SUBSÍDIO DE REFEIÇÃO
RETRIBUIÇÃO
DEVERES DA ENTIDADE PATRONAL
Sumário


1. O subsídio de refeição pode ser pago através de cartão de refeição, pois este é um meio de pagamento de valores expressos em dinheiro.
2. Explorando a entidade patronal, com fim lucrativo, uma rede de supermercados e hipermercados, não pode obrigar, ou condicionar, os seus trabalhadores a gastarem o subsídio de refeição nas suas lojas, sob pena de incorrer na proibição de “truck system”, prescrita no art. 129.º n.º 1 als. h) e i) do Código do Trabalho.
3. Incorre nessa proibição a entidade patronal que paga o subsídio de refeição através de um cartão que não permite a sua utilização em outras redes de supermercados e hipermercados, que não a por si explorada.
4. Na verdade, tal restrição obriga os trabalhadores, se pretenderem confeccionar as suas refeições com alimentos por si adquiridos, a gastar o valor do seu subsídio de refeição exclusivamente nos estabelecimentos da Requerida.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Setúbal, AA e outros 39 trabalhadores, todos devidamente identificados nos autos, requereram providência cautelar não especificada contra AUCHAN RETAIL PORTUGAL, S.A., pedindo seja decretada, provisória e antecipadamente:
a) a declaração de ilegalidade da decisão de alterar o modo de pagamento dos subsídios de alimentação devidos aos Requerentes, contra a vontade expressa destes, de numerário para o cartão de refeição “Bom Garfo”;
b) a declaração de validade da oposição manifestada à decisão unilateral da requerida de alteração do modo de pagamento do subsídio de alimentação, de numerário para o cartão de refeição “Bom Garfo”;
c) o reconhecimento de que é proibido à Entidade Patronal obrigar os trabalhadores a adquirir bens ou a utilizar serviços fornecidos pela Entidade Patronal ou por pessoa por ela indicada.
d) o reconhecimento de que os requerentes têm direito a continuar a auferir o subsídio de refeição por numerário ou outra forma que não contrária às leis laborais e à livre concorrência.
e) a condenação da Requerida a pagar em numerário aos requerentes os subsídios de alimentação vencidos no mês de Janeiro de 2022 e nos demais meses subsequentes que se venham a vencer.
f) a condenação da Requerida em juros de mora legais, até efectivo e integral pagamento.
Alegam que a partir de Janeiro de 2022 a Requerida impôs o pagamento do subsídio de refeição através do cartão electrónico “Bom Garfo”, cuja emissão não pediram e que não lhes permite dispor livremente do valor ali creditado, que apenas pode ser usado em produtos alimentares e estabelecimentos comerciais aderentes o que, além de limitar o direito ao consumo e livre concorrência e violar a Cláusula 42.ª alínea e) do CCT, lhes causa prejuízos graves e irreparáveis, pois dependem desse valor para a satisfação das suas necessidades económicas fundamentais, tanto mais que parte dos Requerentes trabalha a tempo parcial e aufere valores próximos do s.m.n..
Na sua oposição, a Requerida sustenta que paga € 6,10/dia de subsídio de refeição, o qual já era recebido em cartão por 172 dos 397 funcionários da Loja de Setúbal, tendo implementado esta forma de pagamento para assegurar a uniformidade a todos os funcionários, os quais podem adquirir bens dos estabelecimentos aderentes ao cartão, em todos os estabelecimentos Auchan (supermercados e hipermercados) e nas máquinas de venda automática da loja.
Após julgamento, com produção da prova oferecida pelas partes, foi proferida sentença julgando parcialmente procedente a providência e formulando o seguinte dispositivo:
a) “declaro válida a oposição manifestada pelos requerentes à decisão unilateral da requerida de alteração do modo de pagamento do subsídio de alimentação, condenando a requerida a pagar-lhes os subsídios de alimentação que foram creditados no cartão “Bom Garfo” em Janeiro de 2022, bem como nos meses subsequentes, em numerário como vinha sucedendo até 31 de Dezembro de 2021;
b) decreto a inversão do contencioso e, consequentemente dispenso os requerentes do ónus de propositura da acção principal;
c) absolvo do mais a requerida.”

A Requerida recorre e conclui:
1.ª A sentença recorrida é nula porque se verifica uma contradição lógica entre a fundamentação da decisão e providência concretamente decretada que se consubstancia no seguinte: Fundamento da decisão: o empregador decidiu aumentar o subsídio de refeição condicionadamente ao facto de o mesmo ser pago em cartão; os trabalhadores opuseram-se a modificação unilateral; a sentença recorrida considerou válida a oposição e decretou que o pagamento do subsídio de refeição seja feito em dinheiro. Embora a sentença não tenha especificado qual o valor devido a título de subsídio de refeição, parece depreender-se do segmento condenatório “a pagar-lhes os subsídios de alimentação que foram creditados no cartão Bom Garfo em Janeiro 2022”, que o valor a pagar a título de subsídio de refeição é de € 6,10;
2.ª Se a providência é declarar válida a oposição à modificação unilateral do empregador (subsídio de € 6,10 pago em cartão), a consequência lógica a retirar disso é a de que o empregador deve pagar o valor de € 5,40, em dinheiro. Não existe nenhum segmento da sentença que explique esta contradição lógica entre validade da oposição dos trabalhadores à alteração na forma e valor do subsídio de refeição e condenação no pagamento de um valor mais alto em dinheiro, atendendo ao facto que o tribunal deu como provado de que a declaração negocial do empregador, de aumento, estava condicionada à alteração no meio de pagamento.
3.ª Deste modo, a sentença é nula nos termos do artigo 615, n.º 1, alínea c), do CPC por contradição entre os fundamentos de facto e de direito expressamente invocados e a providência concretamente decretada.
4.ª Deve ser dado como provado que, após negociação com os sindicatos, o aumento de € 0,70 no subsídio de refeição para o ano de 2022 só seria concedido se incluído no cartão (depoimento da testemunha BB aos 4 minutos e 10 segundo e página 13 da sentença recorrida).
5.ª Deve ser dado como provado que o processo de adesão dos estabelecimentos ao cartão “Bom Garfo” é um processo dinâmico no que respeita à adesão de novos estabelecimentos (depoimento da testemunha BB aos 9 minutos e 53 segundos, 11 minutos e 9 segundos, 29 minutos e 3 segundos, 35 minutos e 5 segundos e pontos 20 e 21 dos factos provados da página 7 da sentença recorrida).
6.ª Deve ainda ser dado como provado que os restaurantes da cadeia McDonald’s estão incluídos no âmbito dos estabelecimentos aderentes ao cartão (depoimento da testemunha BB aos 11 minutos e 9 segundos, 31 minutos e 53 segundos, 32 minutos e 26 segundos).
7.ª Deve dar-se como provado que os trabalhadores podiam dar indicação de estabelecimentos que deveriam ser contactados para fazerem parte da rede aderente do cartão “Bom Garfo” (depoimento da testemunha BB aos 9 minutos e 53 segundos e Documento junto pelos Requerentes aos autos, relativo à lista de aderentes afixada no local de trabalho).
8.ª Deve ser dado como provado que foram comunicadas aos Requerentes as vantagens decorrentes da adesão e utilização do cartão refeição “Bom Garfo” (depoimento da testemunha BB aos 8 minutos e 27 segundos, 9 minutos e 13 segundos, 9 minutos e 37 segundos, 9 minutos e 53 segundos e Documento junto pela Requerida – comunicação das vantagens na utilização do cartão refeição de 24.11.2021).
9.ª Da sentença recorrida resulta que foram considerados pelo Tribunal a quo para sustentar a decisão recorrida factos que não constam da lista de factos provados, verificando-se uma deficiência no que respeita à identificação dos factos provados.
10.ª Atento o depoimento da Requerente AA e considerando a motivação de facto do Tribunal, devem ser dados como provados os seguintes factos: a) havia um refeitório na Requerida, o qual foi fechado; b) actualmente existe uma zona de alimentação, equipada com 4/5 microondas, frigorífico e máquina de café, a qual é usada maioritariamente pelos colegas a tempo inteiro; c) Os colegas podem adquirir refeições na loja e nas máquinas de vending.
11.ª Por outro lado, reproduz também a sentença recorrida factos que não foram incluídos no elenco de factos provados, mas que, contudo, identifica o Tribunal a quo como “Provados”.
12.ª Mais precisamente, pode ler-se na página 13 da sentença recorrida que “Ficou provado que, os requerentes são trabalhadores da requerida há vários anos, auferindo, além do mais, um subsídio de alimentação, previsto na Cláusula 19.º do CCT entre a APED e a FEPCES, publicado no BTE n.º 22, de 15 de Junho de 2008, com última alteração publicada no BTE n.º 25, de 8 de Julho de 2016, que até 31/12/2021 lhe era pago em numerário juntamente com a retribuição base e outros subsídios. Valor que estando fixado em €5,40 foi aumentado para €6,10 a partir de Janeiro de 2022, sob a condição de ser pago através de cartão bancário “Bom Garfo” emitido pela ONEY”.
13.ª Deve ser aditado ao elenco de factos provados que, após negociação com os sindicatos, o aumento de € 0,70 no subsídio de refeição para o ano de 2022 só seria concedido se incluído no cartão refeição “Bom Garfo”. (depoimento da testemunha BB aos 4 minutos e 10 segundos).
14.ª Não se consideram retribuição as importâncias devidas a título de subsídio de refeição.
15.ª A garantia do trabalhador prevista no artigo 129.º do CT, nº 1, mais precisamente da alínea h), determina que “É proibido ao empregador: h) Obrigar o trabalhador a adquirir bens ou serviços a ele próprio ou a pessoa por ele indicada”;
16.ª Esta garantia legal está directamente relacionada com o princípio da existência de um valor em dinheiro que o trabalhador tenha disponível e por essa razão também impede o empregador de explorar, com fins lucrativos, cantina, refeitório, economato ou outro estabelecimento directamente relacionado com o trabalho, para o fornecimento de bens ou a prestação de serviços aos seus trabalhadores (artigo 129.º, n.º 1, i) do Código do Trabalho).
17.ª Aquelas duas garantias são, assim, um reforço do previsto no artigo 276.º do Código do Trabalho (a retribuição é satisfeita em dinheiro), podendo ser acordado o pagamento em prestações não pecuniárias nos termos do artigo 259.º, desde que essas prestações (i) sirvam para satisfazer as necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família (ii) tenham um valor não superior ao corrente na região e (iii) não excedam o da parte em dinheiro, salvo o disposto em instrumento de regulamentação colectiva.
18.ª O sistema de garantias do trabalhador identificado visa garantir a livre disposição do trabalhador e de evitar abusos patronais no cerceamento da retribuição, na qual se inclui a proibição do “truck system”.
19.ª Esta protecções (alíneas h) e i) do n.º 1 do artigo 129.º) e do artigo 276.º e 259.º dirigem-se à retribuição e não a outras atribuições patrimoniais de carácter não retributivo.
20.ª A sentença recorrida erra ao entender que a garantia de proibição do truck system se aplica a atribuições patrimoniais não retributivas, como é o subsídio de refeição erra ao aplicar a garantia prevista na e) da Cláusula 42.º da Convenção Colectiva aplicável que reproduz o artigo 129.º, n.º 1, alínea h) do Código do Trabalho ao subsídio de refeição;
21.ª A decisão recorrida erra do ponto de vista do direito quanto, com ligação ao requerimento formulado pelos Requerentes, entende que os mesmos se podem opor a uma modificação unilateral operada pelo empregador (aumento do subsídio de refeição desde que pago em cartão) com fundamento numa norma de convenção colectiva (ou da lei) que lhes confere uma garantia, decretando assim o pagamento do subsídio de refeição com aumento em dinheiro. A declaração negocial dos trabalhadores serviu, erradamente, para levar a uma aceitação parcial da proposta do empregador, ou seja, o aumento do valor.
22.ª Esta construção da sentença recorrida viola o sentido que deve ser dado à cláusula da convenção colectiva (alínea e) da Cláusula 42.º do CCT entre a APED e a FEPCES, de acordo com a qual, sob a epígrafe “Garantias dos trabalhadores”, é proibido à entidade patronal “Obrigar o trabalhador a adquirir bens ou a utilizar serviços fornecidos pela entidade patronal ou por pessoa por ela indicada) que legitima a providência decretada (validade da oposição dos trabalhadores).
23.ª A decisão recorrida constitui uma claríssima violação do princípio da igualdade retributiva, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da Constituição. Com efeito, a decisão recorrida permite que uma decisão que deveria ser aplicada a todos os trabalhadores (pagamento do subsídio de refeição de 6,10 em cartão) tenha um de dois desfechos ambos violadores da igualdade retributiva: (i) uns trabalhadores recebem em cartão e outros em dinheiro o valor de € 6,10 ou (ii) uns trabalhadores recebem 6,10 em cartão e outros € 5,40 em dinheiro.
24.ª A sentença recorrida erra quando dá como verificado o periculum in mora exigido pelo artigo 362.º do Código de Processo Civil, ao ignorar que não deve ser decretada quando o dano que se pretende evitar respeitar a um facto imputável ao próprio requerente ou quando este tiver contribuído para a produção desse mesmo dano.
25.ª No caso concreto, o potencial dano é imputável aos trabalhadores em duas vertentes: (i) foram os trabalhadores que recusaram o cartão com o qual poderiam suportar algum tipo de despesas e (ii) a conduta dos trabalhadores quanto à afectação do valor subsídio de refeição ao pagamento de bens e serviços que não são a finalidade do referido subsídio. Note-se que o valor creditado em cartão é pecuniário e o trabalhador pode afectá-lo a determinadas despesas, alocando o seu salário a despesas de natureza pessoal e familiar, o que está no âmbito da sua autonomia jurídica.
26.ª A sentença recorrida viola o disposto no artigo 369.º, n.º 1, do CPC por não estar preenchido o requisito para inversão do contencioso, que consiste no facto de a matéria de facto ser suficiente para formar uma convicção ao direito acautelado, na justa medida em que a matéria de facto é insuficiente para decretar que um cartão refeição enquanto meio de pagamento do subsídio de refeição viola a garantia dos trabalhadores de não serem obrigados a adquirir bens ou serviços ao empregador ou a pessoa por ele indicado. Com efeito, não ficou demonstrado que a utilização do cartão implicasse necessariamente que o trabalhador só pudesse adquirir bens ao empregador ou a terceiro que age por conta do empregador.
Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo por outra que não decrete a providência requerida e, em qualquer caso, que revogue a decisão de inversão do contencioso.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
A Requerida juntou Parecer subscrito pelo Prof. Dr. Pedro Romano Martinez e pelo Prof. Dr. Luís Gonçalves da Silva, ambos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público formulou parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, ao qual as partes responderam.
Cumpre decidir.

Da arguição de nulidade da sentença
Argumenta a Recorrente que ocorre uma contradição lógica entre a fundamentação e a providência concretamente decretada, pois se foi declarada válida a oposição dos trabalhadores à modificação unilateral do empregador no modo de pagamento do subsídio de refeição, a consequência lógica seria também estender essa oposição ao aumento do valor diário desse subsídio (que a Requerida aumentou de € 5,40 para € 6,10/dia).
A contradição entre os fundamentos da sentença e a decisão – alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil – ocorre quando os fundamentos da sentença estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Alberto dos Reis[1] escrevia que esta nulidade verifica-se “quando a sentença enferma de vício lógico que a compromete (…)”, quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.”
E também se escreveu[2] que a lei refere-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. (…) (Nestes) casos (…), há um vício real de raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.”
Deste modo, a nulidade em questão não consiste no mero erro de julgamento ou de Direito, mas na utilização de uma fundamentação contraditória com a decisão.
No caso dos autos, a fundamentação utilizada na sentença conclui que a Requerida, “ao impor a utilização do cartão refeição, com todas as limitações a ele inerentes, designadamente a impossibilidade dos trabalhadores poderem fazer compras de bens alimentares noutras superfícies comerciais, que não a da (Requerida), bem como a consumirem refeições em locais determinados por terceiros com os quais a Requerida mantém relações comerciais”, violou a cláusula 42.ª al. e) do CCT celebrado entre a APED e a FEPCES e outros (BTE 22/2008), que proíbe à entidade patronal “Obrigar o trabalhador a adquirir bens ou a utilizar serviços fornecidos pela entidade patronal ou por pessoa por ela indicada”, motivo pelo qual “mantêm os requerentes o direito a receber o subsídio de alimentação em numerário, ou através de outro meio de pagamento que não contenda com a referida norma.”
Face à fundamentação da sentença, não se discute a legalidade do aumento do valor diário do subsídio de refeição, matéria que nem sequer integra a causa de pedir.
O que se discute é o meio de pagamento que passou a ser utilizado, que condiciona os trabalhadores a realizar as suas compras de bens alimentares apenas nos supermercados e hipermercados explorados pela Requerida, ou a consumirem as suas refeições em locais determinados por terceiros com os quais a Requerida mantém relações comerciais, e que por esse motivo viola – na perspectiva da sentença – uma específica norma do instrumento de regulamentação colectiva aplicável ao sector.
De acordo com a sentença, o vício detectado respeita a uma restrição específica do meio de pagamento utilizado, pelo que foi declarada válida a oposição dos Requerentes à utilização desse meio de pagamento.
A decisão tomada é a sequência lógica dessa fundamentação, pelo que não se vislumbra a nulidade apontada pela Requerida.
Esta parte do recurso vai, assim, desatendida.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º n.º 5 do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[3].
Por outro lado, o art. 662.º do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Deste modo, na reapreciação da matéria de facto o Tribunal da Relação deve lançar mão de todos os meios probatórios à sua disposição e usar de presunções judiciais para obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, não incorrendo em excesso de pronúncia se, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retirar dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso[4].
Ponderando, ainda, que o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640.º do Código de Processo Civil, “não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado; nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação e, que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica”[5], proceder-se-á à análise desta parte do recurso, no uso da referida autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto.
Consigna-se que se procedeu à audição dos depoimentos prestados em julgamento.
Afirma a Recorrente que deve ser dado como provado que, após negociação com os sindicatos, foi acordado que o aumento de € 0,70 no subsídio de refeição para o ano de 2022 só seria concedido se incluído no cartão.
Porém, lendo a oposição oferecida pela Requerida, verificamos que esta matéria não está ali articulada.
Ora, temos a referir que os poderes inquisitórios consignados no art. 72.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho estão limitados à causa de pedir em discussão nos autos, não podendo importar a sua alteração ou ampliação.[6]
O atendimento de factos essenciais não articulados é um poder inquisitório que incumbe ao juiz da causa e que ele apenas pode exercitar no decurso da audiência de julgamento, por sugestão da parte interessada ou por iniciativa própria, em função dos elementos que resultem da instrução e discussão da causa e da sua pertinência para a decisão jurídica e com vista ao apuramento da verdade material e da justa composição do litígio. Por isso, a Relação não pode utilizar tais poderes, ampliando o elenco dos factos provados, como não pode ordenar à 1.ª instância que utilize tal faculdade.[7]
De todo o modo, adiantamos desde já que do depoimento da testemunha BB nem sequer é possível concluir que o meio utilizado para o pagamento do subsídio de refeição tivesse sido objecto de discussão com os sindicatos, ou sequer que estes tivessem aceite o pagamento através de cartão, máxime, através do cartão “Bom Garfo”, pelo que esta parte da impugnação sempre improcederia.
Alega a Recorrente, ainda, que deve ser dado como provado que o processo de adesão dos estabelecimentos ao cartão “Bom Garfo” é um processo dinâmico no que respeita à adesão de novos estabelecimentos.
Porém, outro facto não articulado, sendo que a sentença teve o cuidado de lançar no elenco de factos provados o número de estabelecimentos que existiam em 21.02.2022 e em 16.03.2022, matéria a partir da qual se poderão retirar conclusões acerca de novas adesões.
Também não foi articulada nem objecto de consideração pela primeira instância, e como tal não pode aqui ser objecto de aditamento, a matéria relativa à inclusão dos restaurantes da cadeia McDonald’s, à possibilidade dos trabalhadores darem indicações sobre estabelecimentos a ser contactados para aderirem ao cartão, a efectiva comunicação aos Requerentes das vantagens decorrentes da adesão e utilização do cartão refeição “Bom Garfo”, a anterior existência de um refeitório na Requerida, e a existência actual de uma zona de alimentação com diverso equipamento de conservação e preparação de alimentos.
Quanto à existência de máquinas de venda automática de alimentos, a sentença já a tomou em consideração, no ponto 22, pelo que o aditamento proposto de “os colegas podem adquirir refeições na loja e nas máquinas de vending” nada adianta.
Como já referimos, o Tribunal da Relação detém autonomia decisória na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhe formar a sua própria convicção, e pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Ora, a sentença considerou provado que, além dos estabelecimentos Auchan (supermercados e hipermercados) existiam outros estabelecimentos aderentes ao cartão “Bom Garfo” na Margem Sul, alguns deles em Setúbal, mencionando o número de aderentes que existiam em duas datas diferentes. Sucede que a fundamentação jurídica foca a sua atenção principal na circunstância do cartão impedir a aquisição de bens alimentares noutras superfícies comerciais concorrentes da Requerida – que explora uma cadeia de supermercados e hipermercados – e esse facto essencial estava alegado nos arts. 18.º e 19.º da petição inicial, onde se afirmava que o cartão, não sendo de utilização universal, limitava não apenas o direito ao consumo, mas igualmente a livre concorrência – ou seja, não permitia a aquisição de bens alimentares em estabelecimentos concorrentes da entidade patronal.
Sucede que sobre este facto essencial foi produzida prova, não apenas através das duas listagens de estabelecimentos aderentes apresentadas pela Requerida, relativas aos dias 21.02.2022 e 16.03.2022, mas igualmente através da prova testemunhal produzida em audiência, nomeadamente através do depoimento prestado pela 2.ª testemunha arrolada pela Requerida, CC, responsável pelos supermercados da Requerida na margem sul do Tejo, a qual declarou expressamente que o cartão “Bom Garfo” apenas permite a aquisição de produtos alimentares nos supermercados e hipermercados Auchan, e para além disso apenas permite a aquisição de refeições em restaurantes, não podendo ser utilizado em cadeias concorrentes, como Pingo Doce, Continente ou Lidl (entre 12m20s e 12m47s do seu depoimento).
Sendo este facto essencial à decisão da causa de pedir – a limitação da concorrência e a obrigação dos trabalhadores adquirirem produtos alimentares na rede de supermercados e hipermercados a entidade patronal – importa que este fique claramente enunciado na matéria de facto.
Em consequência, decide-se:
- desatender a impugnação da matéria de facto deduzida pela Requerente;
- aditar ao enunciado de factos provados, o seguinte: “23. O cartão “Bom Garfo” apenas permite a aquisição de bens alimentares na rede de supermercados e hipermercados explorada pela Requerida, bem como a aquisição de refeições em restaurantes aderentes ou nas máquinas de vending mencionadas no ponto anterior.”

A matéria de facto fica assim estabelecida:
1. Os requerentes trabalham para a requerida na Loja de Setúbal e auferem subsídio de alimentação.
2. Nos últimos 25 anos o subsídio de alimentação era pago mensalmente, em numerário, juntamente com a retribuição mensal.
3. No final do ano de 2021 a requerida decidiu que a partir de Janeiro de 2022 o subsídio de alimentação seria pago através do cartão bancário “Bom Garfo” emitido pela ONEY.
4. Nessa sequência a requerida diligenciou junto da ONEY pela emissão dos cartões “Bom Garfo”.
5. A requerida transmitiu ao Oney Bank Sucursal em Portugal os dados pessoais necessários à emissão do cartão ONEY “Bom Garfo”.
6. E chamou os trabalhadores para lhes entregar em mão os cartões e assinarem a “Proposta de Adesão” onde se pode ler que “A emissão do cartão refeição é precedida de um pedido do titular, feito ao Oney ou à Auchan no caso dos colaboradores desta, e está sujeita à aprovação do Oney.”
7. Os requerentes opuseram-se à alteração do modo de pagamento do subsídio de alimentação e não solicitaram a emissão dos cartões ONEY “Bom Garfo”.
8. A requerida enviou os cartões ONEY “Bom Garfo” para a residência dos trabalhadores, desacompanhado das condições gerais e cláusulas de adesão.
9. O cartão que este só é valido mediante a assinatura do titular.
10. A requerida instruiu os requerentes a contactarem o número 214126895 para proceder à activação dos Cartões ONEY “Bom Garfo”.
11. Os requerentes e outros trabalhadores da Auchan recusam-se a aceitar o cartão ONEY “Bom Garfo” e pretendem manter o pagamento do subsídio de alimentação em numerário, com o vencimento.
12. A maioria dos requerentes exerce funções em regime de part-time – 25 horas semanais, auferindo cerca de €400,00 de retribuição base.
13. Os trabalhadores em regime de part-time fazem as refeições em casa.
14. As requerentes DD, residente em Palmela, EE, residente em Palmela, FF, residente na Moita, GG, residente no Pinhal Novo, HH residente no Pinhal Novo e II, residente na Moita, não podem usar o cartão refeição nas lojas da sua área de residência, tais como a padaria, o café, o talho, a mercearia, ou outras.
15. Os requerentes não faziam apenas compras na Loja Auchan Setúbal, usando o subsídio de alimentação para complementar os salários auferidos nos pagamentos de rendas, infantários água, luz, electricidade.
16. Actualmente a requerida paga € 6,10 por dia a título de subsídio de refeição.
17. No ano 2021, o subsídio de alimentação era pago em cartão refeição a 172 dos 397 funcionários a laborar na Loja Auchan de Setúbal.
18. A Requerente decidiu unilateralmente pagar o subsídio de alimentação refeição com cartão de refeição aos 397 funcionários da Loja Auchan e a todos outros funcionários das outras lojas a partir de Janeiro de 2022 para assegurar a uniformidade de pagamentos para todos os funcionários.
19. O cartão de refeição “Bom Garfo” é activado com um telefonema para o n.º 214126895, ou no momento da primeira transacção.
20. Em 21/02/2022, além dos estabelecimentos Auchan (supermercados e hipermercados) existiam 20 estabelecimentos aderentes ao cartão “Bom Garfo” na Margem Sul, dos quais 2 se situavam em Setúbal.
21. Em 16/03/2022, além dos estabelecimentos Auchan (supermercados e hipermercados) existiam 28 estabelecimentos aderentes ao cartão “Bom Garfo” na Margem Sul, dos quais 10 se situavam em Setúbal e 1 em Águas de Moura.
22. A Loja de Setúbal possui máquinas de vending que podem ser utilizadas com o cartão e disponibilizam bens alimentares de natureza diversa, incluindo refeições completas de carne ou peixe confeccionadas, com um peso aproximado de 400 g cada, embaladas em atmosfera modificada, para que seja garantida a sua integridade, dependendo os pratos disponíveis dos dias de compra.
23. O cartão “Bom Garfo” apenas permite a aquisição de bens alimentares na rede de supermercados e hipermercados explorada pela Requerida, bem como a aquisição de refeições em restaurantes aderentes ou nas máquinas de vending mencionadas no ponto anterior.

APLICANDO O DIREITO
Do pagamento do subsídio de refeição através de cartão com uma restrição específica de utilização em supermercados e hipermercados pertencentes à entidade patronal, ou na aquisição de refeições em restaurantes ou em máquinas de venda automática
Argumenta a Recorrente que o subsídio de refeição não tem natureza retributiva, face ao art. 260.º n.º 1 al. a) do Código do Trabalho, e não ocorre a proibição de “truck system”, prevista no art. 129.º n.º 1 als. h) e i) do Código do Trabalho.
Esse é também o sentido do Parecer junto aos autos, argumentando que o subsídio de refeição constitui uma obrigação do empregador, resultante do instrumento de regulamentação colectiva aplicável – a cláusula 19.ª do CCT celebrado entre a APED e a FEPCES e outros (BTE 22/2008), objecto de Portaria de Extensão (BTE 47/2008) – e é um mero benefício social. Como tal, continua o referido Parecer, o cumprimento dessa obrigação pode ser realizada através de cartão, pois não está sujeita à regra de satisfação em dinheiro prevista no art. 276.º n.º 1 do Código do Trabalho, e como não existe qualquer obrigação de os trabalhadores adquirirem bens nas lojas do empregador ou por este indicados, não foi violado o art. 129.º n.º 1 al. h) do Código do Trabalho, materialmente igual à cláusula 42.ª al. e) do CCT.
Concordamos que o subsídio de refeição previsto na cláusula 19.ª do CCT aplicável não se deve considerar retribuição para os fins do art. 260.º n.º 1 al. a) do Código do Trabalho, pois não está demonstrado que o valor pago de € 6,10/dia exceda o montante normal de uma refeição, nem se pode considerar demonstrado que se deva considerar pelos usos como parte integrante da retribuição.
Por outro lado, o cartão de refeição continua a ser um meio de pagamento de valores expressos em dinheiro e por isso não se pode concluir que é um meio de pagamento em espécie ou que ocorra violação da prescrição contida no art. 276.º n.º 1 do Código do Trabalho.[8]
Porém, os autos apresentam características próprias, que exigem outra perspectiva de análise.
Na verdade, a Requerida explora, com fim lucrativo, uma rede de supermercados e hipermercados e por esse motivo não pode obrigar, ou condicionar, os seus trabalhadores a gastarem o subsídio de refeição nas suas lojas, sob pena de ofensa à norma contida no art. 129.º n.º 1 als. h) e i) do Código do Trabalho.
Sucede que o cartão de refeição através do qual a Requerida passou a pagar o subsídio de refeição contém uma restrição específica: a única rede de supermercados e hipermercados onde pode ser utilizado é a que pertence à entidade patronal, o que obriga os trabalhadores, se pretenderem confeccionar as suas refeições com alimentos por si adquiridos, a gastar o valor do seu subsídio de refeição exclusivamente nos estabelecimentos da Requerida.
E se é certo que o cartão possibilita a aquisição de refeições em restaurantes ou em máquinas de venda automática como as existentes na loja de Setúbal, também diremos que os trabalhadores não podem, igualmente, ser obrigados a gastar o seu subsídio de refeição na aquisição de refeições em restaurantes ou nas referidas máquinas, por se tratarem de locais indicados, directa ou indirectamente, pela entidade patronal.
Ademais, está demonstrado que a maioria dos Requerentes exerce funções em regime de part-time – 25 horas semanais – auferindo cerca de € 400,00 de retribuição base, realizando as suas refeições em casa, o que, em bom rigor, é da natureza das coisas, quem aufere esses valores de retribuição evita restaurantes.
Sai mais barato adquirir bens alimentares e confeccioná-los em casa e essa é a solução quando o dinheiro não abunda.
Acresce, ainda, estar demonstrado que alguns Requerentes residem em localidades – Palmela, Moita e Pinhal Novo – onde não existem lojas da Requerida nem outros estabelecimentos onde possam usar o cartão “Bom Garfo”, pelo que estão condicionados a usar o valor do seu subsídio de refeição na aquisição de bens alimentares na loja da Requerida, quando ali se deslocam para a prestação da sua actividade laboral.
Na perspectiva deste Colectivo, o valor pecuniário que é devido aos trabalhadores a título de subsídio de refeição pode ser pago através de cartão de refeição, mas o universo de estabelecimentos onde pode ser utilizado não deve ser de tal modo restrito que acabe por se cair na proibição de “truck system”, o que efectivamente ocorre quando o cartão não permite a sua utilização em outras redes de supermercados e hipermercados, que não a explorada pela entidade patronal.
Esta é também a opinião de Nuno Marques Agostinho, que escreve o seguinte, a propósito na proibição contida no art. 129.º n.º 1 al. h) do Código do Trabalho: “É por isso que não é possível clausular o pagamento de prestações periódicas em espécie que consistam em créditos, por exemplo, em um concreto supermercado ou uma cadeia de supermercados. E se se tratarem de créditos convertíveis em dinheiro em todos ou grande parte dos supermercados do país? Nesse caso, já não pode afirmar-se que, por essa via, se “obriga” o trabalhador a adquirir bens ou serviços ao empregador ou a pessoa por ele indicada.”[9]
Concordamos, pois, com a sentença recorrida, quando conclui o seguinte: “ao impor a utilização do cartão refeição, com todas as limitações a ele inerentes, designadamente a impossibilidade dos trabalhadores poderem fazer compras de bens alimentares noutras superfícies comerciais, que não a da requerente, bem como a consumirem refeições em locais determinados por terceiros com os quais a requerida mantém relações comerciais, é nosso entendimento de que estamos perante uma evidente violação do contrato de colectivo de trabalho aplicável à relação laboral e, nessa medida, sem prejuízo da eventual aplicação de uma coima, mantém os requerentes o direito a receber o subsídio de alimentação em numerário, ou através de outro meio de pagamento que não contenda com a referida norma.”
Esta parte do recurso vai assim desatendida, tanto mais que não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade retributiva: a decisão recorrida não impõe a redução do subsídio de refeição aos trabalhadores que o recebem em dinheiro, matéria que nem sequer integra a causa de pedir.
O que está em causa é a imposição de um cartão de refeição com um universo de utilização tão restrito, que cai na proibição de “truck system”, em especial quando a principal beneficiária desse sistema é a própria entidade patronal.

Dos requisitos do procedimento cautelar e da inversão do contencioso
Argumenta a Requerida que o potencial dano é imputável aos Requerentes, quer por recusarem o cartão de refeição, quer por pretenderem afectar o valor do subsídio de refeição ao pagamento de bens e serviços que integram a respectiva finalidade.
Porém, não está em causa o pagamento do subsídio de refeição através de cartão de refeição. O que está em causa é uma restrição específica deste cartão de refeição – o cartão “Bom Garfo” – que beneficia a própria entidade patronal e integra a proibição legal supra identificada.
Concordamos com a sentença recorrida, ao decretar a providência nos termos que o fez, pois mostra-se concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado e preenche os requisitos do art. 362.º n.º 1 do Código de Processo Civil, sendo que o “periculum in mora” decorre da privação de um subsídio que tem carácter alimentar.
Quanto à inversão do contencioso, o art. 369.º do Código de Processo Civil permite que o procedimento cautelar deixe de ser apenas instrumental e provisório, possibilitando a resolução definitiva do litígio. Deste modo, sendo a matéria adquirida no procedimento suficiente para a formação de uma convicção segura sobre a existência do direito acautelado, e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, o juiz dispensará o requerente do ónus de propositura da acção principal.
Para que se verifique o requisito de “convicção segura acerca da existência do direito”, não basta a prova sumária do direito acautelado, tornando-se necessária a formação de um juízo mais profundo, uma prova strictu sensu do direito que se pretende tutelar.
No dizer de Miguel Teixeira de Sousa[10], «o que conta é que o juiz forme a convicção segura do direito que a providência se destina a acautelar, não a convicção segura da procedência da providência decretada». Para o Conselheiro Lopes do Rego[11], «o juiz só decretará a inversão do contencioso quando o grau de convicção que tiver formado ultrapassar o plano do mero fumus bonus iuris, face nomeadamente à amplitude e consistência da prova produzida e à evidência do direito invocado pelo requerente (...) e entender – ponderadas as razões invocadas pelas partes – que a composição de interesses alcançada a nível cautelar pode servir perfeitamente como solução definitiva para o litígio.»
Quanto ao segundo requisito, de “adequação da natureza da providência decretada a realizar a composição definitiva do litígio”, justifica-se «pelo facto de, tendo sido decretada a inversão do contencioso e não tendo o requerido proposto a acção de impugnação, a tutela cautelar se convolar ex lege em tutela definitiva; logo, tem de se exigir que a providência decretada se possa substituir à tutela definitiva que o requerente da providência poderia solicitar na acção principal se não tivesse sido decretada a inversão do contencioso.»[12]
Finalmente, está em causa uma decisão vinculada do Tribunal e não uma decisão tomada no uso de um poder discricionário, pois a inversão do contencioso não ocorre segundo um critério de oportunidade ou de conveniência, mas sim de acordo com os referidos critérios legais.
Aplicando estes critérios ao caso dos autos, diremos que a prova é exuberante e foi realizada com o devido contraditório das partes. Acresce que se mostra evidente a infracção de uma norma legal respeitante aos deveres do empregador e que a providência adoptada efectivamente realiza a composição de interesses e serve como solução definitiva para o litígio.
O que justifica o integral decretamento da providência requerida e a concessão da inversão de contencioso que veio peticionada pela Requerente.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação da sentença recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.

Évora, 15 de Dezembro de 2022

Mário Branco Coelho
Paula do Paço
Emília Ramos Costa

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[1] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1.ª ed., pág. 689.
[3] Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2013 (Proc. 2154/08.9TBMGR.C1.S1), de 13.01.2015 (Proc. 219/11.9TVLSB.L1.S1) e de 07.11.2019 (Proc. 2929/17.8T8ALM.L1.S1), também publicados na mesma página, decidindo este último que “tendo a Relação reapreciado os meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.”
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1184/10.5TTMTS.P1.S1), também publicado na citada base de dados.
[6] Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.02.2008 (Proc. 07S2898), igualmente na DGSI.
[7] Hermínia Oliveira e Susana Silveira no VI Colóquio sobre Direito do Trabalho, realizado no Supremo Tribunal de Justiça em 24.10.2014, in “Colóquios”, disponível em www.stj.pt.
Na jurisprudência, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.09.2016 (Proc. 2/13.7TTBRG.G1.S1), da Relação de Évora de 28.09.2017 (Proc. 1415/16.8T8TMR.E1, subscrito pelo ora relator) e da Relação de Guimarães de 10.07.2019 (Proc. 3235/18.6T8VNF.G1), todos em www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos da Relação de Coimbra de 03.04.2014 (Proc. 601/13.7TTVIS.C1) e da Relação de Guimarães de 15.03.2016 (Proc. 470/15.2T8VNF.G1), ambos em www.dgsi.pt.
[9] In As Prestações em Espécie – À Luz dos Conceitos de Retribuição e de Retribuição Base, Nova Causa Edições Jurídicas, Novembro de 2017, págs. 61/62, nota 54.
[10] In As Providências Cautelares e a Inversão do Contencioso, pág. 10, publicado na Internet em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/PCN_MA_25215.pdf.
[11] In Os Princípios Orientadores da Reforma do Processo Civil, Revista Julgar, n.º 16, pág. 109.
[12] Miguel Teixeira de Sousa, loc. cit..