I - O propósito do legislador, nas alterações introduzidas no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, pela Lei n.º 20/2013, de 21-02, substituindo no texto da lei a referência a pena aplicável, por pena aplicada, foi reduzir a admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, em caso de “dupla conforme, acolhendo a jurisprudência o entendimento de que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas por diversos crimes em concurso que nos termos do art. 77.º do CP, devam ser aglutinadas numa única pena, só quanto à pena única superior a 8 anos de prisão e aos crimes punidos também com penas de tal dimensão, é admissível recurso para o STJ.
II - Constitui jurisprudência sedimentada do STJ, que o recurso para este tribunal não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões processuais e de substância com elas conexas colocadas a montante que digam respeito a essa decisão, tais como, as relativas às nulidades, vícios indicados no art. 410.º do CPP, à apreciação da prova, incluindo o respeito da livre apreciação da prova e do princípio in dúbio pro reo, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da medida da pena.
Esta interpretação que o STJ faz da al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, não foi julgada inconstitucional pelo TC, no seu acórdão n.º 186/2013, decidido em Plenário.
Recurso Penal
Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I- Relatório
1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de Tribunal Coletivo, que correm no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., sob pronúncia que recebeu a acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento o arguido AA, devidamente identificado nos autos e, realizada a audiência de julgamento foi decidido, por acórdão de 1 de fevereiro de 2022, na parte que ora releva, declarar procedente a pronúncia, com alteração da qualificação jurídica e parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos por BB e CC e , em consequência:
- Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio agravado pela utilização de arma de fogo na forma tentada (ofendido BB), previsto nos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, b), 23.º, n.ºs 1 e 2 e 73.º do Código Penal e 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 7 anos de prisão;
- Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio agravado pela utilização de arma de fogo na forma tentada (ofendida CC), previsto nos artigos 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, b), 23.º, n.ºs 1 e 2 e 73.º do Código Penal e 86.º, n.ºs 3 e 4 da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
- Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto nos artigos 2.º, n.ºs1, p), 3º, 4.º, a) e 86.º, n.º1, c) da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
- Operar o cúmulo jurídico e condenar o mesmo arguido na pena única global de 10 anos de prisão, a que será descontado o tempo de privação de liberdade sob estes autos;
- Condenar o arguido/demandado no pagamento a BB da quantia de € 50 000,00 acrescidos de juros à taxa legal, até integral pagamento e absolvê-lo do restante pedido; e
- Condenar o arguido/demandado no pagamento a CC da quantia de € 10 000,00, acrescidos de juros à taxa legal, até integral pagamento e absolvê-lo do remanescente pedido.
2. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por acórdão de 13 de setembro de 2022 decidiu jugar improcedente o recurso por aquele interposto e, em consequência, confirmar a decisão recorrida nos seus precisos termos.
3. Ainda inconformado, vem o arguido AA interpor recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa – ... Secção, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):
a) Versando o presente Recurso matéria de direito e matéria de facto, para cumprimento do disposto na al. c) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do CPC, por referência ao disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, opta o Recorrente por juntar transcrições de toda a prova oral produzida em audiência de julgamento, fazendo referência às concretas passagens que considera relevantes para pôr em causa a decisão do Tribunal a quo através de transcrição do trecho com referência à página das mesmas transcrições.
b) Os factos em apreciação, ocorreram em Agosto de 2020, pela hora de almoço, numa via movimentada suburbana e o arguido disparou efetivamente na direção do seu irmão mais velho, tendo-o atingido na zona da boca.
c) A leitura dos factos desta forma resulta numa brutalidade que o enquadramento mitiga.
d) No que toca ao dolo a verdade é que disparou na direção do seu irmão e, por esse motivo, atendendo à prova apresentada, aceita a sua condenação tanto quanto ao primeiro crime de homicídio na forma tentada na pessoa do seu irmão, como quanto à detenção de arma proibida
e) Entende que a medida da pena foi excessiva atendendo ao enquadramento, mas compreende e aceita existirem os elementos objetivos e subjetivos para a condenação quanto a estes crimes.
f) Completamente diferente é o entendimento quanto à condenação do arguido por um segundo crime de homicídio na forma tentada, no caso na pessoa da companheira do seu irmão (CC).
g) O próprio Ministério Público assim concluiu a final em sede de alegações, considerando não ter sido feita prova quanto a este crime, pedindo a absolvição do arguido.
h) A absolvição impunha-se não só pela ausência de prova cabal como, principalmente, pela existência de prova em sentido contrário e mesmo que assim não fosse o princípio in dubio pro reo, forçaria sempre a absolvição do arguido pelo qque o Tribunal a quo errou aqui de forma inaceitável.
i) O arguido desde cedo assumiu o seu erro e entregou-se voluntariamente na Polícia Judiciária, facto que não foi sequer mencionado pelo Tribunal.
j) Poder-se-ia ter apresentado antes não o fazendo por querer deixar a sua família em segurança, pois a decisão de se apresentar tomara-a pouco tempo depois dos factos.
k) Tem assim o Recurso três questões bem identificadas e são elas:
a. O erro na condenação do arguido pelo crime de homicídio na forma tentada contra visando CC e consequentemente o PIC;
b. A medida da pena quanto aos dois outros crimes pelos quais o arguido foi condenado e cuja condenação aceita.
c. O quantum indemnizatório quanto ao Demandante BB.
l) Dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados quanto à matéria penal (al. a) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP)
Da matéria de facto dada como provada, aceita, sem reserva os pontos 5, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 17, 18, 19, 20, 36, 37, 38, 39, 40, 41 a 59
Aceita parcialmente os pontos 1, 3 e 4,
Considera incorretamente julgados os restantes pontos
m) Das normas jurídicas violadas (art.º 412.º, n.º 2, al. a))
Com decisão, confirmada pela Veneranda Relação de Lisboa, violou o Tribunal o artigo 127.º do CPP, na medida em que formou a sua convicção com liberdade excessiva ao decidir contra as provas apresentadas, sendo alguns pontos de forma flagrante, mas essencialmente indo muito para além do que a prova permitia, extrapolando de forma – com o devido respeito – grosseira com presunções sucessivas sempre contra o arguido;
n) Violou o Princípio in dubio pro reo, plasmado no n.º 2, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja trata-se de um princípio geral do direito processual penal, sendo a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, que neste processo foi violando de forma reiterada e sucessiva, sendo que sumariamente tendo o Tribunal dúvidas deve julgar a favor do réu (3)[1] e não o fez.
