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INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
LEGITIMIDADE ACTIVA
SOCIEDADE COMERCIAL
DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE
Sumário
I - Quem já é parte na causa não pode ser admitido a intervir nela como terceiro. II - A legitimidade processual do autor afere-se pelo seu interesse direto em demandar, interesse esse que se exprime na vantagem jurídica que lhe pode trazer a procedência da ação. Na ausência de outro critério legal, deve atender-se à sua versão da relação controvertida. III - Alegando o autor que é o único sócio gerente e liquidatário de uma sociedade comercial que foi dissolvida e encerrada a sua liquidação, comprovando a respetiva extinção, assiste-lhe legitimidade processual para cobrar um crédito que diz ser superveniente.
I - Relatório 1- AA e R..., Ldª, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., Ldª, alegando, em breve síntese, para além do mais sem interesse para este recurso, que, no dia 21/12/2016, a Ré comprou à sociedade, L..., Ldª, um prédio urbano que identifica, composto por uma parcela de terreno destinada a construção, pelo preço de 18.265,58€.
Acontece que, para além desse preço não ter sido pago, a sociedade vendedora tinha, então, em construção na referida parcela um edifício destinado a habitação unifamiliar, no qual tinha realizado diversos trabalhos que descreve e que qualifica como benfeitorias úteis, avaliadas em 120.000,00€, mas que também nunca foram pagas.
Como tal, tendo a dita sociedade vendedora sido dissolvida ulteriormente (no dia 23/03/2017) e sendo ela, então, a única sócia gerente e, por via disso, liquidatária, pretende que a Ré lhe pague a ela aquela quantia de 120.000,00€, acrescida dos correspondentes juros de mora vencidos, no montante de 19.200,00€, o que tudo perfaz a quantia de 139.200,00€, bem como os juros vincendos até integral pagamento. É o que pede. 2- A Ré contestou e houve lugar a réplica e tréplica. 3- Terminados os articulados, foi, no dia 06/12/2021, proferido o seguinte despacho:
“Nos termos do art. 3º, n.º 3, do CPC, notifique as partes para, em dez dias, se pronunciarem sobre as seguintes possibilidades:
a) Da alegação da primeira autora o que resulta é que a sociedade L..., Ldª, sempre alegadamente soube da alegada existência da obra e, consequentemente, do agora invocado crédito pela primeira autora, pelo que dificilmente se pode ter por prefigurada a situação do art. 164º, n.º 1 e 2, do Código das Sociedades Comerciais, que aparentemente pressupõe um conhecimento ou existência superveniente à partilha;
b) A situação referida na alínea anterior pode configurar uma excepção dilatória, ainda, que atípica, que poderá obstar ao conhecimento do mérito da acção no tocante à primeira autora e determinará a absolvição da ré da instância no que se refere à instância respeitante à primeira autora; ou,
c) do conhecimento imediato do mérito da acção no que à primeira autora diz respeito, em virtude de:
c.1) a existência de uma benfeitoria e a possibilidade de, com base nela e/ou no enriquecimento sem causa, se obter uma compensação pressupõem que as qualidades de proprietário e de possuidor sejam tituladas por pessoas distintas, já não se podendo falar de benfeitoria ou daquela possibilidade de compensação quando alegadamente quem leva a cabo a obra é simultaneamente proprietário e possuidor do imóvel onde aquela foi realizada, pessoa que o vende posteriormente com a obra já feita, pois que, neste caso, a formação da vontade quanto ao negócio pressupõe que o valor do preço já reflecte o valor da incorporação;
c.2) de acordo com a alegação da primeira autora, que alegadamente actua ao abrigo do disposto no art. 164º do DL 262/86, ou seja, como liquidatária da sociedade L..., Ldª, esta sociedade alegadamente realizou aquela obra na qualidade de proprietária e possuidora e assim vendeu o imóvel, pelo que se nos afigura não ser possível, do ponto de vista do direito substantivo, sustentar que se trata de uma benfeitoria susceptível de ser indemnizada”.
Foi ainda designada uma tentativa de conciliação entre as partes. 4- Perante este despacho, vieram as AA., no dia 05/01/2022, requerer a intervenção principal provocada da 1ª A., AA, como associada das mesmas, na qualidade de única sócia da extinta sociedade dissolvida, reproduzindo, em grande medida, o alegado na petição inicial como fundamento do pedido formulado quanto àquela A., para alegadamente obviar à eventual ilegitimidade da mesma. 5- Contra esta intervenção manifestou-se a Ré. 6- Frustrada a conciliação entre as partes, foi em seguida, no dia 26/05/2022, proferido despacho que não admitiu a requerida intervenção principal e julgou a A. parte ilegítima, absolvendo a Ré da correspondente instância. 7- Inconformadas com este despacho, dele recorrem as AA., terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1ª- As recorrentes pretendem ver reapreciadas as doutas decisões recorridas, no que concerne às soluções de direito, a que não admitiu a pretensão deduzida pela requerente do incidente de intervenção principal, e ainda a que julgou a autora AA parte ilegítima e absolveu a ré da instância deduzida por esta autora;
2ª- A factualidade relevante para a esta reapreciação está contida na petição inicial da autora, na contestação da ré, no requerimento inicial da requerente do incidente, para além do douto despacho em crise, bem como nos documentos juntos aos autos que as partes aceitam;
3ª- A recorrente AA pretende a condenação da ré no pagamento do preço do terreno e da benfeitoria edificada sobre o terreno, preço do terreno esse que não foi pago à sociedade L... e preço da benfeitoria essa também não foi paga à L..., e por isso esta autora diz no ponto 3º da petição inicial que é única socia e gerente e também liquidatária da extinta sociedade L..., pelo que atua nesta ação ao abrigo do disposto no artigo 164º do C.S.C.
4ª- Para prevenir o entendimento de que, para além da liquidatária, devem estar na ação, como parte ativa, os sócios da sociedade, que no caso é tão somente a 1ª autora, é requerida expressamente a intervenção desta como sócia, não obstante tal qualidade e atuação nos autos já estar alegada no ponto 3º da petição inicial;
5ª- Em face do pedido e da causa de pedir, tal como é configurada pelas autoras, a ação exige uma situação listisconsorcial necessária, a qual se verifica quando a lei ou o contrato o impuserem, ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica.
6ª- O efeito útil normal a que alude o nº3 do artigo 33º do C.P.C., como ensina o Prof. Manuel de Andrade in “Scientia Juridica, VII, nº 34, pág,s 186”, é caracterizado como “ … insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados …”, por forma a impedir decisões que não possam dirimir regularmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão.
7ª- A presente ação tem somente utilidade prática quando atinge os diversos interessados na decisão, pelo que é manifesto que a intervenção da autora AA nas duas vestes que teve e tem de titular de direitos com interesse direto em demandar – como liquidatária lhe é conferido no artigo 164º do C.S.C. e como única ex-sócia e destinatária final de todo o remanescente e superveniente produto da liquidação - é exigível para que a decisão produza o seu efeito útil normal.
8ª- Sem prescindir do entendimento de que a autora AA intervém, como alegou n ponto 3º da petição inicial, como única socia e liquidatária da extinta sociedade L..., o certo é que, e na hipótese de assim se não entender, em caso de litisconsórcio necessário, a ilegitimidade singular é sanável através da dedução do incidente de intervenção principal, como é o caso, o que conduz à revogação da douta decisão em apreço, com a consequente admissão do incidente.
9ª- Ao invés da douta decisão que determinou a ilegitimidade processual da autora AA, na superveniência a que alude o artigo 164º nº1 do C.S.C., cabe todo o ativo não partilhado no âmbito da liquidação da extinta sociedade, qualquer que seja o motivo, e não pressupõe um conhecimento ou existência superveniente à partilha, o que é explicitado no douto acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 23-04-2020, disponível em www.dgsi.pt e processo nº18901/16.2T8PRT-A.P1.
10ª- Ao invés da douta decisão que determinou a ilegitimidade processual da autora AA é de concluir pela integral legitimidade desta autora para esta ação, em face da sua dupla qualidade de única socia e detentora da totalidade do capital social e liquidatária da extinta sociedade, o que se deixou alegado ao dizer que atua na ação ao abrigo do disposto no artigo 164º do C.S.C., preceito que, como exposto no douto aresto citado na conclusão antecedente, confere legitimidade ao sócio e ao liquidatário para a propositura da ação.
11ª- Ao invés da douta decisão que determinou a ilegitimidade processual da autora AA é de concluir que a invocada questão de benfeitoria consubstancia apreciação de mérito dessa parte da ação, e não da questão processual da ilegitimidade da autora, sendo certo que como o preço fixado pelas partes no contrato não incluiu o preço da benfeitoria, no que autoras e ré estão de acordo, torna-se patente que, em sede de direito substantivo, é possível ressarcir a autora do valor dessa benfeitoria não paga.
12ª-Desta forma, deve ser revogada a douta decisão que determinou a ilegitimidade da autora AA, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Violaram, pois, as doutas decisões em crise as acima indicadas normas, nos sentidos acabados de expor”.
Terminam pedindo que se conceda provimento a este recurso com as legais consequências. 8- Não consta que tivesse havido resposta. 9- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso 1- Considerando as conclusões das alegações das Recorrentes, conclusões essas que, por regra, delimitam o objeto dos recursos (artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do CPC), importa decidir se:
a) Deve ser admitida a requerida intervenção principal;
b) A A. não é parte ilegitima nesta ação. 2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado -que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar estas questões:
Comecemos pela requerida intervenção principal da A.
Essa intervenção não foi admitida com o argumento de que, sendo a A. já parte na causa, não pode ela ser, de novo, autorizada a intervir.
E, com razão.
Efetivamente, os incidentes de intervenção de terceiros, como o próprio nome indica, destinam-se a fazer intervir na ação quem nela não é parte, embora tenha legitimidade para o ser; isto é, aquelas pessoas que, em relação ao objeto do processo, têm uma qualidade que lhes permite pedir ou contra elas ser pedida uma determinada tutela jurídica[1].
Ora, no caso presente, a A. já é parte na causa. E é-o também na qualidade com que agora pretende intervir, de novo; ou seja, como ex-sócia da sociedade, L..., Ldª
Na verdade, desde sempre alegou que o direito que pretendia fazer valer nesta ação -leia-se, o direito a haver, com juros de mora, o valor das benfeitorias realizadas por aquela sociedade na parcela de terreno vendida à Ré -, lhe advinha da circunstância de, à data da dissolução dessa mesma sociedade, ser a sua única sócia/gerente e, por via disso, também a única liquidatária da mesma. Qualidades, aliás, que expressamente referiu no artigo 3.º da petição inicial.
Por conseguinte, não pode ser, de novo, admitida a intervir a nenhum desses títulos e, particularmente, como agora pretende, apenas como ex-sócia daquela sociedade, posto que já anteriormente se baseou nesse estatuto.
Linearmente, assim, pode concluir-se que o incidente de intervenção de terceiros requerido pelas AA. só podia ter sido, como foi, indeferido.
Nesta parte, portanto, o presente recurso é de julgar totalmente improcedente.
Passemos, agora, à questão de saber se a 1ª A. é, tal como se decidiu no despacho recorrido, parte ilegítima nesta ação.
Como é sabido, a legitimidade processual não se reduz à simples relação entre um dado sujeito de direito e uma concreta ação judicial. Exprime também a qualidade ou o conteúdo dessa mesma relação. Isto porque, “em regra, só aos titulares dos interesses em litígio permite a lei que sejam partes do processo, para pedir ou contra eles ser pedida a composição do mesmo litígio”[2]. Interesse, entenda-se, direto e juridicamente relevante. Por isso mesmo se estabelece no artigo 30.º, n.º 1, do CPC, que o autor é parte legitima quando tem interesse direto em demandar; e o réu, por seu turno, é também parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. Além disso, acrescenta o n.º 2, que o interesse em demandar, se exprime, para o autor, pela utilidade que para ele deriva da procedência da ação e, no caso do réu, pelo prejuízo que dessa procedência lhe possa advir.
A legitimidade processual procura, assim, garantir que a titularidade da relação material controvertida (ou de situações jurídicas absolutas não integradas em relações jurídicas)[3] coincida com aquela que existe no plano extraprocessual. Isto porque, de outro modo, “seria inútil a sentença, visto não poder, sem violência, obrigar os verdadeiros interessados”[4].
Ora, para determinar a referida titularidade, a nossa lei adotou o seguinte critério: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor” (n.º 3).
Importa, por isso, verificar se, no caso presente, a 1ª A. detêm essa titularidade; ou seja, se, na versão das AA., a 1ª delas é detentora do direito de crédito de que se arroga titular sobre a Ré.
Ora, sem grande dificuldade se conclui que sim; que, naquela versão, lhe assiste esse direito. Isto porque, como já vimos, identificando-se como única sócia gerente e liquidatária da sociedade dissolvida, diz exercer tal direito ao abrigo do disposto no artigo 164.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSM), em relação a um ativo (crédito) que diz ser superveniente.
Não está em causa – note-se – a questão de saber se esse crédito existe de facto e deve assim ser qualificado definitivamente, como parece ter-se entendido na decisão recorrida. Aliás, deve dizer-se que, como é doutrina e jurisprudência largamente maioritárias, “o que se prevê e regula no nº 1 do art. 164º do CSC não é mais do que a constatação (verificação), posterior ao encerramento da liquidação e após extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados, não se exigindo que tais bens sejam supervenientes, no sentido estrito da sua ocorrência histórica, mas apenas que não hajam sido partilhados”[5]. Seja como for, no entanto, certo é que não é verificação definitiva desse atributo, com referência a este caso concreto, que determina ilegitimidade da 1ª A.. A mesma identificou o seu crédito com aquela característica e, por conseguinte, é, como dissemos, a partir dessa versão que deve ser julgada a sua legitimidade para o reclamar nesta ação.
Por outro lado, como já referimos também, a A. arrogou-se da qualidade de única sócia/gerente e liquidatária da referida sociedade dissolvida e, nessa medida, tendo em conta o disposto no artigo 164.º, n.º 2, do CSC[6], também não se pode pôr em causa a sua legitimidade processual, com esse fundamento. Na verdade, este preceito confere aos liquidatários, depois de encerrada a liquidação e extinção da sociedade (o que no caso já ocorreu -cfr. doc 2 junto aos autos no dia 06/07/2021 e artigo 160.º, n.º 2, do CSC) o direito a proporem ações de cobrança de dívida. Tal como o confere, de resto, a todos os sócios, embora aí, limitada ao interesse de cada um.
Ora, reunindo a 1ª A. essas duas qualidades (única ex-sócia e liquidatária), é manifesto que lhe assiste legitimidade para exigir da Ré o pagamento do referido crédito.
Em resumo, esta legitimidade, em termos processuais não pode deixar de lhe ser reconhecida.
Daí que este recurso, nesta parte, seja de julgar procedente.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em:
1.º- Julgar parcialmente improcedente o presente recurso e confirmar o despacho recorrido, na parte em que não admitiu a intervenção de terceiros, requerida pelas AA..
2.º- Julgar parcialmente procedente este recurso e revogar o despacho recorrido, na parte em que não reconheceu legitimidade processual à 1ª A. para esta ação.
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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão suportadas pelas Apelantes (em relação à primeira decisão, em função do critério do vencimento; e, quanto à segunda, em razão do critério do proveito, uma vez que a Ré não contra alegou, não podendo, por isso, considerar-se vencida na questão processual aí dirimida) – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Porto, 14.12.2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
______________________ [1] Neste sentido, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL, págs. 284, 285 e 389. [2] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil IIº Vol., Revisto e atualizado, AAFDL, pág. 192. [3] Cfr. neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4ª Edição, Almedina, págs. 92 e 93. [4] Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 84. [5] Ac. STJ de 30/05/2017, Processo n.º 593/14.5TBTNV.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Ac. RP de 23/04/2020, Processo n.º 18901/16.2T8PRT-A.P1, consultável no mesmo endereço eletrónico. [6] “As ações para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios; qualquer destes pode, contudo, propor ação limitada ao seu interesse”.