INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÕES
Sumário

I - Uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais.
II - O que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.

Texto Integral

Apelação n.º 49/22.2T8AMT-A.P1


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório
A credora A..., Unipessoal, Ld.ª, requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência de B..., Unipessoal, Ld.ª, alegando, em síntese, ter-lhe efectuado fornecimentos de bens comprovados por facturas referentes a cada uma das transacções realizadas no ano de 2017, cujos valores não foram pagos, apropriando-se indevidamente a insolvente dos valores devidos e titulados por tais facturas, e, para além disso, de não se ter apresentado atempadamente à insolvência, mais concretamente no final de 2017 por incumprimento das suas obrigações para com os credores, e, ainda, por não ter contabilidade organizada a partir de 2018, e incumprido de forma reiterada o dever de apresentação à insolvência a partir de 2019, imputando-lhe a violação do disposto no artigo 186.º, nº 2, alíneas g), h) i) e n.º 3, alíneas a) e b), CIRE, com a afectação de AA na qualidade de sócio e gerente da insolvente.

O Sr. Administrador de Insolvência emitiu parecer no sentido de qualificar a Insolvência como fortuita, não obstante a não correspondência de registo da contabilidade com a situação da empresa, por ausência de nexo de causalidade entre essa circunstância e a situação de insolvência, atribuindo esta a razões de mercado.

O MP pronunciou-se no sentido de não se verificar o preenchimento das alíneas g) e i), do n.º 2, nem das alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 186.º, CIRE, mas apenas a referente à alínea h) do n.º 1 do artigo 186.º, CIRE, por entender haver irregularidade da contabilidade na IES de 2020, balancete e razão de 2021, e irregularidades traduzidas em registo no activo de valores fictícios, entendendo ser de qualificar a insolvência como culposa e com afectação do AA, na qualidade de sócio e gerente de facto e de direito da insolvente, que, nessas qualidades e em sua representação, tomou todas as decisões relacionadas com a actividade desenvolvida por esta sociedade, com os demais efeitos legais, designadamente, os previstos no artigo 189.º, do mesmo diploma legal.

Cumprido o disposto no n.º 5 do artigo 188.º, CIRE, foi apresentada oposição, nos termos da qual foi admitido o alegado no parecer no AI, mas sustentando que a situação de insolvência se deveu a razões de mercado.

Foi proferido despacho saneador, procedendo-se ainda fixação do objecto do litígio e temas de prova e determinado a junção de documentos.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidido:

I) Qualificar como culposa a insolvência de B..., Unipessoal, Ld.ª;

II) Declarar afectado pela insolvência como culposa seu gerente AA;

III) Decretar a inibição de AA por um período de 2 anos e seis meses; para:
i) administrar patrimónios de terceiros; e
ii) o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

V) Condenar AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do respectivo património.

