I. A atribuição de título de condução pela República Portuguesa a um condutor não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado.
II. A carta de condução será cassada se, em razão das infrações cometidas pelo condutor, lhe forem subtraídos todos os pontos.
III. A cassação da carta de condução não constitui uma pena acessória ou uma medida de segurança, antes, apenas uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de sanções administrativas ou judiciais relativas à condução rodoviária, num dado intervalo de tempo, comprovativas da ineptidão para o exercício da condução.
IV. Esse mesmo juízo acarreta a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, decorrente do n.º 11 do artigo 148.º do CE.
V. Esta proibição não é inconstitucional, por consubstanciar uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não sendo desproporcionado o sacrifício imposto ao condutor face aos direitos e interesses que se destina a salvaguardar, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
VI. O Código da Estrada constitui diploma matriz do direito rodoviário, tendo uma vocação sistemática e teleológica que abrange todos os procedimentos nele previstos.
VII. O procedimento administrativo autónomo de cassação de licença de conduzir não é um procedimento contraordenacional, mas está sujeito a um prazo de prescrição, na medida em que a mesma consubstancia uma medida restritiva para efeitos do disposto no artigo 18.º, § 2.º, da Constituição.
VIII. Esse prazo é de dois anos, conforme previsto no artigo 188.º do Código da Estrada, atendendo-se às causas de suspensão e interrupção ali igualmente previstas.
Inconformado com essa decisão o cidadão visado com essa medida apresentou recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 59.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGC), invocando a prescrição do procedimento em que se determinou a cassação da sua carta de condução, porquanto nessa data já tinham decorrido mais de dois anos sobre a prática dos factos.
O Juízo Local de … veio a confirmar a decisão administrativa, por considerar não ter ocorrido prescrição do procedimento, decidindo:
«Manter integralmente a decisão proferida pela Autoridade de Segurança Rodoviária, que determinou a cassação do título de condução n.º …, ao arguido AA, nos termos do artigo 148.º, n.ºs 2, 4, alínea c) e 10 do Código da Estrada;
Condenar o arguido nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
*
Adverte-se o arguido/recorrente que:
Não lhe poderá ser concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação (cf. artigo 148.º, n.º 11 do Código da Estrada);
A efetivação da cassação ocorre com a notificação da cassação (cf. artigo 148.º, n.º 12 do Código da Estrada).»
Não conformado com tal sentença recorre para este Tribunal da Relação AA, suscitando as seguintes questões:
- O procedimento administrativo de cassação da carta de condução (incluindo a sua impugnação judicial) está sujeito a um prazo de prescrição de dois anos (artigo 188.º do Código da Estrada), o qual se conta a partir do momento em que se verificou a perda de pontos que a determina. «Tendo em atenção as datas da prática das infrações determinantes da perda total de pontos, da notificação das decisões que aplicaram as perdas de pontos ao recorrente e a data em que a ANSR decidiu pela cassação da carta de condução da recorrente, decorreu o prazo de prescrição do procedimento.»
- A cassação da carta de condução, prevista no artigo 148.º do Código da Estrada é uma medida de segurança «de natureza híbrida» decretada administrativamente, mas vinculada aos princípios constitucionais, não podendo a mesma deixar de estar vinculada aos princípios da culpa, da proporcionalidade e da igualdade, razão pela qual a moldura fixa de 2 anos de proibição de obtenção de um novo título de condução (artigo 148.º, § 11.º do Código da Estrada) é inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, §2.º e 30.º da Constituição.
Admitido o recurso, o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese (transcrição):
«- Considera o Ministério Público que a sentença recorrida não é passível de qualquer censura e não viola quaisquer disposições legais, concordando-se integralmente com a mesma.
- O processo de cassação da carta de condução obedece ao artigo 148.º do Código da Estrada, sendo um processo autónomo iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução (n.º 14 do referido preceito legal).
- Mais, cumpre desde já referir que não impugnadas as decisões condenatórias, “ficou precludido o direito de requerer ou de conhecer oficiosamente a prescrição do procedimento. A única prescrição que agora pode vir a ocorrer é a das sanções aplicadas, principais ou acessórias.” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-03-2018, Processo n.º 607/16.4T8VFR.P1, relator: Vítor Morgado, disponível em www.dgsi.pt).
- Não nos afigura como razoável a aplicação do preceito legal enunciado pelo recorrente ao caso concreto, especialmente tendo em conta que todas as condenações que levaram à cassação do titulo de condução foram de natureza criminal e, portanto, com um prazo de prescrição de 5 anos, conforme o artigo 118.º, n. º1 do Código Penal.
- Mesmo que a cassação do título de condução estivesse subordinada a um prazo de prescrição, neste caso concreto, não seria coerente que as penas principais e acessórias dos crimes praticados pelo arguido tivessem um prazo diverso daqueles que é estipulado para o início do processo de cassação.
