EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
ÂMBITO DA OBRIGAÇÃO DE CESSÃO
Sumário

I – A efetiva concessão do benefício de exoneração dos créditos sobre a insolvência está dependente do cumprimento, pelo devedor, da obrigação de ceder o seu rendimento disponível  ao fiduciário que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores – configura cessão de bens ou de créditos futuros, determinada por decisão judicial, o que determina que os rendimentos que o insolvente venha a adquirir transferem-se, no momento da sua aquisição, para o fiduciário, independentemente do consentimento dos devedores desses rendimentos.
II – A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao beneficiado pela solução legal adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra.
III – As diversas alíneas do nº3 do artigo 239.º do CIRE elencam os rendimentos que não integrarão o rendimento disponível.
Todos os outros rendimentos, que advenham a qualquer título ao devedor, são disponíveis e deverão ser entregues ao fiduciário, como o são as quantias recebidas a título de indemnização e créditos laborais - o preceito é claro, no sentido de determinar que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das als. a) e b) do citado 239.º.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Pelo Juízo Local Cível ... - Juiz ..., foi proferida a seguinte decisão:

“AA e BB, NIFs... ...09 e ...70, respectivamente, residentes Estrada ..., ..., ... ..., ..., foram declarados insolventes.

Os Insolventes pediram a exoneração do passivo restante, declarando expressamente que preenchem os requisitos para que lhes seja atribuída a faculdade de exoneração do passivo restante, dispondo-se a observar todas as condições que lhes vierem a ser impostas, nos termos e para os efeitos do artigo 236º/3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

A AI deu parecer positivo.

Notificados para o efeito, nenhum credor se opôs ao deferimento da concessão da exoneração do passivo restante.

*

Mostrando-se cumprido o art. 238º/2, do CIRE, importa apreciar e decidir o pedido, sendo três as questões decidendas:

a) verificação dos fundamentos de indeferimento liminar;

b) determinação do sustento minimamente digno dos devedores;

c) nomeação do fiduciário.

(…)

Em face de todo o exposto:

a) defiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos Insolventes AA e BB e;

b) em consequência, determino que, durante os três anos subsequentes ao presente despacho, o rendimento disponível que os mesmos venham a auferir – que seja superior a um salário mínimo nacional cada um e com exclusão dos rendimentos a que alude o art. 239º/3, al a), do CIRE - se considere cedido ao fiduciário;

c) nomeio como fiduciário a Dr.ª CC.

Custas a cargo dos devedores, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam (cfr. artigo 248.º do CIRE).

Valor processual

Fixa-se ao presente incidente o valor da causa principal.

*

Obrigações dos Devedores:

Atento o disposto no art. 239º/4, do CIRE, ficam os Devedores advertidos de que, durante o período de cessão (ou seja, nos três anos posteriores ao presente despacho), ficam sujeitos às seguintes obrigações:

a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufiram, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;

c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;

d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

*

Registe e notifique, sendo que os Devedores deverão ser notificados na sua própria pessoa e na pessoa do Ilustre Mandatário.

*

..., 14 de Novembro de 2022”.

AA e BB, insolventes com os sinais dos autos, atento o despacho proferido a fls. que determina que “b) (...) durante os três anos subsequentes ao presente despacho, o rendimento disponível que os mesmos venham a auferir - que seja superior a um salário mínimo nacional cada um e com exclusão dos rendimentos a que alude o art. 239º/3, al a), do CIRE - se considere cedido ao fiduciário.” e não se conformando com o mesmo,não se conformando com tal decisão dela interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

A) Por douto despacho de fls., foi decidido estabelecer, como rendimento indisponível para cessão, o montante de 1 (um ) salário mínimo nacional para cada um dos insolventes.

B) Os requerentes acreditam que, atento o seu agregado familiar (que é composto pelos dois insolventes e por uma filha que estuda e se encontra a cargo destes) deverá ser fixado, como excluído da cessão, o montante equivalente a 2,5 SMN (dois salários mínimos nacionais acrescido de metade).

C) Aliás, de acordo com a jurisprudência dominante, deverá recorrer-se à denominada escala de Oxford – escala da OCDE criada em 1982, para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar, nos seguintes termos: “(…) o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0.7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/03/2013, proc. 1254/12.5TBLRA-F.C1, in www.dgsi.pt.