o) Violou o Tribunal a quo o Princípio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 191.º da CRP, na medida em que não assentou a sua decisão em critérios de exclusiva legalidade no que concerne à apreciação da prova, sendo que a torrente probatória levava a decisão para fim diverso, não sendo suficiente a livre apreciação da prova para contornar este princípio constitucional.
p) Quanto ao primeiro ponto d Recurso – a Condenação pelo crime quanto a CC, é fundamental perceber o contexto familiar e perceber tudo o que estava envolvido.
q) O Facto de arguido e ofendido BB serem irmãos.
r) Serem de etnia cigana, criados nesse enquadramento numa família totalmente embebida pela etnia no que respeita a usos e costumes.
s) O grau do litígio.
t) A inveja e as provocações.
u) Sendo o arguido vítima de muitos ataques, sendo eloquente o ponto dado como provado com o n.º 38 é uma das muitas formas que foram usadas para provocar e difamar a família nuclear do arguido,
v) Tudo terminando com suspeitas muito fundadas do BB ter agredido e tentado abusar a filha mais nova – de 11 anos – do AA;
w) Sendo que o enquadramento da prática, onde ocorreu a que horas ocorreu e perante as testemunhas que ocorreu, permitem facilmente concluir que foi um ato irrefletido e provocado pela pressão dos acontecimentos.
x) O arguido não tem antecedentes criminais ligados à violência, apenas tendo uma condenação por Ofensas à Integridade Física negligentes numa ocasião.
y) O Tribunal não valorou a prova no sentido do enquadramento da culpa, olvidando o enquadramento étnico e a relevância moral e social para um homem médio e muito mais para um homem cigano.
z) Omitiu a provocação que no próprio ato o BB fez ao arguido afirmando “Oh seu palhaço, o que é que tu estás a fazer seu palhaço”, facto por este assumido, bem assim como por várias testemunhas.
aa) O Tribunal errou particularmente ao englobar todos os tiros em disparos contra o BB ou até CC quando a prova é evidente de que os 3 primeiros tiros foram na direção do para-choques traseiro do veículo, numa ação violente mas que não podia sequer por em risco qualquer pessoa.
bb) Dizem as testemunhas, mas essencialmente diz a prova de inspeção e pericial.
cc) O Tribunal a quo enquadra factos de forma que nem os ofendidos enquadram, como que imaginando uma identificação prévia do alvo e um seguimento ou perseguição (pontos 3 e 4 dos factos dados como provados).
dd) A inspeção do local, os depoimentos das testemunhas dos factos, e essencialmente as contradições dos dois ofendidos desenham os factos de forma totalmente diferente da gizada pelo Tribunal a quo.
ee) Mesmo com a dificuldade de não ter nenhum dos dois veículos no local, era fácil de concluir a inexistência de crime quanto à ofendida CC.
ff) A tese de que o tiro no espelho do autocarro se dirigia à CC é desmentido desde logo pela variabilidade dos depoimentos de CC e BB, mas também pelo depoimento do motorista DD da mãe do arguido e ofendido, EE e o ângulo que justifica os tiros é explicado pelo depoimento de FF.
gg) É assim por demais evidente que o arguido não poderia ser condenado pelo crime na pessoa de CC.
hh) Quanto à medida da pena foi severo o Tribunal a quo.
ii) Relativamente ao crime de homicídio na forma tentada, agravada pela utilização da arma de fogo tem como limite mínimo 1 ano 7 meses e 6 dias de prisão, a 10 anos e 8 meses de prisão.
jj) vem o arguido condenado quanto ao crime na pessoa de BB, numa pena muito perto do limite máximo.
kk) Todo o contexto familiar, particularmente em relatado e enquadrado pelos relatos familiares são eloquentes sobre tudo o que impendia sobre o arguido e a pressão que sofria, mesmo antes de saber do abuso sobre a filha por parte do irmão.
ll) Junto com a contestação foram juntos pelo arguido e analisados em julgamentos, como Documentos ... a ... vídeos e documentos, que mostravam a pressão, as ofensas e até as tentativas de homicídio por parte de outros familiares.
mm) Finalmente a descoberta de que o irmão BB não só agredira a sua filha de 10 anos como tentara abusar da mesma (Vide Pontos 36 e 37 dos factos provados)foi o fim do rastilho.
nn) A pressão que o AA sofreu é corroborada pela sua mulher GG e pela sua filha EE.
oo) O quadro dos factos está mais próximo de um homicídio privilegiado do que outro tipo qualquer pois é um quadro de enorme emoção compreensível e de relevante valor social e moral, principalmente no quadro étnico em questão.
pp) A pena deveria situar-se perto do limite mínimo e não próxima do limite máximo, atendendo a todo o circunstancialismo.
qq) Também assim é no que tange ao crime de detenção de arma proibida, pois o arguido não tem qualquer condenação por tal crime, pelo que o quadro acima identificado também se aplica no âmbito deste crime, crime que pode ser punido com pena de multa ou pena de prisão de 1 a 5 anos.
rr) A condenação numa pena de prisão, com a ausência de antecedentes em qualquer crime relacionado com armas e ainda para mais com uma pena acima de metade da medida da pena é desproporcional devendo o arguido ser condenado numa pena de multa e se se entenda dever ser passível de pena de prisão, deverá ser perto do limite mínimo.
ss) Finalmente no que às indemnizações diz respeito, o Demandante BB assume que nunca trabalhou e sempre viveu de subsídios.
tt) Não apresentou despesas, pelo que apenas deverá ser atribuída indemnização por danos não patrimoniais, sendo que €50.000,00 é valor manifestamente excessivo.
uu) A Demandante CC não apresentou danos morais de relevo que justifiquem indemnização.
vv) Das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP)
a. Declarações do arguido;
b. Depoimento especificado de: BB, CC, EE, FF, DD, GG, EE,
c. Auto de Inspeção Judiciária de fls. 42 a 55; d. Croquis de Fls. 76, 77, 277
e. Certidão de processo n.º 3233/20.... de fls. 313 a 330;
f.
Termos em que, sempre sem prescindir do Douto suprimento de V.Exas., deve o presente recurso obter acolhimento e, assim, revogando as duas decisões anteriores:
a) Absolver o arguido do crime de homicídio na forma tentada na pessoa de CC;
b) Reduzir a pena aplicada pelos demais crimes, situando-as perto dos limites mínimos;
c) Absolver o Demandado do pedido cível quanto à Demandante CC;
d) Reduzir substancialmente a indemnização concedida a BB;
Fazendo assim a acostumada IUSTITIA!
4. O Ex.mo Desembargador, por despacho de 25 de outubro de 2022, admitiu o recurso interposto pelo arguido para o S.T.J..
