CONTRATO DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBRIGATÓRIO
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
ABUSO DE DIREITO
DIREITO DE REGRESSO
Sumário


I Não tem fundamento a alusão à violação, pela seguradora, dos deveres de contato, comunicação e informação perante o segurado que lhe comunique a ocorrência de um sinistro (ou que não comunique) conforme o artº. 36º do DL nº. 291/2007 de 21/8, como fundamento do exercício abusivo do direito de regresso da seguradora ao abrigo do artº. 27º, nº. 1, c), do mesmo diploma.
II Ainda que o segurado não tenha participado nesse procedimento de regularização do sinistro, nem tenha sido parte na ação perante as seguradoras envolvidas, não lhe está vedado o exercício do direito de contradizer os pressupostos relativos á sua responsabilidade no ocorrido, bem como o âmbito dos danos ressarcidos ao lesado, seja por sua iniciativa no âmbito do procedimento prévio, seja no âmbito da ação de regresso, não havendo por isso qualquer ofensa ao princípio do contraditório.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância).

Companhia De S..., SA, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ... ..., vem intentou a presente ação declarativa com forma de processo comum contra AA, portador do cartão de cidadão n.º ... e do NIF ..., residente na Travessa ... ... ..., pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de €24.868,67, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data de citação até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que celebrou com o Réu, um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice n. º ...18, por força do qual a responsabilidade pelos riscos decorrentes da circulação do veículo automóvel de matrícula ..-DV-.. foi transferida para a A..
Invocou ainda que no dia 06 de março de 2018, pelas 14:35 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada ... - também denominada naquele local por Av. ... - ao quilometro n.º 49,300 da mesma, na união das freguesias ... e BB, concelho ..., acidente esse do qual resultaram danos para terceiros.
Invocou ainda que o sinistro se deveu à conduta do réu, que descreve, alegando ainda que réu conduzia o veículo ..-DV-.. sob efeito do álcool, Cuma TAS de 2,751 g/l correspondente à TAS de 2,99 g/l registada, facto que contribuiu para a produção do sinistro.
Sustenta que ao abrigo da referida apólice, a A. aceitou a responsabilidade pelos danos causados no descrito acidente, tendo pago a quantia global de €24.868,67, a título de despesas e prejuízos suportados pela A. ao abrigo do citado contrato de seguro, quantia essa que pretende reaver do réu.
O réu contestou.
Excecionou, em primeiro lugar, a prescrição do direito da autora, por terem decorrido mais de 3 anos desde o sinistro em causa. Mais sustenta que, ainda que se contasse a data do início da prescrição desde a data do cumprimento pela autora, ainda assim, o eventual direito da autora estaria parcialmente prescrito.
No mais, impugna a matéria invocada pela autora e sustenta que nenhuma responsabilidade teve na produção do sinistro.
Impugna ainda os danos que o condutor do MO alega ter sofrido em consequência do acidente, sustentando que já existiam à data do mesmo, em particular as lombalgias identificadas no relatório da perícia de avaliação do dano corporal no âmbito da intentada ação emergente de acidente de trabalho.
Defende ainda que as patologias que o condutor do veículo MO alega ter sofrido em consequência do acidente são todas elas de natureza degenerativa e não traumática, alegando ainda que o embate do veículo DV, propriedade do Réu, no veículo MO, conduzido pelo CC ocorreu de forma suave, não existindo qualquer nexo de causalidade entre o embate e as lesões.
Exceciona ainda que que a Autora incumpriu com os deveres impostos nos artigos 33º e 36º do DL 291/2007, sustentando que manteve o réu completamente afastado de qualquer participação e compreensão sobre os procedimentos a adotar e adotados após o sinistro, tendo-lhe, designadamente, sido vedada a possibilidade de participar e controlar a ponderação da culpa, o estado dos veículos sinistrados e também discutir, se o valor da indemnização era o mais “justo” de acordo com as de acordo com as circunstâncias e segundo critérios de coerência, razoabilidade e adequabilidade.
Defende, por isso, que, não tendo o Réu qualquer intervenção nos valores pagos, deverá considera-se ilegítimo o exercício do direito de regresso da Autora, afastando-se, dessa forma, o pagamento de qualquer quantia por abuso do direito.

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A autora respondeu à exceção de prescrição, defendendo que não se verifica a exceção invocada.
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Realizou-se audiência prévia, atribuiu-se á causa o valor de € 24.868,67.
Proferiu despacho saneador e se conheceu da exceção de prescrição, tendo-se julgado a mesma improcedente.
Fixou-se o objeto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.
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Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condena-se o réu AA a pagar à autora Companhia de S..., SA a quantia de €24.703,52 (vinte e quatro mil, setecentos e três euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescido dos juros, à taxa legal civil, vencidos desde a citação e vincendos até integral e efetivo pagamento. Mais imputou as custas às partes consoante o decaimento.
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Inconformada, o R. apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1. O Réu/Apelante recorre da douta sentença recorrida porquanto considera ilegítimo o exercício do direito de regresso da Autora/Apelada na medida em que foi completamente afastado da participação sobre os procedimentos, instruções e decisões, que foram adoptadas pela Autora/Apelada “Companhia de Seguros A..., SA após o sinistro.
2. Violou a Autora/Apelada o dever de boa-fé na celebração e execução do contrato de seguro celebrado com o Réu/Apelante, actuando numa situação de abuso de direito nos termos do artigo 334 do C.C.
3. A Autora/Apelada tinha a obrigação de informar o Réu/Apelante de todas as situações que configuram a possibilidade de agir em direito de regresso, o que nunca sucedeu, nem na celebração, quer na execução do contrato de seguro (consiste num dever especial de comunicação e informação totalmente desconsiderado).
4. O Tribunal “a quo” deu como facto provado no ponto 69 dos factos provados Autora/Apelada não comunicou ao réu/apelante a assunção da responsabilidade e as diligências adotadas na regularização do sinistro.
5. Tal facto dado como provado (ponto 69) resultou do depoimento do réu, que atestou que nunca recebeu qualquer comunicação da Autora/Apelada, conjugado com os demais elementos probatórios, designadamente do depoimento da testemunha (das Autora) DD e dos documentos juntos aos autos, mormente com o teor da missiva junta a fls. 186 que data 25/3/2021, não se mostrando junta aos autos qualquer comunicação que ponha em causa as declarações do réu.
