornos, sua puta do caralho, devias lamber o chão, sua filha da puta”, tendo a mesma respondido com gemidos.
II- A falta de indiciação do contexto, contornos e causas acerca das concretas circunstâncias em que a arguida agiu não indiciam um comportamento cruel ou insensível ou uma intenção perversa da sua parte.
III- Estamos perante factos que, ainda que indiciários, são merecedores de grande censura ética e mesmo de carácter penal, pela sua subsunção aos tipos legais de injúria (“filha da puta”, “sua puta do caralho”) e de ameaça (“fodo-te os cornos”).
IV- No entanto, não se indicia aquele “quid”, aquele “plus”, a traduzir um maior desvalor ou da ação ou do resultado, sequer, um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima, nem uma particular danosidade social do facto, que afinal, fundamentam a especificidade deste crime de violência doméstica.
V- E dai que não possa afirmar-se que este episódio tenha a virtualidade de, objetivamente, ultrapassar o amesquinhamento, o vexame e a humilhação inerentes ao crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º C Penal e o receio, medo, inquietação inerentes ao crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, nº1, al. b), ambos do Código Penal.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nos autos de inquérito (Atos Jurisdicionais) com o NUIPC 302/22.5T9VPA-A.  a correr termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal ..., em que é arguida AA, já melhor identificada nos autos, na sequência do interrogatório judicial realizado ao abrigo do disposto no artigo 194º,nº4, do CPP, foi proferido despacho judicial, em 2/11/2022, nos termos do qual, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 193.º, 196.º, 194.º, n.º 1, 198.º, 200.º, n.º 1, alíneas d) e 204.º alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal, foi aplicada à arguida a medida de coação de proibição de contactar, por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), direto ou por interposta pessoa, com a ofendida ou de dela se aproximar (art.º 200.º, n.º 1, alínea d), do CPP) - distância mínima de 1000 metros - com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16/9.

2.
Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a arguida, concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição).
           