5. O Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo (transcrição):
1ª Inconformado com a “dupla conforme” proferida pelo Venerando Tribunal da Relação, pelo Acórdão de 13.09.22, que, integralmente, validou a Deliberação condenatória da 1ª Instância, vem o arguido AA dele interpor Recurso, impugnando de facto e de direito.
2ª Quanto à matéria de facto fá-lo, desde logo, na forma ampliada (art 412º,3, CPP: “vícios de julgamento”), o que lhe está vedado, por não deter o Tribunal “ad quem” poderes de cognição, como Tribunal de revista (ar 434º, CPP), nesse segmento, ou seja, salvaguardada a hipótese de co-existirem “erros decisórios” (art 410º2, CPP), de conhecimento oficioso, a sindicância ou reexame hão-de confinar-se à matéria estritamente de direito (cfr Acs. STJ,16.05.07 e 4.12.08).
3ª Pelo que, independentemente da inconsistência argumentativa da tese recursória, que olvida a manifesta plausibilidade da convicção censurada (art 412º,3, b), CPP), “ab initio” e liminarmente está precludida a (re) discussão de matéria (fáctica) já fechada e cristalizada, inibido o conhecimento e reapreciação superiors.
4ª Do mesmo passo, embora os “erros de decisão” (mesmo que não fossem invocados, mas foram) possam ser conhecidos e relevados ou corrigidos pelo Tribunal de apelo, nos termos do arts 410º,2, e 434º, CPP, consigne-se que só no espírito do sujeito processual (recorrente) remanescem dúvidas sobre a factualidade assente, que não assolaram o Tribunal recorrido (e só essas relevariam processualmente), que ultrapassou e superou o estado de dúvida inicial (art 32º,2, CRP) em função do manancial probatório produzido em Audiência (abundante e diversificado: prova pessoal, documental e pericial- art 355º, CPP), que, racional e exaustivamente, testou e escrutinou, disso dando nota pública, no texto ora criticado (arts 127º e 374º,2, CPP), donde que inexista “non liquet” algum que haja sido desfavoravelmente resolvido para a defesa.
5ª Preconiza o recorrente, ainda, e agora já em sede de direito, segunda convolação (a aditar à operada judicialmente: art 358º,3, CPP), propugnando pela existência dum estado emocional determinante da sua actuação, traduzido no recente conhecimento de pretense abuso sexual sobre uma sua filha menor, por parte do seu irmão, BB, aqui, nos autos, vítima.
6ª Essa nova requalificação jurídico-penal (art 133º, CPP), assenta, todavia, na verificação e demonstração de um circinstancialismo envolvente que a factualidade não contém, longe disso, nada habilitando ou legitimando uma “acentuada” mitigação da sua culpa.
7ª Quanto muito assentou-se que os irmãos (arguido e ofendido, AA Mais e BB, respectivamente), da mesma etnia, andavam desavindos, facto que atenuou a culpa em termos genéricos e justificou uma pena adequada a essa circunstância (art 71º,2, CPP), mas igualmente anotou-se que, estranhamente, na lógica recursória, a queixa por eventual crime sexual apenas foi apresentada um mês depois destes factos!
8ª Tendo a arma de fogo sido utilizada em ambos os crimes de homicídio (tentado), por isso agravados (art 86º, 3 e 4, RJAM), num contexto de alto risco (em plena via pública, num centro urbano, com grande aglomerado de pessoaos e em horário diurno), logrando-se apurar, pelo menos, 5 disparos, desferidos por quem tem antecedentes criminais, incluindo regimes de suspensão de execução de penas de prisão, constituiria inconcebível imprudência conceder uma sanção pecuniária, apenas, ao atirador (arguido), considerando que as finalidades (preventivas) estavam, nessa medida, acauteladas (arts 40º, 1, e 70º, CP), pelo que, com inevitabilidade e irrepreensibilidade , bem agiu e deliberou o Tribunal “a quo”, ao optar por pena institucional, quanto ao crime de detenção de arma proibida.
9ª Esgotando as rubricas censórias, ainda de cariz de direito, insurge-se o recorrente contra a dosimetria prisional (penas parcelares e final), pugnando pela sua substancial redução (decorrente também da pretendida absolvição pelo crime de homicídio tentado agravado, relativo à vítima HH, que, entretanto, reputámos impraticável, por não ser de aplicar a regra “favor rei” convocada pelo arguido).
10ª Sucede que nenhuma das penas singulares excede os 8 A de prisão, o que veda a sua reapreciação, por absoluta irrecorribilidade (arts 400º,1, f), e 432º,1, b), CPP; Acs STJ, 29.10.09 e 11.04.12, e TC, 186/13).
13ª Restam então, saber se se imporá modificação da pena única (arts 40º, 1 e 2, 71º, 1 e 2, e 77º, 1 e 2, CP), adiantando-se que não colhe a pretensão do recorrente, a nosso ver.
14ª Face à baliza abstracta (7 A a 15 A: art 77º, 2, CP), à culpa global revelada e à factualidade e personalidade conjuntas, sopesando os parâmetros e critérios legais, estabelecidos nos preceitos acabados de enunciar, encerra a punição, fixada abaixo do ponto médio abstracto, note-se, uma dimensão irredutível, sob pena de não se alcançarem os fins indeclináveis da própria punição e de se sinalizar, insustentavelmente, espaços de tolerância perante condutas classificadas como “criminalidade especialmente violenta”, alvo de peculiares preocupações de política criminal (arts 1º, l), CPP, e 4º e 5º, L 55/20, 27.08), donde que se proponha a manutenção sancionatória final, imaculada.
6. O ofendido/demandante BB respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral do doutamente decidido pela primeira instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
7. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso de acordo com o disposto nos artigos 420.º, n.º1, alínea b) e 414.º, n.º2, do Código de Processo Penal, inclusive quanto à pena de 10 anos de prisão aplicada em cúmulo jurídico, porque o arguido não interpôs recurso nessa parte.
8. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal não houve resposta.
9. Efetuado o exame preliminar ao abrigo do disposto no art.417.º do CPP, foi proferida Decisão Sumária em que o relator decidiu “rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido/demandado AA, quer quanto à parte criminal, quer quanto à parte cível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n 1, al. b), 400.º, n.ºs 1, al. f), e 2.º e 3.º, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.P..”.