6. Incumpriu, assim, a Autora/Apelada com os seus deveres impostos nos artigos 33º e 36º do DL 291/2007, tendo o Réu/Apelante sido mantido completamente afastado de qualquer participação e compreensão sobre os procedimentos adoptados após o sinistro, tendo-lhe, designadamente, sido vedada a possibilidade de participar e controlar a ponderação da culpa, o estado dos veículos sinistrados e também discutir, se o valor da indemnização era o mais “justo” de acordo com as de acordo com as circunstâncias e segundo critérios de coerência, razoabilidade e adequabilidade.
7. Não tendo, assim, o Réu/Apelante qualquer intervenção nos valores pagos (que poderiam, na realidade, ser outros, diga-se, avultados e desproporcionais), considera-se ilegítimo o exercício do direito de regresso da Autora/Apelada, afastando-se, dessa forma, o pagamento de qualquer quantia.
8. 0 principio da boa-fé processual afasta a possibilidade de decisões surpresa, sem que tenha sido dada a possibilidade ás partes de apresentarem a sua defesa, exercendo eficazmente o contraditório no momento e sede próprias.
9. O Tribunal “a quo” sustenta a sua posição nos artigos 31º, 33º, 34º, 36º e 37º do Decreto-Lei 291/2007, de 21/08, que transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»).
10. Contudo, a interpretação que o Tribunal “a quo” faz destes artigos 31º, 33º, 34º, 36º e 37º do Decreto-Lei 291/2007, de 21/08, é manifestamente redutora, desproporcional e lesiva dos Réu/Apelante , pois considera, desde, logo, fazendo alusão à alínea a) do artigo 36, que a empresa de seguros pode discricionariamente proceder, após o sinistro ,ao primeiro contacto, com o tomador de seguro, com segurado ou com o terceiro lesado, ou seja, considera afastada a necessidade de contactar o tomador de seguro/segurado.
11. Não colhemos tal sustentação jurídica, omitindo por completo a Autora/Apelada o cumprimento do disposto nos artigos 33º e 36º do Decreto-Lei 291/2007, ou seja, a Autora/Apelada não prestou ao Réu/Apelante nenhuma informação relativamente aos procedimentos que adoptou no sinistro sinistro ( artigo 33 ); não procedeu ao contacto com o Réu/Apelante no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens ( artigo 36º, alínea a)) não notificou o Réu/Apelante da data da conclusão das peritagens (artigo 36º, alínea c)), não disponibilizou ao Réu/Apelante os relatórios das peritagens realizadas (artigo 36º, alínea d)) e, por fim, não comunicou ao Réu/Apelante que tinha assumido a responsabilidade do sinistro.(artigo 36º, alínea e)).
12. Acresce que a Autora/Apelada não só fez letra “morta” da lei ao não dar cumprimento ao disposto nos artigos 33º e 36º do Decreto-Lei 291/2007, como foi mais longe ao afastar completamente o Réu/Apelante de todas as acções judiciais, averiguações e perícias realizadas e que levaram ao pagamento da quantia que reclamou de € 24.868,67.
13. Na verdade, o Réu/Apelante não foi informado da existência de uma açcão de acidente de trabalho que correu termos no Tribunal de Trabalho ... sob o n.º 4008/18.... (transitada em julgado à data da entrada em juízo da acção); não foi informado da existência de uma acção comum de indemnização por danos não patrimoniais que correu termo no Juiz ... Tribunal Judicial ... sob o n.º n.º 119/21.... (transitada em julgado à data da entrada em juízo da acção), e nunca foi informado sobre o estado das diligências levadas a cabo para a quantificação dos danos, tendo apenas sido informado, por simples carta, do montante a pagar à Autora/Apelada, em sede de direito de Regresso.
14. Omitindo e descurando por completo qualquer informação ao Réu/Recorrente, incluindo a sua audição ou consulta, durante o período tendente à determinação e quantificação dos danos, a Autora/recorrida excedeu largamente os limites que lhe são impostos pela boa-fé e pelos bons costumes.
15. E não se diga, como resulta da fundamentação da decisão recorrida, que o Réu/Apelante teve a oportunidade de contestar do decurso da acção comum todos os pagamentos efectuados, exercendo plenamente o contraditório.
16. Tal argumento é uma falácia, dir-se-ia até, uma tarefa impossível, inglória e totalmente votada ao insucesso, pois quem conhece a normal tramitação dos processos em sede de direito de regresso sabe perfeitamente da enorme dificuldade em refutar os valores pagos pelas companhias de seguros.
17. In casu, efectuados os pagamentos dos danos e indemnizações aos sinistrados, não se compreende como poderíamos na prática chegar objectivamente a montantes diversos dos suportados pela Autora/Apelada, fixando-se outro quantum indemnizatório quando são reclamados pela Autora/Apelada, por exemplo, a quantia de € 6.581,95, € 492,30 e € 1030,69, decorrentes da IPP de 4,5 % fixada ao condutor do veículo MO, indemnização pela alegada incapacidade temporária e tratamentos médicos, no âmbito da acção especial de acidente de trabalho que correu termos no Tribunal de Trabalho ... sob o n.º 4008/18...., já transitada em julgado à data da entrada em juizo da presente acção, que o Réu/Apelante pura e simplesmente desconhecia, não tendo oportunidade de se pronuncia refutando os factos integradores do pedido e as diligências probatórias realizadas.
18. O mesmo raciocínio e a mesma conclusão em relação à acção comum que o mesmo condutor do veículo sinistrado .., CC, deu entrada no juízo de competência genérica ... – Juiz ..., sob o n.º 119/21...., igualmente transitada em julgado à data da entrada em juízo da presente acção, na qual as partes transaccionaram mediante o pagamento de uma indemnização de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a titulo de danos não patrimoniais, na qual o Réu/Apelante também não teve oportunidade de intervir (nem sequer foi arrolado com testemunha pela aqui Ré/A...).
19. Mais, como poderia o Réu/Apelante no âmbito dos presentes autos comprovar (realizando nomeadamente uma nova perícia técnica) que o veículo MO não se encontrava em situação de perda total, ou seja, refutar que o valor de reparação (€ 6.033,65) era superior ao valor venal atribuído (€ 5.600), quando a peritagem realizada Autora/Apelada não lhe foi oportunamente comunicada nos termos do artigo 36º, n.º 1 , alínea d) do Decreto-lei 291/2007 e o veículo já havia sido vendido para posterior abate (de acordo com as declarações do legal representante do tomador de seguro B..., e do próprio condutor do veículo CC).