1 - Por douta decisão de 02 de Novembro de 2022 foi determinada a aplicação à aqui recorrente a medida de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida ou dela se aproximar, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
2- Inexistem fundamentos de facto e de direito que justifiquem a aplicação de tal medida de coacção.
3- As medidas de coação a aplicar no processo penal obedecem à regra da tipicidade e à regra de taxatividade.
4- Como dispõe o n.º 1 do art.º 193.º do Código de Processo Penal, “as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.
5- Quando se decide aplicar uma medida de coação, o juiz deve formar um juízo prévio no sentido de equacionar se, no caso, se torna absolutamente necessário sujeitar alguém a uma medida desse tipo e se a medida pensada satisfaz e responde às exigências cautelares do processo.
6- Uma medida de coação é adequada se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares.
7- As medidas de coação devem ser proporcionais à gravidade do crime que se persegue e às sanções que previsivelmente lhe venham a ser aplicadas.
8- Inexistem, no caso concreto, elementos de facto que suportem a decisão recorrida, ocorrendo, por isso, erro de julgamento ao considerar adequada proibição de contactos como medida cautelar, violando-se o n.º 1 do artigo 193.°do C. P. Penal.
9- Os critérios a usar na aplicação das medidas de coacção são a legalidade, adequação, proporcionalidade e necessidade, critérios que, em concreto, objectiva e subjectivamente não foram aplicados, pelo que foram violados os princípios dos artigos 191°,n.º 1, 193°,n.os 1e 2 do C. Proc. Penal e n.º 2 do artigo 18° da C. R.P.
10- Seria suficiente aos interesses processuais, a salvaguardar, a manutenção da medida de coacção já prestada nos presentes autos (TIR) e que se afigura suficiente para se fazer face àquelas necessidades e exigências cautelares.
11- Os factos indiciariamente dados como provados na decisão ora em crise remontam ao mês de Agosto de 2022. – vide facto indiciariamente provado sob o n.º 6 . (negrito nosso).
12- No dia 14 de Setembro de 2022, pelas 14:30, a ora recorrente foi submetida à medida de coacção Termo de Identidade e Residência, prestado perante Órgão de Polícia Criminal.
13- No dia 02 de Novembro de 2022, pelas 11:30, à ora recorrente foi aplicada para além das obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos, a medida de coacção de proibição de contactos, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
14- Desde os factos indiciariamente dados como provados – Agosto de 2022 até à data da prestação do Termo de Identidade e Residência decorreu cerca de um mês- Setembro de 2022.
15- Nessa data, foi entendido sujeitar a ora recorrente apenas e tão-somente à medida de coacção de Termo de Identidade e Residência.
16- Isto é, em 14 de Setembro de 2022, foi a ora recorrente submetida à medida de coação de Termo de Identidade e Residência, porque, em concreto foi entendido ser essa a medida necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requeria e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
17- Desde a data da prestação do Termo de Identidade e Residência - 14 de Setembro de 2022 – até à data da aplicação da medida de coacção de proibição de contactos, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância decorreu mais de um mês e meio – 02 de Novembro de 2022.
18- Desde o mês de Agosto de 2022 até 02 de Novembro de 2022 (data da aplicação de nova medida), não existem nos autos quaisquer indícios, de uma eventual reiteração de comportamentos por parte da arguida, ora recorrente, que implique uma alteração da medida de coação que lhe foi fixada, em 14 de Setembro de 2022.
19- Não sobreveio qualquer actuação da arguida que apontasse no sentido da alteração das exigências cautelares e a consequente necessidade do reforço das medidas de coacção a aplicar-lhe.
20- No que aos perigos que fundamentaram a aplicação da nova medida de coação, não se mostram sequer patenteados nos autos, já que nada de novo foi ponderado, nomeadamente sobre uma eventual reiteração do comportamento da arguida, e que justifique a alteração ou o agravamento do estatuto coactivo da arguida.