10. Notificado da Decisão Sumária – veio o arguido AA reclamar da mesma para a Conferência ao abrigo do disposto no art.417.º, n.º 8 do Código de Processo Penal, com os seguintes fundamentos (transcrição):
“1. A Veneranda Relação de Lisboa, manteve a decisão do Tribunal de primeira Instância, que condenou o arguido pela prática de dois crimes de homicídio agravado na forma tentada e pela utilização de arma de fogo, previstos nos artigos 131.º, 22º, no 1 e 2, b), 23º, no 1 e 2 e 73.º do Código Penal e 86º, n.º3 e 4 da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro (respetivamente em sete anos e cinco anos e meio) e pela prática de um crime de detenção de arma proibida previsto nos artigos 2º, nº1, p), 3º, nº4, a) e 86º, nº1, c) da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro em dois anos e meio de prisão, sendo que em cúmulo jurídico manteve a condenação na pena única global de 10 anos de prisão;
2. Estando em tempo, tendo legitimidade e interesse em agir, nos termos do disposto nos artigos 399º, 400.º, n.º 1, al. f) a contrario, 401º, n.º 1, alínea b), 406º, n.º 1, 407º, n.º 2, al. a), 410º, 412.º, 2 e 3 e 432º, n.º 1, al. b), o arguido recorreu para esse Colendo Tribunal, recurso esse que foi admitido pela Veneranda Relação de Lisboa.
3. Pese embora a admissão – já se sabe que não vinculativa – o Senhor Conselheiro Relator, como questão prévia, debruçou-se sobre a admissibilidade do Recurso, entendendo que o mesmo não era admissível pois, no seu entender, o cúmulo jurídico que gera a pena efetiva para o arguido, era irrelevante para a interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, sendo, a seu ver, apenas relevantes as penas parcelares e, como nenhuma das penas parcelares excedia os 8 anos, o recurso não era admissível após a dupla conforme existente.
4. Este entendimento, que humildemente não se pode sufragar, impediria um arguido condenado a 25 anos de prisão, em cúmulo de várias penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, no caso de dupla conforme nas duas jurisdições anteriores. Ora,
5. A alínea sub Iudice, determina que Não é admissível recurso:
“De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.”
6. Ora, retira-se da leitura da Douta Decisão proferida, que é “Jurisprudência Sedimentada” no STJ, que apenas as penas parcelares deverão ser levadas em linha de conta para a admissão ou rejeição do Recurso ou, em alternativa, a ponderação sobre o quantum do cúmulo, sendo ele superior a 8 anos de prisão.
7. Respeitando-se – como aliás não se tem alternativa – a referida sedimentação jurisprudencial, a verdade é que a Lei não é esse o entendimento que perfilha e, mais, tal entendimento seria sempre numa linha de prejudicialidade do próprio arguido, mais.
a) Pese embora, decisões que existem do TC, no sentido em que a leitura efetuada pelo Senhor Juiz Conselheiro, não é desconforme com a Constituição, a verdade é que, no nosso humilde entender, tal leitura – que é sempre de natureza interpretativa e não taxativa – ofende a constituição na medida em que viola o Princípio in dubio pro reo, plasmado no n.º 2, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que, tratando-se de um princípio geral do direito processual penal, sendo a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, que neste processo foi violando de forma reiterada e sucessiva, sendo que sumariamente tendo o Tribunal dúvidas deve julgar a favor do réu[2], tal como na dúvida interpretativa de uma norma, não pode o Tribunal fazer a leitura mais prejudicial para o arguido, como neste caso é evidente.
8. Tal leitura gera, simultaneamente uma violação do Princípio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 191.º da CRP, na medida em que, o Legislador não se refere expressamente às penas parcelares, mas sim ao acórdão e à pena.
9. Para o arguido o Acórdão é um e a pena também é uma, qualquer leitura diferente permite o absurdo e anti mens legis e mens legislatoris de que alguém condenado à pena máxima do ordenamento jurídico português de um quarto de século de prisão, estivesse impedido de recorrer, porque há não um impedimento legal mas uma “interpretação sedimentada”.
10. A verdade é que se há uma interpretação sedimentada, como se percebeu com a pluviosidade recente o que parece muito sedimentado, facilmente é revolvido.
11. E se esse desenraizamento de ideias mais ou menos sedimentadas, aqui não ocorre por via de inundações, terá que ocorrer por via da razão e da necessidade da Justiça fazer sentido para quem é objeto dela.
12. A credibilidade da Justiça, sedimenta-se não pelas vezes em que é dita uma mesma coisa contrária ao que expressamente está expresso na Lei ou está ínsito no seu espírito, mas sim quando aqueles que são objeto dela – chame-se gentes, povo ou sociedade civil – mesmo não
compreendendo a Jurisprudência ou Doutrina, veem uma linha contínua e congruente.
13. Explicar a um cidadão, que pese embora a Lei o permita, há um entendimento que determina que podendo haver uma condenação máxima de 25 anos de cadeia, não possa o alvo dessa condenação recorrer para o Supremo Tribunal dada uma sedimentação de ideias contrárias.
14. A Lei determina expressamente que um acórdão condenatório, ainda com dupla conforme, se contiver ele próprio uma pena superior a 8 anos de prisão, o arguido pode recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
15. Os argumentos são os da Lei expressa, mas também os elencados como introito no ponto 10.1, pelo Senhor Conselheiro Relator.
16. É precisamente porque mesmo com uma dupla conforme a hipótese de um erro de julgamento tanto de facto como de direito é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a deteção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.
17. E é por isso que a Lei baliza e limita, tendo em conta a dimensão das penas, para uns casos 5 anos e para outros 8, porque o legislador teve noção de que o que importa é o peso da pena no arguido, sendo-lhe irrelevante como a mesma foi alcançável, o que importa é que a pena tem o peso suficiente para ser reapreciada uma ou duas vezes.
18. Esta é, indubitavelmente, a ratio legis, o peso da pena vai determinando as balizas para o número de recursos possíveis, qualquer entendimento diferente, é violador da Lei e da Constituição.
19. Destarte, sempre sem prescindir do Douto Suprimento de V.Exas. e com o maior respeito possível pela decisão proferida, discorda-se profundamente da mesma e de todos os que a acolham pacificamente esta leitura, apenas porque está sedimentada, pois por mais sedimentada
que esteja, carece de ser refletida pois que a leitura está errada, desconforme com o espírito e letra da Lei e é quase como que contra natura, muito bem claro na imagem do condenado a 25 anos de prisão que não pode ver a sua pena apreciada pelo Supremo Tribunal do seu país.
Termos em que, sempre sem prescindir do Douto Suprimento de Vexa., deve a presente Reclamação ser atendida e, em consequência, ser reparado o Douto Despacho do Senhor Juiz Conselheiro Relator e, em consequência, ser o Recurso julgado em conferência, sendo, a final obtido provimento pois é da mais elementar JUSTIÇA.
11. Colhidos os vistos e presentes os autos à Conferência, cumpre decidir.
II - Fundamentação
12. Na decisão sumária, proferida pelo relator em 19 de dezembro de 2022, decidiu-se, como questão prévia, rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido/demandado AA, quer quanto à parte criminal, quer quanto à parte cível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n 1, al. b), 400.º, n.ºs 1, al. f), e 2.º e 3.º, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.P., com a seguinte fundamentação, (transcrição):
“10.1. Quanto à matéria penal:
O direito ao recurso foi estabelecido no art.32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, passando a integrar expressamente os direitos de defesa do arguido.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, tratou-se “…de explicitar que, em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas. Na falta de especificação o direito ao recurso traduz-se na reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto. Era esta, de resto, a posição já defendida pela doutrina e acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional desde sempre (cfr., por último, AcsTC n.ºs 638/98, 202/99 e 415/01).”[3].
Na interpretação do conteúdo do direito ao recurso, o Tribunal Constitucional, designadamente, no acórdão n.º 49/2003, de 29 de janeiro de 2003, vem sustentando que este “…assenta em diferentes ordens de fundamentos.
Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a deteção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.
Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.
Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa.
Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa.
Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. (…).
Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspetivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará. (…).
A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.
Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada.”.[4]
O direito de recurso, consagrado na Lei Fundamental, mostra-se densificado nos artigos 399.º e seguintes do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.
Como princípio geral, estabelece o seu art.399.º, que é admissível o recurso dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, sempre que a irrecorribilidade não esteja prevista na lei.
Na redação originária do atual Código de Processo Penal, era apenas admitido um grau de recurso e nos julgamentos da competência do tribunal coletivo ou do júri apenas era admitido o recurso em matéria de direito, a interpor diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo do disposto no art.410.º, n.º2.
O regime de recurso previsto no Código de Processo Penal, sofreu, entretanto, diversas alterações.
Uma das mais relevantes foi a introduzida pela revisão da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, que passou a admitir um duplo grau de recurso, ainda que limitadamente.
Neste âmbito, a Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, introduziu no art.432.º do C.P.P., uma alínea b), nos termos da qual, se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça:
«De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art.400.º».
Com a reforma operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, foi alterada, ainda, a redação do n.º1 do art.400.º do C.P.P., passando a norma a dispor:
«1. Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infrações, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infrações».
Com as alterações ao regime de recursos quis o legislador circunscrever o recurso em segundo grau perante o STJ aos casos de maior gravidade, como assumiu na Proposta de Lei n.º 157/VII, que veio dar lugar à Lei n.º 59/98: “Faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme», harmonizando objetivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade.”.[5]
Tal desiderato foi assumido pelo legislador também na Exposição de Motivos da Proposta da Lei n.º 109/X - que deu lugar à Reforma de 2007 do Código de Processo Penal, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto - ao consignar expressamente que as alterações que quer introduzir no regime dos recursos têm o propósito de restringir o recurso para o STJ aos casos que classifica “de maior merecimento penal”.
Com as alterações introduzidas pela Reforma de 2007 deixou de ser a moldura abstrata da pena, a pena aplicável, a estabelecer o critério da irrecorribilidade nas alíneas e) e f) do n.º1 do art.400.º do C.P.P., e passou a ser a pena concreta, a pena aplicada ao caso concreto.
Da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, que está na origem da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, que introduziu nova alteração ao regime de recursos, resulta que o legislador quis com esta nova Reforma promover o equilíbrio «…entre, por um lado, a necessidade de celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade e, por outro lado, a garantia dos direitos de defesa do arguido», justificando a opção legislativa, no respeitante ao direito ao recurso, com a preocupação, mais uma vez, de preservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça «para os casos de maior gravidade».
Depois da alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, ao regime de recursos, o art.400.º do Código de Processo Penal, na parte com interesse para a presente questão, passou a ter a seguinte redação:
«1 - Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;».
A Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, em vigor desde 21 de março de 2022, ao acrescentar na parte final da al. e) do n.º1 do art.400.º do C.P.P. a expressão «…, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;» alargou o o recurso para o S.T.J. aos casos em que a Relação revertendo uma absolvição da 1.ª instância profere um acórdão condenatório.
No que respeita à alínea f), n.º1, do art.400.º do Código de Processo Penal, com particular relevância para o conhecimento da presente questão prévia, são atualmente dois os requisitos cumulativos para que os acórdãos condenatórios proferidos pela Relação sejam irrecorríveis: (i) que o acórdão da Relação confirme a decisão da 1.ª instância (dupla conforme); e (ii) que a pena de prisão seja não superior a 8 anos de prisão.
Sendo propósito do legislador nas alterações introduzidas no art.400.º, n.º1, al. f), do C.P.P., reduzir a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, em caso de “dupla conforme”, substituindo no texto da lei a referência a pena aplicável, por pena aplicada, vem-se acolhendo na jurisprudência o entendimento de que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas por diversos crimes em concurso que nos termos do art.77.º do C.P., devam ser aglutinadas numa única pena, só quanto à pena única superior a 8 anos de prisão e aos crimes punidos também com penas de tal dimensão, é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Constitui jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, que o recurso não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões com elas (e com os respetivos crimes) conexas, colocadas a montante, como as nulidades, mormente de prova por valoração proibida, inconstitucionalidades, qualificação jurídica dos factos ou forma do seu cometimento.
Estando o Supremo Tribunal de Justiça, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito. [6]
Em síntese conclusiva, como expressivamente refere o acórdão do STJ, de 12 de março de 2014, estando o Supremo Tribunal de Justiça impedido de conhecer da matéria relativa aos crimes em particular, “obviamente que está impedido, também, de exercer qualquer censura sobre a atividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada um desses crimes (...). A verdade é que relativamente a todos os crimes pelos quais o arguido foi condenado o acórdão recorrido transitou em julgado, razão pela qual no que a eles se refere se formou caso julgado material, tornando definitiva e intangível a respetiva decisão em toda a sua dimensão, estando pois a coberto do caso julgado todas as decisões que antecederam e conduziram à condenação do arguido pelos crimes”.[7]
O Tribunal Constitucional decidiu, em Plenário, no seu acórdão n.º 186/2013, «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».
Tal orientação foi reafirmada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.ºs 212/2017 e 599/2018.[8]
Retomando o caso concreto, verificamos que a decisão ora recorrida - acórdão da Relação de Lisboa, de 13 de setembro de 2022 -, manteve o acórdão proferido em 1.ª instância, confirmando, sem alterações de facto ou de qualificação jurídica, a condenação do arguido AA nas seguintes penas parcelares: 7 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio agravado pela utilização de arma de fogo na forma tentada (ofendido BB); 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio agravado pela utilização de arma de fogo na forma tentada (ofendida CC); e 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida.
Uma vez que nenhuma das penas parcelares aplicadas por estes crimes, confirmadas pela Relação de Lisboa, é superior a 8 anos de prisão, o recurso interposto do acórdão recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça não é admissível nesta parte, face ao disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.
Não sendo admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão da Relação no respeitante às penas parcelares aplicadas ao arguido AA, fica precludido o conhecimento das questões conexas que as integram e respetivos crimes, como sejam o erro de julgamento da impugnada matéria de facto dada como provada e a determinação da medida das penas parcelares.
Já a pena única, fixada em cúmulo jurídico, em 10 anos de prisão, pelo seu quantum, seria suscetível de recurso quanto à forma da sua determinação.
Acontece que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). Quando o recorrente, interpõe recurso versando matéria de direito, deve indicar nas conclusões, as normas jurídicas violadas, o sentido em que no seu entendimento, o tribunal recorrido as interpretou e aplicou e o sentido em que elas deviam ter sido interpretadas e aplicadas (n.º2).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[9] Como bem esclarecem Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).
No caso, o recorrente AA, nem nas conclusões do recurso, nem sequer na sua motivação, indica como objeto de recurso a determinação da medida da pena única, nomeadamente para o caso de serem mantidas as penas parcelares.
Se não o fez é porque se conforma com a pena única fixada em cúmulo jurídico na hipótese de serem mantidas as penas parcelares aplicadas, como resulta medianamente claro da alínea K) das conclusões da motivação do recurso, particularmente das alíneas a) e b).
Não sendo a determinação da pena única objeto de recurso - como poderia ser, atento o disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal -, impõe-se rejeitar o recurso interposto pelo arguido na parte criminal.
8.2. Quanto à matéria cível:
O art.400.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Decisões que não admitem recurso», estatui, com interesse para a presente questão:
«2. Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.»
A expressão “só”, referida no n.º2 do art.400.º do C.P.P., foi introduzida pela Lei n.º 59/98, que acrescentou ainda uma nova exigência antes não contida no n.º2 do mesmo artigo: o valor do pedido, para efeitos de admissão de recurso da decisão cível, tem de ser superior à alçada do tribunal recorrido.
No atual regime, mesmo que a sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal não é admissível o recurso se o valor do pedido se situar dentro da alçada do tribunal recorrido.
Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de €30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00 (art.44.º, n.º1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Organização do Sistema Judiciário).
O n.º 2 do art.400.º, do Código de Processo Penal, coincidente com o art.629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estabelece dois critérios cumulativos de admissibilidade do recurso da sentença relativamente a matéria cível: (i) o recurso é admissível “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido” – o denominado critério da alçada ou do valor – (ii ) “e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – o denominado critério da sucumbência.
O n.º3 foi aditado ao art.400.º do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, com vista a alargar as situações de recorribilidade, assumindo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que “Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal.”.
Esta disposição veio fazer caducar a jurisprudência fixada em sentido contrário pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 1/2002, de 14-3-2002, que onde este Tribunal havia deliberado que «No regime do Código de Processo Penal vigente – n.º2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão final.».
Assim, atualmente, permite-se que, verificado o condicionalismo do n.º2 do art.400.º do Código de Processo Penal, se possa recorrer da parte da sentença relativa à indemnização civil quando não é admissível recurso penal à luz do n.º1 do mesmo art.400.º.
Porém, uma vez que a ação cível se autonomiza dos destinos da causa penal e se pretende uma igualação com o regime de recursos da ação cível, é agora pacífico, por força do disposto no art.4.º do Código de Processo Penal, que são aqui aplicáveis os casos de inadmissibilidade de recurso previstos no Código de Processo Civil.
O art.671.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Decisões que comportam revista», estabelece, no seu n.º 3:
«Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.».
O Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente “caber na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados”.[10]
O impedimento generalizado ao triplo grau de jurisdição, consagrado neste n.º 3 do art.671.º, do C.P.C., visando racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, assenta na chamada “dupla conforme”.
Obsta à interposição do recurso de revista normal, a confirmação pela Relação da decisão de 1.ª instância, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica.
Ao instituto da dupla conforme – que determina a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação que confirmem por unanimidade a decisão recorrida – subjaz a ideia de que a concordância de duas instâncias é fator indiciador do acerto da decisão.
Como bem observa Abrantes Geraldes, a existência de dupla conforme – que se verifica quando seja confirmada a decisão da 1ª Instância sem voto de vencido e sem uma fundamentação essencialmente diferente – não é perturbada por “…discrepâncias marginais, secundárias ou periféricas, que não representem um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de um outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância.”.[11]
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 20-12-2014 (CJ, n.º 259, pág. 132).
A regra da dupla conforme apresenta, como exceções, as três situações particulares enunciadas no n.º1 do art.672.º do Código de Processo Civil: «a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) Estejam em causa interesses de particular relevância social; e, c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.».
No pedido de «revista excecional», ao abrigo do disposto no art.672.º do C.P.P., deve o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição: «a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social; c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição» (n.º2).
Nos termos do art.672.º, n.º2, do C.P.C. «A decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis.».
Retomando o caso concreto.
A questão da absolvição do ora recorrente do pedido de indemnização cível de € 10.000, em que foi condenado a favor da demandante CC, mostra-se prejudicada, na medida em que tinha como pressuposto a sua absolvição do crime de homicídio na forma tentada, praticado contra esta e, como vimos, rejeitando-se o recurso na parte penal, transitou a condenação do arguido pela prática desse crime. De todo o modo, aquela quantia que o demandado foi condenado a pagar não lhe é desfavorável em valor superior a metade da alçada da Relação, pelo que não preenchia pelo menos um dos requisitos de admissibilidade do recurso previsto no n.º 2 do art.400.º, do Código de Processo Penal.
No que respeita à questão do quantum indemnizatório fixado a favor do demandante BB, o acórdão Tribunal da Relação de Lisboa, que em sede de recurso conheceu desta decisão, manteve a condenação do arguido/demandado, no montante de € 50 000,00, acrescidos dos respetivos juros de mora legal.
Embora no caso deste quantum indemnizatório, ainda que se possam considerar verificados os requisitos de admissibilidade do recurso previsto no n.º 2 do art.400.º, do Código de Processo Penal, é evidente a existência da dupla conforme consagrada no n.º 3 do art.671.º, do C.P.C..