20. Aliás, no próprio relatório de averiguação da empresa “P...” de fls_ dos autos consta expressamente a fls 4, cite-se “De acordo com o esclarecimento efectuado pelo Tomador, o veículo conduzido pelo sinistrado foi já vendido para posterior abate.”
21. Acresce que, da mesma forma, a Autora/Apelada realizou uma peritagem ao veículo de ..-RL-.., danos orçamentados e pagos no valor de € 4.609,68, sem que essa mesma peritagem tenha sido comunicada ao Réu/Apelante nos termos legais, afastando-se mais uma vez a possibilidade do Réu contestar os valores orçamentados e exigir uma nova peritagem.
22. Impõe-se, assim, ver revogada a decisão sub judice e, assim, considerar-se ilegítimo o exercício do direito de regresso da Autora/Apelada, por violação do dever de boa-fé na celebração e execução do contrato de seguro, actuando a mesma numa situação de abuso de direito ( 334 do C.C. ).”
Pede a procedência do recurso. Com a revogação da decisão recorrida, no sentido de se considerar ilegítimo o direito de regresso da Autora/Apelada por violação do dever de boa-fé na celebração e execução do contrato de seguro, actuando a mesma numa situação de abuso de direito ( 334 do C.C. ).
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A A. apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1) O DL 291/2007 regulariza a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis e protege os direitos dos lesados dos acidentes de viação, causados pelos veículos seguros.
2) Os artigos 33.º e 36.º do Decreto-Lei 291/2007 são reflexo da necessidade de proteção dos lesados após um acidente de viação.
3) A Recorrida nunca negou prestar qualquer informação, relativamente à regularização do sinistro, tanto ao Recorrente como aos lesados do sinistro, tendo pautado a sua conduta em consonância com legislado no artigo 33.º do DL 291/2007.
4) O Recorrente nunca solicitou qualquer informação à Recorrida.
5) Não existe nenhuma disposição legal que regule, as consequências da falta de comunicação por parte da Seguradora, do estado do processo de regularização.
6) O Recorrente violou o disposto no artigo 34.º do Decreto-Lei 291/2007, que obriga o tomador de seguro a comunicar à Companhia de Seguros o sinistro, sob pena de responder por perdas e danos, agindo de má-fé na resolução e regularização dos danos decorrentes do acidente.
7) Do artigo 36.º nº 1 alínea a), resulta que a comunicação pode ser apenas feita ao lesado, não havendo qualquer obrigação de informar obrigatoriamente o tomador do seguro.
8) Embora a Recorrida não tenha comunicado ao tomador do seguro a assunção da responsabilidade do sinistro, sempre se dirá que mesmo que o Recorrente estivesse informado não tinha poderes para negociar o que pode e quanto pode a Companhia de Seguros pagar aos lesados para reparação dos danos sofridos.
9) As verbas acordadas ao longo de todo o processo, não dependem da vontade do tomador do Seguro, nem poderia a Companhia de Seguros ficar dependente da aceitação do mesmo para regularizar o sinistro.
10)O contrato de seguro automóvel é um contrato obrigatório, por virtude do qual é transferida para a seguradora a responsabilidade civil, no caso, emergente de acidente de viação relativo a determinado veículo automóvel.
11)A seguradora está obrigada a assumir o pagamento dos danos causados pelo veículo seguro, independentemente da vontade do tomador do seguro e, independentemente, de após a regularização do sinistro poder vir peticionar o valor das quantias liquidadas a título de direito de regresso.
12)A Recorrida assumiu o pagamento dos valores emergentes do acidente de trabalho e todas as despesas médicas com o sinistrado, por ter ficado
demonstrado que as lesões do sinistrado advinham do sinistro do qual foi vítima.
13)A Recorrida justificou e provou todos os pagamentos realizados, sendo a presente ação o momento certo e adequado para o Recorrente alegar que tais pagamentos, não decorrem dos danos do sinistro, uma vez que, com o devido respeito, ainda que o Recorrente não concordasse com tais pagamentos, a Recorrida sempre os teria feito.
14)A relevância do Recorrente estar a par da ação intentada pelo lesado contra a Recorrida, não teria influência no valor indemnizatório acordado.
15)Decorre do artigo 41.º n.º 4 do DL 291/2007 que “ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado”.
16)Resulta do supra referido artigo que existem duas partes, necessariamente intervenientes, no acordo relativo ao valor da indemnização pela perda total de um veículo: a companhia de seguros e o lesado, não sendo necessário o consentimento do tomador de seguro
17)Não decorre de qualquer preceito legal que a Recorrida tenha de prestar qualquer informação ao tomador de seguro, nem o manter por dentro do processo de regularização de sinistros.
18)É errado, o entendimento do Recorrente, de que a falta de comunicação da assunção da responsabilidade tenha coartado o seu direito ao contraditório, uma vez que, nos presentes autos o pôde exercer livremente, impugnando quer a dinâmica do sinistro, quer os danos.
19)Ao Recorrente foi dada toda a possibilidade de se pronunciar sobre os factos, tendo tido liberdade para discutir e impugnar os valores despendidos pela Recorrida.
20)O Recorrente não logrou afastar o Dto de regresso que sobre o mesmo impede em 1ª instancia e, por isso, insiste na tese do abuso de direito, em virtude da falta de comunicação da assunção da responsabilidade.
21)Para que haja abuso de direito, em qualquer das suas modalidades, é necessário que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito”.
22)O instituto do abuso de direito tem carater extraordinário e visa limitar o exercício de um direito nas situações de flagrante excesso do mesmo.
23)Não se concede que a falta de comunicação da assunção da responsabilidade pelo sinistro exceda os limites impostos pela boa-fé, e gere uma situação de abuso de direito.
24)Com o que, não concedendo provimento ao recurso, farão V. Exas. a costumada e sempre sã J U S T I Ç A!!”
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se a A. no procedimento prévio de indemnização ao lesado violou deveres para com o R. que a fazem incorrer em abuso de direito, impeditivo do exercício do direito de regresso.
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria, definitivamente fixada dado que não foi apresentada impugnação da mesma:

1. Factos Provados
1) A ora Autora exerce, devidamente autorizada, a indústria de seguros em vários ramos.
2) No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a Autora celebrou com o Réu, um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice n. º ...18, conforme documento junto aos autos a fls. 24 a 76, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
3) Em virtude do qual foi transferida para a Autora a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula ..-DV-.. (..).
4) No dia 06 de março de 2018, pelas 14:35 horas, ocorreu um embate na Estrada ... - também denominada naquele local por Av. ... – ao quilometro n.º 49,300 da mesma, na união das freguesias ... e BB, concelho ... e distrito ...….