21- Desde a aplicação do TIR até à prolação da decisão recorrida, não ocorreu qualquer facto ou circunstância dos quais resulte um efectivo perigo perturbação do inquérito e de continuação da actividade criminosa (art. 204.º CPP).
22- Donde, e em suma, quanto ao aludido perigo de perturbação do inquérito e de continuação da actividade criminosa, nada nos autos nos indica que a arguida o tenha feito.
23- Não se vislumbram quaisquer perigos de perturbação do inquérito ou de continuação da actividade delituosa, concretizados ou traduzidos em circunstâncias supervenientes que demandem um reforço ou alteração das medidas de coacção aplicadas.
24- Na decisão recorrida não é invocada qualquer nova circunstância que revele um acrescido perigo de perturbação do inquérito e de continuação da actividade criminosa e aponte para a necessidade da aplicação de nova medida de coacção, sequer são mencionados quaisquer indícios de que a arguida tenha sido ou pretenda ser violenta ou ameaçadora para a ofendida.
25- À luz do disposto no citado artigo 203.º, só em caso de violação de obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, poderia o juiz impor outras medidas de coacção, tendo ainda em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, o que certamente não sucedeu, porquanto a recorrente apenas estava sujeita a TIR, em termos de estatuto coactivo, como já se fez notar, não estando sujeita a quaisquer obrigações que porventura pudesse violar.
26- A arguida, tem 56 anos de idade, é casada, tem 1 filho, não tem antecedentes criminais, não tem e nem nunca teve, inquéritos pendentes, não existindo evidências de ser usualmente pessoa violenta ou conflituosa, encontrando-se socialmente inserida.
27- A arguida tem, ainda, a seu cuidado mais três pessoas de idade.
28- Os familiares estão satisfeitos com os cuidados e atenção que a arguida lhes presta, e estão disponíveis para serem testemunhas nos presentes autos.
29- Além de que, os idosos não querem sair de casa da aqui arguida.
30- A arguida encontra-se social, familiar e profissionalmente inserida.
31- A medida de coação aplicada viola o princípio da proporcionalidade, o qual tem que ser pensado não só em função da gravidade do crime mas também das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
32- Não se verifica o perigo de perturbação do inquérito nem de continuação da qualquer actividade criminosa.
33- A proibição de contactos com fiscalização por meios técnicos de controlos à distância, aplicada à arguida é desprovida de qualquer utilidade nem cumpre qualquer necessidade cautelar sentida no caso em apreço é perfeitamente desnecessária, inútil e, consequentemente, desproporcional e desnecessária.
34- Os perigos sentidos no caso em apreço e apontados pelo Tribunal “quo” podem ser perfeitamente acautelados com o TIR, já prestado nos presentes autos.
35- A proibição de contactar a ofendida é, no actual estado dos autos, ilegal.
36- Constitui um acto jurisdicional pelo qual o Estado Português não poderá, a final, deixar de ser responsabilizado em sede civil.
37- Impõe-se atalhar caminho e determinar, de imediato, a extinção da INFUNDADA, DESNECESSÁRIA e, por isso, ILEGAL medida de coação de proibição de contactar a ofendida.
38- O presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogado o despacho do Tribunal “ a quo”.
39- Com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” foram violadas as seguintes normas legais, artigos 191.º, 193.º, 194.º, 200.º, 203.º e 204º al. b) e c) do Código de Processo Penal, e artigos 18º, n.º 2, 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e, entre outros, os princípios da legalidade, da proporcionalidade e adequação, e da necessidade.
Nestes termos, deve ser revogada a medida de coacção e substituída por outra consentânea com os princípios da legalidade, da proporcionalidade, adequação e da necessidade, pelos motivos constantes nas conclusões expandidas supra,
Deste modo se fazendo a já costumada JUSTIÇA”.