Inconformado, apelou o devedor, apresentando as seguintes conclusões:
1.º - Não se conforma o Recorrente com a douta decisão proferida.
2.º - A douta sentença está ferida de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 al. d), por omissão de pronúncia quanto ao pressuposto da qualificação da insolvência como culposa relativo ao limite temporal: três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
3.º - «Em face do estatuído na noção geral vertida no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, a insolvência é culposa quando se verificar simultaneamente que: i) a mesma sobreveio a uma actuação ou omissão dolosa, ou com culpa grave, ii) do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito, iii) que tenha causado ou agravado a situação de insolvência, iv) e tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do respectivo processo», In AC. TRE de 12/06/2019, relator Albertina Pedroso.
4.º -Ora, salvo melhor entendimento, da prova produzida e da factualidade dada por provada nestes autos, impõe-se concluir que não se preencheram os pressupostos de qualificação da insolvência como culposa.
5.º - Na verdade, face à factualidade dada por provada, mormente nos pontos 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21, impunha-se decisão diversa da doutamente proferida, isto é, impunha-se a qualificação da insolvência como fortuita.
Porquanto:
6.º - De toda a prova documental, bem como das declarações prestadas pelo Recorrente, testemunha BB e Administrador Judicial resulta evidente que a insolvente cessou definitivamente actividade, para efeitos de IVA, em 30/11/2018 e não há sinais nos autos de actividade comercial, nomeadamente transacções comerciais ou prossecução do escopo social da empresa após 2018.
7.º - Na IES e o balancete do razão dos anos 2019, 2020 e 2021 o exercício, desses anos, foi nulo.
8.º - Esta informação é confirmada pelo Administrado Judicial, que prestou depoimento em 12/09/2022, 2022 e registado em suporte informático entre as 10:59:26 a 11:30:04, onde referiu o seguinte: «Porque, em primeiro lugar, foi uma declaração prestada pela insolvente, segundo e mais importante de tudo, cessou a actividade para efeitos de IVA, e não há nenhuma evidência de nenhuma transacção comercial após 2018. Não é? Pelo menos pelos documentos que chegaram à minha mão e pelas informações que eu recolhi junto de clientes, junto do insolvente e até pela própria requerente
9.º - Os requisitos da qualificação da insolvência como culposa, contidos no artigo 186.º do CIRE são cumulativos, pelo que, a ausência de verificação de qualquer um dos requisitos determina que a insolvência não possa qualificar-se como tal.
10.º - A acção ou omissão deve ocorrer no prazo de três anos indicado no n.º 1 do artigo 186.º, que é um dos pressupostos cuja verificação depende a qualificação da insolvência como culposa, pelo que, não se verificando este requisito legal, a insolvência não pode ser qualificada como tal, e assim o é, na modesta opinião do aqui Recorrente.
Mas ainda que assim não se entenda,
11.º - Quanto aos pressupostos de a insolvência ter sobrevindo de omissão ou actuação, dolosa ou com culpa grave, dos administradores de facto ou direito, resultou provada a seguinte factualidade:
12.º - “Os créditos sobre clientes já não existiam porque tinham sido pagos, sem que o pagamento tivesse sido registado contabilisticamente, assim como também não existia qualquer saldo bancário, que era efectivamente nulo.” Ponto 15 da factualidade provada.
13.º - “A insolvente procedeu a pagamentos aos seus credores, não conseguindo fazê-lo junto da Requerente nem da credora C..., S.A.”, ponto 17 da factualidade provada.
14.º - “Ao cessar a actividade, AA procurou cessar o avolumar dos resultados negativos.”, ponto 21 da factualidade provada.
15.º - Esta factualidade resultou provada das declarações prestadas pelo Recorrente, dos documentos juntos aos autos referentes à informação prestada pelos devedores da insolvente (que comprovaram que os pagamentos foram todos efectuados nos anos 2017 e 2018) – entre os quais, “D... Lda.” (email de 14/06/2022); “E... S.A.” (requerimento de 24/06/2022, ref.ª 42677771), “F... Lda.” (requerimento der 30/06/2022),“G... Lda.” (email de 19/07/2022).
16.º - Resultou ainda quanto ao ponto 21 da factualidade dada por provada das declarações da testemunha BB, que corroborou as declarações do Recorrente neste ponto, conforme resulta da motivação.
17.º - Aliás, da douta sentença recorrida, resulta a seguinte motivação, na parte do depoimento do Requerido: “confessou estar em dívida com a requerente, tendo vendido tudo o que lhe comprou mas que a situação em que se viu se deveu a razões de mercado (…) relatando que foi pagando a quem lhe aparecia, não tendo conseguido pagar a todos os seus fornecedores e que, em determinado momento, decidiu parar a sua actividade, destacando que, em dado momento negou-se a comprar mais mercadoria à A... porque assumiu que não tinha condições de continuar para não fazer mais dívida, negando que tivesse usado o dinheiro para enriquecimento pessoal e afirmando viver modestamente com a sua família.”
18.º - Já quanto ao depoimento do Sr. Administrador Judicial, resulta da motivação da douta sentença recorrida que o mesmo “confirmou a existência de discrepâncias entre o registado na contabilidade como havendo créditos de clientes e dinheiro, quando inexistia, mas isso não era idóneo, no seu entendimento, para a qualificação da insolvência.”
19.º - Atente-se novamente no depoimento do Sr. Administrador Judicial, prestado no dia 12/09/2022 e registado em suporte informático entre as 10:59:26 a 11:30:04, «Administrador de Insolvência: Essencialmente e daquilo que eu pude analisar da documentação contabilística e informação prestada pelo contabilista e pelo insolvente, foi de que a empresa estava insolvente porque havia dívidas que não conseguiu pagar, havia algumas omissões contabilísticas, não me pareceu que essas omissões tivessem influência na insolvência e portanto o meu parecer que consta do relatório é de que isto é uma insolvência fortuita
20.º - E ainda que «A empresa teve alguns anos em que teve resultados positivos, mas teve outros anos, nomeadamente o último [2018], em que teve resultados negativos. De qualquer forma há uma evidência, pelo menos penso que é unânime porque o requerente da insolvência diz isso e a insolvente também diz, há uma … incapacidade em a empresa solver os seus compromissos, não tem dinheiro, financeiramente está mal. Está mal porque o último ano foi mau, mas está mal porque tem uma estrutura financeira errada, não dá para suster as dificuldades financeiras que tem.» – Parêntesis recto nosso.