5) … Entre o veículo de matrícula DV, conduzido pelo Réu,
6) O veículo de matrícula ..-MO-.. (doravante MO), conduzido por CC, propriedade de B... S.A,
7) … E o veículo de matrícula ..-RL-.. (doravante ..), conduzido por EE, propriedade de L... S.A.
8) O local referido em 4), a Av. ... (E.N ...3), configura uma reta.
9) Na qual é possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros.
10) A faixa de rodagem é composta por duas vias de circulação, uma para cada sentido de marcha, …
11) Separadas entre si, no local do acidente, por linha longitudinal continua demarcada no pavimento.
12) … O piso é asfaltado e, à data referida em 4), encontrava-se em bom estado de conservação, sem lombas ou buracos.
13) No momento referido em 4), as condições meteorológicas eram de “bom tempo”.
14) A velocidade máxima permitida no local da ocorrência é de 50 km/h.
15) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4) a 7), circulava o veículo DV pela Av. ... (E.N ...3), atento o sentido .../...,
16) … circulando à sua frente, na mesma via e sentido, os veículos MO e RL.
17) Ao aproximar-se do km, 49,300 da referida Avenida, o condutor do veículo RL, teve necessidade de abrandar a marcha que imprimia ao seu veículo,
18) … Uma vez que o veículo que o precedia, se encontrava imobilizado na via a aguardar pela possibilidade de mudar de direção à esquerda, em direção a uma propriedade particular ali existente.
19) Tendo o condutor do veículo MO abrandado igualmente a sua marcha.
20) A manobra do veículo que precedia o veículo RL não foi possível de executar com rapidez,
21) … E ambos os condutores dos veículos RL e MO, acabaram por ter de imobilizar os mesmos na via de circulação.
22) O Réu, por sua vez, conduzia o veículo DV, completamente distraído e alheado ao processamento do transito automóvel em seu redor, mormente à sua frente…
23) Devido à TAS de que era portador,
24) … não se tendo apercebido da imobilização do veículo MO e do veículo RL,
25) … e não tendo efetuado qualquer manobra com vista a imobilizar o veículo DV no espaço livre e disponível que tinha à sua frente,
26) … nada tendo feito para evitar o embate entre a frente do veículo DV e a traseira do veículo MO,
27) … o qual veio a ocorrer.
28) Após este primeiro embate e mercê da força do mesmo, o veículo MO, em ato continuo, é projetado para a frente, …
29) … Embatendo com a sua frente na traseira do veículo RL.
30) O réu conduzia o DV com uma TAS de pelo menos 2,751 g/l correspondente à TAS de 2,99 g/l registada.
31) O que provocou uma alteração anormal no estado físico e psíquico do Réu,
32) … e que culminou com a ocorrência do embate descrito em 4) a 7) e 15) a 27).
33) Do embate referido em 4) a 7) e 15) a 27), resultou ferido o condutor do veículo MO, CC.
34) O condutor do MO conduzia o seu veículo no cumprimento do seu horário laboral e no exercício de tarefas inerentes à categoria profissional de vendedor, sob as ordens, direção e fiscalização da proprietária do veículo B..., sua entidade patronal.
35) Após sentir dores, o sinistrado deslocou-se aos serviços do Hospital ..., tendo aí recebido assistência.
36) A Autora pagou os custos com a assistência referida em 35), no valor de €98,91 (noventa e oito euros e noventa e um cêntimos).
37) Da consulta a que o sinistrado, condutor do veículo MO foi, sujeito foram-lhe diagnosticados traumatismos na coluna cervical e lombar, …
38) … apresentando como sintomas cervicalgias e lombalgias.
39) O sinistrado foi então submetido a exames médicos, tendo-lhe sido prescrita medicação para as dores sentidas.
40) Tendo o sinistrado reclamado à Autora as despesas tidas no serviço de urgência do referido Hospital e respetiva medicação prescrita, no valor total de € 56,79 (cinquenta e seus euros e setenta e nove cêntimos),
41) Despesas essas que a Autora lhe pagou.
42) Ainda por força das lesões sofridas, viriam a ser reclamadas à Autora pelo Hospital ... no ..., local onde o sinistrado também foi assistido, as faturas referentes aos serviços prestados, no montante total de € 230,00 (duzentos e trinta euros).
43) Uma vez que o sinistro descrito em 15) a 27) foi simultaneamente acidente de viação e de trabalho, o sinistrado participou o sinistro a congénere A... S.A.,
44) Que o passou a acompanhar nos seus serviços clínicos.
45) Em consequência, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo do Trabalho ... - Juiz ... sob o n.º de 4008/18...., ação especial emergente de acidente de trabalho, interposta pelo sinistrado contra a A... S.A., conforme documento junto aos autos a fls. 96 a 108, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
46) No âmbito da referida ação judicial, resultou provado que o sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho e que ficou portador de uma incapacidade permanente parcial de 4,5% desde o dia .../.../2018, conforme documento junto aos autos a fls. 96 a 108, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
47) Nessa medida, foi a A... Portugal condenada a pagar ao sinistrado a quantia total de € 6.581,95 (seis mil quinhentos e oitenta e um euros e noventa e cinco cêntimos), correspondente ao capital de remissão, respetivos juros e despesas de transporte, conforme documento junto aos autos a fls. 96 a 108, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
48) Mais pagou a Congénere ao sinistrado a quantia de € 492,30 (quatrocentos e noventa e dois euros e trinta cêntimos) a título de indemnização pelas incapacidades temporárias sofridas.
49) Tendo também suportado com tratamentos médicos, assistência medicamentosa e transportes, o valor total de € 1.030,69 (mil e trinta euros e sessenta e nove cêntimos).
50) Despendeu assim a congénere com a regularização do sinistro em apreço a quantia total de € 8.104,54 (oito mil centos euros e cinquenta e quatro cêntimo).
51) Valor que a A. pagou após de ter sido interpelada para o efeito através da convenção de regularização de sinistros entre seguradoras,
52) Ainda por decorrência do sinistro descrito em 15) a 27), correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - juízo de competência genérica ... - Juiz ..., sob o n.º de processo 119/21.... uma ação judicial movida pelo sinistrado contra a ora Autora, através da qual, peticionou uma indemnização a título de danos não patrimoniais, conforme documento junto aos autos a fls. 112 a 125, cujo teor aqui se da por fiel e integralmente reproduzido.