- Todas as considerações tecidas pelo recorrente relativas às finalidades preventivas, medida da culpa e efeitos do tempo para efeito da prossecução de infratores não revelam para o presente caso, já que estamos perante uma mera decisão administrativa e não perante uma contraordenação, sendo notória a diferença de um ato administrativo, sujeito ao Código Administrativo e uma contraordenação, sujeita ao Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
- O artigo 148.º, n.º 1 do Código de Estrada não viola nenhum dos preceitos legais da Constituição da República Portuguesa, sendo a uma restrição dos direitos fundamentais do arguido legítima, necessária, adequada, proporcional tendo em conta tanto as condutas típicas, ilícitas, culposas e puníveis praticas pelo mesmo e a consequência de vedação de lhe ser concedido de novo titulo de condução.
- Conduzir veículos a motor não é um direito livremente exercido por todos os cidadãos, mas uma conduta apenas permitida aqueles que tenham autorização do Estado para tal, através da emissão da respetiva licença de condução ou, alternativamente, através da detenção de outros títulos que permitem a condução em território nacional (como, por exemplo, cartas de condução estrangeiras).
- A proibição de concessão de título de condução não é uma medida de segurança, mas uma consequência meramente administrativa decorrente da cassação do título de condução, pelo que o princípio da culpa não tem qualquer aplicação no caso concreto.
- Não revestindo tal ato a natureza de ato discricionário, não poderá também aplicar-se os princípios da proporcionalidade, sendo que o princípio de igualdade está salvaguardado, na medida em que a Administração Pública trata todos os cidadãos que se encontrem na posição do arguido de igual forma.
- Pelo que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, devendo a douta sentença ser integralmente confirmada nos seus precisos termos.»
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, secundou integralmente a posição do recorrente.
Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – artigos 403.º, § 1.º, 410.º, § 2.º e 412.º, § 1.º CPP.
O que a lei preconiza é que o recorrente após apresentar a motivação do recurso sintetize os seus fundamentos, devendo as conclusões ser «um resumo das questões discutidas na motivação».(1) Devendo apresentar-se «concisas, precisas e claras (…)»(2). Não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso»(3). Sendo também este o sentido que lhe vem sendo reconhecido pela jurisprudência (4).
Ora, no presente caso o recorrente não elaborou conclusões. Mesmo quando em epígrafe anuncia que o irá fazer, não faz! Na verdade no segmento denominado «conclusões»… nenhuma ali se contém! O que se evidencia, desde logo, pelo facto de este ocupar 4 páginas, exatamente o mesmo número do segmento anterior! Mas também porque os fundamentos normativos não são os mesmos dos apresentados anteriormente, nomeadamente quanto à invocada inconstitucionalidade do artigo 148.º, § 11.º do CE.
Por razões de economia processual entendemos não convidar o recorrente a apresentar verdadeiras conclusões (conforme prevê o § 3.º do artigo 417.º CPP), por se apresentarem evidentes as questões que o mesmo pretende colocar à apreciação deste Tribunal. Neste contexto e sequência, as questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:
i) Prescrição do procedimento administrativo de cassação da carta de condução;
ii) Inconstitucionalidade do § 11.º do artigo 148.º do Código da Estrada (CE).
2. A sentença recorrida (na parte relevante para o recurso) tem o seguinte teor:
«(…)
Fundamentação de facto
Factos provados
Resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão a proferir:
No dia 21-09-2017, foi proferido, no processo n.º 28/17.1GCCUB, despacho de arquivamento pelo cumprimento da suspensão provisória do processo, pela prática, pelo arguido, no dia 11-03-2017, de um crime de condução de veículo em estado embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, com a injunção de proibição de conduzir veículos com o motor durante o período de 3 meses.
O arguido foi condenado, no processo n.º 76/18.4GCCUB, por sentença transitada em julgado a 11-07-2019, pela prática, no dia 20-06-2018, de um crime condução de veículo em estado embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de multa e a pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses.
Por decisão datada de 01-02-2022, notificada ao arguido a 10-03-2022, a ANSR determinou a cassação do título de condução n.º … ao arguido.
*
Factos não provados
Não ficaram por provar factos com relevo para a decisão a proferir.
*
Motivação da decisão sobre a matéria de facto
A decisão sobre o elenco dos factos dados como provados resulta da análise crítica da prova documental constante dos autos, tendo a mesma sido apreciada à luz das regras da lógica e da experiência comum, segundo o princípio da livre apreciação da prova, conforme o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Os factos n.ºs 1 e 2 deram-se como provados através do teor do Certificado do Registo Criminal do arguido, junto aos autos no dia 22-09-2022, bem como através do teor da sentença, despachos e informações juntas aos autos (cfr. fls. 9 a 16).
Veja-se que estes factos não estão, sequer, postos em causa pelo recorrente que, aliás, os menciona no seu recurso (cfr. artigo 14.º do recurso).
Quanto aos factos n.ºs 3 a 5, os mesmos provaram-se através da consulta do processo, concretamente, de fls. 24 e 25, fls. 65 a 67, e fls. 78 a 80.
*
Fundamentação de direito
A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária determinou a cassação do título de condução n.º … ao arguido AA, nos termos do artigo 148.º, n.ºs 2, 4, alínea c) e 10 do Código da Estrada, em virtude de o mesmo apresentar um saldo actual de zero pontos no registo individual de condutor.
Da prescrição do procedimento
Veio o arguido invocar a prescrição do presente procedimento de contra-ordenação, porquanto entende que se aplica o prazo de prescrição de dois anos, previsto no artigo 188.º, n.º 1 do Código da Estrada, sendo que a decisão lhe foi notificada após o decurso desse prazo.
Apreciando.
Primeiramente, veja-se que não existe nenhuma norma específica que preveja o prazo de prescrição do processo autónomo de cassação da carta de condução.
Entende o Recorrente que deve ser aplicado o prazo de prescrição das contra-ordenações rodoviárias.
Dispõe o artigo 188.º do Código da Estrada que:
“1 - O procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos.
2 - Sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.”.
No entanto, considera-se que o processo autónomo de cassação da carta de condução (cfr. artigo 148.º, n.º 10 do Código da Estrada), não é um procedimento por contra-ordenação rodoviária, pelo que não deve ser aplicado o prazo de prescrição acima referido.
Neste sentido, “a cassação da carta nos termos do artº 148º, nºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada (cassação da carta por virtude de condenações em pena acessória de proibição de conduzir) não se trata de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição de dois anos previsto no artº 188º, nº 1, do mesmo Código.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 23-03-2021, processo n.º 38/20.1T8ODM.E1, relator: Berguete Coelho, disponível in www.dgsi.pt.
Ademais, veja-se que o artigo 148.º, n.º 10 do Código da Estrada prevê que a cassação do título de condução é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
Assim sendo, o prazo de prescrição terá que ser contabilizado desde a data de trânsito em julgado da condenação referida no facto n.º 2, e não da prática dos factos, conforme pretende o recorrente, sendo que, apenas após o trânsito em julgado daquela sentença se efectiva a perda de pontos atribuídos ao título de condução.
Da mesma forma, “para além disso, nos termos do n.º 10 do art. 148.º, «A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 (como no caso sucede) é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução», motivo por que não se poderia atender, para o efeito da prescrição, como o recorrente pretenderia, à data da prática da infracção mencionada no facto provado em 1, mas sim à data do trânsito em julgado da sentença que impôs a respectiva condenação, ou seja, como nesse facto provado consta, em 08-02-2018.” – Acórdão supra referido.
Cumpre então apreciar qual o prazo de prescrição a aplicar a este processo autónomo.
Conforme se referiu, não existe nenhuma norma específica que estabeleça o prazo de prescrição do processo referido no n.º 2 do artigo 148.º do Código da Estrada.
Contudo, este diploma legal prevê, no artigo 186.º, a aplicação subsidiária do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Por sua vez, este Regime, no artigo 32.º, prevê a aplicação subsidiária, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, das normas do Código Penal.
Posto isto, considera-se que se deve aplicar ao processo autónomo de cassação da carta de condução, previsto no artigo 148.º, n.º 2 do Código da Estrada, o prazo de prescrição de 5 anos, aplicando o disposto no artigo 118.º, n.º 1, alínea c) (atendendo à gravidade dos factos que levam à aplicação deste processo) do Código Penal, indo também de encontro ao prazo previsto no artigo 124.º, n.º 2 do Código Penal, ainda que esta medida e o processo autónomo sejam diferentes quanto aos pressupostos da sua aplicação.
Neste sentido, “o Código da estrada não prevê, em qualquer das suas versões, prazo de prescrição do procedimento de cassação de título de condução.
O Código da Estrada «…no artº 186º determina como lei subsidiária o R.G.C.O.C., sendo que esse diploma, no seu artº 41º, nº 1 estabelece, por seu turno, que quanto ao regime processual das contra-ordenações, as lacunas serão supridas aplicando-se as disposições do Código de Processo Penal. Assim a aplicação do Código de Processo Penal, a título subsidiário, só acontecerá quando no R.G.C.O.C. houver uma omissão. Para existir uma omissão necessário se trona que determinado instituto não esteja previsto. Por sua vez o artº 32º do R.G.C.O.C. determina o Código Penal como direito substantivo subsidiário».
«Parece-nos que perante a lacuna do Código da Estrada, e, atendendo à gravidade dos factos, para determinar a cassação da carta, será de aplicar o regime previsto no artº 118º, nº 1, al. c), 121º, ambos do Código Penal. Ou seja, o prazo de prescrição do procedimento seria o mesmo do procedimento criminal e neste caso de 5 anos, fazendo o paralelismo com o artº 124º, nº 2, do Código Penal.»” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 2480/08, 3.ª Secção.
Assim sendo, uma vez que a sentença condenatória transitou em julgado no dia 11-07-2019 (cfr. facto n.º 2), e a decisão da ANSR foi notificada ao arguido no dia 10-03-2022 (cfr. facto n.º 3), o procedimento não se encontra, de modo algum, prescrito.
Posto isto, entende-se que não se verifica, no caso concreto, a prescrição do procedimento, pelo que improcede, nesta parte, o recurso apresentado.
*
Da ponderação da aplicação da cassação da carta de condução
Alega ainda o arguido que a cassação da carta de condução, por perda de pontos, deve ter como subjacente uma ponderação previamente efectuada acerca das competências/aptidão do condutor para o exercício da condução.
Acrescenta ainda que esta decisão não é automática, pelo que tem que ser feita, no caso concreto, a ponderação acima referida.
Vejamos.
Dispõe o artigo 148.º, n.ºs 2, 4, alínea c) e 10 do Código da Estrada que:
“2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.
(…)
4 - A subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
(…)
c) A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
(…)
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.” (sublinhado nosso).
De acordo com os factos provados, no dia 21-09-2017, foi proferido, no processo n.º 28/17.1GCCUB, despacho de arquivamento pelo cumprimento da suspensão provisória do processo, pela prática, pelo arguido, no dia 11-03-2017, de um crime de condução de veículo em estado embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, com a injunção de proibição de conduzir veículos com o motor durante o período de 3 meses (cfr. facto n.º 1).
Provando-se ainda que o arguido foi condenado, no processo n.º 76/18.4GCCUB, por sentença transitada em julgado a 11-07-2019, pela prática, no dia 20-06-2018, de um crime condução de veículo em estado embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de multa e a pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 meses (cfr. facto n.º 2).
Posto isto, ao abrigo do disposto no artigo 148.º, n.º 2 do Código da Estrada, a condenação em pena acessória de inibição de conduzir, bem como o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 4 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, comportam a perda de 6 pontos.
Destarte, o arguido perdeu 6 pontos pelo arquivamento do inquérito nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, tendo-lhe sido aplicada a injunção de proibição de conduzir veículos com motor (cfr. facto n.º 1), e outros 6 pontos pela condenação na pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor (cfr. facto n.º 2), nos termos da norma supra citada.
Assim sendo, o arguido perdeu um total de 12 pontos, ficando com um saldo de 0 pontos (cfr. registo individual do condutor a fls. 6 e 7).
Ora, de acordo com o artigo 148.º, n.º 4, alínea c) do Código da Estrada, a subtracção de pontos ao condutor implica a cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
No caso em apreço, o arguido apresenta um saldo actual de 0 pontos, pelo que determina o acima citado preceito legal, que a consequência da perda total dos pontos é a cassação do título de condução do infractor.
Note-se que esta norma é de aplicação automática, ao contrário do que alega o arguido, não carecendo de nenhum juízo de adequação ou proporcionalidade por parte da autoridade administrativa que a aplica, não sendo, por esse motivo, uma nova condenação ou sanção acessória, mas somente um efeito da subtracção total de pontos.
Por esse motivo, não é feita qualquer ponderação prévia acerca das competências do condutor para o exercício da condução.
Veja-se que o processo autónomo referido no n.º 2 do artigo 148.º do Código da Estrada não se confunde, em termos de aplicação, com a cassação do título de condução previsto no artigo 101.º do Código Penal, esta sim implica a ponderação referida pelo Recorrente.
Neste sentido, “apenas quando está em causa a cassação do título de condução no âmbito do artigo 101.º do Código Penal é necessário formular um juízo sobre a potencial perigosidade (alínea a) do n.º 1) ou inaptidão para a condução do infractor (alínea b) do n.º 1) para se decidir, ou não, pela aplicação de tal medida de segurança.
Não já assim quando se trata da cassação do título de condução nos termos do artigo 148.º do Código da Estrada, no âmbito do qual a mesma decorre necessária e automaticamente da verificação de zero pontos na carta do infractor, resultante de condenações anteriores em penas acessórias de proibição de conduzir.
Tal entendimento em nada ofende qualquer preceito constitucional, designadamente, os artigos 18.º, nº 2, 32.º, nºs 4, 5, 7 e 10, 29.º, nº 5, 30.º, nº 4, 27.º, nº 2 e 202.º da Constituição da República.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 03-12-2019, relator: Nuno Garcia, processo n.º 1525/19.OT9STB.E1, disponível in www.dgsi.pt.
E ainda, “a cassação do título de condução pela subtracção de todos os pontos atribuídos ao respectivo condutor não depende de qualquer juízo sobre a perigosidade deste, alicerçado em factos pelo mesmo praticados e na sua personalidade.
A norma ínsita na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, na interpretação de que a cassação do título de condução aí prevista opera de forma automática, não enferma de inconstitucionalidade por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
Os factos em questão nos processos crime, nos quais ocorreram as condenações em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, são constitutivos dos crimes aí em causa.
Por seu turno, o processo administrativo com vista à cassação da carta de condução visa apreciar o registo de infracções do condutor, com o propósito de contabilizar a perda de pontos decorrente da prática de contra-ordenações e/ou de crimes rodoviários, com vista a determinar a perda da totalidade desses pontos, caso em que ocorre a cassação do título de condução.
Assim sendo, o objecto destes processos não coincide, pelo que não se mostra violado o caso julgado nem o princípio ne bis in idem.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-04-2021, relatora: Ana Bacelar, processo n.º 1377/20.7T8TMR.E1, disponível in www.dgsi.pt (5.)
Desta forma, entende-se que improcede, também nesta parte, o recurso apresentado pelo arguido.
Pelo exposto, considerando que estão verificados, in casu, os pressupostos necessários para que se determine a cassação da carta condução, decide-se manter integralmente a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que determinou a cassação do título de condução n.º … ao arguido AA, nos termos do artigo 148.º, n.ºs 2, 4, alínea c) e 10 do Código da Estrada.
(…)
Decisão
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, julga-se o recurso de contra-ordenação totalmente improcedente e, em consequência, decide-se:
Manter integralmente a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que determinou a cassação do título de condução n.º …, ao arguido AA. nos termos do artigo 148.º, n.ºs 2, 4, alínea c) e 10 do Código da Estrada;
Condenar o arguido nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
*
Adverte-se o arguido/recorrente que:
Não lhe poderá ser concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação (cfr. artigo 148.º, n.º 11 do Código da Estrada);
A efectivação da cassação ocorre com a notificação da cassação (cfr. artigo 148.º, n.º 12 do Código da Estrada).»
3. Apreciando
3.1 Da alegada inconstitucionalidade do artigo 148.º, § 2.º e 4.º al. c) e § 10.º do CE
Preconiza o recorrente que a cassação da carta de condução, prevista no artigo 148.º CE é uma medida de segurança «de natureza híbrida», decretada administrativamente. Estando vinculada aos princípios constitucionais, não podendo designadamente desvincular-se dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da igualdade, razão pela qual a moldura fixa de 2 anos de proibição de obtenção de um novo título de condução, prevista no artigo 148.º, § 11.º CE, é inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, 18.º, § 2.º e 30.º da Constituição.
O recorrente não tem razão: nem a medida de cassação da carta de condução decretada pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) (6) é uma medida de segurança; nem a mesma (a medida) é vulneradora de qualquer preceito constitucional, designadamente dos invocados pelo recorrente. Vejamos porquê.
No ordenamento jurídico português a cassação da licença de condução pode ter duas origens, cada uma com a sua própria natureza jurídica.
Por um lado o Código Penal prevê como medida de segurança não privativa da liberdade, a «cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor» (artigo 101.º), assente na perigosidade do agente, segundo os parâmetros ali bem definidos.
E, por outro lado, o Código da Estrada, no seu artigo 148.º, prevê a possibilidade de cassação do título de condução, no âmbito do «sistema de pontos e cassação do título de condução», agregado à licença de condução de veículos na via pública, o qual é conhecido e praticado em diversas latitudes do nosso entorno cultural, assentando na conceção de que a licença de conduzir é um direito que, mediante certas condições, se atribui aos cidadãos interessados em conduzir veículos na via pública, condicionado a certas circunstâncias ligadas ao comportamento rodoviário, estabelecendo-se quais é que poderão determinar a perda de pontos e, por consequência, a (eventual) perda da licença de conduzir (a sua cassação). Preceitua concretamente o artigo 148.º do Código da Estrada que:
1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.»
Decorre deste regime que o condutor é sabedor de que o seu comportamento rodoviário está em permanente avaliação, adicionando-se pontos (até certo limite) se nenhum incidente ilícito típico se verificar; ou subtraindo-os em caso contrário. A instituição deste modelo e sistema foi introduzido no Código da Estrada através da Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto. A mais de então extensamente divulgado junto da comunidade dos condutores, o novo modelo e sistema de funcionamento foi também detalhadamente explicitado na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 336/XII, que deu origem àquele diploma legal.
Nesta refere-se que «a carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.
A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública, objetivos que a comunidade dos cidadãos muito valoriza.»
O regime da carta por pontos passou a ser aplicável às infrações cometidas após a entrada em vigor da lei que o instituiu, mantendo-se o atual regime inalterado para as infrações anteriormente praticadas.
Com ele o departamento da administração que atribui as licenças de condução passou a manter um registo, permanente, que a qualquer momento lhe permite verificar se o titular da licença ou carta de condução mantém as condições legais para continuar licenciado para conduzir.
A verificação de qualquer dos factos previstos no 148.º, § 1.º a 3.º CE implica a perda de pontos correspondente e o seu consequente registo. E a perda total dos pontos tem por efeito, não dependente de qualquer tipo de juízo (esse já foi feito por ocasião de cada uma das sanções determinantes da perda de pontos), a cassação da licença ou carta de condução (artigo 148.º, § 4.º, al. c) CE), que o presidente da ANSR declarará.
Como deste modo logo se constata, seja pela ausência de qualquer avaliação ou juízo acerca da perigosidade individual futura do condutor; seja pela natureza integralmente administrativa – tabelar - do procedimento (não judicial), não estamos perante qualquer medida de segurança.
Estas, como é da sua natureza, fundam-se na prática de um facto ilícito típico e têm por finalidade a prevenção especial ou individual da repetição de factos ilícitos-típicos (perigosidade do agente). Por isso mesmo, em decorrência do disposto no artigo 30.º da Constituição (7), estas são da exclusiva competência do poder judicial.
Como visto, não resultando a cassação declarada pelo presidente da ANSR de qualquer avaliação da perigosidade do agente, sendo esse ato puramente administrativo (na sequência de verificação de premissas objetivas) não se trata de uma medida de segurança, não sendo por isso suscetível de vulnerar o disposto no artigo 30.º da Constituição.
E de igual modo não contraria os princípios da igualdade e da proporcionalidade (artigos 13.º e 18.º, § 2.º da Constituição, respetivamente). No que a este respeita importará recordar que o titulo de condução (sendo a «carta» o que incorpora a respetiva licença – artigo 121.º, § 4.º CE) é uma licença administrativa, que autoriza o condutor a circular com veículo das classes respetivas na via pública. A qual se adquire na sequência da formação adequada e de prova de aptidão, não se afigurando desproporcional que a lei estabeleça mecanismos idóneos a verificar a manutenção dessa aptidão ou a demonstrar a inaptidão, visando acautelar a segurança rodoviária.
E o prazo fixado impeditivo da concessão de novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação, respeita os princípios da igualdade e da proporcionalidade, na medida em que assenta numa diferenciação dos condutores assente nos pontos perdidos, variando estes em razão da gravidade dos comportamentos estradais respetivos.
O Tribunal Constitucional (8) já se pronunciou sobre este mesmo temário - a propósito do § 11.º do artigo 148.º CE , no sentido que estabelece um período fixo da medida de cassação do título de condução, tendo considerado o seguinte: «este sistema implica a possibilidade de cassação do título legal de condução em caso de diminuição dos pontos decorrente de condenações por crimes ou contraordenações rodoviárias bem como o estabelecimento de uma condição negativa para a sua aquisição. O decurso do tempo e a conduta do condutor condicionam, porém, os efeitos das infrações cometidas no cômputo dos pontos. Efetivamente, aos 12 pontos de que dispõe à partida cada condutor poderão acrescer três, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária, até atingir o limite de 15 pontos. Também é possível adicionar um ponto mais em cada período de revalidação da carta sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, com o limite de 16 pontos, sempre que o condutor voluntariamente frequente ação de formação com as regras regulamentares.»
E prossegue afirmando que o regime instituído tem «um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.»
Efetivamente a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado.
Rematando em termos para aqui integralmente transponíveis: «foram as referidas condenações em penas acessórias de proibição de conduzir que desencadearam a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do CE. Neste quadro, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir. Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. O mesmo juízo acarreta a proibição de concessão de novo título de condução por um período de dois anos após a efetivação da cassação, decorrente do n.º 11 do artigo 148.º do CE.»
No segundo dos arestos citados (e mais recente) do Tribunal Constitucional (9) sublinha-se o equilíbrio entre o sacrifício imposto ao condutor e os direitos e interesses que se destina a salvaguardar, em termos que integralmente subscrevemos, concluindo: «a norma sindicada consubstancia uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.»
Mostra-se, pois, infundado este segmento do recurso.
3.1 Prescrição do procedimento administrativo de cassação da carta de condução
Invoca o recorrente que o procedimento administrativo de cassação da carta de condução (incluindo a sua impugnação judicial) está sujeito a um prazo de prescrição de dois anos, em conformidade com o disposto no artigo 188.º CE, o qual se conta a partir do momento em que se verificou a perda de pontos que a determina.
Pois Bem.
Sob a epígrafe «prescrição do procedimento» dispõe o artigo 188.º CE que:
«1 - O procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos.
2 - Sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.»
Considerou a sentença recorrida neste conspecto que não existe nenhuma norma específica que regule o prazo de prescrição do procedimento previsto no Código da Estrada relativamente à cassação da licença de condução.
E por isso lançou mão do prazo previsto no 118.º, § 1.º, al. c) do Código Penal (CP), através de uma dupla remissão: do artigo 186.º CE para o regime subsidiário contido no RGC e deste, através do seu artigo 32.º, para o CP, onde se estabelece um prazo de 5 anos.
Acompanhamos o entendimento que o procedimento para cassação da carta de condução não é, evidentemente, imprescritível, porquanto, independentemente da natureza desse instituto, não se pode duvidar que a mesma consubstancia uma medida restritiva para efeitos do disposto no artigo 18.º, § 2.º, da Constituição e, por isso, o respetivo processo não pode deixar de estar sujeito a um dado prazo, sob pena de vulneração do regime constitucional da lei criminal, das garantias de defesa, do princípio da proporcionalidade na dimensão da proibição do excesso (artigos 18.º, § 2.º, 29.º e 32.º, § 1.º da Constituição) e incompatível com o princípio do Estado de Direito.(10)
Mas não subscrevemos a tese que por força do disposto no artigo 186.º CE, por dupla remissão (deste para o regime geral das contraordenações e deste para o Código Penal), se arreda o regime do artigo 188.º CE, com o argumento que ele se refere a «procedimento por contraordenação rodoviária».
Por que razão se haverá de lançar mão do regime geral das contraordenações se no referido artigo 188.º CE se prevê o regime prescricional dos procedimentos contraordenacionais específicos do direito rodoviário?
É certo que o procedimento autónomo de cassação de licença não é um procedimento contraordenacional, mas (como já referido) o mesmo está vocacionado e dele emerge uma medida restritiva de direitos. Não integra mais (ou mais complexas) diligências instrutórias do que as previstas para os procedimentos contraordenacionais rodoviários, nomeadamente em matéria de contraditório e defesa, sendo o prazo prescricional destes de 2 anos (artigo 188.º, § 1.º CE). E será justo reconhecer que o CE, enquanto diploma matriz do direito rodoviário, tem uma vocação sistemática e teleológica que abrange todos os procedimentos nele previstos.
Não se vislumbram, pois, razões que exijam (ou permitam) distinguir o prazo prescricional dos dois procedimentos regulados no mesmo Código, ambos sobre consequências emergentes do direito rodoviário, processados e decididos pela mesma autoridade administrativa. Certo sendo que para se aplicar a este processo administrativo autónomo as regras e prazos respeitantes ao procedimento criminal, era necessário que existissem razões distintivas disso mesmo justificativas.
Do mesmo modo que o processo administrativo autónomo para a decisão de cassação da carta de condução por perda de pontos, não poderá iniciar-se enquanto não se verificar o facto que lhe dá fundamento – precisamente a perda dos pontos; também o procedimento respetivo terá de estar sujeito ao prazo prescricional de dois anos, previsto no artigo 188.º do Código da Estrada e às causas de suspensão e interrupção ali igualmente previstas. (11)
Transpondo agora este entendimento para as circunstâncias do caso concreto temos que, conforme evidenciam os autos:
- a 13ago2020, no âmbito do processo administrativo autónomo, foi comunicada ao recorrente a decisão administrativa de cassação da sua licença de condução;
- a 19ago2021 os autos, contendo o recurso dessa decisão, foram remetidos ao Ministério Público para os fazer presentes a juízo;
- a 29set2021 foi proferida a primeira decisão judicial que julgou nula a decisão administrativa;
- a 1fev2022, no processo administrativo autónomo, foi notificada ao recorrente a nova decisão administrativa de cassação;
- e a 8jul2022 foram os autos respetivos remetidos ao Ministério Público contendo o novo recurso;
- vindo a decisão do Tribunal de primeira instância (que ora está sob recurso) a ser proferida a 7out2022.
Dispõe o artigo 188.º CE, que:
«1 - O procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos.
2 - Sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.»
O § 2.º deste artigo estabelece que o regime de suspensão e de interrupção do prazo prescricional será o constante do regime geral do ilícito de mera ordenação social.
Ali se dispondo que:
Artigo 27.º-A
Suspensão da prescrição
1 - A prescrição do procedimento por contraordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;
c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.
Artigo 28.º
Interrupção da prescrição
1 - A prescrição do procedimento por contraordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infrações, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contraordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Ora, o prazo prescricional em referência conta-se da data da última condenação do recorrente (por crime condução de veículo em estado embriaguez, previsto no artigo 292.º, § 1.º CP, tendo ali sido aplicada ao (aqui) recorrente uma pena de multa e uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses), com a qual esgotou os pontos disponíveis, ocorrida no processo n.º 76/18.4GCCUB, transitada em julgado a 11de julho de 2019.
E, como assim, no dia seguinte iniciou-se o prazo de prescrição do procedimento de cassação da licença de condução n.º … do condutor/recorrente.
Conforme decorre dos marcos relevantes que emergem das regras da interrupção do prazo de prescrição, o aludido prazo nunca se esgotou, porquanto se interrompeu pelo menos a 13ago2020 e a 1fev2022, voltando a correr desde início em cada um desses marcos.
E igualmente não se esgotou o prazo de 3 anos, previsto no § 3.º do artigo 28.º do RGC, porquanto neste se não conta o período da sua suspensão, tendo esta ocorrido nos períodos entre a remessa dos autos pela primeira vez ao MP e a sua devolução à autoridade administrativa recorrida e a nova remessa dos autos ao Ministério Público, em sequência da nova decisão administrativa cassatória, que ocorreu a 8/7/2022 (cuja suspensão ainda está em curso).
Em termos mais simples: entre o marco inicial da contagem do prazo de prescrição (11jul2019) e a data da última remessa dos autos ao Ministério Público (a 8jul2022) não decorreram mais de 3 anos contados da data do trânsito em julgado da decisão que esgotou os pontos do condutor recorrente. (12)
Restando concluir, ainda que com critério diverso relativamente ao prazo de prescrição tido em consideração na decisão recorrida, que o presente recurso não é merecedor de provimento.
III - DISPOSITIVO
Destarte e por todo o exposto, acordam em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.
Évora, 15 de dezembro de 2022
J. F. Moreira das Neves (relator)
Maria Clara Figueiredo
Fernanda Palma
----------------------------------------------------------------------------------------1 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14.
2 Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335.
3 Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp.23.
4 Cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Des. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Des. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Des. Filipa Costa Lourenço; e desse mesmo Tribunal, de 15/2/2013. Proc. 827/09.3PDAMD.L1-5, Des. Vieira Lamim.
5 Veja-se ainda, nomeadamente, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05-05-2021, relatora: Ana Carolina Cardoso, processo n.º 221/20.0T8MGL.C1; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-11-2019, relator: Vasques Osório, processo n.º 186/19.0T8CTB.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06-11-2019, relatora: Maria José Nogueira, processo n.º 4289/18.0T8PBL.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
6 O presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária tem competência exclusiva para decidir sobre a verificação dos respetivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução (artigo 169.º, § 4.º CE).
7 Cf., por todos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2019, 3.º ed., Gestlegal, pp. 98/100 e 108/110; e Constituição da República Portuguesa Anotada, J. J. Canotilho e Vital Moreira, vol. I, 2007, 4.ª ed., Coimbra Editora, pp. 503/504.
8 Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 15mai2020, Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros; e n.º acórdão 154/2022, de 17fev2022, Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro. Sobre o mesmo temário (constitucionalidade e legalidade do regime da cassação previsto no artigo 148.º CE) podem ver-se: acórdão TRCoimbra, de 6nov2019, proc. 4289/18.0T8PBL.C1, Des. Maria José Nogueira; acórdão TRCoimbra, de 13nov2019, proc. 186/19.0T8CTB.C1, Des. Vasques Osório; do TRLisboa, de 16mar2021, proc. 3523/19.4T9AMD.L1-5, Des. Paulo Barreto; do TRLisboa, de 19out2021, proc. 326/20.7Y5LSB.L1-5, Des. Jorge Gonçalves; do TRPorto, de 30abr2019, proc. 316/18.0T8CPV.P1, Des. Pedro Vaz Patto; do TRPorto, de 10fev2021, proc. 118/20.3T9AGD.P1, Des. Liliana de Páris Dias; do TRPorto, de 12mai2021, proc. 3577/19.3T8VFR.P1, Des. Paula Guerreiro; do TRGuimarães, de 27jan2020, proc. 2302/19.3T8VCT.G1, Des. Jorge Bispo; deste TRÉvora, de 20out2020, proc. 218/20.T8TMR.E1, Des. Fátima Bernardes; do TRÉvora, de 27abr2021, proc. 1377/20.7T8TMR.E1, Des. Ana Bacelar.
9 O já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2022, de 17fev2022, Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro.
10 Cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, J. J. Canotilho e Vital Moreira, vol. I, 2007, 4.ª ed., Coimbra Editora, pp. 498/499; e Hans-Heinrich Jeschek y Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 2002, 5.ª Ed., Editorial Comares, Granada, pp. 769 ss.
11 Neste sentido cf. acórdão TRLisboa, de 13out2021, proc. 101/21.1T8LNH.L1-3, Des. Cristina de Almeida e Sousa.
12 Havendo ainda que descontar o período de suspensão decorrido da data da primeira remessa dos autos ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa recorrida.