21.º - Não resulta, na modesta opinião do Recorrente provada qualquer conduta ou omissão que releve para a qualificação da insolvência como culposa.
22.º - Já quanto ao factor-índice contido no artigo 186.º n.º 2 al. h) do CIRE, que foi aquele sobre o qual o tribunal se debruçou, tendo em atenção da factualidade apurada, resultou provado que:
23.º - “Os créditos sobre clientes já não existiam porque tinham sido pagos, sem que o pagamento tivesse sido registado contabilisticamente, assim como também não existia qualquer saldo bancário, que era efectivamente nulo.” Ponto 15 da factualidade provada.
24.º - “Situação que AA sabia e não regularizou contabilisticamente.” Ponto 16 da factualidade provada.
25.º - “Ao cessar a actividade, AA procurou cessar o avolumar dos resultados negativos.”, ponto 21 da factualidade provada.
26.º - Apela-se, mais uma vez, pela sua relevância ao depoimento do Sr. Administrador Judicial, prestado no dia 12/09/2022 e registado em suporte informático entre as 10:59:26 a 11:30:04: «Eu sou de opinião que estas omissões de lançamentos, são comuns a grande parte das empresas portuguesas, nomeadamente empresas de pequena dimensão, daqui não resultou a situação de insolvência da empresa, ou seja, a empresa não ficou insolvente devido a omissão destes registos, nem a omissão dos registos agravou a situação de insolvência»
27.º - Não se efectuaram os lançamentos contabilísticos que permitissem que se percebesse o estado de saúde da sociedade.
28.º - Mas, por outro lado, a insolvente, a partir de 2018 não mais realizou transacções comerciais,
não mais desenvolveu o seu escopo social, não mais comprou, não mais vendeu!
29.º - Portanto, a omissão dos registos contabilísticos em causa em nada contribuiu para a situação de insolvência.
30.º - Não foi, pois, a omissão desses lançamentos, em 2018, que criou ou agravou a situação de insolvência desta sociedade, como muito bem referiu o Sr, Administrador Judicial, porque após 2018 não houve actividade comercial.
31.º - A qualificação da insolvência não se basta com a mera omissão de cumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada - presunção de culpa -, além disso, é necessário alegar e provar que o não cumprimento dessa obrigação criou ou agravou na situação de insolvência.
32.º - «O n.º 2 do normativo em apreço enumera situações em que a insolvência se considera sempre culposa, enquanto o n.º 3 enumera situações em que se presume a existência de culpa grave. A previsão dos dois números contempla situações diversas: enquanto a verificação das situações previstas no n.º 2 do citado artigo conduz necessariamente à qualificação da insolvência como culposa, a verificação dos factos previstos no n.º 3 apenas faz presumir, de forma ilidível, a existência de culpa grave. Mas, mesmo verificando-se esta presunção, por não ter sido ilidida, exige-se, ainda, para qualificar de culposa a insolvência a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela dita conduta culposa dos administradores.» - Ac. TRP de 07/01/2008, relator Anabela de Luna Carvalho.
33.º - Para que a insolvência seja qualificada como culposa torna-se necessário que nos três anos que antecederam a entrada em juízo do processo de insolvência esse facto, ou essa omissão, tenha criado ou agravado a situação de insolvência, não bastando a mera constatação objectiva desse comportamento omissivo.
34.º - No modesto entendimento do Recorrente, a factualidade apurada não permite responder em que é que o não cumprimento desses registos contabilísticos criou ou agravou a situação de insolvência, isto é, em que é que contribuiu para a situação de insolvência.
35.º - Nenhum facto vem provado de que possa concluir-se que a situação de insolvência foi criada ou agravada por essa omissão do gerente da insolvente, aqui Recorrente.
36.º - Atento tudo o supra exposto, incorreu a douta sentença recorrida na violação do preceituado no artigo 186.º n.º 1 e n.º 2 a. h) do CIRE, bem como o disposto no artigo 615.º n.º 1 al. d) do CPC.
37.º - Atenta a factualidade dada por provada impunha-se que o tribunal a quo concluísse que não se preencheram os seguintes pressupostos impostos pelo artigo 186.º:
- A criação ou o agravamento da situação de insolvência,
- Nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência
- O incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter a contabilidade organizada; manutenção uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade; prática de irregularidade que causasse prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade.
37.º - Impunha-se, portanto, que o tribunal a quo concluísse pela qualificação da insolvência como fortuita, o que aqui se requer.
TERMOS EM QUE:
Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a douta sentença recorrida e concluindo-se pela qualificação da insolvência como fortuita.
Assim, o fazendo, farão V/Exas.
ACOSTUMADA E SÃ JUSTIÇA!
Contra-alegou o credor requerente do incidente, assim concluindo:
a) O recurso apresentado pelo Recorrente, a que ora se responde, versa, salvo melhor opinião, apenas sobre matéria de direito, e conforme exarado em A) supra (DA INADMISSIBILIDADE DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO E DO RECURSO NOS TERMOS DO ARTIGO 640º, Nº 1 AL. A), B) E C) DO CPC (artigo 638º, nº 6 do CPC)), deve o presente recurso ser rejeitado.
b) Pois que, dispõe o artigo 640º, nº 1 do CPC, sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, que: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
c) Salvo o devido respeito, o recurso apresentado não cumpre o ónus imposto pela citada norma, ao não indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não indica os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, nem a decisão que sobre as questões de facto impugnadas deveria ser proferida.
d) Efetivamente, impunha-se ao Recorrente de acordo com a citada norma, a concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação da decisão a proferir, o que este não fez.
e) A impugnação da matéria de facto, não deve servir apenas como um expediente para que ao prazo normal de recurso acrescam os 10 dias a que faz referência o artigo 638º, nº 7 do CPC, antes constitui um verdadeiro ónus que incumbe às partes, e cujo não cumprimento acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o estatuído no citado art.º 640.º, nºs 1 e 2, não havendo, nestes casos, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.