Esta dupla conforme impede a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão de 1.ª instância, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica, como se constata do seguinte segmento do acórdão ora recorrido, que conheceu da questão do pedido de indemnização cível que lhe havia sido colocada:
“Desde logo é evidente o erro em que o recorrente labora, ao considerar que o montante indemnizatório fixado visou compensar danos patrimoniais – lida atentamente a decisão recorrida, dela resulta que o Tribunal a quo julgou improcedente o pedido de indemnização formulado pelo Demandante BB na parte em que o mesmo peticionava indemnização por danos patrimoniais.
A indemnização fixada em € 50.000 (cinquenta mil euros) visou compensar os danos não patrimoniais. (…).
Estamos perante uma situação de danos não patrimoniais, que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (artigo 496º, nº 1 do CC), sendo manifestamente insuficiente para os compensar um montante “substancialmente” reduzido, como pretende o recorrente. Nenhuma razão ocorre para se reduzir o montante indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo, que se mostra equilibrado e apto a proporcionar ao Demandante efectiva compensação pelos danos sofridos.
Assim se concluindo, improcede o recurso, também no que se reporta à matéria da lide cível enxertada.”
Uma nota ainda: nem o recorrente interpôs recurso de revista excecional, nem se verifica nenhuma das situações previstas no art.672.º do Código de Processo Civil, que prevê essa revista,
Em conformidade com o que vem de se expor, impõe-se concluir pela inadmissibilidade do recurso na parte cível, por irrecorribilidade da decisão, mantendo-se assim a decisão recorrida.”
*
13. Os argumentos apresentados na reclamação contra a decisão sumária são, em síntese, os seguintes:
- No entender do Relator, o recurso não era admissível porquanto o cúmulo jurídico que gera a pena efetiva para o arguido é irrelevante para a interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, sendo, a seu ver, apenas relevantes as penas parcelares e, como nenhuma das penas parcelares excedia os 8 anos, o recurso não era admissível após a dupla conforme existente. Este entendimento impediria um arguido condenado a 25 anos de prisão, em cúmulo de várias penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, no caso de dupla conforme nas duas jurisdições anteriores;
- Não obstante a Decisão Sumária referir que é “Jurisprudência Sedimentada” no STJ, que apenas as penas parcelares deverão ser levadas em linha de conta para a admissão ou rejeição do Recurso ou, em alternativa, a ponderação sobre o quantum do cúmulo, sendo ele superior a 8 anos de prisão, e existirem decisões do Tribunal Constitucional no sentido de que esta leitura não é desconforme com a Constituição, a verdade é que ela ofende a Constituição na medida em que viola, simultaneamente, o Princípio in dubio pro reo, plasmado no n.º 2, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, e o Princípio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 191.º da CRP, na medida em que, o Legislador não se refere expressamente às penas parcelares, mas sim ao acórdão e à pena. A leitura feita na decisão recorrida carece de ser refletida, pois está errada, desconforme com o espírito e a letra da lei.
14. Vejamos.
14.1. Começamos por salientar que o arguido/demandado AA não aborda na Reclamação da Decisão Sumária a rejeição do recurso quanto à parte cível.
Para além de não apontar à Decisão Sumária qualquer desacerto na interpretação do disposto no art.400.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, que respeita aos pressupostos de admissibilidade do recurso quanto à matéria relativa à indemnização civil, que fundamentou a rejeição do recurso quanto à parte cível, nenhum argumento apresenta o arguido/demandado para que a Conferência divirja da decisão tomada pelo relator da mesma Decisão.
14.2. Deste modo, consideramos que a Reclamação da Decisão Sumária se cinge à rejeição do recurso quanto à parte criminal.
Antes de abordar os argumentos apresentados pelo arguido na sua Reclamação vejamos as ideias fundamentais que se retiram da Decisão Sumária, que levaram à rejeição do recurso quanto à parte criminal:
- O Tribunal Constitucional vem sustentando que estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer condenatório;
- O propósito do legislador, nas alterações introduzidas no art.400.º, n.º1, al. f), do C.P.P., pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, substituindo no texto da lei a referência a pena aplicável, por pena aplicada, foi reduzir a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, em caso de “dupla conforme, acolhendo a jurisprudência o entendimento de que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas por diversos crimes em concurso que nos termos do art.77.º do C.P., devam ser aglutinadas numa única pena, só quanto à pena única superior a 8 anos de prisão e aos crimes punidos também com penas de tal dimensão, é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;
- Constitui jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, que o recurso para este Tribunal não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões processuais e de substância com elas conexas colocadas a montante que digam respeito a essa decisão, tais como, as relativas às nulidades, vícios indicados no art.410.º do C.P.P., à apreciação da prova , incluindo o respeito da livre apreciação da prova e do princípio in dúbio pro reo, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da medida da pena. Esta interpretação que o S.T.J. faz da alínea f), n.º1 do art.400.º do C.P.P., não foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º186/2013, decidido em Plenário;
- Nenhuma das penas parcelares aplicadas ao arguido em 1.ª instância e confirmadas pela Relação de Lisboa, é superior a 8 anos de prisão, pelo que face ao disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432, nº 1, al. b), do C.P.P., o recurso interposto do acórdão recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça não é admissível nesta parte, deixando precludido o conhecimento das questões conexas que as integram e respetivos crimes, como sejam o erro de julgamento da impugnada matéria de facto dada como provada e a determinação da medida das penas parcelares;
- A pena única, fixada em cúmulo jurídico, em 10 anos de prisão, pelo seu quantum, seria suscetível de recurso quanto à forma da sua determinação. Acontece que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal) e o recorrente AA, nem nas conclusões do recurso, nem sequer na sua motivação, indica como objeto de recurso a determinação da medida da pena única, nomeadamente para o caso de serem mantidas as penas parcelares. Se não o fez é porque se conforma com a pena única fixada em cúmulo jurídico na hipótese de serem mantidas as penas parcelares aplicadas, como resulta medianamente claro da alínea K) das conclusões da motivação do recurso, particularmente das alíneas a) e b).
14.3. Perante o exposto, será que o recurso em matéria penal foi rejeitado porquanto, no entender do Relator, o cúmulo jurídico que gera a pena efetiva para o arguido é irrelevante para a interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, sendo, a seu ver, apenas relevantes as penas parcelares e, como nenhuma das penas parcelares excedia os 8 anos, o recurso não era admissível após a dupla conforme existente?
Mais ainda, a “Jurisprudência Sedimentada” do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional no sentido de que essa leitura não é desconforme à Constituição, está errada, na medida em que viola, simultaneamente, o princípio in dubio pro reo, plasmado no n.º 2, do artigo 32.º e o princípio da legalidade, plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 e 191.º, todos da Constituição da República Portuguesa, na medida em que, o legislador não se refere expressamente às penas parcelares, mas sim ao acórdão e à pena?