53) No âmbito da referida ação, as partes chegaram a acordo, transigindo pelo valor de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), conforme documento junto aos autos a fls. 112 a 125, cujo teor aqui se da por fiel e integralmente reproduzido.
54) Valor que a Autora pagou ao sinistrado.
55) Do sinistro referido em 4) a 7) e 15) a 27), resultaram danos nos três veículos envolvidos.
56) No veículo MO, o qual sofreu danos em toda a parte frontal (esquerda, central e direita) e toda a parte traseira (igualmente esquerda, central e direita).
57) Foi solicitada pela Autora a realização de uma peritagem, da qual resultou que a reparação do referido veículo, importava a quantia de € 6.033.65 (seis mil e trinta e três euros e sessenta e cinco cêntimos).
58) Na sequência da referida peritagem e atento os danos orçamentados, consideraram os serviços técnicos da A. que o veículo MO se encontrava em situação de perda total nos termos do disposto no art. 41º do DL 291/2007, uma vez que o seu valor venal (5.600,00€) era inferior ao valor orçamentado para a reparação, somado do valor atribuído ao salvado (1.890,00€).
59) Perante a situação de perda total do veículo MO e após acordo com o seu
proprietário, foi pela aqui Autora liquidado a quantia de € 3.710,00 (três mil setecentos e dez euros),
60) A autora liquidou por decorrência do acidente provocado pelo Réu, ao proprietário do veiculo MO a quantia de € 393,60 (trezentos e noventa e três euros e sessenta cêntimos) a titulo de despesas com uma viatura de substituição.
61) No que respeita ao veículo RL, do acidente e conforme se referiu, resultaram danos em toda a parte traseira do mesmo.
62) Após peritagem, efetuada pela Congénere Z... – Sucursal em Portugal, foram os danos orçamentados no valor de 4.609,68 (quatro mil seiscentos e nove euros e sessenta e oito cêntimos).
63) A regularização do sinistro com o pagamento da reparação do veículo RL foi feita pela congénere da A. a Z....
64) Tendo a A., após interpelação no âmbito da convenção CRS, pago à sua congénere a quantia de €4.609,68 (quatro mil seiscentos e nove euros e sessenta e oito cêntimos).
65) Mais suportou a ora Autora a quantia de € 164,95 (cento e sessenta e quatro euros e noventa e cinco cêntimos), a título de gastos de gestão com a regularização do presente sinistro.
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(Da contestação)
66) Nas circunstâncias referidas em 4) a 7) e 15) a 27), o trânsito fluía normalmente, …
67) O Réu, desde que avistou o condutor do veículo MO, circulava na retaguarda do mesmo a uma distância aproximada de 20 metros.
68) À data do sinistro o condutor do veículo ..-MO-.., CC, era vendedor de rações de animais, conduzindo diariamente por vários pontos do país para receber e distribuir encomendas.
69) A autora não comunicou ao réu a assunção da responsabilidade e as diligências adotadas na regularização do sinistro.
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2. Factos Não Provados
(Da contestação)
a) Nas circunstâncias referida em 4) a 7) e 15) a 27), o réu a velocidade inferior a 40 km/hora, …
b) … circulando não só com o imperioso respeito por todas as regras e sinais de trânsito, mas também com toda a atenção e cautela devidos à condução de um veículo em estrada.
c) O condutor do veículo MO, repentinamente, sem reduzir a velocidade, nem dar indicação de que circulava um veiculo à sua frente (acionado lentamente os travões) travou e imobilizou repentinamente o veículo que conduzia.
d) O Réu, confrontado com a travagem repentina do condutor que o precedia, ainda olhou para a faixa esquerda da faixa de rodagem, mas como a mesma se encontrava ocupada com a circulação de outros veículos, colocou o pé no travão para evitar a colisão,
e) O embate descrito a 4) a 7) e 15) a 27) foi suave …
f) E ocorreu quando o DV circulava a velocidade inferior a 20km/horas.
g) Tendo danificado apenas e só o para-choques do DV.
h) O facto de não ter logrado parar o veículo que conduzia em segurança e antes da colisão se deveu ao facto de ter sido surpreendido por manobra imprevisível realizada pelo condutor do veículo ..-MO-...
i) Os danos referidos em 37) e 38) já existiam à data do sinistro referido em 4) a 7) e 15) a 27).
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IV MÉRITO DO RECURSO.

- APLICAÇÃO/DECISÃO DE DIREITO.

O recorrente aceitou a decisão relativa à matéria de facto, assim como a aplicação do regime legal no que concerne aos pressupostos do direito de regresso da A. e valor em causa. Insurge-se apenas, e assim delimita objetivamente o seu recurso, relativamente à parte da decisão que não considerou ilegítimo o exercício do direito de regresso da A. na medida em que foi completamente afastado da participação sobre os procedimentos, instruções e decisões, que foram adoptadas pela A.; e entende que a A. violou o dever de boa-fé na celebração e execução do contrato de seguro celebrado com o R., actuando numa situação de abuso de direito nos termos do artº. 334º do C.C.
Alude, em sustento da sua tese, à violação dos artºs. 33º e 36º do DL nº. 291/2007 de 21/8.
O tribunal recorrido afastou essa argumentação sustentadamente. Adiantamos desde já que concordamos com a posição aí defendida.
Mas vejamos então os nossos argumentos, em reforço do decidido.
Começando por enquadrar a matéria, diz o artº. 334ºdo C.C.: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Esta figura, ainda que não invocada, pode ser conhecida oficiosamente.
A sua justificação prende-se com razões de justiça e de equidade e deriva do facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
O instituto do abuso de direito é uma verdadeira “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o ato ilícito (Ac. do STJ, de 23.1.2014, www.dgsi.pt).
Poder-se-á dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante (Ac. da Rel. de Coimbra, de 9.1.2017, www.dgsi.pt).
Há abuso de direito quando o direito, em princípio legítimo e razoável, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante. De facto, não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório e ofensivo daqueles valores, conforme decorre dos termos do artigo citado.
O “supra” referido Acórdão do STJ guia-nos nos critérios para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, havendo que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo: não é necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso de direito.
Antunes Varela diz que o abuso de direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo -Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241.
O abuso de direito pode revestir as modalidades de “suppressio”, de “venire contra factum proprium” e de desequilíbrio.