D) Verificando-se ainda, e de acordo com o próprio STJ, que: “Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.”, frisando ainda que “(…) não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia o instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver. (…)  Nesta perspetiva, consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.” - Ac. STJ de 02.02.2016, proferido no processo n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1 (Relator: Fonseca Ramos).

E) Pelo exposto, entende-se que o Tribunal posto em crise decidiu erradamente quanto ao montante do rendimento disponível a entregar pelos Insolventes.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas certamente mui doutamente suprirão, deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra, que fixe que o rendimento disponível dos devedores/insolventes será integrado por todos os rendimentos que àqueles advenham na globalidade e a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 2,5 salários mínimos nacionais (dois salários mínimos nacionais e meio),

Fazendo-se, desse modo, inteira justiça”.

2. Do objecto do recurso

O Juízo Local Cível ... determinou que o rendimento disponível, que os insolventes/devedores venham a auferir – que seja superior a um salário mínimo nacional cada um e com exclusão dos rendimentos a que alude o art. 239º/3, al a), do CIRE -, se considere cedido ao fiduciário.

Entendem os Apelantes que tal decisão deve ser substituída por uma outra, que fixe que, o rendimento disponível dos devedores/insolventes será integrado por todos os rendimentos que àqueles advenham na globalidade e a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de 2,5 salários mínimos nacionais dois salários mínimos nacionais e meio.

A 1.ª instância arrumou, assim, a sua matéria de facto:

A-Factos provados:

1)O Insolvente nasceu a .../.../1974 e a Insolvente a .../.../1976

2)Os Insolventes são casados entre si e têm uma filha, com dezoito anos de idade;

3)O Insolvente trabalha por conta de outrem, exercendo a profissão de pedreiro, onde aufere o vencimento mensal de 705,00€, encontrando-se, atualmente, de baixa médica, auferindo mensalmente a título de subsídio de doença a quantia líquida de € 177,92.

4)A Insolvente trabalha por conta de outrem, exercendo a profissão de empregada de hotelaria, auferindo o vencimento mensal líquido de 619,73€.

5)Os insolventes residem, juntamente com a sua filha, em casa de familiares, contribuindo com o montante mensal de 350,00€ para pagamento das despesas.

6)Os insolventes despendem mensalmente em alimentação o valor médio de €900,00.

7)Os insolventes despendem mensalmente o valor de € 69,70 referente ao pagamento das propinas da filha.

8)A Administradora da Insolvência apresentou a lista provisória de credores, computando o montante de dívidas responsabilidade dos devedores em 32.063,84€.

9) Não são conhecidos antecedentes criminais aos Insolventes.

*

B- Factos não provados:

1) O agregado familiar tem despesas que ascendem a um total de € 1.778,66 mensais”.

Vamos às normas:

O artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE/ na versão actualmente em vigor proveniente das alterações introduzidas pelo artigo 2.º da Lei n.º 9/2022 , de 11 de Janeiro e em vigor desde 11 de Abril -, prescreve que o despacho inicial relativo ao pedido de exoneração do passivo restante deve determinar que se consideram cedidos ao fiduciário todos os rendimentos que a qualquer título o insolvente venha a obter durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência - o chamado período da cessão.

O mesmo preceito manda excluir dessa cessão o montante de rendimento que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Recordamos que a exoneração do passivo restante, na perspectiva do devedor, serve a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica - ou, em rigor, a recuperação dessa liberdade - e o direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas e recorrentes relacionadas com a insolvência.

Essa tutela, agora na perspectiva do credor, colide naturalmente - ou pode colidir -, ao aspirar à liberação, objectiva e subjectiva, das dívidas restantes do devedor, com a tutela constitucional da titularidade dos direitos de crédito de natureza patrimonial, protegidos pela via do art.º 62º, 1, da CRP - direito à propriedade privada.

Ora, no perímetro da liberdade de conformação do legislador, deve considerar-se que essa conciliação entre valores e direitos constitucionalmente protegidos corresponde a uma ponderação equilibrada de interesses, que não deixa de ter em conta os interesses dos credores e não menospreza o valor central da igualdade dos credores , ainda que os interesses do devedor insolvente não culposo prevaleçam, tendo em conta o peso do interesse na reintegração na vida económica  - e social - e da protecção social do mais fraco - sobre este ponto, ver o Acórdão do STJ de 23.3.2021, pesquisável em www.dgsi.pt.

Ora, duas das obrigações impostas ao devedor insolvente, durante o período de cessão, são as de: “não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma  e no prazo em que isso lhe seja requisitado;” e “ entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão - artigo 239º, nº 4, alíneas a) e c) do CIRE, que será o diploma a citar sem menção de origem.

Ou seja, fixado o rendimento indisponível mensal, o insolvente deverá entregar ao fiduciário todos os rendimentos que venha a receber, a que título for, esporadicamente, ou de forma permanente, desde que excedam e na medida em que ultrapassem aquele montante – ainda que trate de subsídios de férias ou de Natal –, ficando de fora quaisquer considerações acerca da natureza da retribuição -Neste preciso sentido, Ac. da RG, de 14.02.2013, Manso Raínho, Processo n.º 267/12.8TBGMR-C.G1; Ac. da RC, de 13.05.2014, Luís Cravo, Processo n.º 734/10.7TBFIG-G.C1; Ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amélia Santos, Processo n.º 3550/14.8T8GMR.G1; Ac. da RG, de 25.05.2016, Fernando Fernandes Freitas, Processo n.º 6554/15.0T8VNF.G1; Ac. da RG, de 12.07.2016, Francisca Micaela Vieira, Processo n.º 4591/15.3T8VNF.G1; Acórdãos desta Relação de Coimbra, de 28.03.2017 e 16.10.2018, Emídio Francisco Santos, Processo n.º 178/10.5TBNZR.C1; Ac. da RG, de 17.12.2018, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 2984/18.3T8GMR.G1; Ac. da RE, de 17.01.2019, Maria João Sousa e Faro, Processo n.º 344/16.0T8OLH.E1; Ac. da RG, de 23.05.2019, António Sobrinho, Processo n.º 4211/18.4T8VNF.G1; Ac. da RP, de 23.09.2019, José Eusébio Almeida, Processo n.º 324/19.3T8AMT.P1; Ac. da RL, de 22.09.2020, Amélia Sofia Rebelo, Processo n.º 6074/13.7TBVFX-L1-1; ou Ac. da RG, de 03.12.2020, Helena Melo, Processo n.º 1248/20.7TVNF.G1; Acórdãos desta Relação de Coimbra de 22.6.2020 e 13.7.2020, Maria João, todos pesquisáveis em www.dgsi.pt.

Os Apelantes/Insolventes alegam:

“B) Os requerentes acreditam que, atento o seu agregado familiar (que é composto pelos dois insolventes e por uma filha que estuda e se encontra a cargo destes) deverá ser fixado, como excluído da cessão, o montante equivalente a 2,5 SMN (dois salários mínimos nacionais acrescido de metade).

C) Aliás, de acordo com a jurisprudência dominante, deverá recorrer-se à denominada escala de Oxford – escala da OCDE criada em 1982, para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar, nos seguintes termos: “(…) o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0.7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/03/2013, proc. 1254/12.5TBLRA-F.C1, in www.dgsi.pt.

D) Verificando-se ainda, e de acordo com o próprio STJ, que: “Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.”, frisando ainda que “(…) não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia o instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver. (…)  Nesta perspetiva, consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.” - Ac. STJ de 02.02.2016, proferido no processo n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1 (Relator: Fonseca Ramos).

E) Pelo exposto, entende-se que o Tribunal posto em crise decidiu erradamente quanto ao montante do rendimento disponível a entregar pelos Insolventes.

Será assim?

A 1.ª instância justifica, assim, a sua posição:

“b) Determinação do sustento minimamente digno dos devedores:

A consequência do deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante consiste em determinar que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designando por período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a um fiduciário – cfr. art. 239º/2, do CIRE.

Contudo, da cessão ficam excluídos alguns rendimentos, designadamente aqueles que sejam razoavelmente necessários para o: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor – cfr. art. 239º/3, al b), do CIRE.

A determinação do sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar tem sido outra das questões, relativas ao instituto da exoneração do passivo restante, mais problematizadas pela jurisprudência.

Efectivamente, a jurisprudência tem efectuado um esforço de densificação do preceito, salientando-se os seguintes vectores de decisão:

a) o limite de três vezes o salário mínimo nacional corresponde a um “tecto” e não ao “mínimo a atribuir ao devedor”;

b) o facto deste “tecto” ser relativamente baixo demonstra que o legislador pretende impor ao devedor uma necessária compressão do estilo de vida e redução de dispêndios” durante o período de cessão, como pressuposto necessário para a exoneração;

c) o referido limite pode ser ultrapassado por decisão fundamentada do juiz;

d) a lei não fixa um limite mínimo;

e) não existindo um limite mínimo e podendo ser ultrapassado o tecto de três vezes o salário mínimo nacional pode-se concluir que “montante a definir tem natureza aberta, cabendo ao julgador fixá-lo”;

f) na fixação desse montante importa considerar os seguintes parâmetros específicos: i) “se é certo que nada justifica que se exclua da cessão quantia inferior ao salário mínimo nacional - hipótese em que sempre se poria em causa o sustento minimamente digno do próprio devedor - também tudo aconselha a que aquele mesmo valor - o s.m.n. - se deva ter como regra.”; ii) “[n]ão existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo;”; iii) “o critério a usar pelo julgador é o da dignidade da pessoa humana o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias (e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente a uma específica formação profissional ou actividade ou hábitos de vida pretéritos)”; iv) “[n]essa fixação, o juiz atenderá não só às necessidades básicas do devedor mas também do seu agregado familiar”.

Partindo dos parâmetros expostos, conjugados com a análise do preceito em causa e os critérios gerais de interpretação, concorda-se, na íntegra, com os mesmos, salientando-se apenas que, salvo melhor entendimento, considera-se que o sustento minimamente digno do devedor não tem de coincidir com o salário mínimo nacional.

Efectivamente, fazendo apelo ao critério da unidade do sistema jurídico, entende-se que o facto do legislador não ter optado, neste caso, pela mesma fórmula utilizada para determinar os limites da penhorabilidade dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, ao contrário do que se verifica relativamente ao limite das três vezes o salário mínimo nacional, demonstra inequivocamente que não pretendeu estabelecer nenhuma coincidência necessária entre o sustento minimamente digno e o salário mínimo nacional.

Contudo, chegando-se a esta conclusão, naturalmente que se suscita a questão de saber se tal interpretação é ou não conforme com a constituição, pois o Tribunal Constitucional já entendeu que a «qualquer executado – e não apenas àquele que se encontra numa situação de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma regalia social – deve ser assegurado o mínimo necessário a uma subsistência digna. Ora, esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e, por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante equivalente ao salário mínimo nacional.(…)».

Pelas mesmas razões que mais à frente se irão expor, o caso vertente não obriga a uma tomada de posição, pelo que não é necessário enveredar pelos difíceis meandros de um juízo de constitucionalidade.

Em todo o caso, importa apenas salientar que, mesmo que se considere que a interpretação exposta não fere a constituição, a verdade é que o salário mínimo nacional é um parâmetro de referência a atender.

Transpondo os parâmetros expostos para o caso concreto, verifica-se, com relevo para a decisão, que o agregado familiar é composto pelos próprios Insolventes e uma filha já maior a estudar, dispondo o mesmo, em média, cerca de €797,65 para o seu sustento. Dito isto, conclui-se, sem dúvidas, que o rendimento objecto de cessão não pode afectar, o montante correspondente a um salário mínimo nacional, fixando-se assim o rendimento indisponível um salário mínimo nacional, para cada um.

Uma vez que não foram alegadas despesas específicas relacionadas com o exercício da sua actividade profissional, sendo as despesas apresentadas as correntes do dia a dia e que podem ser sujeitas a ajustamento, não há mais rendimentos a excluir da cessão, a não ser os créditos a que alude o art. 239º/3, al. a), do CIRE, e cuja exclusão resulta directamente da lei (…).

Ora, com todo o respeito pelos Apelantes, entendemos que a 1.ª instância julgou acertadamente.

Senão vejamos.

A justificação para o inovador instituto da Exoneração do Passivo Restante, tal como previsto no Título XII, Capítulo I, do CIRE consta desde logo do preâmbulo do diploma que o aprovou, quando destaca o respetivo regime no âmbito do tratamento dispensado às pessoas singulares, procurando com o mesmo conjugar “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”.

Trata-se da consagração do denominado princípio do “fresh start” para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, e que se traduz na atribuição da possibilidade ao devedor pessoa singular de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.

Porém, o aludido princípio fundamental do ressarcimento dos credores impõe que a efetiva concessão do benefício de exoneração dos créditos sobre a insolvência esteja dependente do cumprimento pelo devedor de diversos deveres que lhe são impostos, supondo, assim, que após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível – que o legislador define no CIRE -  a um fiduciário - entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência -, que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores – configura cessão de bens ou de créditos futuros, determinada por decisão judicial, o que determina que os rendimentos que o insolvente venha a adquirir transferem-se, no momento da sua aquisição, para o fiduciário, independentemente do consentimento dos devedores desses rendimentos.

O que pretende o legislador - tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial:

Em primeiro lugar, que a exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor. Implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos - está em causa a conciliação de dois interesses conflituantes: de um lado, o interesse dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração e, de outro, os dos insolventes/requerentes.

A sua harmonização prática impõe uma redução do nível de vida dos insolventes, conforme com as circunstâncias económicas em que se encontram e que estão na base da declaração de insolvência.

A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao beneficiado pela solução legal adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra –neste preciso sentido, o Acórdão desta Relação de 31-01-2012, relatado por Carlos Marinho, disponível in www.dgsi.pt. , sendo que a decisão que determina o montante do rendimento excluído da cessão ao fiduciário é susceptível de ser modificada, no caso de alteração superveniente das circunstâncias que lhe estiveram subjacentes.

Depois, não havendo rendimento disponível não há cessão de rendimentos, pelo que, não nasce a favor do devedor o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família.

Nas palavras do acórdão do STJ de 9.3.2021, “O instituto da exoneração do passivo restante não tem por finalidade precípua garantir ao devedor o recebimento de um certo montante a título de sustento, pelo que o devedor não goza da garantia da intangibilidade do montante estabelecido para seu sustento.

Se a cessão do rendimento disponível e o montante arbitrado ao devedor a título de sustento foram estabelecidos numa base mensal pelo tribunal, não pode o apuramento do rendimento disponível ser feito numa base anual. Se em determinado mês o rendimento do insolvente não alcança o montante que lhe foi arbitrado para sustento, nem por isso lhe assiste o direito de, mediante “compensação” ou “ajuste de contas”, não entregar ao fiduciário o excesso que se verifique nos demais meses.

A interpretação do art. 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE no sentido de impor ao devedor a obrigação de entregar imediatamente/mensalmente os rendimentos recebidos ao fiduciário sem operar a compensação dos rendimentos com os montantes auferidos nos meses anteriores e posteriores não viola os arts. 1.º, 67.º e 205.º, n.º 2, da CRP”- www.dgsi.pt

Nas palavras do Acórdão desta Relação de Coimbra, de 13.7.2020/Relatora Maria João, pesquisável em www.dgsi.pt:

“A razão de ser da exclusão de certos rendimentos [como é o caso da prevista no ponto i)] assenta na designada função interna do património (base ou suporte de vida do seu titular) e na sua prevalência sobre a função externa (garantia geral dos credores)[1].

Sendo o rendimento disponível integrado por todos os rendimentos que o devedor aufira, a qualquer título, dele será excetuado “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.

Se o legislador estabeleceu um limite máximo para a exclusão do rendimento disponível a ceder pelo insolvente (o equivalente a três vezes o salário mínimo nacional, coincidente com o valor máximo de impenhorabilidade previsto no nº2 do artigo 824º do CPC[2]), optou por não fixar qualquer limite mínimo, em nosso entender, pelo facto de não nos encontramos perante uma prestação coativamente imposta por lei, assentando a cedência do rendimento disponível num ato inicial voluntário do insolvente, como contrapartida de um benefício a que o mesmo pretende aceder[3] – o perdão das dívidas, com a extinção do passivo sobrante.

Não indicando o artigo 239º, nº 3, al. a), i), qualquer limite mínimo, fazendo apenas referência ao referido conceito geral e abstrato – “o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar –, é deixado ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar esse mesmo conceito [4]”.

Remetendo-nos o legislador para um conceito aberto e indeterminado – o direito a um mínimo de sobrevivência que radica no princípio da dignidade da pessoa humana –, haverá que proceder à sua objetivação, de modo a evitar desigualdades no tratamento da questão.

O apelo do legislador ao conceito do rendimento necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos seus membros do agregado familiar remete-nos para o valor constitucionalmente protegido da salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal (princípio com acolhimento, não só, nos arts. 1º, 13º, 59º, nº1, e 67º, nº1 da CRP, mas ainda nos arts. 1º e 25º, nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

A jurisprudência maioritária [5] vem assentando na ideia de que, se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deverá atender a esse salário mínimo nacional para, no caso concreto, determinar, a partir dele, qual o quantum que deve ser considerado compatível com o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [6].

Também a doutrina[7] sustenta que não se deverá, nunca por nunca, fixar um quantitativo inferior ao salário mínimo nacional que esteja em vigor.

No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em consideração os interesses dos credores a verem os seus créditos satisfeitos, buscando-se um ponto de equilíbrio entre tais interesses e o direito do insolvente e do seu agregado a ter um sustento que lhe permita viver com um mínimo de dignidade [8].

Um olhar pela jurisprudência permite-nos ainda assentar nas seguintes ideias que constituirão um denominador comum na definição do concreto montante a excluir do rendimento disponível a ceder pelo insolvente:

1. Na fixação do rendimento disponível, deve ter-se em consideração as condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), pelo que o valor a excluir não poderá deixar de ter em consideração o número de membros do agregado familiar e respetivos rendimentos, auferidos independentemente da sua natureza. Alguma jurisprudência [9] recorre a fórmulas matemáticas, nomeadamente a escala de Oxford, fixada pela OCEDE, para a determinação da capitação dos rendimentos do agregado familiar – em que o índice 1 é atribuído ao 1º adulto do agregado familiar, o índice 0,7, para os restantes adultos, atribuindo 0,5 por cada criança. Outras decisões partem do valor equivalente a um salário mínimo por adulto do agregado e 0,5 por cada criança (atendendo-se, ainda, no caso de insolvência de só um dos progenitores, à capacidade do outro progenitor de contribuição para o sustento dos filhos) [10].

2. A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra [11].

Sendo o critério a usar pelo julgador o da dignidade da pessoa humana, este encontra-se associado à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio das necessidades primárias e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou atividade ou hábitos de vida pretéritos [12].

3. Não haverá que atender às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo [13]”.

Ora, mostrando os autos que:

“à data da declaração da insolvência, o insolvente que trabalha por conta de outrem, exercendo a profissão de pedreiro, onde aufere o vencimento mensal de 705,00€, encontrando-se de baixa médica, auferindo mensalmente a título de subsídio de doença a quantia líquida de € 177,92; a insolvente trabalha por conta de outrem, exercendo a profissão de empregada de hotelaria, auferindo o vencimento mensal líquido de 619,73€; os insolventes residem, juntamente com a sua filha, em casa de familiares, contribuindo com o montante mensal de 350,00€ para pagamento das despesas; os insolventes despendem mensalmente em alimentação o valor médio de €900,00; os insolventes despendem mensalmente o valor de € 69,70 referente ao pagamento das propinas da filha.

Teremos de concluir que a decisão, que fixou o rendimento indisponível em um ordenado mínimo nacional para cada um dos insolventes, se mostra adequada, à data em que foi proferida tal decisão, e compatível com o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar.

A exoneração do passivo não se traduz numa faculdade do direito falimentar para o insolvente se libertar, incondicionalmente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações que tem para com os seus credores durante o período de cessão, existindo, por isso, a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objecto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção directora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restantes.

Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efetiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº3 do art.º 239º.

Assim, com todo o respeito pelas razões invocadas pelas apelantes, mantemos o decidido na 1.ª instância.
As conclusões (sumário):
(…).

3. Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Local Cível ... - Juiz ....

Custas pelos apelantes.

Coimbra,28 de Fevereiro de 2023

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Arlindo Oliveira – 1.º adjunto)

( Emidio Santos - 2.º adjunto)