3.
O Exmo Procurador da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência.
           
4
Neste Tribunal, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, considerando, em suma, que para além de não estar preenchido o crime de violência doméstica, não se mostram fundamentados os perigos de continuação da atividade criminosa e perturbação do inquérito.

5.
Notificada deste parecer, nos termos e para os efeitos do artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal, a arguida nada disse.


6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado.

Cumpre decidir.
           
II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Sendo pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam, no caso vertente, em face das conclusões da recorrente, a questão a decidir é a seguinte:
- Inexistência dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito - para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.
 
B) Para apreciação do presente recurso, importa ter presente o seguinte teor do Despacho Recorrido (transcrição):

“I - Factos indiciariamente provados
Nos presentes autos, mostram-se indiciariamente provados os seguintes factos:
1. A ofendida BB nasceu a .../.../1947, tendo actualmente 75 anos de idade.
2. A ofendida apresenta um quadro de demência em estado moderado correspondente a provável demência de Alzheimer.
3. Em consequência do seu estado clinico, foram no âmbito de Processo 109/19.... decretadas medidas de acompanhamento, tendo sido designado a título de acompanhante o seu filho CC.
4. A arguida DD é nora da ofendida e mulher do seu acompanhante.
5. A ofendida vive com o seu filho e com a arguida, e ainda com mais 3 idosos, na Rua ..., ..., ... ... de ....
6. Em data não concretamente determinada, mas situada no mês de Agosto de 2022, no interior da habitação, a arguida dirigiu-se à ofendida e expressou-lhe “filha da puta, fodo-te os cornos, sua puta do caralho, devias lamber o chão, sua filha da puta”, tendo a mesma respondido com gemidos.
7. Em consequência da conduta da arguida, a ofendida sentiu-se humilhada e apavorada. A arguida actuou com o propósito concretizado de violentar a ofendida e de desrespeitar a sua dignidade humana, recorrendo para o efeito a insultos e a ameaça.
8. A arguida sabia que assumia um comportamento cruel que causava humilhação, sofrimento, medo e perturbação à ofendida, a quem devia respeito e consideração, o que quis e o que efectivamente se verificou.
9. A arguida sabia que agia contra uma pessoa com idade avançada e num estado de saúde debilitado e totalmente dependente, e que por isso a mesma era uma pessoa particularmente indefesa e não tinha qualquer capacidade de reacção contra a sua investida.
10. A arguida sabia ainda que ao actuar dentro da residência familiar, ampliava o sentimento de receio da ofendida, visto que violava o espaço reservado da vida privada da família e o seu carácter securitário.
11. A arguida revelou uma personalidade deformada e contrária ao Direito, com clara intenção de violar os mais básicos princípios e deveres da vida em sociedade.
12. A arguida agiu de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, estando ciente que essas suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
II - Meios de prova indiciária
Os factos supra descritos resultam indiciados dos seguintes documentos:
- Documental:
- Participação de folhas 3;
- Certidão de folhas 39 e 40;
- Auto de inquirição de EE de folhas 59 e 60;
- Sentença de folhas 112 a 115;
- Relatório pericial de folhas 117 e 118.
III - Fundamentação
Os elementos de prova supra referidos que por razões de economia processual aqui se dão por integralmente reproduzidos.
A arguida prestou declarações, negando integralmente a prática dos factos. Afirmou que sempre tratou bem a sua sogra e que esta se encontra totalmente dependente e usa fralda.
Não obstante, as declarações da arguida confrontadas com os demais elementos de prova constantes dos autos não são suscetíveis de contrariar os factos supra dados como indiciados.
Qualificação jurídica dos factos:
Os autos demonstram fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º-1/d, 2/a, 4 e 5 do Código Penal.
No que para aqui especialmente releva, prevê o art. 152.º do Cód. Penal, que comete um crime de violência doméstica:
“1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; (…)
2 -No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
Relativamente ao bem jurídico protegido pelo crime em causa, afirma-se no Acórdão da Relação do Porto de 10/7/2013 (Rel. Maria do Carmo Silva Dias): “Está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, com Taipa de Carvalho, que “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos”, tendo em atenção as características do sujeito passivo, neste caso particular, que afectem a dignidade pessoal do ex-cônjuge do arguido.
Trata-se de um crime específico por pressupor uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo.
Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), altura em que, se assim suceder, a reiteração (que não é exigível para o preenchimento do tipo legal crime) funciona como elemento constitutivo do crime[2] (por isso o crime consuma-se com a prática do último acto que integra a actividade criminosa em causa).
No entanto, o crime em apreço também se preenche mesmo que não haja reiteração quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.”
E, seguindo de perto o Acórdão de Relação do Porto de 10 de Dezembro de 2014 (Rel. Lígia Figueiredo): “No entanto e como escreve Plácido Fernandes, “pese embora a supressão da distinção ente maus tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração - para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua na redacção vigente a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.” (realçado nosso)
Como se escreve no ac. da Relação do Porto de 26 de Maio de 2010, relator desembargador Joaquim Gomes, “…podemos assentar, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do art.152º do Cód. Penal, que a acção típica aí enquadrada tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais ou as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradantes da condição humana da sua vítima» - cfr. CJ, ano XXXV, tomo III, págs 216 e ss.”
Ou, seja sendo embora possível o cometimento do crime de violência doméstica através de um só acto, exige-se contudo que o mesma atinja de modo intenso, a dignidade pessoal da vítima, quer através da humilhação que oprima e degrade a sua condição, psíquica quer através da natureza do tratamento cruel das agressões físicas.” (sublinhado nosso).
No que diz respeito ao tipo subjetivo de ilícito, há que ter em consideração que se trata de um crime doloso.