O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado. Ou seja, consiste no exercício duma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente que, objetivamente interpretada no confronto da lei, da boa fé e dos bons costumes é ostensivamente violadora da boa fé ou da tutela da confiança da contraparte porque gerou a convicção na outra parte de que o direito não seria por aquele exercido e, com base nisso a contraparte programou a sua atividade. Pressupõe uma situação objetiva de confiança. Ficam ressalvados contudo os casos em que a conduta assenta numa circunstância justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos que determinem o agente a mudar de atitude.
O abuso de direito na modalidade do desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados abrange subtipos diversificados, nomeadamente o do exercício de direito sem qualquer benefício para quem o exerce e com dano considerável a outrem, o da atuação dolosa daquele que vem exigir a outrem o que lhe deverá restituir logo a seguir e o da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem.
A “suppressio” designa a posição do direito subjetivo ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica, que, não tendo sido exercida em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.
A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
A verificação do abuso de direito, na modalidade de “suppressio”, exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua. Reitera-se a exigência do excesso manifesto.
Passando agora para o regime do seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, é o artº. 1º do citado diploma (DL nº. 291/2007 de 21/8) que nos diz que “O presente decreto-lei aprova o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.”
Ora, o que esteve em causa primordialmente foi a “…actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro, que se justifica desde há muito.” –cfr. preâmbulo do diploma.
E, na atuação das seguradoras face aos lesados por acidente de viação, o que se pretende assegurar é o seu pronto ressarcimento. É disso que tratam os artºs. 31º e segs. do diploma –cfr. artº. 31º -“O presente capítulo fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de -forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.”.
Para atingir essa finalidade consagraram-se deveres da seguradora, mas também do tomador do seguro e do segurado.
O direito que a seguradora exerce neste processo é o direito de regresso contra o condutor “…quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos –artº. 27º, nº. 1, c).”.
Logo aqui nos deparamos com a inconsistência da invocação do abuso de direito, pois o R. vai buscar às normas que visam a proteção do lesado, e nesse sentido impõe deveres à seguradora para com o lesado, o fundamento do abuso do direito –o exercício abusivo do direito de regresso.
E desde já afastamos também o artº. 33º como “fonte” de um qualquer abuso pois os princípios que aí se estabelecem são gerais (da atuação das seguradoras) e não dirigidos em específico aos segurados ou aos tomadores do seguro.
É verdade que o artº. 36º refere contatos, comunicações e informações, quer ao tomador, quer ao segurado, quer ao lesado. Contudo, desde logo não pode ser lido sem a introdução do seu nº. 1: “1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:”; ou seja, estabelece-se uma relação entre o dever da comunicação por parte dos tomador e/ou segurado e nessa sequência os deveres de contato, atuação, comunicação, informação. Veja-se nesse contexto o artº. 34º. Veja-se ainda o disposto no artº. 44º, nº. 3. E ainda o artº. 86º, nº. 1: “A infracção ao disposto nos n.os 1, 5 e 6 do artigo 36.º, nos n.os 1 a 3 e 6 do artigo 37.º, nos artigos 38.º a 40.º e nos n.os 1 e 5 do artigo 42.º constitui contra-ordenação punível com coima de (euro) 3000 a (euro) 44 890, quando não exista sanção civil aplicável.”
Nada disto sucedeu no caso, em que, se é certo que (69) “A autora não comunicou ao réu a assunção da responsabilidade e as diligências adotadas na regularização do sinistro”, também é certo que nada nos é dito quanto a quem comunicou o sinistro à A., nomeadamente se o R. o fez –o que lhe competia alegar concomitantemente com a violação dos ditos deveres.
Mas pergunta-se ainda: em que é que a eventual violação desses deveres, a serem ainda assim impostos, interfere com o exercício do direito de regresso? E, se interferir, em que medida (e modalidade) é que poderia conjeturar-se o abuso de direito?
O R. não o diz. E não diz porque efetivamente uma coisa não tem a ver com a outra.
Como já dissemos, o que se visa nos artºs. 31º e segs. é proporcionar uma resposta pronta e célere na resolução dos sinistros, o que favorece o lesado em primeiro lugar, mas também não deixa de favorecer o tomador e/ou segurado na medida em que a regularização do sinistro “liberta” todos os envolvidos e deixa todos na posição de poder agir contra outros eventuais responsáveis, bem como se tem em vista princípios de ordem pública e de realização da justiça.
O R. alude genericamente à violação do dever de boa-fé na celebração e execução do contrato de seguro, bem como à violação dos bens costumes. Mas, mais uma vez, não é isso que está aqui em causa, estando a “misturar” deveres legais com atuações contratuais que não contextualiza.
De todo o modo, sempre se dirá que não decorre do mero incumprimento daqueles deveres uma ofensa ao princípio da boa fé ou dos bons costumes na execução do contrato.
Cabe tecer ainda duas notas face ao teor das alegações de recurso.
-O R. em momento algum da sua contestação alude à violação do dever de informação das condições de exercício do direito de regresso, pelo que a alusão que faz a essa questão nas alegações, através da menção da violação da boa fé na celebração do contrato e com tal pretendendo introduzir a violação do dever de informação/comunicação de cláusulas contratuais (gerais, em contrato de adesão), não é mais do que a introdução de uma questão nova, que não foi tratada em 1ª instância e que por isso não pode ser reponderada nesta sede; é questão nova uma questão não sujeita à discussão do tribunal recorrido. Conforme é referido por António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª edição, pags. 107 a 110), o recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Processo Civil”, 2ª edição, pág. 395), não pode deixar de se ter presente que tradicionalmente seguimos, em sede de recurso, no âmbito do processo civil, um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.
-Ao referir-se ao facto de não ter sido parte nas ações que correram e em que foram realizadas diligências e efetuados pagamentos cujo reembolso é aqui pedido, não está a ponderar corretamente a legislação em apreço; de facto, reproduzimos aqui o que a propósito foi dito no Ac. desta Relação de 3/11/2022, em que a qui relatora e o 1º adjunto foram ali adjuntos (relatora Rosália Cunha, www.dgsi.pt): “No caso de ser interposta uma ação judicial destinada à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer seja em processo civil quer em processo penal, e em caso de existência de seguro, a mesma deve ser deduzida obrigatoriamente:
a) só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório;
b) contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior (art. 64º, nº 1, als. a) e b).
Deste regime resulta que, em situações de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação em que haja seguro obrigatório e os danos não excedam o capital mínimo legalmente estabelecido para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, cujo valor está definido no art. 12º, o processo extrajudicial ou judicial tendente ao ressarcimento e indemnização dos danos sofridos decorre diretamente entre a seguradora e o lesado, sem intervenção da pessoa civilmente responsável.