f) In casu, o Recorrente nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, indicou quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos, limitando-se a alegar que perante a matéria de facto dada como provada (não impugnada), deveria o Tribunal decidir de forma diferente, sem sequer alegar que os factos dados como provados deveriam ser dados como não provados ou vice-versa.
g) E assim, resta considerar que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, als. a) a c) do CPC, impondo-se, consequentemente, a rejeição do recurso interposto, o que se requer.
h) Por outro lado, e conforme supra exarado em B) (DA INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO INTERPOSTO (artigo 638º, nº 6 do CPC)), deve o recurso ser julgado intempestivo/extemporâneo.
i) Dispõe o artigo 9º do CIRE que “o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.”
j) Por sua vez, o artigo 638º, nº 1 do CPC prevê que “o prazo para a interposiçaÞo do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º”, o que é o caso.
k) E o nº 7 da citada norma, prevê o acréscimo do prazo de 10 dias, quando o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada.
l) Ora, tendo em conta o sobredito, quanto à rejeição do recurso por incumprimento do ónus previsto no artigo 640º, nº 1 do CPC, o prazo de interposição do mesmo era de 15 dias, que terminaram no dia 22.11.2022, uma vez que as partes foram notificadas da douta sentença no dia 02.11.2022 (data citius), e ainda que o Recorrente pudesse usar da faculdade prevista no artigo 139º, nº 5 do CPC, tal prazo terminou no dia 25.11.2022.
m) Tendo o recurso dado entrada no dia 04.12.2022, há muito se mostra o prazo dos 15 dias ultrapassado, razão pela qual, deve o recurso interposto ser julgado intempestivo/extemporâneo, o que, consequentemente, impõe a sua rejeição, o que se requer.
n) Sem prescindir, para o caso de se entender que o recurso não deve ser rejeitado, no que não se concede atento o sobredito e apenas por mera hipótese académica se admite, sempre se diz que a douta sentença não merece qualquer reparo, quer de facto, quer de direito.
o) Começando pelo primeiro dos argumentos, entende o Recorrente que a douta sentença padece de nulidade, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por omissão de pronúncia.
p) Fundamentando tal alegação no facto de, no seu entender, com o qual se discorda, “a douta sentença debruça-se amplamente sobre alguns dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, dando especial atenção, ênfase e fundamentação ao índice contido na al. h) do n.º 2 do artigo 186.º, preterindo a pronúncia e apreciação sobre este outro pressuposto: a factualidade decorrente de actuação verificada nos três anos anteriores ao iniìcio do processo de insolvência”.
q) Sucede que, não lhe assiste qualquer razão, bastando-se uma atenta leitura da douta sentença da qual resulta que o Tribunal a quo verificou a atuação do Recorrente nos três anos anteriores ao ínicio do processo, bastando-se a análise dos pontos 13 e 14 da matéria de facto dada como provada (e não impugnada).
r) E ASSIM, a douta sentença não padece de nulidade por omissão de pronúncia, temdo conhecido de todas as questões que devia conhecer, resolvendo-as, ainda que a descontento do recorrente, porém, tal descontamente e/ou discordância, não fazem da mesma nula.
s) Por outro lado, como é consabido, a doutrina e a jurisprudência convergem no sentido de se entender que, perante a verificação de cada uma das situações previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 186º, a insolvência é sempre considerada como culposa,
t) Pois que, como bem se expos na douta sentença “Considerando a dificuldade no apuramento do caraìter doloso ou de culpa grave da conduta e o nexo de causalidade, levou a que o legislador elencasse os factos tidos como graves, embora atribuindo-lhes uma diferente natureza conforme caiba a situaçaÞo no nº 2 ou no nº 3 da norma do art.186º do CIRE.”
u) Ora, nos termos da al. h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que naÞo seja pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito, tenham: h) Incumprido em termos substanciais a obrigaçaÞo de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictiìcia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuiìzo relevante para a compreensaÞo da situaçaÞo patrimonial e financeira do devedor.
v) E como bem resulta da douta sentença, mormente dos factos provados sob os pontos 11, 12, 13, 14, 15 e 16, repete-se, não impugnados pelo Recorrente, ficou demonstrado que: a Insolvente cessou, definitivamente, a atividade para efeitos de IVA aos 30/11/2018. No ano de 2018, a insolvente apresentou um resultado negativo de €6.537,71. Na IES e no balancete do razaÞo dos anos de 2019, 2020 e 2021, o exerciìcio desses anos foi nulo. Poreìm, na IES de 2020 e no balancete do razaÞo de 2021, estaÞo escriturados €73.217,72 de capitais proìprios, resultante da diferença entre o valor do ativo escriturado na verba creìditos sobre clientes no montante de €182.286,28 e na verba disponibilidades no montante de €5.379,50, e o valor do passivo no montante de €115.416,28, valor que naÞo correspondente aÌ realidade. Os creìditos sobre clientes jaì naÞo existiam porque tinham sido pagos, sem que o seu pagamento tivesse sido registado contabilisticamente, assim como tambeìm naÞo existia qualquer saldo bancaìrio, que era efetivamente nulo. SituaçaÞo que AA sabia e naÞo regularizou contabilisticamente. (sublinhado nosso)
w) E o que o legislador pretendeu sancionar nestes casos eì, exatamente, sempre que tal aconteça, i.e., quando se dá uma situaçaÞo de insolvência e se verifica existir uma situaçaÞo contabiliìstica que naÞo corresponda aÌ realidade patrimonial e financeira nos termos ali descritos, como eì o presente caso, que se considere estarmos perante uma insolvênciaculposa.
x) Assim, em face do exposto e dos factos dados como provados, verifica-se estar preenchido o disposto no art. 186º, n.º 2 h) do CIRE que qualifica a insolvência como culposa, solução que se impunha ao Tribunal a quo, com a consequente afetação do Recorrente, tendo em conta os factos provados constantes dos pontos 2 e 3 da douta sentença.
y) Pelo que, bem andou o Tribunal, devendo manter-se a decisão proferida.
z) E assim, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se mostram violados os artigos 186º, nº 1 e 2 al. h) do CIRE e 615º, nº 1 al. d) do CPC.
Termos em que, V/Exas. Venerandos Desembargadores, rejeitando o recurso interposto e negando provimento ao mesmo, e, consequentemente, mantendo a douta sentença, farão a costumada JUSTIÇA!
Também o MP contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. B..., Unipessoal, Ld.ª, NIPC ..., com sede na Rua…, freguesia ..., ... ... foi constituída em 08.01.2014, tendo por objecto social o comércio por grosso de calçado.

2. AA foi o seu único sócio e gerente desde a sua constituição até à declaração de insolvência em 03.02.22.

3. Nestas qualidades, foi o AA que teve a seu cargo todas as decisões relacionadas com a actividade da insolvente, relacionando-se com os fornecedores e clientes, tomando decisões quanto à aquisição de mercadorias e venda das mercadorias transaccionadas, pagamento do respectivo preço e recebimento dos clientes a quem foram vendidas, fixação de preços de venda, contratação do contabilista certificado, entrega dos elementos documentais referentes ao exercício da actividade da sociedade insolvente tendo em vista a elaboração da respectiva contabilidade, e posterior entrega dos mesmos às respeticvas entidades públicas.

4. A última vez que a Insolvente depositou contas foi em 13.07.2018 relativamente ao exercício de 2017.

5. A...-Unipessoal, Ld.ª, requereu a insolvência da sociedade B..., Unipessoal, Ld.ª, no dia 10.01.2022, a qual veio a ser declarada por sentença datada de 03.02.2022.

6. A insolvente tinha adquirido e recebido diversa mercadoria a A...- Unipessoal, Ld.ª, facturada em 2017, com vista à comercialização, cujo preço não pagou.

7. No dia 08.10.2018, a Requerente intentou injunção contra a Insolvente para cobrança no valor total de €49.993,36, sendo €47.687,73 de capital, €2.112,63 de juros de mora, €40,00 de outras quantias e €153,00 de taxa de justiça, referente a:
Fatura ..., emitida em 05.05.2017 e vencida em 04.06.2017, no valor de 12.447,11€
Fatura ..., emitida em 11.05.2017 e vencida em 10.06.2017, no valor de 701,10€
Fatura ..., emitida em 12.05.2017 e vencida em 11.06.2017, no valor de 7.279,09€
Fatura ..., emitida em 18.05.2017 e vencida em 17.06.2017, no valor de 3.061,47€
Fatura ..., emitida em 20.10.2017 e vencida em 20.10.2017, no valor de 7.704,72€
Fatura ..., emitida em 31.10.2017 e vencida em 31.10.2017, no valor de 6.730,56€
Fatura ..., emitida em 08.11.2017 e vencida em 08.11.2017, no valor de 4.080,40€
Fatura ..., emitida em 13.11.2017 e vencida em 13.11.2017, no valor de 1.519,05€
Fatura ..., emitida em 13.11.2017 e vencida em 13.11.2017, no valor de 502,46€
Fatura ..., emitida em 14.11.2017 e vencida em 14.11.2017, no valor de 12.188,99€
Fatura ..., emitida em 30.11.2017 e vencida em 30.11.2017, no valor de 1.168,50€
Fatura ..., emitida em 06.12.2017 e vencida em 06.12.2017, no valor de 1.292,98€
Fatura ..., emitida em 21.12.2017 e vencida em 21.12.2017, no valor de 116,85€.

8. A esta Injunção n.º 109656/18.0YIPRT -, veio a ser aposta fórmula executória em 27.02.2019, e instaurando a execução no dia 07.03.2019, sem que tenham sido encontrados bens suscetíveis de penhora.

9. As despesas tidas pela Requerente no âmbito da execução com taxas de justiça, provisão e honorários como Sr. AE, ascenderam ao montante de €380,55.

10. O valor pendente da Fatura ..., ..., é de €1.458,34.

11. A Insolvente cessou, definitivamente, a actividade para efeitos de IVA aos 30.11.2018.

12. No ano de 2018, a insolvente apresentou um resultado negativo de €6.537,71.

13. Na IES e no balancete do razão dos anos de 2019, 2020 e 2021, o exercício desses anos foi nulo.

14. Na IES de 2020 e no balancete do razão de 2021, estão escriturados €73.217,72 de capitais próprios, resultante da diferença ente o valor do activo escriturado na verba créditos sobre clientes no montante de €182.286,28 e na verba disponibilidades no montante de €5.379,50, e o valor do passivo no montante de €115.416,28, valor que não correspondente à realidade

15. Os créditos sobre clientes já não existiam porque tinham sido pagos, sem que o seu pagamento tivesse sido registado contabilisticamente, assim como também não existia qualquer saldo bancário, que era efectivamente nulo.

16. Situação que AA sabia e não regularizou contabilisticamente.

17. A insolvente procedeu a pagamentos aos seus credores, não conseguindo fazê-lo junto da requerente nem da credora C..., s.a..

18. A insolvente foi executada, no âmbito de proc. n.º 2727/17.9T8LOU movido por H..., Ld.ª, tenho-lhe sido penhorada a viatura que usava na sua actividade, em 11.04.2018 e cuja restituição só ocorreu em 31.10.2018.

19. Em Maio de 2018, AA pediu a reforma, que obteve a partir de Outubro de 2018, passando a auferir a esse titulo a quantia de €584,00.

20. O seu agregado familiar é composto por si, pela sua mulher e filho maior, mas estudante.

21. Ao cessar a actividade, AA procurou cessar o avolumar dos resultados negativos.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para os autos, não se provou que:

a) O dinheiro recebido da venda das mercadorias adquiridas pela insolvente à A... tivesse sido utilizado para fins pessoais do seu gerente;

b) AA tenha mantido os valores de activos não correntes e de valores em caixa e em depósitos bancários, que na realidade não existiam na sociedade insolvente, para mascarar as contas da sociedade B..., Unipessoal, Ld.ª, de molde a apresentar uma situação financeira favorável perante os credores fornecedores de bens e a banca e, assim, poder iludi-los com um saldo aparentemente positivo.

Inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para os presentes
autos sendo o demais alegado de teor conclusivo e/ou juízos de direito.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se na seguintes questões:

- inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto e intempestividade do recurso;
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
- se os factos integradores da presunção prevista no artigo 186.º, n.º 2,
alínea h), CIRE, ocorreram nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
- se é necessário alegar e provar que o incumprimento da obrigação enunciada no artigo 186.º, n.º 2, alínea h), CIRE, criou ou agravou a situação de insolvência.
3.1. Da inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto e intempestividade do recurso
Suscitou a apelada a questão da inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto por não terem sido cumpridos os ónus estabelecidos no artigo 640.º CPC, o que acarretaria a intempestividade do recurso por à apelante não aproveitar o prazo suplementar de 10 dias previsto no artigo 638.º, n.º 7, CPC.
Apreciando:
Há que distinguir o propósito de impugnação da matéria de facto do cumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640.º CPC para aferição da tempestividade do recurso.
O referido propósito de impugnação da matéria de facto confere ao recorrente o acréscimo de dez dias ao prazo de recurso, nos termos do artigo 638.º, n.º 7, CPC, independentemente do cumprimento dos ónus supra referidos.
Assim, a rejeição da impugnação da matéria de facto por incumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 640.º CPC não acarreta a intempestividade do recurso.
Neste sentido, o acórdão do STJ, de 14.01.2020, Ana Paula Boularot, Revista n.º 48102/17.6YIPRT.L1.S1, O ónus de impugnação da matéria de facto na jurisprudência do STJ:
I- Uma coisa é a faculdade dada à parte de impugnar a materialidade assente, concedendo-lhe, por isso, um prazo acrescido de dez dias, como deflui do n.º 7 do art. 638.º do CPC; outra coisa, completamente diversa é o cumprimento pela parte dos ónus impostos pelo normativo inserto no art. 640.º daquele mesmo compêndio normativo, cuja omissão pode conduzir à rejeição do recurso.
II - Em sede recursiva, as duas questões têm de ser apreciadas separadamente, pelo segundo grau: primeiramente, a tempestividade do recurso, tendo-se chegado à conclusão que o mesmo tinha sido interposto em tempo, isto é, nos 40 dias que a lei concede quando está em causa a materialidade factual; em segundo lugar, a omissão do cumprimento dos ónus aludidos no art. 640.º do CPC, de onde a rejeição do recurso, no que tange à apreciação da impugnação factual, questão esta que, embora conexionada com aqueloutra, dela se diferencia.

E o acórdão do STJ, de 14.09.2021, Tibério Nunes da Silva, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 18853/17.1T8PRT.P1.S1:
Na avaliação da tempestividade de um recurso, tendo sido feito uso do alargamento do prazo previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, há que verificar se faz parte do objecto desse recurso a reapreciação de prova gravada, o que é independente da observância dos ditames do art. 640º do CPC.
Igualmente o acórdão do STJ, de 28.04.2016, Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1:
3. A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.
4. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC.
E o acórdão do STJ, de 17.11.2020, António Magalhães, Revista n.º 2029/15.5T8LRA.C1.S1, O ónus de impugnação da matéria de facto na jurisprudência do STJ:
A apreciação do modo como foram preenchidos os ónus de alegação contidos no art.640.º do CPC, se pode condicionar o conhecimento da impugnação de facto, não coloca em crise a tempestividade do recurso de apelação que tenha sido apresentado dentro do prazo alargado a que se refere o n.º 7 do art. 638.º do CPC.
Concluindo: a inobservância dos ónus estabelecidos no artigo 640.º CPC para a impugnação da matéria de facto implica a rejeição da impugnação, mas não contende com a tempestividade do recurso, por aplicação do prazo acrescido de dez dias previsto no artigo 638.º, n.º 7, CPC.
3.2. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
Arguiu a apelante a nulidade da sentença por omissão de pronúncia por alegadamente não se ter pronunciado sobre o prazo de três anos referido no artigo 186.º, n.º 1, CPC, cujo teor se transcreve:
A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. (não sublinhado no original).
Apreciando:
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Este artigo tem de ser equacionado com o artigo 608.º, n.º 2, CPC, 1ª parte, CPC, que impõe que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham posto à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Por «questões» entende-se os pedidos deduzidos, toda as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cumpre [ao juiz] conhecer (art.660-2) (Lebre de Freitas, Montalvão Machado, e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 2ª edição, pg. 704).

Nas palavras do acórdão do STJ, de 2005.01.13, Oliveira Barros, www.dgsi.pt.jstj, proc. 04B4251,

… a omissão de pronúncia prevenida no art. 668º, nº 1º, al. d) [actual artigo 615.º, n.º 1, alínea d)], diz respeito às questões a que alude o nº 2 do art. 660º [actual artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte].
Trata-se aí do dever de conhecer por forma completa do objecto do processo.
Definido este pelo(s) pedido(s) deduzido(s) e respectiva(s) causa(s) de pedir, terão, por conseguinte, de ser apreciadas todas as pretensões processuais das partes - pedidos, excepções, reconvenção -, e todos os factos em que assentam.
Bem assim deverão ser apreciados os pressupostos processuais desse conhecimento
- sejam eles os gerais, sejam os específicos de qualquer acto processual, quando objecto de
controvérsia das partes.
Como tudo melhor elucidado, com menção da pertinente doutrina, em Ac.STJ de 11/1/2000, BMJ 493/387-7.

Ora, a questão a conhecer pelo Tribunal era natureza da insolvência (culposa), que o Tribunal apreciou.
A eventual desconsideração de um dos pressupostos do instituto não integra omissão de pronúncia, mas erro de julgamento.
Termos em que se indefere a arguida nulidade.
3.3. Se os factos integradores da presunção prevista no artigo 186.º, n.º 2, alínea h), CIRE, ocorreram nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência
A resposta só pode ser afirmativa.
Com efeito, na sentença recorrida refere-se expressamente o seguinte:
É de notar que apenas releva para o presente incidente a factualidade decorrente de atuação verificada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

E efectivamente assim foi, pois, tendo o processo de insolvência sido instaurado em 10.01.2022 (ponto 5 da matéria de facto provada), apenas foram considerados factos compreendidos nos três anos anteriores (cfr. ponto 14 da matéria de facto provada).
Improcede, sem necessidade de outros considerandos, este segmento do recurso.
3.4. Se é necessário alegar e provar que o incumprimento da obrigação enunciada no artigo 186.º, n.º 2, alínea h), CIRE, criou ou agravou a situação de insolvência
Insurge-se a apelante contra a decisão recorrida por entender que a qualificação da insolvência não se basta com a mera omissão de cumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada - presunção de culpa -, além disso, é necessário alegar e provar que o não cumprimento dessa obrigação criou ou agravou na situação de insolvência.
Sem razão, porém.
Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, CIRE , A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência.
Consciente da dificuldade que a prova dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa — conduta dolosa ou com culpa grave dos seus administradores, e relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento — pode envolver, o legislador estabeleceu presunções destinadas a facilitar a tarefa do intérprete.
A cláusula geral do n.º 1, é, assim, desenvolvida por dois núcleos de presunções.
Nessa conformidade, os n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito dispõem que:
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188º.
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Nas palavras de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2.ª ed., pgs. 272-3,
O art. 186º, nº 2, contém, no entanto, uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais.
Após enunciar as várias situações a que alude o n.º 2, continua aquele autor, com sublinhado nosso:
Verificados alguns desses factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art. 186º, nº 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.
O art. 186º, nº 3, contém uma presunção juris tantum de culpa grave do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal e de submetê-las à devida fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial. Demonstrados esses factos, o juiz presumirá a culpa do devedor na sua situação de insolvência, excluindo, porém, essa qualificação se for demonstrado que a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas não se deveu a culpa do devedor. Efectivamente, o que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, Quid Juris, 2.ª ed., pgs. 719-20 defendem idêntica posição relativamente aos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º: o n.º 2 consagra uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, que não admite, pois, prova em contrário (artigo 350.º, n.ºs 1 e 2 do CC); já o n.º 3 estabelece uma presunção juris tantum, passível de elisão nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º CC.
No sentido de que nos casos descritos no artigo 186.º, n.º 2, CIRE, não se presume só a culpa mas também o nexo de causalidade quanto à criação ou agravamento da situação de insolvência, Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, pg. 376.
Também Carneiro da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, 66, II, depõe no mesmo sentido:
O n.° 2 do art. 186 contempla desta sorte um conjunto de hipóteses em que se estabelece inilidivelmente ter ocorrido uma conduta ilícita e culposa dos administradores.
Mas não se trata apenas disso. A referida conduta é tida pelo preceito como causadora ou agravadora de uma insolvência. Só assim é que a insolvência pode ser qualificada como culposa pelo legislador.
Temos, portanto, que o art. 186 n.º 2 também faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência. Esta causalidade é fundamentante da responsabilidade (haftungsbegründend), pois diz respeito ao seu fundamento.
Este autor “gradua” a relação entre a violação dos deveres dos administradores especificados pelo n.° 2 do art. 186 e a verificação da situação de insolvência, após referir que a relação não é igualmente próxima em todos os casos.
Algumas vezes sancionam-se condutas que, quando adoptadas, terão normalmente como consequência (mais ou menos) directa ou previsível (segundo um juízo de adequação social-normativo) a insolvência (por exemplo, na hipótese da al. a) ou g)).
Mas em diversos outros casos, o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros factores, algumas vezes fortuitos, para que ela ocorra (assim, v.g., nas al. d) ou f)). Por último, estão também em causa situações de responsabilidade por omissões, sendo que delas também não deriva, por si e infalivelmente, a insolvência (atente-se nas al. h) e i)).
Relativamente a estas situações que parecem desequilibradas, pecando por excesso, escreve:
A inadmissibilidade dessa prova [prova em contrário] não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma enérgica de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, segundo a experiência, são susceptíveis de ocasionar insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que co-determinaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa). Como se apontou, a causalidade fundamentante (haftungsbegründend) da responsabilidade ex vi do art. 186 n.° 2 não exclui a presença de elementos fortuitos. Podem concorrer a culpa e o acaso. Visando uma disposição de protecção prevenir abstractamente um perigo, tal resulta facilmente compreensível. Aliás, a doutrina dos deveres no tráfico também o conhece: a produção ilícita e culposa de um risco (de dano) impede em princípio o seu autor de invocar as circunstâncias fortuitas que possam ter sobrevindo e concorrido para a produção do resultado danoso (na medida em que o dever visava evitar a produção, pela conjugação do risco proibido com essas circunstâncias, da lesão).
Na jurisprudência, e a título meramente exemplificativo, no sentido que o n.º 2 do artigo 186.º CIRE estabelece uma presunção de culpa grave e de nexo de causalidade, refira-se os acórdãos da Relação de Guimarães de 29.06.2010, www.dgsi.pt jtrg proc. n.º 1965/07.7 TBFAF-A.G1; da Relação de Lisboa, de 10.05.2011, www.dgsi.pt jtrl proc. n.º 1166/08.7 TYLSB.B.L1-7; da Relação do Porto, de 28.09.2015, www.dgsi.pt jtrp proc. n.º 1826/12.8 TBOAZ-C.P1, e de 01.06.2017, www.dgsi.pt.jtrp proc. n.º 35/16.1 T8AMT-A.P1; do STJ de 05.04.2022, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 1247/13.5TYVNG-A.P1.S1.
Em sentido contrário, claramente minoritário, o acórdão da Relação do Porto, de 10.2.2011, www.dgsi.pt jtrp, proc. n.º 1283/07.0 TJPRT-AG.P1, que exige a alegação e prova do nexo de causalidade entre as situações descritas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º CIRE e a situação de insolvência, de acordo com a cláusula geral do n.º 1 do mesmo artigo.
Pelo exposto, basta o preenchimento da alíneas h) do n.º 2 do artigo 186.º, CIRE, para a insolvência ser considerada culposa, não se tornando necessário demonstrar a existência de nexo de causalidade entre a conduta e a situação de insolvência.
Por essa razão está votada ao insucesso a tentativa da apelante em demonstrar, designadamente com base nas declarações do Sr. Administrador da insolvência, a falta de nexo de causalidade entre a situação em apreço e a insolvência.
Improcede, pois, a apelação.

4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante (artigo 527.º CPC).


Porto, 07 de Fevereiro de 2023
Márcia Portela
João Ramos Lopes
Rui Moreira