*
As medidas de coação previstas no CPP obedecem ao princípio da legalidade (art. 191º) e da tipicidade, devendo ser aplicadas in casu apenas aquelas que se mostrem necessárias e adequadas às exigências cautelares do caso, bem como proporcionais à gravidade do crime e sanções que lhe possam vir a ser aplicadas (art. 193º, nº 1).
Para além disso, as medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência só podem ser aplicadas se no caso concreto se verificarem os pressupostos do artigo 204º, a saber: fuga ou perigo de fuga (al. a); perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo (al. b); perigo de continuação da atividade criminosa por parte do arguido ou perturbação da ordem e tranquilidade públicas (al. c).
Cumpre decidir.
Na aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial devem ser tidos em conta determinados princípios:
- da legalidade e tipicidade - apenas são passíveis de aplicação as medidas de coação previstas na lei, quer no Código de Processo Penal, quer em legislação avulsa (artigos 191º e do CPP e 18º , 2 da CRP).
- da adequação, da proporcionalidade e da necessidade - só devem ser aplicadas quando absolutamente necessárias, por adequadas às exigências cautelares que o caso concreto obriga e proporcionais à gravidade do crime imputado (artigos 192.º, 2, 193.º,1 e 3, 195.º e 204.º do CPP e 18.º, 3 da CRP);
- da subsidiariedade - deve dar-se prioridade às menos gravosas, desde que na sua aplicação não resultem inconvenientes graves para a prossecução do interesse processual em causa. Com relevância para que a medida de prisão preventiva seja de aplicação residual (última ou extrema ratio), quando as outras medidas se revelem, no caso concreto, inadequadas ou insuficientes (artigos 193.º, 2 e 202º, 1º do CPP e 28.º, 2 da CRP).
- da precariedade (art. 212º nº 1 al. b) e 213º do CPP), atento o princípio constitucional da presunção de inocência, (32º, 2 da CRP) não devem ultrapassar o “...comunitariamente suportável, face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente...”” (Figueiredo Dias, O Novo Código de Processo Penal, CEJ, 1988, p. 27).
Na aplicação de qualquer medida de coação, em especial a prisão preventiva, há que ter em conta o princípio constitucional da presunção da inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória - art. 32º, nº 2 do CRP.
Este princípio constitucional, relativamente ao arguido, como sujeito objeto de medidas de coação, “vincula estritamente a exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente. E daí, as exigências- constitucionalmente consagradas, de forma expressa, para a prisão preventiva ... da necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade e precaridade que o artigo 193º integralmente traduz”- Figueiredo Dias, O Novo Código de Processo Penal, CEJ, 1988, p. 27).
O direito processual penal é direito constitucional aplicado, daí que o CPP tenha consagrado os princípios supra mencionados.
Dos citados princípios constitucionais resulta que a prisão preventiva aparece condicionada por uma cláusula de última ratio, isto é, por se tratar da medida mais gravosa, só pode ser aplicada a título subsidiário, ou seja quando nenhuma outra medida se mostre adequada à satisfação das exigências processuais que se façam sentir- art. 193º nº 2 e 202º nº 1 do CPP e 27º n.º 3 al. b) e 28º 2 da CRP.
Assim sendo, a liberdade é a regra. A prisão a exceção. É à luz deste princípios que devem ser interpretados os artigos 202º e 204º do CPP.
- princípio da subsidiariedade da aplicação da prisão preventiva, ou seja, determina a lei, nos arts. 193.º, n.º 2, e 202.º, n.º 1, do Código Processo Penal, que o Juiz só pode impor ao arguido a prisão preventiva quando se revelarem inadequadas ou insuficientes todas as outras medidas de coação.
*
Das necessidades cautelares e medidas de coação.
Feita a qualificação jurídica dos factos indiciados, cumpre agora determinar se à arguida deve ou não ser aplicada alguma medida de coação mais grave que o termo de identidade e residência já prestado e, em caso afirmativo, qual.
A este propósito importa começar por referir que o decretamento de uma qualquer medida de coação, com exceção do termo de identidade e residência, está sujeito aos requisitos enunciados no artigo 204.º do Código de Processo Penal, os quais se devem verificar em concreto, ainda que não sejam cumulativos. Ou seja, basta a ocorrência de um destes pressupostos para justificar a restrição cautelar das liberdades fundamentais de um cidadão.

Assim, e de acordo com o previsto na citada disposição normativa, para que possa ser aplicada medida de coação mais gravosa que o simples termo de identidade e residência exige-se a verificação em concreto de pelo menos um dos seguintes requisitos:
- Fuga ou perigo de fuga;
O perigo de fuga há-de ser conclusão a extrair de facto concretos evidenciados no processo que, sem prejuízo da consideração conjugada com a gravidade dos factos e correspondente moldura penal abstrata e com real situação pessoal, familiar, sócioeconómica do arguido indiciem uma preparação para a concretização de tal intento.
Não existe qualquer presunção de perigo de fuga e, designadamente por alguém ter conhecimento de ser arguido num processo, de poder vir a ser, por via disso, condenado a pena de prisão ou de ter meios económicos superiores ao cidadão comum ou, ainda, ter possibilidade de num qualquer outro ponto do país ou no estrangeiro recomeçar a sua vida. (neste sentido veja-se Acordão, da Relação do Porto, datado de 16.11.2011, processo 828/10.3JAPRT cujo relator é o Exm.º Desembargador Ernesto Nascimento).
- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,
- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Esta condição, que deve igualmente ser concretizada, tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afetada com a conduta criminosa revelada pelo arguido e que tem potencialidades, objetivas (natureza e circunstâncias) ou subjetivas (personalidade), para continuar a alarmar ou mesmo para manter essa atividade delituosa.
Para o efeito torna-se necessário efetuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada atividade delituosa.
Diga-se que tal juízo de perigosidade social deverá estar sempre conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa social, que sejam jurídico-penalmente neutras.
Nem tão pouco, deverá ter que ver com meras situações de «alarme social», despidas de qualquer ilicitude.
Posto isto, vejamos se nos autos se encontra preenchido algum dos referidos requisitos supra referidos.
O perigo de fuga no caso dos autos não é relevante, não sendo conhecidas ligações da arguida ao estrangeiro.
Existe ainda algum perigo de perturbação do inquérito, já que no caso ainda há diversas diligências a praticar no âmbito do inquérito.
O perigo de continuação da atividade criminosa, esse sim, é muito elevado, já que a ofendida reside na casa da arguida, sendo esta a sua única e exclusiva cuidadora, pelo que a ofendida se mostra totalmente indefesa perante a arguida, dada a situação de saúde em que se encontra e a sua impossibilidade de reação.
Acresce que sofrendo a ofendida de demência e sendo o seu acompanhante o marido da arguida se conclui que a mesma se encontra totalmente desprovida de qualquer apoio diário que lhe permita defender-se da atuação da arguida.
Cabe ainda ter em conta a relação existente entre a ofendida e a arguida e a personalidade por esta evidenciada na sua atuação, concluindo-se existir um concreto perigo de continuação da atividade criminosa, afigurando-se como altamente provável que a mesma persista na sua conduta maltratante.
Por outro lado, trata-se de criminalidade suscetível de causar danos irremediáveis e de criar perigo para a vida da ofendida, o que é gerador de forte alarme social e de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Finalmente, é do conhecimento público o número de mortes que têm vindo a ocorrer em território nacional de vítimas de violência doméstica, muitas delas sem que até então tenha sido dado qualquer sinal de alerta às autoridades competentes.
Por todo o exposto, cabe a este Tribunal atuar de modo a evitar a continuação da atividade criminosa da arguida, assim salvaguardando a vida e a integridade física da ofendida.
IV - Decisão
Face ao exposto, atendendo aos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, e considerando que as referidas exigências cautelares podem ainda ser salvaguardadas com uma medida não detentiva da liberdade, determino, ao abrigo das disposições conjugados nos artigos 191.º, 193.º, 196.º, 194.º, n.º 1, 198.º, 200.º, n.º 1, alíneas d) e 204.º alíneas b) e c), todos do Código de Processo Penal, que a arguida aguarde os ulteriores termos do processo sujeita, cumulativamente, às seguintes medidas de coação:
- Às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos;
- Proibição de contactar, por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), direto ou por interposta pessoa, com a ofendida ou de dela se aproximar (art.º 200.º, n.º 1, alínea d), do CPP), com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16/9, estabelecendo-se uma distância mínima de 1.000 (mil) metros da ofendida, incluindo não contactar a ofendida seja porque motivo for.
Por, em nosso entender, se mostrar imprescindível à proteção da ofendida, atendendo aos comportamentos agressivos da arguida verificados nos últimos dias, determino, ao abrigo do disposto no artigo 36.º, n.º 7 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que o cumprimento das medidas aqui aplicadas ao abrigo do disposto no artigo 31º do mesmo diploma seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, caso a ofendida dê o seu consentimento.
A verificar-se esta situação oficie à DGRSP para proceder em conformidade, promovendo a instalação dos meios adequados e informando os autos de inquérito de todas as vicissitudes de carácter anormal no cumprimento das medidas que detetar.

(…)”.

C) Apreciação do recurso

Como já referimos, a recorrente veio pôr em causa a verificação dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito com base nos quais o tribunal recorrido decidiu aplicar-lhe a medida de coação de proibição de contactar, por qualquer meio com a ofendida ou de dela se aproximar, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
Porém, sendo a questão da qualificação jurídica do conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo STJ, através do Acórdão Uniformizador, nº4/95, de 7/6/95, publicado no DR - I Série - A, de 6/7/95, e não se revendo este tribunal de recurso no enquadramento jurídico-penal a que a Mma Juiz procedeu dos factos considerados indiciados, impõe-se tomar posição, antes de mais, sobre esta questão.

Ora, comete o crime imputado à arguida, de acordo com o disposto no art.152º, nº1, do Código Penal, “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite
(…)».
Tal crime, punido com pena de prisão de um a cinco anos de prisão, passa, porém, a ser punido com pena de prisão de 2 a 5 anos, no caso do agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (nº2, al.a), do preceito legal citado).
Vem a doutrina e a jurisprudência, maioritariamente, identificando o bem jurídico protegido por este tipo legal como sendo a saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 512, Plácido Conde Fernandes, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Número 8, Especial, pág. 305 e Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 15 e ss.).
Salienta André Lamas Leite, in Revista “Julgar”, nº 12, págs. 25 e segs., a respeito do bem jurídico tutelado pelo crime em apreço, que o mesmo tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana.
(…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam”.
Tal ilícito criminal pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, sendo, por conseguinte, um crime específico impróprio, isto é, um delito que só poderá ser levado a cabo por determinadas categorias de pessoas, em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre os mesmos existente.
Em regra, este ilícito vem consubstanciado numa “repetição” das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade ou reiteração, embora também se possa consubstanciar num ato só, o que verdadeiramente só acontecerá em circunstâncias extraordinárias, se ele for suficientemente grave para afetar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima.
A reiteração pressupõe, do ponto de vista da ação de facto, a repetição da conduta danosa.
Do ponto de vista da ação penal, pressupõe a verificação de um estado de “agressão” permanente, pese embora as “agressões” individuais não tenham de ser constantes.
Entre elas, todavia, há-de haver alguma proximidade temporal relativa, o que quer dizer que no contexto da concreta convivência do sujeito do crime e da vítima, as repetidas ações haverão de estar próximas entre si.
O que importa é que os factos, isolados ou reiterados, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal (neste sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 29/1/2003, 4/11/2004 e 28/1/2010, Acs. da RP de 12/5/2004 e de 3/7/2002, todos in www.dgsi.pt.).
Como também se decidiu no Ac. da RP, de 9/01/2013 (in www.dgsi.pt):
“Este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.
Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual”.
Não definindo a lei o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, as condutas que integram o tipo objetivo podem ser de várias espécies: maus-tratos físicos que visam atingir diretamente o corpo do ofendido (dano corporal) e maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças, injúrias, privações da liberdade, estratégias de controlo, abuso verbal e emocional que perturbe a normal convivência e as condições em que possam ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar), condutas que analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.
Com o crime de violência doméstica visa-se, por conseguinte, proteger mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132, e Conde Fernandes, in Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305).
O que importa é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.
O traço distintivo que permite conferir esta forma específica e reforçada de tutela, mediante a incriminação do art. 152º do CP a condutas que sem essa especial incriminação só seriam social ou moralmente censuráveis ou só seriam enquadráveis como crimes autónomos de ofensas à integridade física simples ou qualificadas, de ameaças simples ou agravadas, de coação simples, de sequestro simples, de coação sexual, de violação, de injúria ou de difamação, etc., é a existência de um «estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante» (Plácido Conde Fernandes, in obra citada, página 307).
«Para este efeito (da incriminação pelo tipo legal de violência doméstica), deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto» (Nuno Brandão, in obra citada, p. 9 a 24).
Como se referiu no Ac. da Relação de Coimbra de 12/4/2018, in dgsi.pt, em que foi Relator o Juiz Desembargador Vasques Osório « (…) a qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito, da mesma forma que a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, ob. cit., pág. 19).
Na verdade, a violência doméstica não é, apenas, o mero somatório das acções, típicas ou não, praticadas pelo agente contra a vítima, mas o que deste conjunto de acções, globalmente considerado, resulta, a relação de domínio daquele sobre esta, relação esta apta a afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade».
Decisivo para efeitos de avaliar se a conduta do arguido é subsumível ao tipo de violência doméstica é atentar no seu carácter violento ou na sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma; só assim será suscetível de ser classificada como de “maus tratos” – ainda que não tenha chegado a produzir-se um dano efetivo.
Revertendo ao caso em análise, impõe-se atentar no respetivo enquadramento e concretas circunstâncias em que a arguida agiu.
Resulta dos factos indiciados que a ofendida tem atualmente 75 anos de idade, apresenta um quadro de demência em estado moderado correspondente a provável demência de Alzheimer, vive com o seu filho e com a arguida, e ainda com mais 3 idosos, na Rua ..., ..., ... ... de ....
Mais deles resulta, ao nível da objetividade da atuação da arguida, que em data não concretamente determinada, mas situada no mês de agosto de 2022, no interior da habitação, a arguida dirigiu-se à ofendida e expressou-lhe “filha da puta, fodo-te os cornos, sua puta do caralho, devias lamber o chão, sua filha da puta”, tendo a mesma respondido com gemidos.
Ora, temos para nós que este singelo episódio não representa, por um lado, um potencial de agressão que supere, que transcenda a proteção oferecida pelos crimes de injúria e de ameaça e, por outro, não é suscetível de integrar uma situação de maus tratos da qual resultem ou sejam adequados a provocar sérios riscos para a integridade psíquica da vítima – excluída que está manifestamente a possibilidade de os provocar para a integridade física ou de configurarem castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais.
É certo que no conceito de maus tratos psíquicos está contemplado um leque variado de condutas, que se podem manifestar mediante humilhações, provocações, ameaças, tanto de natureza física ou verbal, insultos, como privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, que revelem desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou indefesa, mas não necessariamente um sofrimento psicológico.
No entanto, o relevante é que os maus tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretende exercer em relação à vítima, decorrente da posição de maior vulnerabilidade desta.
Deste modo, podemos integrar nos maus tratos psíquicos todo o constrangimento, seja realizado de modo direto ou expresso, seja de modo indireto ou implícito, temporalmente concentrado ou distribuído que, pelo menos e de modo ostensivo, atemorize ou desestabilize a vítima com vista a afetar a sua integridade psicológica.

No caso concreto, temos para nós que a falta de indiciação do contexto, contornos e causas acerca das concretas circunstâncias em que a arguida agiu se não indiciam um comportamento cruel ou insensível ou uma intenção perversa da sua parte, não deixam, contudo, de traduzir um comportamento criminalmente típico.
De facto, estamos perante factos que, ainda que indiciários, são merecedores de grande censura ética e mesmo de carácter penal, pela sua subsunção aos tipos legais de injúria (“filha da puta”, “sua puta do caralho”) e de ameaça (“fodo-te os cornos”).
No entanto, não se indicia aquele “quid”, aquele “plus”, a traduzir um maior desvalor ou da ação ou do resultado, sequer, um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima, nem uma particular danosidade social do facto, que afinal, fundamentam a especificidade deste crime de violência doméstica.
E dai que não possa afirmar-se que este episódio tenha a virtualidade de, objetivamente, ultrapassar o amesquinhamento, o vexame e a humilhação inerentes ao crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º C Penal e o receio, medo, inquietação inerentes ao crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, nº1, al. b), ambos do Código Penal.
Seguro é que não tem a virtualidade de integrar um ato típico de maus tratos – psíquicos, pois que de outra natureza não terão aptidão para ofender - exigidos pelo crime de violência doméstica.
Posto isto, afastado que se mostra o enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida à luz do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado, na medida em que o episódio objetivamente indiciado é quando muito suscetível de configurar a prática por aquela de um crime de injúria, p. e p. pelo art.181º, do Código Penal e um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, nº1, b), importa agora indagar da implicação da nova subsunção jurídica dos factos na situação coativa da arguida.
 Ora, tendo em conta as molduras penais abstratas de tais ilícitos – o crime de injúria é punido com pena de prisão até 3 meses e o crime de ameaça com pena de prisão até 2 anos – facilmente se conclui que os mesmos não comportam, de todo, a medida de coação aplicada à arguida, apenas admissível para crimes punidos com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
Por conseguinte, outra solução não resta do que revogar a medida de coação aplicada à arguida em sede de interrogatório judicial, ficando prejudicada a apreciação da questão supra enunciada, cabendo ao tribunal recorrido, caso assim o entenda, ponderar a eventual aplicação de outra medida de coação, admissível no caso, para além do TIR a que a arguida já se encontra sujeita.

III. Dispositivo
           
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pela arguida, revogando-se a medida de coação de proibição de contactos que lhe foi aplicada,
 
Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários.
                       
Guimarães, 6 de março de 2023

A Juiz Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
O Juiz Desembargador Adjunto
António Teixeira
A Juiz Desembargadora Adjunta      
Florbela Sebastião e Silva