De forma alinhada com a anterior solução, decorre do art. 146º, nº 1, do DL n.º 72/2008, de 16 de abril, diploma que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro (LCS), que, nos casos de seguro obrigatório, o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização diretamente ao segurador.
Porém, enquanto a norma do art. 146º da LCS confere ao lesado uma mera faculdade, permitindo-lhe, mas não lhe impondo, que demande diretamente a seguradora nos casos dos seguros obrigatórios em geral, já as normas atrás citadas do DL n.º 291/2007 são imperativas no sentido de que impõem a demanda direta e exclusiva da seguradora desde que se trate de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e a indemnização se contenha dentro dos limites do capital obrigatório.
Por conseguinte, nestes casos, o lesado só pode pedir a indemnização à seguradora, e não ao causador do acidente. Ou seja, a relação desenrola-se diretamente entre o lesado e a seguradora, figurando esta, por força da lei, no lugar do lesante e civilmente responsável.
De todo o regime do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel ressalta que foi preocupação do legislador salvaguardar os interesses dos lesados, fazendo a seguradora intervir como garante da indemnização devida, a qual, por força do contrato de seguro, suporta definitivamente o pagamento da indemnização, com ressalva dos casos excecionais em que a lei lhe confere direito de regresso e que se encontram previstos no art. 27º.”. Portanto, o segurado não foi nem podia ser parte na ação em que foi parte a A., por imposição legal, muito menos na que decorre da relação laboral.
Mas, a propósito da possibilidade de influenciar a posição da seguradora, destacamos a obrigação do tomador e do segurado prevista no artº. 34º, nº. 1, a), com destaque nosso :1 - Em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o segurado, sob pena de responder por perdas e danos, obriga-se a: a) Comunicar tal facto à empresa de seguros no mais curto prazo de tempo possível, nunca superior a oito dias a contar do dia da ocorrência ou do dia em que tenha conhecimento da mesma, fornecendo todas as indicações e provas documentais e ou testemunhais relevantes para uma correcta determinação das responsabilidades;”. Portanto, em fase alguma do procedimento, o segurado, que cumpra o dever de comunicação do sinistro (ou ainda que não o faça prontamente, diremos nós) está impedido de “influenciar” a posição da seguradora. O que não pode é, não o tendo feito, invocar agora o decurso do tempo e seus efeitos como fator de desvantagem/impedimento de discutir na plenitude os danos sobrevindos.
Atento aquilo que é dito pelo R., o que este parece querer invocar é a violação do exercício do direito ao contraditório, visto este enquanto poder de influenciar a decisão, neste caso de indemnizar ou não, e do valor indemnizatório na afirmativa -e numa conceção ampla do princípio, que emana do direito constitucional de direito de acesso à justiça num sistema equitativo e participado conforme ao artº. 20º, nº. 4, Constituição da República Portuguesa.
Porém, também isso não é verdade.
A seguradora, por força do contrato de seguro celebrado com o seu segurado e desde que este se mostre válido e em vigor à data do acidente, paga a indemnização devida pelos danos por ele causados, em acidente de viação da sua responsabilidade, e assume integralmente esse pagamento sem nada exigir do seu segurado. Isto decorre do facto de o nosso sistema legal ter instituído o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, inspirado no sistema da socialização do risco –cfr. artºs. 146º a 148º da Lei do Contrato de Seguro aprovada pelo DL nº. 72/2008, 16 de Abril, e artº.s 1º, 4º e 12º, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
O contrato de seguro é bilateral e sinalagmático, e neste caso investe a seguradora na obrigação de pagar as indemnizações que sejam devidas pelo seu segurado, pois que este, através desse contrato, remete para a seguradora o risco da ocorrência de sinistros. Á obrigação de suportar o risco que constitui a prestação da seguradora corresponde por parte do segurado a obrigação de pagar o prémio.
Diferentemente da generalidade do seguro de responsabilidade civil, em que o segurador assume tão-só face ao segurado (e não perante terceiro) a obrigação de se lhe substituir no pagamento de indemnizações a terceiros, no contrato de seguro obrigatório, o terceiro adquire o direito à prestação a cumprir pelo segurador, mediante a celebração do contrato entre segurado e seguradora –cfr. Maria Clara Lopes, “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, pag. 20.
Contudo, em determinados casos, a lei atendeu à responsabilidade individual do interveniente no acidente, impondo-lhe a obrigação de ressarcir ou reembolsar a seguradora da indemnização paga ao lesado –cfr. artº 27º, n.º 1 do DL nº. 291/2007 e artº. 144º do DL nº. 72/2008 de 16/4.
Diz Maria Amália Santos (“O direito de regresso da seguradora nos acidentes de viação”, Julgar Online Novembro 2018, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/11/20181126-O-direito-de-regresso-da-seguradora-nos-acidentes-de-via%C3%A7%C3%A3o-Maria-Am%C3%A1lia-Santos.pdf, pags. 5 e 6 que “…o alcance social do seguro obrigatório, como regime indicado para a protecção dos lesados, tem aqui desvios quanto à assunção da responsabilidade, com a criação do direito de regresso a favor das seguradoras. E porque de um direito especial se trata, ele tem de ser invocado e demonstrado (em ação autónoma) nos termos gerais do direito, pela seguradora demandante, recaindo sobre si o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito; nenhuma disposição legal veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova, ou prevendo qualquer outro circunstancialismo que se desvie do regime geral. Ou seja, a seguradora terá de demonstrar judicialmente os pressupostos do direito de regresso invocado”.
O direito de regresso é um direito novo de que é titular a seguradora que, por via do pagamento da indemnização que efetuou, extinguiu a relação creditícia anterior, isto é, aquela que o terceiro lesado tinha perante o lesante ou sua seguradora. Seguimos em alguns pontos o teor do Ac. da Rel. de Lisboa de 5/4/2022 (relatora Micaela Sousa, www.dgsi.pt).
