CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
NRAU
RAU
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
PAGAMENTO DA RENDA
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I - Aos contratos de arrendamento para habitação celebrados sob a égide do RAU (DL n.º 321-B/90, de 15.10) é aplicável, em termos de fundamentos de resolução do contrato, o regime que decorre da Lei n.º 6/2006, de 20.02 (NRAU), quando esses fundamentos ocorreram já sob o domínio daquele novo regime do arrendamento urbano – artigo 26º, n.º 1, daquela Lei n.º 6/2006, de 20.02.
II - A previsão do n.º 3 do artigo 1083º, do Cód. Civil, na redacção da citada Lei n.º 6/2006 (com as suas sucessivas alterações), configura um caso em que a lei determina o direito à resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio sem necessidade de demonstrar o preenchimento da cláusula geral prevista no n.º 1 do mesmo normativo.
III - O pagamento da renda é efectuado ao credor/senhorio, conforme decorre do preceituado nos artigos 769º e 1038º, alínea a), ambos do Código Civil, apenas podendo ser efectuada a terceiro nas hipóteses excepcionais previstas no artigo 770º, do mesmo Código.
IV - Destarte, ocorrendo o pagamento da renda em favor de terceiro e sem consentimento/acordo do credor, aquele pagamento é juridicamente irrelevante, obrigando o devedor a efectuar, de novo, o mesmo pagamento e ficando, ainda, em razão desse não pagamento tempestivo ao credor, constituído em mora.
V - O abuso de direito na modalidade de «venire contra factum proprium» ou «supressio» existe apenas quando um sujeito exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente, gerando na outra parte a legítima confiança que aquele comportamento não será revertido ou contraditado, ou, ainda, quando o não exercício do direito durante um período prolongado de tempo é de molde a criar na outra parte a legítima confiança de que o direito em causa já não virá a ser exercido no futuro.
VI - Não age em abuso de direito o cabeça-de-casal que, decorridos cerca de três anos após a abertura da sucessão e subsequente habilitação de herdeiros, faz instaurar acção de despejo fundada no não pagamento de rendas contra o arrendatário, quando inexiste na factualidade provada (cuja prova incumbe à parte que pretende beneficiar daquele instituto – artigo 342º, n.º 2, do Cód. Civil) qualquer facto – bem pelo contrário – que possa criar no arrendatário a legítima (séria e socialmente aceitável) confiança de que o cabeça-de-casal irá renunciar àquele direito ou não o irá exercer no futuro, aceitando indefinidamente o incumprimento ilícito e culposo por parte do arrendatário da sua primordial obrigação de pagamento da renda acordada pelo gozo do locado.

Texto Integral

Processo n.º 1301/21.0T8OAZ.P1 - Apelação
Origem: Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis
Relator: Juiz Des. Jorge Seabra
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria de Fátima Andrade
2º Juiz Adjunto: Juíza Desembargadora Eugénia Cunha

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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. AA, residente em ..., Stuttgard, Alemanha, na qualidade de cabeça-de-casal da herança indivisa por óbito de seu pai BB (e de sua pré-falecida mãe CC, que foi casada em comunhão geral de bens com aquele seu pai), propôs a presente acção declarativa de condenação (despejo), sobre a forma de processo comum, contra DD e mulher EE, peticionando a final que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o seu finado pai e aqueles Réus, que sejam os mesmos Réus condenados a proceder à entrega do locado à herança indivisa livre e devoluto de pessoas e bens, que sejam condenados a pagar os valores das rendas em atraso, bem como as rendas que se venham a vencer até à efectiva entrega do locado, tudo acrescido de juros contabilizados à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Para tanto, o Autor alegou, em síntese, ter sido de arrendamento para habitação o prédio melhor descrito sob o artigo ... da petição inicial, mediante o pagamento da renda mensal de 240.000$00, vencendo-se o seu pagamento no primeiro dia útil do mês anterior a que disser respeito e a ter lugar na residência do então senhorio BB.
Sucede, porém, que, nos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, os aludidos Réus não procederam ao pagamento daquela renda mensal, encontrando-se, assim, em dívida à herança e à data da instauração da presente acção o valor global de rendas de € 9.200,00.

2. Os Réus contestaram a acção e, nesse contexto, invocaram que a presente acção consubstancia uma mera vingança pessoal do Autor perante o Réu marido (irmão), em resultado de não ter sido possível obter um acordo amigável quanto à partilha do imóvel ora em causa com o seu filho FF (também co-herdeiro, por força da renúncia à herança efectuada por si, Réu marido, com o consentimento da sua esposa), imóvel este composto de r/c – o locado – e 1º andar, 1º andar este que o Autor utiliza quando está em Portugal, sem proceder ao pagamento em favor da herança de qualquer contrapartida/compensação pecuniária por aquele uso/gozo do dito 1º andar.
Mais acresce que nos três anos posteriores ao decesso do pai de ambos nunca o Autor diligenciou por saber se os RR efectuavam (ou não) o pagamento das rendas, a quem e porque montante, sendo também certo que também nunca lhes comunicou a quem deviam fazer o pagamento, nem sequer o meio pelo qual o deviam fazer.
Sucede, todavia, que, enquanto arrendatários e enquanto foi vivo o pai de ambos (Autor e Réu marido), sempre procederam ao pagamento mensal da renda ao mesmo, ou seja ao falecido BB e na morada onde o mesmo sempre habitou até ao seu óbito em Março de 2018, ou seja, no 1º andar do prédio referido nos autos.
Após o óbito do dito BB, continuaram, pois, os RR (e o seu filho FF) a habitar o dito r/c do prédio, ao passo que o Autor passou a dispor do 1º andar, nas suas estadias em Portugal, para ali passando e ali deixando os seus bens pessoais.
Assim, em face deste circunstancialismo, o referido herdeiro FF (filho dos RR) manifestou perante os mesmos a vontade de lhe ser entregue, a integralidade, como co-herdeiro (com o Autor, seu tio), da renda respeitante ao locado, o que passaram, de facto, a fazer desde o vencimento da renda do mês de Abril de 2018.
Para tanto (isto é, para exigir o pagamento a si da integralidade do valor da renda em causa), invocou o dito co-herdeiro que usando ambos (o tio e ele próprio) o mesmo prédio, teria que haver lugar, no futuro, a prestação de contas entre ambos.
Destarte, desde Março de 2018, até à presente data (data da contestação), os RR vêm efectuando o pagamento da renda mensal estipulada ao co-herdeiro FF, fazendo-o em numerário e no dito montante de € 100,00 (cem euros).
Assim, concluem ser falso que existem rendas em dívida e atinentes ao locado dado em arrendamento, pois que o seu valor sempre foi, pontualmente, pago até ao dia 8 de cada mês ao aludido co-herdeiro, conforme exigência expressa deste (vide os artigos 19º a 25º da contestação).
Mais, ainda, invocaram que, caso a pretensão do Autor merecesse deferimento, inexiste fundamento legal para o valor peticionado, a título de indemnização pela mora, já que, nos termos legais, a resolução contratual operada por iniciativa do senhorio impossibilita o pedido de pagamento da peticionada indemnização pela mora.
Concluíram, assim, os RR pela improcedência da causa e pela sua absolvição do pedido.

3. Prosseguindo os autos os seus termos, veio a ser proferido despacho a fixar o valor da causa (€ 9.000,00).
No mesmo despacho, foi, ainda, dispensada a realização de audiência prévia, nos termos do artigo 597º, n.º 1, do CPC.
Foi, ainda, proferido despacho saneador tabelar, com admissão dos requerimentos probatórios oferecidos pelas partes.

4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a acção, decretando a resolução do contrato de arrendamento, condenando os RR a proceder à sua entrega no prazo 30 dias após o seu trânsito e, ainda, no pagamento das rendas vencidas entre Fevereiro de 2018 e a data da propositura da acção (no valor de € 3.800,00) e nas demais rendas vincendas desde a data da citação e até à data de entrega efectiva do locado.

5. Inconformados, vieram os RR interpor recurso de apelação da dita sentença, que foi admitido pelo Tribunal de 1ª instância, oferecendo alegações e deduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
A- Com o devido respeito, os recorrentes não se conformam com a sentença proferida entendendo que a mesma encontra-se ferida de vícios, cuja sanação deverá, a final, determinar a improcedência da ação de despejo interposta.
B- É a herança indivisa, (representada pelo A., irmão do R. marido e tio do co-herdeiro), quem reclama ser credora de rendas, peticionando o despejo do imóvel que faz parte da herança, a partilhar.
C- Está em causa um contrato de arrendamento que teve o seu inicio em 01 de Setembro de 2001 encontrando-se então em vigor o regime do arrendamento urbano, regulado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, que, quanto á matéria em questão, dispunha o art. 64º, nº 1 al. a) que, o senhorio só podia resolver o contrato se o arrendatário não pagasse a renda no tempo e lugar próprios.
D- Retira-se do item “3” da segunda clausula do indicado contrato, junto com a P.I., como Doc. 3, as partes acordaram que a renda, em duodécimos, seria paga, mensalmente, ao senhorio, na respetiva residência.
E- Nem por apelo à matéria de facto julgada provada, e nem sequer por apelo á prova produzida, (mormente a prova documental), se logra colher, qual o facto, ou factos julgados provados, que permitem a conclusão evidenciada na parte da sentença transcrita no corpo das alegações, constante de pags 7 da mesma; Nomeadamente, não se vislumbra qual o facto julgado provado que permite dizer-se que:
- não estava instituída a prática da entrega da renda mensal ao herdeiro, previamente acordada e autorizada por todos os herdeiros;
- o indicado herdeiro deveria ter diligenciado por acordar tal possibilidade com o cabeça de casal ou entregar os valores que vinha recebendo a este último;
- nem sequer ficou acordado que esses valores podiam permanecer ao cuidado do herdeiro FF.
F- O Sr juiz a quo fundamenta a respetiva decisão, em factos que não se encontram invocados pelas partes, violando o disposto no art 5º nº 1 e 608º nº 2 do CPC;
G- Não se vislumbra, em que medida, a imputada falta de acordo entre herdeiro e cabeça de casal, quanto á forma como as rendas deveriam ser, ou deixar de ser, entregues, de um para o outro, é suscetível de prejudicar a posição dos RR, que são estranhos, ao que os ditos herdeiros combinaram ou deixaram de combinar entre si, sendo matéria que estes não têm obrigação conhecer, por não se tratar de facto pessoal, nem foram, de tal, informados pelo A.
H- A sentença proferida, pronuncia-se sobre questões, que não lhe competia conhecer, até porque não foram alegadas, facto que conduz, necessariamente, ao vício de erro de julgamento.
Sem prescindir,
I-Na sentença proferida, não se retira qualquer juízo crítico efectuado pelo Sr. Juiz a quo, sobre o teor do documento que o A junta como Doc.4, não obstante, entende-se pertinente evidenciar que, na dita carta, nem sequer se comunica a alteração do local onde as rendas deveriam ser pagas, nem a alteração da forma de pagamento, nem qualquer outra informação, que permita apreciar a prova dos factos integrativos da constituição da dívida dos demandados (arrendatários) perante si (ou seja, dos factos consubstanciadores do contrato de arrendamento e respetivas cláusulas).
J- Acontece, porém que, os recorrentes, na sua contestação, mormente sob o respetivo item 24º, invocam matéria, impeditiva do direito do A., alegando que não foram notificados pelo A., para lhes entregar as rendas, nem o modo, ou local, onde passariam a fazê-lo.
K – Tal matéria alegada pelos RR., mormente sob o mencionado item 24º da Contestação não foi contraditada, pelo A. pelo que se deverá ter como confessada.
L- Neste sentido, entende-se que tal matéria deveria ter sido erigida como facto provado, ou seja, entende-se que para boa decisão da causa, dever-se –ia dar como provado que, o A não comunicou aos RR, a quem deviam os mesmos proceder a tal pagamento das rendas, nem o local, e o meio pelo qual o deviam fazer.
M- A testemunha GG inquirida sobre tal matéria, confirmou a matéria alegada pelos RR., conforme se retira da parte do respectivo depoimento transcrito.
N-Não era exigível aos RR que adotassem outro comportamento, sendo certo que, os mesmos, estavam a entregar as rendas ao herdeiro (seu filho, e sobrinho do A.), que com os mesmos reside, ou seja, no local onde sempre entregaram o valor das rendas.
O- A douta sentença aqui em crise, não se pronuncia sobre facto alegado pelos RR., susceptível de por em causa o direito de que o A. se arroga, e portanto, sobre facto que se impunha conhecer, o que determina que a mesma se encontra ferida pelo vicio de omissão de pronúncia, determinando a sua nulidade.
Por outro lado,
P- o Sr. Juiz a quo ao julgar provado que, os RR entregaram as rendas ao herdeiro FF, para, a final, concluir que as rendas não foram pagas, dá causa a uma contradição insanável susceptível de acarretar a respectiva nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto no art. 615, nº 1 al. c) do CPC., o que, igualmente, se invoca.
Q- Como se vem salientando, inexiste no processo qualquer facto alegado pelo A, que concedesse ao Sr. Juiz a faculdade de, mediante prova produzida, dar como certo que era exigível aos RR entregar as rendas a outra pessoa, noutro local, ou de modo diferente daquele que foi dado como provado ter ocorrido, pelo que,
R- Para além do invocado erro de julgamento, há notória contradição, entre a decisão e a fundamentação, considerando para o efeito a matéria de facto julgada provada nos identificados itens 6) e 8), porquanto, se por um lado julga que as rendas foram pagas, ainda que entregues ao herdeiro, por outro lado conclui que as mesmas não foram pagas, porque não foram entregues ao Cabeça de Casal; face a tal ambiguidade entende-se que a sentença aqui em crise, também por este vicio, encontra-se ferida de nulidade.
S- Caso o Sr. Juiz a quo, lograsse concluir que, efetivamente, inexiste matéria alegada e muito menos provada, que lhe permitisse concluir que era exigível aos RR a entrega das rendas ao A., caberia ao mesmo julgar como não provado que os RR sejam devedores das rendas, afetas aos meses de Março de 2018, e vencidas até ao momento presente.
T- Ao assim não ter decidido e para eventualidade de, doutamente, se entender que, o vicio que afeta a decisão não é o da apontado vicio de nulidade da sentença, entende-se, que sempre a mesma se encontra ferida pelo vicio de erro de julgamento, o que, subsidiariamente, se deixa invocado.
Acresce que,
U- Estando em causa um acervo patrimonial em comum, não se vislumbra fundamento legal para concluir que, o facto de o valor das rendas estar na posse do herdeiro, traduz-se na falta de ingresso das mesmas no acervo patrimonial.
V-O acervo patrimonial que constitui a herança deixada pelo de cujus, (no caso as rendas do imóvel arrendado) estando na posse de herdeiro, não impede que o cabeça de casal reclame deste a entrega à herança de tal quantitativo pecuniário.
X- Ao assim não ser doutamente entendido, impõe-se considerar que a sentença efetua uma errónea aplicação do direito, pelo deverá ser revogada, o que desde já se impetra.
Ainda sem prescindir,
Z- Atenta a matéria alegada, pelos RR, parte da qual, aliás, julgada provada, entende-se por mera cautela, invocar expressamente perante este Venerando Tribunal, a aplicação ao caso dos autos da figura do Abuso do Direito, passível de ser oficiosamente conhecida.
AA- Como expressamente alegado pelos RR na respectiva contestação apresentada, a presente ação de despejo assente na resolução do contrato de arrendamento, por alegada falta de pagamento de rendas, é, em concreto, um meio que o A. usa, para procurar uma vingança pessoal, contra os RR pelo facto de não ter logrado obter um acordo amigável quanto á forma a dar á partilha do imóvel aqui em causa, entre si e o filho daqueles.
BB- durante os três anos que se seguiram à data de óbito do seu falecido pai/senhorio, o próprio A./CC, autoexcluiu-se de diligenciar por conhecer se os aqui RR, efetuavam o pagamento de rendas, a quem, e porque montante.
CC- Considerando as circunstâncias concretas da questão, mormente a relação de familiaridade entre as partes, é mister concluir-se que, no caso concreto, não era exigível aos RR outro comportamento, que não aquele que os mesmos tiveram, ou seja, entregando as rendas ao seu filho co-herdeiro.
DD- O A., Cabeça de Casal, pelo seu comportamento: mormente o facto de habitar o 1º andar do mesmo imóvel, quando se deslocava a Portugal; ainda a circunstância de nunca ter questionado a forma como o seu irmão, pagava as rendas; ainda o facto de nunca ter manifestado interesse em receber as rendas durante mais de três anos, nunca fez crer que pudesse ter por intenção exercer tal direito de receber as mencionadas rendas, e, nessa circunstancia, entende-se que, ao agir na fase em que o faz, age em abuso do Direito na situação da “supressio”.
EE - Importa salientar que os interesses patrimoniais da herança, não se encontram de modo algum prejudicados, o exercício de um direito que, devido a circunstâncias extraordinárias relacionadas com laços de familiaridade, determinaram as partes a determinados comportamentos, e que conduzem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo) dão causa a que o exercício de tal direito de tenha como abusivo, pelo “desequilíbrio”, que a mesma se configura.
FF - Impõe-se, igualmente, ter ainda presente que, o A. através do presente processo procura obter um resultado para o qual contribuiu, atenta a forma omissiva como agiu, imiscuindo-se das funções de cabeça de casal, mantendo-se alheio das mesmas até ao momento em que foi interposto processo de inventário e partilha, (aliás, muito posterior á interposição do processo de inventário e partilha), evidenciando assim não ter qualquer interesse em que as rendas lhe fossem entregues, pelo que age o A. em manifesto abuso do Direito, já que o seu comportamento, é igualmente passível de ser enquadrado na situação do “venire contra factum proprium” na medida em que, a sua atuação é contraditória com um comportamento passado, que gerou confiança aos RR., quanto á sua não oposição ao comportamento que estes tiveram desde o momento em que o respetivo progenitor/senhorio faleceu, ou seja, entregando as rendas ao herdeiro.
GG- Os ditames da boa-fé contratual, ainda mais densificados pela relação de familiaridade existente entre A. /cabeça de casal; RR e herdeiro, impõem que se julgue que a presente ação de despejo configura um manifesto abuso do Direito, que a ordem jurídica não pode acolher, pelo que a douta sentença deverá ser revogada, julgando-se os pedidos do A. totalmente improcedentes.
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6. Não foram deduzidas contra-alegações.
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Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode ser confrontado e conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância (questões novas), sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos (sistema de reponderação), não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
No seguimento desta orientação, as questões colocadas pelo recurso interposto pelos RR são as seguintes:
I. Nulidades da sentença.
II. Impugnação da decisão de facto.
III. Erro de Julgamento – Mérito da sentença.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1) O autor é cabeça-de-casal na herança aberta por óbito do seu pai BB e de sua mãe CC, conforme escritura pública de habilitação de herdeiros datada de 7.03.2018 e que constitui o documento n.º 1, junto com a petição inicial.
2) BB era dono com exclusão de outrem de uma casa de habitação de rés-do-chão do prédio sito na Rua ... da freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis, não registado na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis e inscrito na matriz sob o artigo n.º ... da União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ....
3) BB deu aos réus com data de 1.09.2001 o prédio antes referido de arrendamento, mediante celebração de acordo escrito denominado de contrato de arrendamento, conforme consta do documento n.º 3, junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4) Esse arrendamento teve o seu início a 01 de Setembro de 2001, pelo prazo de 1 ano, sujeito a renovações automáticas e sucessivas por prazos de 1 ano.
5) No aludido contrato de arrendamento foi convencionado sob a cláusula 2ª o seguinte:
“1 - A renda dos primeiros doze meses é de 240.000$00.
2 - A renda dos meses subsequentes será a que resultar da actualização legal.
3 – A renda em duodécimos no valor de 20.000$00 (vinte mil escudos) cada, será paga mensalmente ao senhorio, na respectiva residência, no primeiro dia útil do mês anterior a que respeitar.” (sic)
6) BB faleceu a 04.02.2018.
7) O réu DD, com o consentimento da ré, repudiou a herança aberta por óbito de BB, conforme escritura pública datada de 11.11.2020, conforme documento n.º 1, junto com a contestação.
8) A partir dessa data e até ao momento, os réus passaram a entregar o valor da renda mensal ao filho de ambos, FF, herdeiro na referida herança, por força do repúdio da herança acima referido e efectuado/consentido pelos seus pais. [2]
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Nulidades da sentença:
Ao longo das suas extensas conclusões, os RR/apelantes convocam contra a sentença recorrida várias nulidades, nulidades estas que, em seu ver, deveriam, sem mais, conduzir à revogação da sentença recorrida.
Cumpre dizer que a consequência que os RR/apelantes pretendem extrair das pretensas nulidades do acto decisória não é, actualmente, a que os mesmos almejam, pois que, como resulta do preceituado no artigo 665º, n.º 1, do CPC, mesmo que o Tribunal da Relação dê provimento a alguma nulidade do acto decisório deve, por princípio, conhecer do objecto substantivo da apelação, corrigindo, eliminando, suprimindo o eventual vício formal que esteja em causa, a não ser que tal se revele, de todo, inviável em face dos elementos e dos meios probatórios produzidos nos autos.

Por conseguinte, a eventual procedência da nulidade da sentença arguida pelo apelante não conduz, automática e invariavelmente, à anulação da sentença e à sua remessa ao Tribunal de 1ª instância para sanação do apontado vício, antes deve, sanado o vício (se possível, naturalmente), o Tribunal da Relação conhecer do objecto da apelação, assim se evitando a inútil e redundante prática de actos, com os inerentes ganhos ao nível da economia e celeridade processuais. [3]
Dito isto, importa, no entanto, conhecer do eventual provimento de tais nulidades.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstos no artigo 615º, n.º 1, do CPC.
Neste enquadramento, a primeira nulidade invocada pelos apelantes refere-se à alegada contradição entre os fundamentos e a decisão e/ou à alegada ambiguidade que torne a decisão ininteligível.
Quanto à alegada contradição é patente que ela não existe em face dos termos em que a mesma é invocada pelos apelantes.
Dizem estes nas conclusões do recurso, quanto à pretensa nulidade por contradição, o seguinte: “O Sr. Juiz a quo ao julgar provado que os RR entregaram as rendas ao herdeiro FF, para, a final, concluir que as rendas não foram pagas, dá causa a uma contradição insanável susceptível de acarretar a respectiva nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC.”
Ora, com o devido respeito, o raciocínio assim expendido pelo Sr. Juiz a quo nada tem de contraditório se se entender, como é suposto, no contexto da demais fundamentação jurídica invocada na sentença recorrida (que os apelantes desconsideram …), que as rendas
deviam ser pagas apenas e só ao Autor, enquanto cabeça-de-casal e na sua qualidade de administrador da herança indivisa e durante a pendência de tal indivisão, ou seja, até à conclusão da partilha da herança indivisa por óbito de BB e da sua pré-falecida esposa CC.
Com efeito, perfilhando-se, em termos inequívocos, naquela fundamentação jurídica da sentença recorrida (mal ou bem é questão de mérito, que não de forma ou de nulidade) que, integrando o prédio dado de arrendamento aos RR o acervo hereditário aberto por óbito de BB (e pré-óbito da esposa CC, que foram casados em comunhão geral), apenas e só ao Autor, enquanto cabeça-de-casal da aludida herança indivisa, à luz do preceituado nos artigos 2079º e 2087, n.º 1, do Cód. Civil e enquanto seu administrador, o direito de cobrar e receber as rendas dos arrendatários/RR e não ao co-herdeiro FF, logicamente, só se poderia concluir, de acordo com tais premissas, que as rendas não foram pagas a quem o deveriam ter sido, o que torna aquele outro pagamento ao dito FF irrelevante ou ineficaz perante o senhorio/herança indivisa, representada pelo seu administrador, o aludido cabeça-de-casal, tudo equivalendo, pois ao não cumprimento pelos RR/arrendatários daquela obrigação de pagamento das rendas em causa.
De facto, como é consabido, uma coisa é o devedor pagar ao credor, ou seja, àquele que está substantivamente legitimado a receber a prestação em causa (artigo 769º, do Cód. Civil); outra coisa, radicalmente distinta, é pagar a outrem (terceiro), estranho à relação jurídica em causa (isto é, estranho ao contrato de arrendamento e à respectiva administração), pois que, se assim suceder, esse outro pagamento não é, naturalmente, eficaz e liberatório do devedor, ou seja, não desonera o devedor de pagar de novo, agora a quem de direito.
Com efeito, só nos casos excepcionais previstos no artigo 770º, do Cód. Civil, a realização da prestação (no caso, o pagamento da renda mensal devida no contexto do ajuizado contrato de arredamento) a um terceiro, estranho à relação jurídica em causa, pode liberar o devedor, casos excepcionais estes que, porém, no caso dos autos, não colhem manifestamente qualquer aplicação.
Neste sentido, como referem F. FERREIRA PINTO, ISABEL TEIXEIRA DUARTE, “… Nos termos da regra geral, enquanto o solvens pode ser, tanto o sujeito passivo da relação jurídica, como qualquer terceiro, a legitimidade do accipiens restringe-se ao sujeito activo da relação jurídica e aos seus representantes; todos os demais são considerados terceiros sem legitimidade para receber a prestação. Isto significa que, na hipótese de o devedor realizar a prestação a qualquer outro sujeito que não o credor ou um seu representante, em regra, a obrigação não se extingue; ressalvadas as excepções previstas no artigo 770º, o direito do credor permanece intocado”, ou seja, diríamos nós, o direito do credor à prestação permanece integralmente por satisfazer. [4]
No mesmo sentido e ainda a propósito da regra que emerge do citado artigo 769º, refere A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, 2 volume, 4ª edição, pág. 31, “… A prestação feita a terceiro não extingue, portanto, a obrigação, sendo ineficaz perante o credor; por isso, de acordo com o brocardo segundo o qual quem paga mal paga duas vezes, o devedor terá que efectuar nova prestação …”, salvo se ocorrer, como se referiu, alguma das hipóteses previstas no artigo 770º do mesmo diploma, hipóteses estas que, porém, no caso dos autos, não colhem qualquer aplicação em função da factualidade alegada pelas partes e provada nos autos. [5]
Por conseguinte, no caso dos autos, em bom português, pagando os RR/arrendatários as rendas a quem não estava legitimado para a receber (ao dito FF, pois que o mesmo como mero co-herdeiro não dispõe de tal poder para cobrar e receber rendas atinentes ao locado que faz parte da herança indivisa) – pois que a renda, repete-se, segundo a regra do artigo 769º, do Cód. Civil, deve ser paga apenas e só ao senhorio, ou seja, no caso dos autos, à herança indivisa, na pessoa encarregue, por lei, da sua administração, ou seja, ao cabeça-de-casal, o ora Autor -, tal significa que a única conclusão jurídica que se impunha tirar é aquela que o Sr. Juiz a quo tirou na sentença, qual seja que as rendas devidas não foram pagas a quem tinha, em exclusivo, o direito de as receber (o dito cabeça-de-casal), sendo, assim, esse outro pagamento ineficaz ou inoponível ao senhorio/herança indivisa, e, sequencialmente, ocorre, atento o sobredito incumprimento daquela obrigação, fundamento para a resolução do contrato de arrendamento à luz do preceituado no artigo 1083º, n.º 3, do Cód. Civil.
Sendo assim, como se julga, improcede, em termos evidentes, a alegada contradição entre a fundamentação jurídica e a decisão proferida (artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC), seja quanto à decidida existência de fundamento para a resolução do contrato por falta de pagamento das rendas, seja, ainda, quanto à condenação dos RR no pagamento (mesmo que, eventualmente, repetido) das rendas já vencidas e, ainda, das demais rendas vincendas desde a citação e até à data da entrega efectiva do locado, aquelas como contrapartida pelo gozo do locado (artigo 1038º, alínea a), do mesmo Cód. Civil) e estas últimas, a título indemnizatório, como decorre do preceituado no artigo 1045º, n.º 1, do mesmo Código.
E, sequencialmente, este raciocínio jurídico e a conclusão que dele extraiu o Tribunal a quo não encerra, ao contrário do que também advogam os RR/apelantes, qualquer obscuridade ou ambiguidade, sendo o mesmo, pelo contrário, linear, lógico e cristalino, perfeitamente compreensível à luz dos fundamentos jurídicos antes expostos, em particular face ao preceituado no artigo 769º, do Cód. Civil e tendo por assente, como é o caso, que não se verifica qualquer uma das hipóteses que, à luz do preceituado no artigo 770º, consentiria aos RR, mancomunados com o seu filho, o co-herdeiro FF, pagar-lhe a renda que os mesmos, enquanto arrendatários de prédio integrante do acervo hereditário, bem sabiam (ou não podiam ignorar – artigo 6º, do Cód. Civil) terem que pagar apenas e só ao cabeça-de-casal, o ora Autor, enquanto administrador da herança onde se integra o prédio dado em locação.
Como assim, também esta outra nulidade por pretensa ambiguidade ou obscuridade da sentença deve improceder, o que se julga.
Para além destes vícios invocam, ainda, os RR/apelantes que a sentença incorre em excesso e omissão de pronúncia (artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC).
Vejamos.
O vício de excesso ou omissão de pronúncia decorre do preceituado no artigo 608º, n.º 2, do CPC, que estabelece, enquanto regra de elaboração da sentença e decisão do litígio, o princípio segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (salvo se prejudicadas pela solução dada a outras) e, ademais, não pode ocupar-se senão das questões das suscitadas pelas partes.
Este princípio, que decorre, aliás, do princípio estrutural do pedido e do dispositivo, significa, em termos práticos, que a sentença tem de conter-se no estrito âmbito do objecto do litígio, definido pelo pedido/causa de pedir invocados pelo autor, pelas excepções/causa de pedir da defesa do réu e da contra excepção/causa de pedir, não sendo, assim, lícito ao juiz conhecer para de além do pedido formulado pelo autor ou da defesa do réu, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras questões.
Coisa diferente, como assinala a doutrina, são os argumentos, as razões ou linhas de raciocínio jurídico que as partes invocam no processo em sustento das suas pretensões, pois que quanto a estas o juiz, âmbito da sua liberdade de julgamento jurídico da causa (artigo 5º, n.º 3, do CPC), não está obrigado a deles conhecer ou a apreciá-los um a um, nem está, naturalmente, vinculado ou limitado às linhas de argumentação ou de raciocínio convocadas pelas partes.
De facto, como assinala MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, o princípio que impõe a pronúncia do juiz sobre todas as questões suscitadas pelas partes no processo e que, ao invés, o impede de conhecer para além dessas questões (salvo as questões de conhecimento oficioso), é expressão “... do princípio da disponibilidade objectiva (…) que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (…) Também a falta de apreciação de matéria de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia.” [6]
Neste sentido, questões para este efeito são todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes, não se confundindo com os argumentos, razões de facto e de direito em que a parte funda a sua posição sobre a questão suscitada.
Em igual sentido, referia J. ALBERTO dos REIS, “… São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte.
Quando as partes submetem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». [7]
Feitas estas breves considerações, os RR/apelantes convocam a nulidade por excesso de pronúncia da sentença no trecho em que na mesma, em sede de argumentação jurídica e para concluir no sentido do incumprimento pelos mesmos RR da sua obrigação de pagamento das rendas ao administrador da herança indivisa (que passou a integrar o prédio locado após o óbito de BB), ou seja, ao aqui Autor, naquela sua qualidade, salienta que “não estava instituída a prática da entrega mensal ao herdeiro, previamente acordada e autorizada por todos os herdeiros”, que “o indicado herdeiro (FF) deveria ter diligenciado por acordar essa possibilidade com o cabeça-de-casal ou entregar os valores que vinha recebendo a este último” e, ainda, que “nem sequer ficou acordado que esses valores podiam permanecer ao cuidado do herdeiro FF”, tudo para concluir o Sr. Juiz pela irrelevância ou ineficácia jurídica desse pagamento, ou seja, para concluir que aquele pagamento não fez extinguir o débito dos RR/apelantes, enquanto arrendatários.
E, face a tal argumentação jurídica exposta na sentença recorrida, concluem, pois, os RR/apelantes, que, fundamentando o Sr. Juiz a decisão da causa em factos que não se encontram invocados pelas partes (os acima assinalados em sublinhado), a dita sentença viola o disposto no artigo 5º, n.º 1 e 608º, n.º 2, do CPC, incorrendo em excesso de pronúncia.
O equívoco dos RR/apelantes quanto ao pretenso vício é evidente e não pode deixar de conduzir à sua improcedência.
Com efeito, em nosso ver, o aludido segmento da fundamentação jurídica da sentença está, manifestamente, contido no conhecimento do pedido formulado pelo Autor nos presentes autos quanto à causa de resolução do contrato de arrendamento e consequente entrega do locado à herança (não excedendo, pois, a pronúncia que é exigida do Tribunal quanto à pretensão do Autor), ou seja, dito de outra forma, aquele segmento exprime apenas a (s) razão (ões) jurídica (s) ou os argumentos jurídicos que levaram, como já antes se referiu, o juiz do Tribunal de 1ª instância a considerar que o pagamento efectuado pelos RR a terceiro (o seu filho e co-herdeiro, FF) não é oponível ao senhorio/herança indivisa e ao respectivo administrador da mesma enquanto cabeça-de-casal, colocando, pois, os RR/apelantes/arrendatários em falta no cumprimento da sua obrigação de pagamento das rendas pelo gozo do locado (parte do acervo hereditário sujeito à administração do cabeça-de-casal) após o óbito do aludido BB.
De facto, como resulta da doutrina que já antes se cuidou de expor a propósito do artigo 769º e 770º, do Cód. Civil, o pagamento das rendas por parte dos RR/apelantes a seu filho (e co-herdeiro) só poderia ter-se, enquanto facto impeditivo do direito do Autor à resolução do contrato e à condenação dos RR no pagamento das rendas em causa, como eficaz e oponível ao Autor/administrador da herança, se este tivesse dado acordo a esse pagamento dos RR em favor daquele terceiro – o que, não só não foi nunca alegado pelos RR (artigo 342º, n.º 2, do Cód. Civil), como é desmentido pela propositura da presente acção pelo Autor, na sua qualidade de administrador da herança indivisa -, se essa fosse uma prática habitual e consentida pelo Autor – o que também não foi alegado pelos RR/apelantes (artigo 342º, n.º 2, do Cód. Civil) -, ou, ainda, se aquele FF tivesse, pelo menos, diligenciado por ir entregando, à medida que as ia recebendo, as rendas em causa àquele que, repete-se, em exclusivo, tinha título (substantivo) legítimo para as receber (e delas dar quitação), ou seja, o aqui Autoro que os RR/apelantes também nunca alegaram (artigo 342º, n.º 2, do mesmo Código).
Digamos que, na sobredita argumentação jurídica que emerge de forma evidente da sentença recorrida, através daquele segmento de tal fundamentação, o Sr. Juiz procurou assinalar quais os factos que, sendo factos impeditivos (ou extintivos) do direito exercido em juízo pelo Autor (resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas e condenação nesse pagamento por parte dos RR), podiam ter sido alegados pelos RR/apelantes para obstarem à procedência da presente acção, mas que, não o tendo sido, como não foram, não podiam deixar de conduzir a um resultado desfavorável à sua pretensão/defesa e, logicamente, à procedência da causa.
Este nosso raciocínio mostra-se, segundo cremos, espelhado de forma linear e cristalina por A. VARELA quando, a propósito regime do ónus de prova consagrado no Código Civil e das suas consequências, refere no seu Manual, o seguinte: “… O ónus da prova passa antes a significar a situação da parte contra quem o tribunal dará como inexistente um facto, sempre que, em face dos elementos carreados para os autos (pela parte interessada na verificação do facto, seja pela parte contrária, seja pelo próprio tribunal), o juiz se não convença da realidade dele.
Assim, prossegue o mesmo Autor, “(…) O que releva, no julgamento da prova, já não é tanto a actuação subjectiva da parte quanto a situação objectiva, o non liquet do facto resultante da instrução da causa.” [8]
Por conseguinte, não tendo os RR/apelantes invocado aqueles factos que serviram de base à argumentação jurídica do julgador (e não os alegando, logicamente, também os não lograram demonstrar em sede de instrução) e, ademais, assumindo-se os mesmos como factos impeditivos/extintivos do direito do Autor (artigo 342º, n.º 2, do Cód. Civil), não existe obviamente nenhum excesso de pronúncia quando, como é o caso dos autos, o julgador na sentença proferida dá, em sede de argumentação quanto à solução jurídica do litígio, aqueles factos como inexistentes (por não terem sido sequer alegados pela parte interessada, no caso os RR) e, para com base nessa inexistência, negar provimento à defesa dos RR quanto à alegada validade/eficácia dos pagamentos da renda efectuados a seu filho FF e, em sentido oposto, dar provimento à pretensão do autor, como fez.
Destarte, não existe, manifestamente, qualquer excesso de pronúncia por parte do Tribunal de 1ª instância, contendo-se a sentença dentro do conhecimento do objecto do litígio e, em particular, dentro da liberdade de apreciação jurídica dos fundamentos da pretensão do autor e dentro da liberdade de apreciação jurídica dos fundamentos da contestação dos RR/apelantes, liberdade esta cometida ao juiz do processo, à luz do preceituado no artigo 5º, n.º 3, do CPC.
Dirimida a questão do excesso de pronúncia, vejamos agora o apontado vício de omissão de pronúncia, também assacado pelos RR/apelantes ao acto decisório ora sob escrutínio.
O vício em causa de omissão de pronúncia, segundo os RR/apelantes, estriba-se na circunstância de o Tribunal de 1ª instância, por um lado, não ter julgado como provada a matéria de facto por si alegada sob o artigo 24º da sua peça de contestação e, ainda, de não ter efectuado qualquer juízo crítico sobre o teor do documento junto pelo Autor como documento n.º 4 com a petição inicial, documento este em que o Autor nada comunica quanto à alteração do local onde deveria ocorrer o pagamento das rendas, quanto à alteração da forma do seu pagamento.
Quanto a esta matéria dir-se-á que também aqui falece razão aos RR/apelantes.
É um facto indesmentível que a sentença recorrida, não só não fez constar dos factos provados ou não provados a factualidade alegada pelos RR/apelantes no artigo 24º da sua contestação, assim como é também indesmentível que na sentença recorrida não existe a mais infíma referência ao teor do documento n.º 4, junto com a petição inicial e que corresponde, no essencial, à interpelação do Autor, através do seu Mandatário, aos ora RR/arrendatários para o pagamento das rendas em falta no montante global, àquela data de 24.02.2021, de € 6.000,00.
Ora, se é assim, como defendem os RR/apelantes, já a circunstância de o juiz do processo ter desconsiderado no elenco dos factos provados (ou não provados) determinados factos alegados pelas partes e, admitindo-se que os mesmos possam assumir relevo à decisão jurídica do litígio (segundo as várias soluções de direito tidas como plausíveis), não conduz, salvo melhor opinião, ao vício de omissão de pronúncia por si invocado, por desconsideração na decisão proferida de alguma questão (pedido ou excepção) deduzida no processo, mas antes a um eventual erro de julgamento na decisão de facto contida na sentença, que deve ser suscitado pelo apelante, por um lado, em sede de impugnação da decisão de facto (artigo 640º e 662º, do CPC) e, por outro, ocorrendo a defendida alteração da decisão de facto, suscitado em sede de erro de julgamento quanto ao mérito da sentença recorrida, tendo por pressuposto aquela outra factualidade alegada e que o Tribunal a quo não terá, em sede de subsunção e análise jurídica dos contornos do concreto litígio, terá levado em consideração, incorrendo em decisão que deverá ser, nesse contexto, alterada/revogada.
Com efeito, pode a desconsideração de determinados factos alegados pelas partes conduzir, não só à alteração da decisão de facto e, nesse outro enquadramento factual, a distinta solução jurídica do litígio, com a inerente alteração do decretado, mas não à nulidade por omissão de pronúncia.
Digamos, em outros termos, o Tribunal pronunciou-se sobre a pretensão do Autor e sobre a contestação dos RR (não incorrendo, pois, em omissão de pronúncia); pode, no entanto, ter omitido no elenco dos factos provados outros factos que, do ponto de vista jurídico, poderiam/deveriam conduzir a uma decisão final de mérito diversa. Sucede, porém que, a ser assim, o vício não é um vício formal, mas um erro de julgamento, seja de facto, seja de direito.
Por conseguinte, improcede a dita nulidade por omissão de pronúncia, sem prejuízo de se conhecer dessa questão (erro de facto e/ou de direito) em outro passo/segmento deste acórdão.
Em conclusão, improcedem todas as nulidades arguidas pelos RR/apelantes contra a sentença recorrida.
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IV.II. Impugnação da decisão de facto:
No âmbito da impugnação da decisão de facto contida na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, prevê o artigo 662º, n.º 1, do CPC, que, observados os ónus de impugnação previstos no artigo 640º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
No caso dos autos, a divergência dos RR/apelantes quanto à decisão de facto contida na sentença cinge-se a dois factos que, de facto, apesar de alegados pelas partes, o Sr. Juiz não fez constar nem dos factos provados, nem dos factos não provados.
O primeiro refere-se à interpelação que constitui o documento n.º 4, junto com a petição inicial e que contende com a alegação do Autor contida no artigo 16º da sua petição inicial.
Ora, confrontando a alegação do artigo 16º da petição inicial e a contestação dos RR, apesar de estes últimos terem impugnado genericamente a matéria alegada pelo Autor naquele artigo 16º (vide artigo 26º da contestação), é perfeitamente perceptível que os mesmos não negam ter recebido a interpelação de pagamento que lhes foi dirigida pelo Mandatário do Autor e que consta do citado documento n.º 4, junto com a petição, limitando-se, verdadeiramente, a negar a existência da dívida cujo pagamento ali se reclamava, mas sem colocarem em causa (até por ser facto pessoal) terem, de facto, sido interpelados como consta de tal documento n.º 4 e de o terem recebido, inteirando-se, pois, do seu conteúdo.
Destarte, quanto a este segmento da impugnação da decisão de facto deve a mesma proceder, passando a constar do elenco dos factos provados (sob os n.º 9 e 10), a seguinte factualidade:
9) O Autor, enquanto cabeça-de-casal na herança aberta por óbito de BB, com data de 24.02.2021, através do seu Advogado, enviou aos RR, DD e EE, a carta que constitui o documento n.º 4, junto com a petição inicial, carta esta em que lhes comunicou que os mesmos, enquanto arrendatários do prédio ali identificado [referido sob os pontos 2) e 3)], eram devedores, àquela data, das rendas referentes aos anos de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, no total de € 6.000,00 (seis mil euros), acrescidos da respectiva indemnização derivada de mora, de valor correspondente a 20% do que for devido, no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).
Mais, ainda, comunicou o Autor naquela missiva que com a mesma os considerava formalmente interpelados para, no prazo de 10 dias, após a sua recepção, procederem ao pagamento daquela quantia, no valor total de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), sob pena de, findo tal prazo sem qualquer resposta, fazer distribuir o competente processo de despejo.
10) Os RR receberam a dita carta no dia 3.03.2021, conforme aviso de recepção que constitui o documento n.º 5, junto com a petição inicial.
Dirimido este primeiro segmento da impugnação da decisão de facto em sentido favorável aos apelantes, importa analisar o segundo e que contende com a matéria de facto alegada pelos RR/apelantes no artigo 24º da contestação, matéria que também não consta do elenco dos factos provados ou não provados da sentença.
O aludido artigo 24º da contestação reza assim:
“Nunca senão agora, o A., e decorridos mais de três anos sobre a data em que o mesmo se habilitou como cabeça-de-casal, o mesmo reclamou crédito de rendas sobre os aqui RR, nunca tendo comunicado, fosse porque forma fosse, a quem deviam os mesmos (RR) proceder a tal pagamento, nem sequer o meio pelo qual o deviam fazer. “
Quanto a esta matéria (e estando demonstrado que entre a habilitação de herdeiros datada de 7.03.2018 e a carta de interpelação do Autor aos RR, que constitui o documento n.º 4, junto com a petição inicial, decorreram cerca de três anos), os RR/apelantes que o Tribunal de 1ª instância deveria ter julgado como provado que o Autor não comunicou aos RR a quem deviam os mesmos proceder a tal pagamento das rendas, nem o local e o meio pelo qual o deviam fazer.
Para tanto, invocam, em primeiro lugar, que essa matéria de facto não foi sequer impugnada pelo Autor, devendo, por isso, ter-se como confessada, mas, além disso, a mesma foi também confirmada, de forma clara, no decurso do depoimento da testemunha GG, quando confrontada com o teor da carta de 24.02.2021 (o aludido documento n,º 4, junto a com petição inicial), tendo, ainda, referido que foi a primeira vez que os RR (seus «sogros», pois que vive em união de facto com o filho dos mesmos, a testemunha FF) foram interpelados pelo Autor para o pagamento de rendas do prédio ora em causa e onde a própria testemunha também habita com o filho dos RR.
Relativamente à alegada confissão do Autor quanto à matéria em causa, cumpre dizer que essa matéria de facto mostra-se colocada em crise (ainda que antecipadamente) pelo próprio Autor e através, precisamente, da carta que constitui o documento n.º 4, junto com a petição inicial, carta que constitui interpelação formal ao pagamento por parte dos RR.
Como assim, não colocando em causa os RR o recebimento daquela carta que constitui o documento n.º 4, não colocando os RR em causa que a dita carta provinha do Autor, enquanto cabeça-de-casal da herança indivisa, através do seu Advogado, qualquer destinatário daquela missiva, agindo de boa-fé, isto é, com a correcção, com a seriedade, com a honestidade e a lisura que são exigíveis no âmbito do cumprimento das obrigações (artigo 762º, n.º 2, do Cód. Civil), não ficava (nem podia ficar) com a mais ínfima dúvida sobre a quem devia ser efectuado o pagamento das rendas (ao Autor, enquanto cabeça-de-casal, que as exigia, ou, no mínimo, ao seu Advogado, a quem o Autor, enquanto residente no estrangeiro, tinha mandatado/confiado que diligenciasse pela interpelação para pagamento das ditas rendas do locado e, naturalmente, pelo seu recebimento por parte do intimado para o efeito), sobre o local onde esse pagamento deveria ser efectuado (no escritório do dito Advogado, a quem o Autor tinha confiado tal assunto e cujo endereço consta expressamente da carta que constitui o documento n.º 4, recebido pelos RR), sendo certo que, naturalmente, quanto ao meio de pagamento (v.g., cheque, numerário ou outro) sempre o próprio devedor estaria em condições de o escolher em função da sua própria conveniência, desde que, efectivamente, efectuasse o pagamento do valor que lhe era exigido/reclamado pelo interlocutor que não desconhecia, qual seja, o Sr. Advogado a quem o cabeça-de-casal conferiu poderes para reclamar (e receber) os valores em dívida. Aliás, se dúvidas (legítimas) ocorressem – e em nosso ver, a carta já referida não é susceptível de alimentar quaisquer dúvidas sobre o sentido daquelas informações quanto à pessoa a quem devia ser efectuado o pagamento e quanto ao local onde o mesmo devia ocorrer -, o que se justificaria era, no mínimo, agindo os RR de boa-fé e querendo, efectivamente, cumprir, como ora sustentam, que procedessem ao depósito das rendas através de consignação em depósito do seu valor, fazendo uso do meio processual previsto no artigo 916º, do CPC e declarando as dúvidas que, no caso, motivavam o recurso àquele meio alternativo de satisfação da sua obrigação devida.
Por conseguinte, em nosso julgamento, e não obstante o depoimento da testemunha GG em audiência de julgamento que se limitou, nesta parte, a confirmar, acriticamente, a versão dos próprios RR (pais do seu companheiro FF e com quem a testemunha vive em união de facto e no prédio ora em causa, ou seja, com evidente interesse no desfecho da presente acção e na sua improcedência), mas a qual, como se viu, não nos logrou convencer, a aludida matéria de facto contida no artigo 24º da sua contestação e que os apelantes pretendem ver dada como provada, deve ter-se como não provada, passando, como tal, a constar do elenco dos factos não provados e sob a nova alínea b) daquele elenco de factos.
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IV.III. Erro de Julgamento – Mérito da sentença.
Analisadas e decididas as antecedentes questões, cumpre reapreciar do mérito da sentença recorrida e em função dos alegados erros de julgamento de direito que lhe vêm assacados pelos apelantes.
Na sentença recorrida foi decretada a resolução do contrato de arrendamento ora em apreço à luz do preceituado no artigo 1083º, n.º 3, do Cód. Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 20.2 (NRAU), tendo por assente – e bem, como já decorre do acima exposto quanto à realização da prestação ao credor (no caso, ao Autor, enquanto cabeça-de-casal aberta por óbito de BB e CC) e à luz do preceituado nos artigos 769º e 1038º, alínea a), do Cód. Civil – que os RR/arrendatários/apelantes omitiram o pagamento da renda acordada por período superior a três meses (artigo 1083º, n.º 3, na redacção introduzida pela Lei n.º 43/2017, de 14.06), como decorre, em termos inequívocos dos factos provados em 6), 7) e 8) da sentença recorrida.
Com efeito, como é consabido, os casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do aludido artigo 1083º, do Cód. Civil, com as alterações legais acima referidas (Lei n.º 6/2006 – NRAU; Lei n.º 31/2012 de 14.08 e Lei n.º 43/2017, de 14.06), configuram casos em que a lei determina o direito à resolução pelo senhorio da cláusula sem necessidade de preenchimento geral prevista no n.º 2. Nestas situações, em que o inquilino incumpre reiteradamente a principal obrigação que para si nasce do contrato de arrendamento – a obrigação de pagamento da renda -, a quebra do sinalagma é tão grave que torna automaticamente inexigível ao senhorio a manutenção do contrato. [9]
Destarte, resultando à evidência o preenchimento da previsão do citado n.º 3 do artigo 1083º, do Cód. Civil (e não tendo os RR posto termo àquela mora nos termos do n.º 3 do artigo 1084º, do mesmo Código), nenhuma censura nos merece a sentença recorrida ao decretar a resolução do ajuizado contrato de arrendamento em apreço.
A esta subsunção jurídica e, em particular, à aplicação do citado n.º 3 do artigo 1083º, do Cód. Civil, com a redacção antes referida, invocam agora os RR/apelantes que, ao caso dos autos, datando o contrato de arrendamento de 1.09.2021, seria antes aplicável o preceituado no RAU e, em particular, o ali previsto no artigo 64º, do DL n.º 321-B/90, de 15.10.
Trata-se, como é bom de ver, de uma nova questão que os RR jamais alegaram na sua contestação, na qual, ao longo dos seus 27 artigos, jamais sustentaram, como agora oportunisticamente pretendem fazer, a aplicação do citado regime do RAU.
Neste sentido, aliás, na sentença recorrida nenhuma dúvida se colocou quanto à aplicação do citado artigo 1083º, n.º 3, do Código Civil, na versão emergente do NRAU, precisamente porque os RR/apelantes colocaram tal questão de sucessão de leis no tempo perante o Tribunal de 1ª instância.
Sendo assim, tratando-se de questão nova, em bom rigor, nem sequer haveria este Tribunal de recurso que dela conhecer, pois que, como é consabido, os recursos não se destinam a decidir ou conhecer de questões não antes suscitadas e apreciadas em 1ª instância, salvo se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
Aceitando, todavia, que a questão da lei aplicável ao caso dos autos possa ter-se como questão de conhecimento oficioso e assim caiba conhecê-la apenas nesta instância, ainda assim a razão não está do lado dos RR/apelantes.
O contrato de arrendamento em causa é um contrato de arrendamento para habitação, como consta expressamente do seu clausulado.
O dito contrato foi celebrado a 1.09.2001, ou seja, sob o domínio então do já citado DL n.º 321-B/90, de 15.10.
O aludido NRAU (Lei n.º 6/2006) entrou em vigor a 27.06.2006, como decorre do preceituado no artigo 65º, n.º 2 da citada Lei.
Tendo presente a sucessão de leis e a data da celebração dos contratos de arrendamento (no caso, arrendamento para habitação), prevê o artigo 59º, n.º 1, daquela Lei n.º 6/2006 que “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.”
A regra que decorre do citado normativo é, por isso, a de que o NRAU se aplica imediatamente às relações contratuais de arrendamento que, à data da sua entrada em vigor, subsistam (como é o caso do contrato de arrendamento em causa), mesmo que tenham sido constituídas antes da nova lei, ressalvado, no entanto, o regime transitório previsto no próprio NRAU.
Por seu turno, de acordo com o disposto no artigo 26º do mesmo NRAU, na versão vigente à data da instauração da presente acção, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados na vigência do RAU (como é o caso do presente contrato de arrendamento celebrado em Setembro de 2001) é aplicável, precisamente, a nova versão que decorre do citado NRAU, com as especificidades previstas nos n.ºs 2, 3, 4 e 5 daquele artigo 26º, mas que, ao caso que ora nos ocupa, nenhuma aplicação colhem.
Por conseguinte, impõe-se a conclusão que as normas da lei nova (NRAU) que dispõem directamente sobre o conteúdo da relação de arrendamento (como sejam as regras atinentes aos direitos e deveres do arrendatário ou do senhorio e as que se referem aos fundamentos da resolução), nomeadamente o citado artigo 1083º, n.º 3, do Cód. Civil, abrangem as relações de arrendamento já constituídas e que subsistam (como é o caso) e são, pois, de aplicação imediata aos contratos de arrendamento para habitação celebrados sob a égide do RAU. [10]
Estas normas acompanham, no fundo, a regra que emerge, em termos gerais, do disposto no artigo 12º, n.º 2, do Cód. Civil quanto à aplicação das leis no tempo, sendo que, segundo este último normativo, a lei nova que disponha sobre o conteúdo da relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem, é imediatamente aplicável às próprias relações jurídicas já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor, mas a que rege sobre os efeitos de um facto é a que vigorar no momento em que tal facto ocorrer.
Nestes termos, conforme é, aliás, posição pacífica na jurisprudência, relativamente às causas de resolução do contrato de arrendamento, a lei aplicável será a vigente ao tempo em que ocorreram os factos integradores ou fundamentadores do direito de resolução do contrato. [11]
Por conseguinte, mantendo-se o contrato de arrendamento ora em causa em vigor à data de entrada em vigor do NRAU (Junho de 2006) e situando-se o incumprimento dos RR/apelantes (não pagamento das rendas previstas no contrato e em favor do credor/cabeça-de-casal, enquanto administrador da herança indivisa) a partir de Fevereiro de 2018, nenhumas dúvidas se colocam, pois, à aplicação do citado artigo 1083º, n.º 3, do Cód. Civil, na versão decorrente do NRAU, com as suas sucessivas alterações a que já fizemos referência.
Nada existe, pois, a censurar neste conspecto à sentença recorrida, que aplicou correctamente o novo regime do arrendamento urbano (NRAU) e, dentro deste, o já citado n.º 3 do artigo 1083º, do Cód. Civil, fazendo correcta interpretação e aplicação do mesmo pelas razões já sobejamente expostas.
Diga-se, aliás, que, ao contrário do parecem sugerir os RR/apelantes, a sua indiscutida obrigação de pagamento de rendas do locado não se confunde, nem mistura, como os mesmos pretendem, com eventuais prestações de contas entre o aqui Autor e o co-herdeiro FF (seu filho) ou, ainda, com eventuais dívidas do próprio cabeça-de-casal por via da sua alegada utilização do 1º andar do prédio em causa.
Essas são matérias que só podem ser discutidas através dos meios processuais próprios, seja através de prestação de contas pelo cabeça-de-casal e sua respectiva administração da herança, (receitas e despesas), seja através do próprio inventário e eventual reclamação pelas dívidas do dito cabeça-de-casal à herança e entre os respectivos herdeiros/interessados (o aqui Autor e o aludido FF).
Isto dito, tanto bastaria, em nosso ver, para decretar, desde já, a improcedência da apelação, dada a já salientada irrelevância jurídica do pagamento efectuado pelos RR/apelantes a favor de terceiro, no caso o seu próprio filho, o aludido FF, sem acordo ou consentimento do aludido cabeça-de-casal.
No entanto, colocam, ainda, os apelantes a questão do alegado abuso de direito do Autor, cabeça-de-casal, estribando-o, se bem se percebe a sua argumentação, no facto de o mesmo nos três anos subsequentes ao óbito do senhorio (BB) não ter diligenciado por conhecer se os RR pagavam ou não a renda em causa, a quem e porque montante, o que, em razão dos vínculos familiares entre todos, lhes criou a legítima expectativa e confiança que o mesmo não viria a reclamar aquele direito ao recebimento das rendas, actuando, assim, em «venire contra factum proprium» ou numa situação de «supressio», gerando uma manifesta desproporção entre os benefícios colhidos pela herança indivisa, de que o Autor é administrador, e os sacrifícios impostos à outra parte (os ora RR) e resultantes desse exercício.
Com o devido respeito, não se acompanha a defesa dos RR, sendo de salientar que, se a excepção de abuso de direito é tida como uma excepção de conhecimento oficioso do tribunal, é sempre suposto que a intervenção jurisdicional a esse nível colha apoio na precisa factualidade provada no processo, factualidade essa que só às partes incumbe carrear e provar no decurso do processo.
Ora, neste contexto, não se vislumbra no estrito elenco dos 10 factos provados nos autos (levando em consideração os dois novos factos 9 e 10, aditados nesta instância), lastro factual bastante para poder qualificar a interposição da presente acção e o direito resolutivo (por falta de pagamento de rendas por parte dos RR/apelantes e que perdura desde 2018 e até à presente data) exercido pelo Autor, enquanto cabeça-de-casal e administrador da herança indivisa, como uma actuação que, de forma ostensiva ou clamorosa, atinja ou ultrapasse os limites impostos (ao exercício dos direitos de administração cometidos ao cabeça-de-casal, entre os quais se conta, como é pacífico, a instauração de acção de despejo atinente a prédio da herança que lhe cabe gerir/administrar [12], segundo o critério de um gestor ordenado e diligente) pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa.
Nesta perspectiva, como é consabido, a ideia essencial que subjaz à proibição do «venire contra factum proprium» reside na tutela da confiança e na constatação de que o assumir de comportamentos ostensivamente contraditórios viola a regra da boa-fé, da conduta honesta, séria, correcta, ideia que é pacífica em toda a doutrina e jurisprudência.
Assim, a proibição do venire contra factum proprium cai no âmbito da previsão do abuso de direito (artigo 334º, do Cód. Civil), através do qual se considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda de forma grosseira os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico.
A boa-fé, enquanto princípio normativo de actuação, tem implícito o entendimento de que as pessoas devem adoptar condutas honestas, leais, diligentes e zelosas, em termos de não comprometer ou defraudar os legítimos interesses ou expectativas da outra parte.
Enquanto pressuposto da imputação da consequência jurídica do abuso de direito, na modalidade de «venire», J. BAPTISTA MACHADO enunciava os seguintes pressupostos: - uma situação objectiva de confiança, baseada numa conduta que, do ponto vista externo, possa ser legitimamente entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao desenvolvimento futuro de certa situação; - um investimento de confiança e irreversibilidade desse investimento, ou seja, que o factor gerador da confiança tenha determinado a decisão da contraparte; - boa-fé da contraparte que confiou, ou seja, a contraparte só merecerá protecção quando esteja de boa-fé e tenha agido com a diligência e precaução usuais no tráfico jurídico. [13]
No mesmo sentido, salienta também A. MENEZES CORDEIRO que o abuso de direito, na modalidade ora em causa, supõe a verificação de quatro proposições, a saber:
1ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível;
3ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.
A situação de confiança pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa-fé subjectiva: a posição da pessoa que não adira à aparência ou que o faça com desrespeito de deveres de cuidado merece menos protecção.
A justificação da confiança requer que esta se tenha alicerçado em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal.
O investimento de confiança exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efectivo, desenvolvido toda uma actuação baseada na própria confiança, actuação que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis; isto é, uma confiança puramente interior, que não desse lugar a comportamentos, não requer protecção.
A imputação da confiança implica a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado. Ao proteger-se a confiança de uma pessoa, vai-se, em regra, onerar outra; isso implica que esta outra seja, de algum modo, a responsável pela situação criada.” [14]
Esta posição doutrinária tem também merecido sucessivo acolhimento na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça, de que podem invocar-se, apenas dos mais recentes, o AC STJ de 21.11.2019, o AC STJ de 10.12.2019, o AC STJ de 19.09.2019 e, ainda, o AC STJ de 9.02.2021, relatados, respectivamente, pelos Srs. Juízes Conselheiros Bernardo Domingos, Acácio Neves, Tomé Gomes e, de novo, Acácio Neves, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Neste sentido, como se dá nota neste último AC do STJ de 9.02.2021, já antes o mesmo Supremo Tribunal tinha decidido:
No Acórdão de 11.12.2012, proferido no Processo n.º 116/07.2TBMCN.P1.S1:
Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”.
No Acórdão de 12.11.2013, proferido no Processo n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1:
I - A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334.º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório. II - São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa-fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou. III - O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa-fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
No Acórdão de 27.04.2017, proferido no Processo n.º 1192/12.1TVLSB.L1.S1:
I - Para que ocorra o abuso do direito, é necessário que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados. O excesso deve, no entanto, ser manifesto. II - Como modalidade do abuso do direito, a doutrina e a jurisprudência, apontam o venire contra factum proprium, abuso que ocorre quando o exercício do agente contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo mesmo.
E no Acórdão de 07.03.2019, proferido no Processo n.º 499/14.8T8EVR.E1.S1:
O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem como pressuposto a existência de uma situação objectiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjectivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada.” [15]
Digamos, pois, que haverá que confirmar se o exercício do direito de resolução se configura como contrário ao princípio da boa-fé, por abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Cód. Civil, maxime se será abusivo por «venire contra factum proprium» ou «supressio».
Como assim, o exercício desse direito de resolução só pode ser travado por ser abusivo caso frustre a legítima expectativa/confiança do sujeito contratante no não exercício do direito de desvinculação contratual unilateral. Há «venire» quando um sujeito exerce um direito ou posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente, reconduzindo-se à teoria da confiança. O mesmo vale no caso do «supressio», que corresponde à insusceptibilidade de exercício do direito por não exercício durante determinado período de tempo, de modo a que a sua não actuação (inércia) crie na outra parte a legítima confiança de que o direito não virá a ser exercido.
Em suma, no âmbito do abuso de direito na modalidade de «supressio», como assinala A. MENEZES CORDEIRO, op. cit., pág. 324, o não exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não será mais exercida.
Por este prisma, a «supressio» manifesta-se porque, mercê da confiança legítima, uma pessoa adquiriu (por surrectio) uma posição que se torna incompatível com um exercício superveniente, por parte do exercente. E na ponderação de interesses contrapostos vai-se dar preferência ao beneficiário. [16]
Ora, tendo presente o antes exposto, julgamos que o alegado abuso de direito do aqui Autor, enquanto cabeça-de-casal e administrador da herança indivisa aberta por óbito de BB (e sua pré-falecida mulher, CC) não colhe, manifestamente, apoio na factualidade provada, não sendo bastante, como se viu, apenas o mero decurso de tempo entre a data de habilitação de herdeiros e a indigitação do ora Autor como cabeça-de-casal e a interpelação dos RR/arrendatários ao pagamento das rendas em causa (atinentes a prédio daquela herança indivisa) e a subsequente propositura da presente acção, sendo certo que inexiste no conjunto da factualidade provada qualquer facto, por um lado, demonstrativo da renúncia daquele ao exercício das suas funções e à consequente resolução do contrato de arrendamento em apreço por falta de pagamento das rendas por parte dos RR/arrendatários – podendo aquela inércia inicial decorrer de um vasto conjunto de factos e/ou circunstâncias que não decorrem sequer dos factos provados nos autos (nomeadamente, as relações familiares existentes entre as partes) – e/ou da sua aceitação do comportamento dos RR/arrendatários ao não procederem ao pagamento das rendas ao legítimo credor (o cabeça-de-casal, enquanto administrador da herança em apreço) e, logicamente, qualquer facto que consinta, de um ponto de vista de boa-fé (actuação honesta, séria e socialmente aceitável), aos RR firmarem, em termos legítimos, a expectativa ou a confiança de que o Autor, naquela sua qualidade, iria aceitar indefinidamente a actuação ilícita dos RR/apelantes, que, de forma unilateral e mancomunados com o seu filho, FF, decidiram, logo após o óbito de BB, ou seja, sem esperar sequer por qualquer actuação daquele que poderia vir a ser (como foi) indigitado como cabeça-de-casal, proceder ao pagamento das rendas devidas ao senhorio a um terceiro, seu familiar (seu filho), que, por coincidência, também habita no mesmo locado.
Digamos que se alguma inércia temporal existiu por parte do cabeça-de-casal (que, recorde-se tem residência habitual na Alemanha) quanto à situação do arrendamento sobre o r/c do prédio em causa, bem mais grave e significante, de um ponto de vista de ilicitude e culpa, se nos apresenta a conduta dos RR/apelantes, que sabendo ser arrendatários de um prédio da herança indivisa e como tal serem devedores da renda devida nos termos do contrato de arrendamento celebrado ao respectivo senhorio (herança indivisa), rigorosamente nenhuma diligência encetaram, de boa-fé, para junto daquele que sabiam ser, por princípio, o cabeça-de-casal da herança (irmão do Réu marido) e administrador da herança, procederem, de forma célere e tempestiva, ao cumprimento da obrigação primordial que sob eles incidia (pagamento da renda do locado) – nem mesmo depois de serem interpelados pelo Advogado do mesmo pela missiva referida nos pontos 9) e 10) do elenco dos factos provados -, antes enveredando de imediato (ou seja, independentemente de qualquer eventual actuação do cabeça-de-casal), por sua exclusiva conta e risco, por procederem ao pagamento da renda a quem bem sabiam não dispor de qualquer título legítimo para a receber, ou seja, o seu filho FF.
Por conseguinte, inexiste qualquer situação de confiança legítima, séria, razoável ou socialmente aceitável por parte dos RR/apelantes e que mereça protecção pelo sistema jurídico, sendo carecida de fundamento a sua pretensão quanto à paralisação, por abuso de direito, do exercício do direito resolutivo invocado pelo aqui Autor, enquanto cabeça-de-casal e administrador dos bens que integram o acervo hereditário e do qual faz parte o r/c do prédio dado de arrendamento aos RR e ora apelantes.
Destarte, não colhe, em nosso julgamento, qualquer sustento legal a posição dos RR/apelantes e o pretenso abuso de direito do Autor, em qualquer das sobreditas modalidades de «venire contra factum proprium» ou «supressio» e, sequencialmente, deve improceder totalmente a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida, seja no que respeita à resolução do contrato de arrendamento à luz do preceituado no artigo 1083º, n.º 3, do Cód. Civil, seja, ainda, quanto ao pagamento das rendas vencidas desde Fevereiro de 2018 e até à data em que vier a ocorrer a entrega efectiva do locado à herança, na pessoa do seu cabeça-de-casal/administrador, o aqui Autor.
Improcede, em conclusão, a apelação interposta pelos RR/arrendatários/apelantes, sendo de confirmar na íntegra a sentença recorrida.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a íntegra a sentença recorrida.
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Custas pelos apelantes, que ficaram vencidos (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficiem.
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Porto, 27.02.2023
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Jorge Seabra
Fátima Andrade
Eugénia Cunha

(O presente acórdão não segue, apenas por opção do Relator, na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, por todos, F. AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147-148 e A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Este Tribunal procedeu à alteração pontual das asserções de facto constantes dos pontos 1), 3), 5), 7) e 8), em ordem a fazer corresponder as mesmas ao teor dos documentos juntos aos autos e ali referidos – escrituras públicas/documentos autênticos, cuja falsidade não foi invocada por qualquer das partes.
[3] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 227.
[4] F. FERREIRA PINTO, ISABEL TEIXEIRA DUARTE, “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações em Geral”, UCE, 2018, pág. 1046-1047 ou, ainda, no mesmo sentido, por todos, L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, II volume, 6ª edição, pág. 152-156.
[5] Vide, ainda, no mesmo sentido, por todos, J. CARLOS BRANDÃO PROENÇA, “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações”, 2ª edição, Revista e Actualizada”, UCE, pág. 88-89.
[6] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 220-221.
[7] J. ALBERTO dos REIS, “Código de Processo Civil Anotado”, V volume, 1984, pág. 143.
[8] A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 450-451.
[9] Vide, neste sentido, por todos, ELSA SEQUEIRA SANTOS, in “Código Civil Anotado”, I volume, 2017, Coord. ANA PRATA, pág. 1323, L. MENEZES LEITÃO, “Arrendamento Urbano”, 11ª edição, 2022, pág. 143-145, MARIA OLINDA GARCIA, “Arrendamento Urbano Anotado”, 3ª edição, pág. 36, J. PINTO FURTADO, “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 2019, pág. 470-474 e FERNANDO BAPTISTA de OLIVEIRA, “A resolução do contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano”, 2007, pág. 80-88.
[10] Vide, neste sentido, por todos, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 189.
[11] Vide, neste sentido, por todos, além do Autor já citado sob a nota 10, ainda, na doutrina, LAURINDA GEMAS, ALBERTINA PEDROSO e JOÃO JORGE, “Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2ª edição, pág. 101-102, JORGE PINTO FURTADO, “Manual de Arrendamento Urbano”, II volume, 4ª edição actualizada, pág. 1013-1014.
Na jurisprudência, neste sentido, por todos, AC RL de 24.04.2010, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Maria Amélia Ribeiro, AC RL de 27.09.2016, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Maria da Conceição Saavedra e AC RP de 3.02.2011, relator Sr. Juiz Desembargador Freitas Vieira, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[12] Vide, neste sentido e quanto à legitimidade do cabeça-de-casal para instaurar acção de despejo de prédio da herança indivisa, por todos, J. LOPES CARDOSO, “Partilhas Judiciais”, I volume, 1990, pág. 332 e, ao nível da jurisprudência, por todos, AC RP de 8.06.2022, relator Sr. Juiz Desembargador Rodrigues Pires, AC RP de 8.02.2021, relator Sr. Juiz Desembargador Manuel Domingos Fernandes e AC RP de 21.06.2011, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Anabela Dias da Silva, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[13] J. BAPTISTA MACHADO, “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, in Obra Dispersa, I volume, Braga, 1991, pág. 385.
[14] A. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil – Parte Geral”, Tomo IV, 2007, pág. 292.
[15] Estes outros acórdãos encontram-se também disponíveis no mesmo sítio oficial – www.dgsi.pt
[16] Vide, neste sentido, por todos, ao nível da jurisprudência do STJ, AC STJ de 19.10.2017, relatora Sr.ª Juíza Conselheira Rosa Tching, AC STJ de 22.09.2021, relator Sr. Juiz Conselheiro José Raínho, AC STJ de 4.11.2011, relator Sr. Juiz Conselheiro Jorge Dias e AC STJ de 10.01.2023, relator Sr. Juiz Conselheiro Ferreira Lopes, todos disponíveis in www.dgsi.pt