A resposta às duas perguntas impõe uma distinção entre duas realidades, que o arguido misturou.
As razões da inadmissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal, relativamente aos crimes pelos quais o arguido foi condenado em penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, são distintas das razões pelas quais a Decisão Sumária não admitiu o recurso relativamente à pena única, fixada em cúmulo jurídico, em 10 anos de prisão.
No que respeita à irrecorribilidade do acórdão da Relação para o S.T.J., relativamente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, as razões da sua rejeição são, por um lado, a verificação cumulativa dos dois requisitos previstos na alínea f), n.º1 do art.400.º do C.P.P., ou seja, o acórdão recorrido, da Relação, confirmou a decisão de 1.ª instância (dupla conforme) e as penas aplicadas ao arguido pelos dois crimes de homicídio sob a forma tentada e um de detenção de arma proibida não são superiores a 8 anos e, por outro lado, uma questão de competência, pois se o S.T.J. não tem competência para conhecer das penas propriamente ditas não superiores a 8 anos, também não a tem para conhecer das questões processuais ou substanciais com elas conexas.
O Supremo Tribunal de Justiça não encontra qualquer motivo para sufragar a tese do recorrente, sem qualquer suporte na jurisprudência ou na doutrina, de que a posição tomada a este respeito na Decisão Sumária viola, simultaneamente, os princípios in dubio pro reo, a que alude o n.º 2, do art.32.º e da legalidade, plasmado nos art.29.º, n.º 1 e 191.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
Este princípio, relativo à prova, nada tem que ver com os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em caso de dupla conforme, pelo que não se vislumbra em que termos a não admissibilidade do recurso ao abrigo da alínea f), n.º1 do art.400.º do C.P.P., ofende o princípio in dubio pro reo a que alude o n.º 2, do art.32.º da C.R.P..
Como também não ofende o princípio da legalidade plasmado nos art.29.º, n.º 1 da Constituição, na vertente da proibição da retroatividade da lei criminalizadora, nos termos do qual «ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior».
A rejeição do recurso em matéria penal, na Decisão Sumária, não se fundou numa lei criminalizadora aplicada retroativamente.
Menos ainda ofende o art.191.º da C.R.P., invocado pelo arguido, que respeita à responsabilidade dos membros do governo, ou o art.191.º do Código de Processo Penal, para o caso de se entender que se enganou no diploma invocado, pois este preceito respeita ao princípio da legalidade no âmbito da aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial, matéria que não releva, nem relevou na Decisão Sumária, para rejeição do recurso em matéria penal.
Por fim, no que respeita à irrecorribilidade do acórdão da Relação para o S.T.J., relativamente à pena única de 10 anos, não é correta a afirmação do recorrente de que o relator da Decisão Sumária entendeu que o recurso não era admissível porquanto o cúmulo jurídico que gera a pena efetiva para o arguido é irrelevante para a interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, sendo, a seu ver, apenas relevantes as penas parcelares e, como nenhuma das penas parcelares excedia os 8 anos, o recurso não era admissível após a dupla conforme existente.
O entendimento do relator, relativamente à pena única foi o de que, mesmo em caso de dupla conforme a pena superior a 8 anos, é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que a pena única, fixada em cúmulo jurídico, em 10 anos de prisão, pelo seu quantum, seria suscetível de recurso quanto à forma da sua determinação.
A razão pela qual não foi admitido o recurso nesta parte é apenas da responsabilidade do arguido AA, que através do seu ilustre mandatário, nem nas conclusões do recurso, nem sequer na sua motivação, indicou como objeto de recurso a determinação da medida da pena única, nomeadamente para o caso de serem mantidas as penas parcelares. Daí se concluindo, e bem, que se não o fez é porque se conforma com a pena única fixada em cúmulo jurídico na hipótese de serem mantidas as penas parcelares aplicadas, como resulta medianamente claro da alínea K) das conclusões da motivação do recurso, particularmente das alíneas a) e b).
Em lado algum da Reclamação refere o arguido que uma das questões objeto de recurso que colocou ao Supremo Tribunal de Justiça é a pena única resultante do cúmulo jurídico das aludidas penas parcelares.
Efetivamente, se pretendia que o Supremo Tribunal de Justiça apreciasse esta questão, tornando-a objeto do recurso, devia tê-lo expressado, tanto mais que a jurisprudência deste Tribunal é unanime no sentido de não conhecer das penas parcelares e respetivas questões em caso de dupla conforme, em que foram aplicadas penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão.
Por tudo isto, a Conferência adere à Decisão Sumária proferida pelo relator.
III - Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a reclamação da Decisão Sumária do relator, de rejeição por inadmissibilidade legal do recurso apresentado pelo arguido AA, que assim se mantém.
Custas da reclamação a cargo do arguido, fixando em 2 UCs a taxa de justiça (art.524.º, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa)
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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).
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Lisboa, 12 de janeiro de 2023
Orlando Gonçalves (Relator)
Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)
Leonor Furtado (Adjunta)
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[1] Vide Ac.STJ n.º 06P2933, de 2/11/2006 in http://jurisprudencia.vlex.pt/vid/29201245#ixzz14eVNpdIv
[2] Vide Ac.STJ n.º 06P2933, de 2/11/2006 in http://jurisprudencia.vlex.pt/vid/29201245#ixzz14eVNpdIv
[3] Cf. “Constituição da República Portuguesa anotada”, 4.ª Ed., Coimbra Editora, pág. 516.
[4] In. www.tribunalconstitucional.pt
[5] In “Diário da Assembleia da República”, 2.ª Série A, n.º27, de 29 de janeiro de 1998.
[6] Cf. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.4.2012 (proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1), de 26-6-2014 (proc. n.º 160/11.5.5JAPRT.C1.S1), de 10-9-2014 (proc. n.º 223/10.4SMPRT.P1.S1), de 25.6.2015, (proc. n.º 814/12.9JACBR.S1), de 3.6.2015, (proc. n.º 293/09.8PALGS.E3.S1), de 6.10.2016 (proc. n.º 535/13.5JACBR.C1.S1), de 16.12.2021, (proc. n.º 321/19.9JAPDL.L2.S1), de 29.9.2022 (264/18.3PKLRS.L1.S1) e de 20.10.2022 ( proc. n.º 1991/18.0GLSNT.L1.S1), in www.dgsi.pt.
[7] Cf. proc. n.º 1699/12.0PSLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt
[8] In www.tribunalconstitucional.pt
[9] Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)
[10] Cf., entre outros, o acórdão n.º 357/2017, in www.tribunalconstitucional.pt
[11] Cf. “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 6.ª ed., pág. 413.