Já se dizia no âmbito do DL. Nº. 522/85 de 31/12 (revogado e substituído pelo DL nº. 291/2007), conforme Ac. do STJ 0/5/2003 (relator Nuno Cameira, www.dgsi.pt) que “…o direito que a seguradora exerce na acção de regresso prevista no artº 19º, c), do DL 522/85, de 31/12, não é um direito igual, idêntico, um direito por assim dizer decalcado sobre o do lesado que indemnizou. A acção de regresso não é uma acção de indemnização por danos - é uma acção em que a seguradora exige o reembolso do que pagou porque o risco que contratualmente assumiu não se compagina, mesmo do ponto de vista ético-jurídico, com os comportamentos do segurado tipificados naquele texto legal (condutores que abandonam sinistrados, que não têm habilitação legal para conduzir, que agem sob a influência do álcool, etc). O direito de regresso, ao fim e ao cabo, visa de certa forma repor o equilíbrio contratual sacrificado pelo carácter obrigatório do seguro e pela declarada intenção do legislador de assegurar antes de tudo o mais a protecção adequada das vítimas de acidentes. Pode dizer-se que é um direito novo, surgido com a extinção da obrigação de indemnizar o lesado assumida pela seguradora, e cujos pressupostos, por isso, não são inteiramente coincidentes com os daquele. O segurado, em tal caso, tem de pagar à seguradora o que esta pagou aos lesados porque se verifica o fundamento do regresso. Fundamento que aqui se traduz no facto de o réu ter causado o acidente que ocasionou os danos e o pagamento da indemnização subsequente por ter agido sob a influência do álcool. Apresentando-se as coisas deste modo, então deve considerar-se que os factos constitutivos do invocado direito de regresso terão de ser, visto o artº 342º, nº 1, do CC:
O facto do pagamento aos lesados;
O facto de o lesante ter agido sob a influência do álcool;
O facto de ter havido nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o acidente que originou os danos;
O facto de o lesante ter tido culpa na produção do acidente.
Isto é o que a seguradora precisa de provar para ver a sua pretensão acolhida.
Dito por outras palavras, cabe-lhe a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável - o artº 19º, c), do DL 522/85 - servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido; os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto desenhada na norma material em que funda a sua pretensão. Tais factos são os acima indicados. (…)
Ao segurado, por seu turno, se quiser eximir-se à obrigação, caberá demonstrar que a companhia de seguros pagou mais do que o devido, ou o que não era devido, alegando para tanto os factos correspondentes a essas causas impeditivas, modificativas ou extintivas da pretensão deduzida: é o que resulta do artº 342º, nº 2, do CC.
Esta distribuição do ónus da prova ajusta-se perfeitamente, em nosso entender, ao critério da normalidade que serve de princípio orientador nesta matéria; segundo ele, quem invoca um direito deve provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária, por seu turno, deverá provar os factos anormais, ou seja, aqueles que excluem ou impedem a eficácia dos primeiros. Aplicando-o ao caso sub judice temos que, demonstrado o pagamento da quantia indemnizatória por parte da autora (facto que está na raiz do reembolso pedido), o réu, se entendesse que este direito não era fundado, teria que provar que a seguradora pagou mal - que pagou o indevido - alegando para esse efeito os factos materiais pertinentes; não poderia limitar-se a afirmar inconcludentemente, como fez, que foi "marginalizado" no processo que conduziu ao pagamento efectuado”.
No âmbito da lei atual diz-se no Ac. da Rel. de Coimbra de 26/6/2020 (relator Isaías Pádua, www.dgsi.pt) que “…conforme resulta do citado artº. 27º, nº. 1, al. c), do DL nº. 291/2007, de 21/08, constituem pressupostos (cumulativos) do direito de regresso pela seguradora contra o condutor de veículo:
a) Que a seguradora tenha pago/satisfeito uma indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado;
b) Que o condutor desse seu veículo tenha (culposamente) dado causa ao acidente;
c) E que o condutor desse seu veículo segurado fosse então portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida/permitida.
Pressupostos esses que, como factos constitutivos do seu invocado direito, incumbe à seguradora o ónus de alegar e provar (artº. 342º, nº. 1, do CC).”
Parece-nos que as posições são compatíveis, continuando a não estar vedado no caso ao R. a prova, na ação de regresso, que a A. pagou mal, não só porque falhava algum dos pressupostos da responsabilidade civil, mas também porque os danos não eram na dimensão do que foi ressarcido.
Foi claramente esta a posição assumida na sentença recorrida que diz: “Ao réu, por sua vez, caberá demonstrar ao abrigo do disposto no artigo 342º, nº 2 do Código Civil, que o sinistro não se deveu a culpa sua ou que a seguradora pagou mais do que o devido.”
E foi o que tentou discutir nos autos (quanto à primeira questão e nomeadamente quanto à sua responsabilidade na eclosão do acidente e à existência de danos, já não quanto à segunda pois que invocou que os danos não eram aqueles mas não se referiu concretamente ao desajuste dos valores), matéria em que falhou.
Isto posto, e em forma de síntese, cremos que:
- o exercício do direito de regresso da seguradora não se correlaciona com o (des)respeito pelos deveres de contacto, comunicação e informação na condução do procedimento indemnizatório junto do lesado, pelo que não se pode configurar um exercido abusivo do direito com esse fundamento;
- ainda que o segurado não tenha participado nesse processo de regularização do sinistro, não lhe está vedado o exercício do direito de contradizer os pressupostos relativos á sua responsabilidade no ocorrido, bem como o âmbito dos danos ressarcidos ao lesado.
Assim sendo e concluindo, conforme Ac. da Rel. de Lisboa de 21/01/2021 (relator Nuno Lopes Ribeiro, www.dgsi.pt), face aos artºs. 4º e 64º, nº. 1, a) do DL nº. 291/2007, e concluindo-se pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil previsto no artº. 483º do C.C., a seguradora encontrava-se obrigada a satisfazer ao lesado os danos decorrentes do acidente de viação em causa, o que fez. E tendo efetuado o pagamento da indemnização ao lesado nos termos sobreditos, pretende agora por via desta acção exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo em virtude de este ter dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida –artº. 27º, nº. 1, c), do diploma, e ultrapassada aqui a questão da necessidade de prova do nexo causal entre o acidente e o efeito do álcool, matéria sobejamente tratada na jurisprudência, mesmo depois do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, nº. 6/2002 de 28/5 (in Diário da República n.º 164/2002, Série I-A de 2002-07-18) e face à defesa da sua caducidade com a entrada em vigor do novo regime instituído pelo diploma a que nos vimos referindo –cfr. o nosso Ac. de 2/6/2022, processo 7815/19.4T8VNF.G1.
Feita a prova dos respetivos pressupostos e na ausência de verificação de causa excludente do exercício do direito, a ação procedeu nos termos determinados e o recurso deve improceder face á sua confirmação.
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V DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso do R. totalmente improcedente, e em consequência, negam provimento à apelação, mantendo a sentença recorrida.
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Custas a cargo do R./recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 30 de novembro de 2022.

Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro