COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ESCRITURA PÚBLICA
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
CAMINHO PÚBLICO
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMPETENTE
CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
PETIÇÃO INICIAL
CONTESTAÇÃO
Sumário


I - É da competência do tribunal comum o julgamento da acção de simples apreciação negativa em que o autor, impugnando uma escritura de justificação notarial outorgada pelo réu, pretende a declaração (e a consequente rectificação na escritura) de que o seu prédio confronta a sul com ele próprio, e não com qualquer arruamento, como da escritura consta.
II - A relação jurídico-controvertida que releva para efeitos de aferição de competência material é a que foi alegada pelo autor na petição e não a que é sustentada pelos réus na contestação.

Texto Integral



Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:



*



AA propôs a presente ação declarativa, de simples apreciação negativa, contra BB e mulher CC, pedindo que seja declarada a “inexistência de arruamento (ou caminho público), por impugnação às declarações prestadas na escritura de justificação quanto à confrontação a sul do prédio originário supra descrito, com efeitos na confrontação a sul de cada um dos prédios, hoje existentes, passando nela a figurar o nome do A., AA (onde se insere o seu prédio, a passagem ou caminho particular)”.

Os réus contestaram, invocando, além do mais, a excepção da incompetência material do tribunal, com fundamento em que a causa é do foro dos tribunais administrativos.

No conhecimento desta excepção, em sede de audiência prévia, o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:

“Defendem ainda os réus que a pretensão do autor é de índole administrativa e que, por isso, este Tribunal é materialmente incompetente para a ação.

Salvo o devido respeito, como se salientou supra, a competência do Tribunal afere-se pretensão deduzida pelo autor e não pela pretensão que os réus entendem que o autor deveria formular.

No caso concreto, o litígio desenvolve-se entre o autor e os réus, não sendo parte nesse litígio o Município.

Aliás, mesmo que fosse parte na ação o Município, tem sido entendimento, segundo cremos uniforme, de que são os tribunais comuns os competentes para decidir da natureza pública ou privada de um caminho.

Veja-se neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22-06-2017, proferido no processo nº 142/14.....

Pelo exposto, julga-se improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal».

Inconformados, os RR interpuseram recurso de apelação, que foi julgada improcedente.

Escreveram os Senhores Desembargadores no acórdão de que se recorre:

“De acordo com a doutrina, a competência em razão da matéria determina-se pelo conteúdo da lide, tendo em conta o pedido e a causa de pedir – veja-se, por todos, Alberto dos Reis, no Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pag.10 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag.88.

Também a jurisprudência se tem orientado no mesmo sentido, sendo exemplo disso o acórdão da RP de 08.04.02, publicado no respectivo “site”, onde se decidiu que “para responder a esta questão importa ter presente a pretensão formulada pela autora e os fundamentos em que a mesma se baseia...e deve olhar-se aos termos em que a acção foi posta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou direito para o qual se pretende a tutela jurídica, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”.

Ou, mais recentemente mas sempre na linha que se tem como unitária, o acórdão do STJ de 22.10.2015, Procº 678/11.0TBABT.E1.S1, (dgsi), do qual consta que «o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor».

Nos termos do artº 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 20/2012, de 14/05, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.

Este normativo consubstancia-se numa transcrição dos artºs 202º, nº1 e 212º, nº3, da Constituição, o que implica que o artº 64º do Código de Processo Civil segundo o qual «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» “seja lido em conformidade com o citado artº 212º, n3º”, isto é, “de que a jurisdição comum do direito administrativo é a administrativa e que as causas juridico-administrativas só saem da esfera dos tribunais administrativos se uma lei dispuser (validamente) em sentido contrário” – Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol.I, pag.21, de Mário Esteves de Oliveira.

Nas palavras do Tribunal dos Conflitos, por acórdão datado de 07 de Outubro de 2010, este artº 212º, nº3, «consagra uma reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos. E o primeiro problema que a sua interpretação suscita é o de saber se a reserva é absoluta, quer no sentido negativo, quer no sentido positivo, implicando, por um lado, que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, por outro lado, que só eles poderão julgar tais questões. (...) é dominante a interpretação com o sentido de que a cláusula consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.

(…) Esta última linha de leitura, que não é repelida pelo texto (que não diz explicita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas) assenta na ideia de que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do nº3 do artº 214º foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos, tem sido acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional [vide, entre outros, os acórdãos n.º 372/94 (in DR II Série, n.º 204, de 3 de Setembro de 1994), 347/97 (in DR II Série, n.º 170, de 25 de Julho de 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003].

Não se vê razão para divergir desta interpretação.

Consideramos, pois, que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas».

Veja-se, pois, o que se dispõe no artº 4º do ETAF, relativo ao âmbito da sua jurisdição; dele se recolhe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…)”

Volvendo ao caso concreto, verificamos que a situação dos autos não é subsumível a nenhuma das alíneas da norma.

O litígio ocorre entre dois particulares, sendo que, com a presente acção, o A. pretende que se declare a inexistência de arruamento (ou caminho público) que se fez constar da escritura de justificação notarial melhor referida nos autos e, ao invés, que da mesma e relativamente aos prédios ali identificados, passe a constar como confrontante a sul, AA.

Na tese do demandante, trata-se de um acesso privado, integrado numa propriedade privada, que sempre assim foi, antes mesmo da compra pelos anteriores três proprietários.

Situamo-nos, indubitavelmente, numa relação jurídica de natureza privada, a decidir por aplicação de normas de direito privado.

De resto, o Tribunal de Conflitos, como o próprio assinala, tem entendido que o conhecimento de acções de reivindicação, mesmo que impliquem pessoas jurídicas de direito público, pertence à jurisdição comum, como se retira, nomeadamente, dos Acórdãos de 26.1.2017 e 8.3.2017, respetivamente nos processos 052/14 e 034/16.

Num recentíssimo aresto, datado de 02.12.2021, relatado pela Srª Conselheira Prazeres Beleza, tirado no procº 03802/20...., justamente oriundo desta Relação, decidiu-se ser «da competência dos Tribunais Judiciais uma acção instaurada contra uma entidade pública na qual a autora pede que se reconheça o direito de propriedade que alega e que a ré restitua a parcela de terreno que indevidamente ocupou, invocando que adquiriu o direito por usucapião e que sempre beneficiaria da presunção de titularidade do direito de propriedade fundada, quer no registo predial, quer na posse».

No caso que ora nos ocupa, o carácter de direito privado é bem mais acentuado, porquanto toda a lide se desenvolve entre meros particulares, insurgindo-se o autor contra actos dos réus, também eles pessoas de direito privado, actos esses que se traduziram, na sua versão, em fazer constar, de documentos, confrontações que reputa de falsas.

A tudo acresce que a decisão a proferir não vinculará as entidades públicas que, indirectamente, possam estar envolvidas (decorrentes de alegadas falsas informações que lhes terão sido prestadas pelos RR), atento o alcance do caso julgado definido no artº 619º do Código de Processo Civil, nos termos do qual transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.

Os limites a que se reporta o mencionado artigo têm a ver com a propositura de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Em caso ainda mais acutilante, veja-se o acórdão do mesmo Tribunal de Conflitos, de 08 de Março de 2017, proferido no procº 034/16, onde se decidiu mesmo ser «da competência dos tribunais comuns a providência cautelar instaurada por particular contra autarquia que está a executar uma obra em caminho público que atravessa prédio rústico do requerente»

Não se nos oferecendo dúvidas a situação em apreço e reputando o nosso entendimento de, pelo menos, largamente maioritário na jurisprudência e na doutrina, julgamos desnecessárias maiores delongas nas considerações tecidas, concluindo, então, pela atribuição da competência aos tribunais comuns.

Por tudo, não há qualquer censura quanto à solução encontrada na 1ª instância.”

Em conclusão, a Exma Relatora elaborou o seguinte sumário:

“É da competência dos tribunais comuns o julgamento da acção em que o autor, pessoa singular de direito privado, demanda o réu, também ele pessoa de direito privado, para que seja corrigida de “caminho público” para “acesso privado”, a confrontação que este fez constar de escritura pública.”

Não se conformaram os RR, que interpuseram recurso de revista, no qual formularam as seguintes conclusões:

“I-O Tribunal a quo julgou improcedente o recurso interposto, considerando que o julgamento da presente acção é da competência dos Tribunais Judiciais, atribuindo relevância ao facto de o presente litígio ocorrer entre dois particulares e revelando sobretudo ser determinante para aferir da competência do Tribunal a tese do Demandante.

II. A defesa dos Recorrentes integra factos cuja análise é de índole administrativa, pelo que o Tribunal estará obrigado a debruçar-se sobre os mesmos, facto que é atestado pelos Temas da Prova, constantes da Acta da Audiência Prévia, onde consta ainda o despacho recorrido.

III. O Tribunal a quo para analisar se o terreno em discussão “está afecto ao uso público e/ou domínio público…”, terá de se socorrer às normas de direito administrativo, bem como à legalidade dos actos administrativos praticados.

IV. O disposto no art.º 64.º do CPC não impõe que para aferir da competência dos Tribunais Judiciais seja determinante apenas a relação jurídica invocada pelo Autor, nos mesmos termos em que o legislador determina para a legitimidade das partes – art.º 30.º do CPC.

V. A causa, na acepção do disposto no art.º 64.º do CPC, preceito que foi violado, traduz-se na pretensão formulada pelo Autor, mas igualmente na defesa apresentada pelo Réu – enquanto invocação de factos impeditivos do direito invocado pelo Autor.

VI. Tivesse o Recorrido que se socorrer dos Tribunais Administrativos – como julgam os Recorrentes que o devia ter feito – não teria de demandar apenas os Recorrentes, mas sim, conhecendo que a Câmara Municipal ... se arroga titular desta faixa de terreno, impunha-se que ali demandasse esta Edilidade e chamasse os Recorrentes como contrainteressados.

VII. O conflito, conhecido o acto Administrativo de afectação pública do terreno pela Câmara Municipal ..., não é entre dois particulares, mas sim entre o Recorrido e um ente público.

VIII. O próprio tribunal de primeira instância, quando fixou os temas da prova, acaba por dar azo a que se admita discutir no processo mais do que o que a Relação considerou ser a causa de pedir do Recorrido, para aferir da questão da competência.

IX. Com aqueles temas de prova, não pode também deixar de se concluir pela competência a favor dos tribunais administrativo e fiscais.

X. A pretensão do Recorrido é a de que o Tribunal declare a parcela de terreno sub judice como particular, ou, pelo menos, tem esse julgamento como necessariamente pressuposto para o julgamento da causa, tornando-se necessário para decidir pela procedência do pedido formulado pelo Recorrido que, primeiramente, o Tribunal julgue que o arruamento é privado, e já não público, como afirma o Município nos elementos documentais constantes dos autos.

XI. A referida parcela de terreno é conhecida e fisicamente existente desde há muito mais de 40 anos como arruamento e a menção constante da escritura pública, de que o Autor contesta a veracidade, é a de arruamento não dizendo se público se privado, o que não colidia nem colide com a realidade física do caminho e com o atestado pelo Município ....

XII. Para aferir da competência dos Tribunais judiciais para o julgamento da presente acção, os Tribunais a quo socorrem-se do facto do conflito ser entre particulares, mas a qualidade das partes – pública ou privada – não é o único, ou sequer o determinante, requisito para se aferir da competência do Tribunal, impondo-se, igualmente, que se proceda à análise da questão material controvertida.

XIII. O Tribunal não se pode desligar do facto de constarem dos autos documentos emitidos pelo Município ..., cujo conteúdo e força probatória não é posta em causa, atestando que a faixa de terreno sub judice integra ao domínio público municipal.

XIV. Independentemente da qualidade pública ou privada das partes, a questão que se coloca é se o Tribunal se terá que socorrer das normas do Direito Administrativo ou não para o julgamento da causa.

XV. Dizendo o Recorrido que o caminho é seu, logo particular, e por sua vez, defendendo os Recorrentes que, como afirma o Município, o Caminho integra do domínio público municipal, logo bem público, o Tribunal para desconsiderar o caminho como público, terá que declarar, socorrendo-se das normas de direito administrativo, que o Município ... praticou uma acto ilegal de afectação da faixa de terreno no domínio público municipal.

XVI. O que resulta da presente acção é que o Recorrido pretende que aquele arruamento seja declarado como sendo bem do domínio privado e, além disso, da sua própria propriedade – pois que só assim é possível o pedido que formula mesmo em abstrato.

XVII. É claro que se tornará impossível ao Tribunal a quo não se socorrer das normas de direito administrativo para julgar a presente acção pois que aquele pedido tem como pressuposto necessário saber se aquele arruamento é ou não do domínio publico, seja porque nunca o foi ou porque as operações urbanísticas a que foi sujeito não o determinaram.

XVIII. Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/05/2017, tirado no processo n.º 4/17.4T8CLB.C1 que interpretado à contrario sensu decide na esteira do defendido pelos Recorrentes e ainda o fundamental Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22/09/2016, processo n.º 011/16, disponível em www.dgsi.pt, cujo caso é em todo semelhante ao caso dos autos.

XIX. A Câmara Municipal ... integrou a faixa de terreno sub judice, no domínio Municipal, concretamente, na rede viária municipal, na sequência do processo de loteamento que precedeu as aquisições do Autor e Réus, integrando, portanto, tal faixa no domínio público municipal, pelo que o Tribunal terá necessariamente de julgar se tal acto administrativo cumpriu os preceitos legais de Direito Administrativo.

XX. Na prática, o que pretende o Recorrido, é que o Tribunal a quo declare a desafectação do terreno do domínio público municipal, sem que sejam aplicadas as normas próprias de direito administrativo e que tal questão seja julgada pelos Tribunais Administrativos – a quem cabe o julgamento de tal matéria em exclusivo.

XXI. O Município ... pratica no mesmo espaço, actos que decorrem da sua autoridade e gestão pública, tais como fiscalização que faz no referido espaço e imposição de infraestruturas públicas integradas no domínio público, o que atesta que tal acto de integração no domínio público municipal está juridicamente consolidado (vide doc.s n.º 17 e 18 da Contestação).

XXII. Foi assim violado o disposto nos artigos 64.º, 96.º a) e 99.º n.º 1 do CPC e nos art.ºs 4.º do ETAF e 212.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

Decidindo em conformidade com as conclusões agora aduzidas, Vossas Excelências, Exmos Conselheiros, contribuirão para a realização do Direito.”

Tendo por base as ocorrências processuais relatadas, que se têm por assentes, cumpre decidir.

O A. intentou a acção contra os RR pedindo que seja declarada a “inexistência de arruamento (ou caminho público), por impugnação às declarações prestadas na escritura de justificação quanto à confrontação a sul do prédio originário supra descrito, com efeitos na confrontação a sul de cada um dos prédios, hoje existentes, passando nela a figurar o nome do A., AA (onde se insere o seu prédio, a passagem ou caminho particular)”.

Apreciando o caso concreto, o Tribunal da Relação considerou que a situação dos autos não era subsumível a nenhuma das alíneas da norma do art. 4º do ETAF.

Assim, ponderando que o litígio ocorre entre dois particulares - sendo que, com a presente acção, o A. pretende que se declare a inexistência de arruamento (ou caminho público) que se fez constar da escritura de justificação notarial e, ao invés, que da mesma e relativamente aos prédios ali identificados, passe a constar como confrontante a sul, o próprio A.- que na tese do A. se trata apenas um acesso privado, integrado numa propriedade privada, o Tribunal da Relação concluiu que se está perante relação jurídica de natureza privada, a decidir por aplicação de normas de direito privado.

Insurgem-se os recorrentes contra este entendimento alegando que a sua defesa integra factos cuja análise é de índole administrativa.

Assim, argumentam, tendo alegado que o terreno em discussão “está afecto ao uso público e/ou domínio público…”, ao tribunal não resta outra alternativa senão a de recorrer às normas de direito administrativo, bem como à legalidade dos actos administrativos praticados, como de resto resulta da enunciação dos temas da prova.

Mas não têm razão, salvo o devido respeito.

Em primeiro lugar, deve assinalar-se que não existe qualquer dissidio entre as partes relativamente à conclusão de que a delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa assenta na noção de relação jurídica administrativa (ou fiscal). E que tal resulta, sobretudo, do art. 212º, n.º 3 da C.R.P, segundo o qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (…) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”, conjugado com outras normas, designadamente, as do art. 1º, nº 1 e do art. 4º do ETAF (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, 3ª edição pág. 815).

Porém, não podem os recorrentes olvidar que a competência é um pressuposto processual, que deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes,  tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor (cfr. Ac. STJ de 22.10.2015, proc. 678/11.0TBABT.E1.S1); que é pelos pedidos e pela causa de pedir (ou seja, pela relação jurídica tal como o autor a configura na petição) que se afere a competência em razão da matéria (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 88; Ac. STJ de 6.5.2010, proc. nº 3777/08.1TBMTS.P1.S1, em www.dgsi.pt).

É, portanto, “incontroverso, doutrinal e jurisprudencialmente” que a competência “é determinada pelo pedido feito pelo autor e pelos fundamentos que invoca [o quid disputatum]“ (Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 5.3.2013, proc 018/12, em www.dgsi.pt). Pelo que o que deve ser visto é se o pedido e a causa de pedir é do conhecimento dos tribunais administrativos ou comuns, sendo para isso necessário esclarecer se os ditos pedido e causa de pedir emergem de uma relação jurídico-administrativa.

Ora, revertendo ao caso sub judice, verifica-se que não é objecto desta acção qualificar a situação em causa como de caminho público. Se for apurado que o é, face ao articulado pela ré, então a acção terá de improceder. Isto é: não tendo o tribunal sido chamado a decidir a qualificação do caminho, como pertencente ao domínio público, a competência não pertence aos tribunais administrativos (cfr. o citado Ac. Tribunal dos Conflitos de 5.3.2013). De modo que, e usando as palavras do aresto vindo de citar, “esta acção, tal como configurada pelo autor, tendo sempre presente o pedido e a causa de pedir, não se situa no âmbito das relações de direito administrativo, mas no plano do direito privado [relativo a confrontações]“. Se for demonstrado que o arruamento é do domínio público e que não existiu qualquer desafectação desse domínio, o tribunal declarará apenas a improcedência da acção.

Arrimam-se os recorrentes no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.5.2017, tirado no processo n.º 4/17.4T8CLB.C1 -com o argumento de que, se o mesmo for interpretado a contrario sensu, se deve decidir na esteira do por eles defendido- e ainda no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22.9.2016, processo n.º 011/16, disponível (também) em www.dgsi.pt, cujo caso, alegam, é, em todo, semelhante ao caso dos autos.

Porém, o Ac. R.... de 9.5.2017 apenas concluiu que, apesar de a autora ser uma autarquia local, não se estava no caso perante uma relação jurídico-administrativa a regular pelas regras de direito público, porque, embora estivesse em causa a qualificação do caminho como público, o litígio não convocava para a sua solução qualquer estatuto público ou qualquer acto administrativo que o classificasse como tal. Pelo que daqui não se pode retirar a contrario que se os réus alegarem, como é o caso, a afectação do caminho ao domínio público, o objecto da acção passe a ser a qualificação da situação em causa como de caminho público, pois não é, como se disse, o que consta do pedido ou da causa de pedir.

Mas também não tem aqui aplicação o invocado Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22.9.2016, processo n.º 011/16, em www.dgsi.pt.

É certo que nesse caso, estando em causa problemas jurídicos atinentes a um bem do domínio público que tinha sido objecto de permuta com particulares, se tornava imprescindível avaliar se a destafectação desse bem tinha cumprido o disposto na lei. Todavia, e ao contrário do caso que nos ocupa, esse era o objecto da acção delimitado pela causa de pedir e pelo pedido: aí se pedia que se declarasse que o caminho pertencia ao domínio público da freguesia, que um troço desse caminho continuava a ter carácter público e se pedia, ainda, que se declarasse a nulidade do contrato de permuta.

Acresce que, como bem salienta a decisão recorrida, em qualquer circunstância, “a decisão a proferir não vinculará as entidades públicas que, indirectamente, possam estar envolvidas (decorrentes de alegadas falsas informações que lhes terão sido prestadas pelos RR), atento o alcance do caso julgado definido no artº 619º do Código de Processo Civil, nos termos do qual transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.”

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. É da competência do tribunal comum o julgamento da acção de simples apreciação negativa em que o autor, impugnando uma escritura de justificação judicial outorgada pelo réu, pretende a declaração (e a consequente rectificação na escritura) de que o seu prédio confronta a sul com ele próprio, e não com qualquer arruamento, como da escritura consta;

2. A relação jurídico-controvertida que releva para efeitos de aferição de competência material é a que foi alegada pelo autor na petição e não a que é sustentada pelos réus na contestação”.

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso de revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 29 de Novembro de 2022


António Magalhães (Relator)

Jorge Dias

Jorge Arcanjo