UNIÃO DE FACTO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRESSUPOSTOS
ESCRITURA PÚBLICA
DECISÃO
Sumário


A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. AA, de nacionalidade portuguesa, e BB, de nacionalidade brasileira, vieram requerer a confirmação da escritura pública declaratória de união estável, outorgada pelos requerentes perante cartório notarial brasileiro, o que fazem com o propósito da 2.ª Requerente obter a nacionalidade portuguesa, conforme exigido pelo Art. 3.º n.º 3 da Lei n.º 37/81 e pelo Art. 14.º n.º 2 do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Dec.Lei n.º 237-A/2006.

Foi dado cumprimento ao disposto no Art. 982.º n.º 1 do C.P.C., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal dado parecer no sentido de que estão reunidos todos os requisitos legais para ser concedida revisão e confirmação de sentença estrangeira.

Os Requerentes nada vieram alegar.


2. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a considerar que a questão suscitada “em face da manifesta discordância existente sobre ela nos tribunais superiores, não poderá ser apreciada em decisão sumária liminar, ao abrigo das disposições conjugadas dos Art.s 656.º e 982.º n.º 2 do C.P.C., impondo-se assim que seja proferida decisão em coletivo”, o que veio a suceder mediante prolação de acórdão em 9 de novembro de 2021.

Aí se decidiu: “…julgar a presente ação totalmente improcedente, indeferindo o pedido de revisão e confirmação de sentença.”

O acórdão teve um voto de vencida, onde se declara:

Embora perfilhe o entendimento que a escritura pública declaratória de união estável lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro é um ato equiparado a sentença, podendo ser objeto de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos dos arts. 980º e ss. do CPC, entendo que, no caso concreto, não é de deferir a revisão, porquanto a presente ação não é o meio processual próprio para cumprir o requisito previsto no art. 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade”.


3. Do acórdão do TR veio interposto recurso de revista, no qual se formulam as seguintes conclusões (transcrição):

I. Os requerentes, ora Recorrentes, intentaram a presente acção especial, pedindo que seja revista e confirmada a Escritura Pública de União Estável celebrada perante a Escrevente Notarial do 22.º Tabelionato de Notas, CC, na cidade e comarca ..., no Brasil, em 19.05.2021, que declarou e reconheceu juridicamente a união estável dos Requerentes (conforme certidão já junta ao Processo).

II. O Ministério Público emitiu parecer favorável, considerando estarem reunidos todos os requisitos legais para ser concedida revisão e confirmação de sentença estrangeira.

III. Não obstante, o Tribunal Relação de Lisboa, Tribunal recorrido ou Tribunal ad quo, indeferiu o pedido formulado pelos Requerentes, ora Recorrentes, por considerar, em suma, (i) que a escritura pública de união estável, outorgada em 19.05.2021, não contém qualquer decisão, nem mesmo uma decisão meramente homologatória, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira; e (ii) que a acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, que tem por objecto uma escritura pública declarativa de união de facto, é meio processual inadequado para preenchimento do requisito legal previsto no artigo 3.º, n.º 3, Lei da Nacionalidade, para efeitos de aquisição de nacionalidade portuguesa.

IV. Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com tal entendimento.

V. O Tribunal ad quo fez uma incorrecta apreciação de matéria e qualificação jurídica, soçobrando, consequentemente, na interpretação e aplicação das normas de direito, em relação à questão fundamental em análise: a questão de saber se a escritura pública de declaração de união estável consiste numa decisão sobre direitos privados susceptível de revisão e confirmação.

VI. Na óptica dos Recorrentes, a decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente os normativos constantes dos artigos 978.º e seguintes., do Código de Processo Civil.

VII. Com efeito, o artigo 978.º, do Código de Processo Civil, tem amplitude suficiente para abranger decisões, ainda que não provindas de um órgão jurisdicional, quando no país estrangeiro seja outra a entidade competente por tais decisões.

VIII. Assim a questão tem sido apreciada de forma pelos Tribunais Superiores, designadamente nos Acórdãos Supremo Tribunal Justiça, Proc. n.º 896/18.0YRLSB.S1, Relator: ALEXANDRE REIS, de 29.01.2019; Proc. 1884/19.4YRLSB.S1, Relator: JORGE DIAS, de 08.09.2020; Proc.47/20.0YRGMR.S1, Relator: M.ª CLARA SOTTOMAYOR, de 13.10.2020, que por brevidade se dão em sede de conclusões por reproduzidos.

IX. A união estável é erigida à qualidade de entidade familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas.

X. A escritura pública – como foi o caso – integra um verdadeiro contrato cível, designadamente com disposições sobre as relações patrimoniais entre os companheiros.

XI. Esse contrato pode ser objecto de registo, colhendo, então, efeitos perante terceiros.

XII. A lei equipara a extinção consensual da união estável ao divórcio consensual, podendo efectuar-se por escritura pública, a qual não depende de homologação judicial.

XIII. Ou seja, a ordem jurídica brasileira atribui efeitos e reconhece a união estável, formalizada por escritura pública, sem necessidade de intervenção judicial.

XIV. E, no que tange quer à extinção do casamento por divórcio consensual, quer à extinção da união estável, não exige que as escrituras públicas que os determinam sejam objeto de homologação judicial.

XV. Ora, o alcance do termo “decisão” relevante para efeitos do artigo 978.º, n.º 1, CPC, foi apreciado, entre outros, sem excluir, pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.05.2013, no Proc. 687/12.1YRLSB.S1 e de 25.06.2013, no Proc.623/12.5YRLSB.S1, revelando uma jurisprudência reiterada e uniforme, no sentido de que tal conceito abrange não só casos de “emissão formal de vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório”, mas também, casos em que não há exactamente uma emissão formal de vontade – em que há, tão só, “um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”.

XVI. Daqui resulta que, sendo admissível a formalização da união estável no Brasil, através de escritura pública perante tabelião, como foi o caso dos presentes autos, a intervenção e controle feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de entidade que cauciona o acto, ao qual são atribuídos efeitos precípuos pela ordem jurídica brasileira.

XVII. A intervenção do tabelião de notas, no âmbito da escritura de união estável, é ainda uma intervenção integrante de uma função pública atribuída e transferida pelo Estado ao particular, por meio de delegação de competências administrativa sui generis.

XVIII. Isto é: a intervenção do notário assume a natureza de caucionamento do acto, na sequência de delegação de administrativa de competências pelo Estado brasileiro.

XIX. A intervenção notarial permite a produção efeitos na ordem jurídica brasileira, tal como se tivesse sido objecto de declaração judicial em sentido estrito, estando mesmo a actividade notarial sujeita à fiscalização e supervisão do Poder Judiciário do Estado.

XX. Em suma, a outorga da escritura pública de união estável perante o cartório, a função deste e o controlo da actividade notarial pelos Tribunais do Brasil são susceptíveis de equivaler aos requisitos de acto jurisdicional (v. neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.12.2019, Proc. 1807/19.0YRLSB-7).

XXI. Sobre o conceito de “decisão sobre direitos privados”, na esteira do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.10.2020, Proc. n.º47/20.0YRGMR.S1, seguiremos ainda o entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.2019, Proc. n.º 896/18.0YRLSB.S1, por considerarmos uma posição conforme à promoção dos direitos familiares /pessoais dos indivíduos e à protecção das expectativas, bem como à garantia de continuidade e segurança das relações jurídicas familiares, aqui particularmente relevantes.

XXII. Flui de todo o exposto, que a escritura pública em causa nos autos integra “decisão sobre direitos privados”, nos termos e para os efeitos do artigo 978.º, n.º 1, CPC, estando sujeita a revisão.

XXIII. Portanto, mesmo que a intervenção da autoridade prevista na lei brasileira se limite tão-somente à verificação da prática do acto e à sua regularidade formal, e não ao proferimento de uma “decisão”, tal significa o caucionamento pela ordem jurídica do acto em causa e ele pode ser revisto como se fosse uma sentença para os efeitos do art. 978.º, do Código de Processo Civil.

XXIV. De facto, e como resulta dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2013, supra citados, não releva que o reconhecimento da união estável se tenha produzido de maneira contratual apenas através das declarações dos outorgantes; antes bastando que se trate de um ato caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido.

XXV. Como tal, a revisão pedida é necessária nem que seja do ponto de vista da prática e, o conteúdo do art. 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil tem amplitude suficiente para abranger resultados de procedimentos legais previstos no estrangeiro, dirigidos por entidades administrativas, não judiciais, mesmo que esse procedimento se limite a lavrar, registar ou exarar escrituras públicas ou declarações dos particulares.

XXVI. Em face dos elementos constantes dos autos não se suscita qualquer dúvida sobre a autenticidade do instrumento notarial revidendo, nem sobre sua inteligibilidade.

XXVII. A escritura de união de facto foi lavrada pela entidade brasileira legalmente competente para o efeito e tal competência não foi provocada em fraude à lei, sendo válida segundo o ordenamento jurídico do país onde foi proferida (Brasil) e para que possa produzir efeitos em Portugal, porquanto vincula um cidadão português.

XXVIII. Não há exceções de litispendência ou caso julgado, nos termos e para os efeitos da lei do país de origem.

XXIX. O seu reconhecimento não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

XXX. Pelo que, nada obsta à revisão e confirmação da escritura de união estável em causa.

XXXI. Realmente, o obstáculo que na decisão recorrida foi oposto à pretendida confirmação não se prende com o resultado desta, em si mesmo, mas com o que eventualmente, poderia advir da aquisição da nacionalidade portuguesa, apenas com base na escritura.

XXXII. Porém, não desconsiderando a probabilidade de a finalidade última dos requerentes ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, sendo, pois, previdente o argumentado pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, por ora, apenas vem pedida a revisão e confirmação de escritura.

XXXIII. Pelo que, deve a acção especial de revisão de sentença estrangeira que tem por base a escritura pública declaratória de união estável outorgada no Brasil, em conformidade com as regras do direito civil brasileiro, e não se verificando qualquer dos óbices formais previstos no artigo 980.º, CPC, ser objecto de revisão e confirmação pelo Tribunal, produzindo os seus efeitos perante o ordenamento jurídico português.

XXXIV. Uma solução que é exigida pelo princípio da igualdada e da não discriminação, já que, negando este reconhecimento, como supra se transcreveu, “está-se a discriminar o indivíduo em razão da forma pela qual escolheu constituir família, já que não há dúvida de que um outro indivíduo que constituiu família através do casamento pode averbar esse casamento no seu registo de nascimento.

XXXV. A decisão recorrida fez desadequada aplicação do direito, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra em que, a escritura de declaração de união estável, seja revista e confirmada, com todas as consequências legais, designadamente, o reconhecimento da união por ela decretada, produzir em Portugal todos os seus efeitos.

XXXVI. O douto Acórdão recorrido, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos artigos 978.º e 980.º, do Código Processo Civil e 36.º,n.º 1,da Constituição.


4. O recurso foi admitido pelo Exmo senhor Desembargador relator:

Por estar em tempo, porque a decisão é recorrível, por assistir legitimidade aos Recorrentes, admitimos o recurso, que é de revista, a subir nos autos, de imediato, com efeito meramente devolutivo (Art.s 985.º n.º 1, 627.º, 629º n.º 1, 631º, 638º n.º 1, 671.º n.º 1, 674.º, 675.º n.º 1 e 676.º n.º 1 “a contrario” do C.P.C.).

- Notifique.”


5. O digno representante do MP proferiu parecer onde afirma:

(cópia)

A magistrada do Ministério Público neste Tribunal, notificada das alegações de recurso apresentadas no processo supra referenciado, vem dizer o seguinte:

- Em coerência com a posição manifestada nas alegações apresentadas no âmbito do art. 982º do C. Processo Civil, considera não ser este o momento e o espaço para responder ao recurso apresentado, de modo a ele se opor ou com ele concordar, na íntegra.

- Sempre se dirá, porém, que o Ministério Público não é indiferente ao cerne da questão central controvertida, que é a da aquisição da nacionalidade portuguesa como efeito (entre outros) da revisão de uma escritura de união estável, celebrada, no caso, à luz do direito brasileiro.

- Entende-se, como ficou expresso em vários processos nos quais tal questão é abordada, que a revisão/confirmação de escritura pública de união estável não deverá ser equiparada a decisão proferida nos tribunais portugueses sobre a verificação de união de facto para efeitos de aquisição imediata da nacionalidade, pois que esta pressupõe um processo cujos trâmites exigem a produção de prova, o que não acontece na referida escritura (reflexo de uma simples declaração).

- Para esse efeito, a escritura revista continua, pois, a tratar-se de documento de prova, tal como já o é, se não for objecto de revisão.

- No entanto, considerando que a escritura pode produzir outros efeitos, e quando, num processo concreto – como acontece no presente caso – a questão da aquisição da nacionalidade não foi colocada, quer como constando do pedido, quer como efeito último visado com a pretendida revisão, nem sempre se considerou necessário aludir à limitação dos efeitos a produzir, mais concretamente ao da aquisição da nacionalidade (confiando que a autoridade competente para apreciar o pedido de nacionalidade a levaria em conta).

- Em suma, embora nada a este propósito se tenha dito no âmbito do cumprimento do disposto no art. 982º do C. Processo Civil, por não se ter, na altura, considerado necessário, concorda-se com o sentido último do Acórdão proferido nos presentes autos ao limitar os efeitos da revisão.

- A posição constante do Acórdão recorrido, de resto, situa-se num ponto mitigado entre as duas posições opostas que têm dividido a jurisprudência a este respeito, a saber:

1 - a que conclui não existirem motivos para negar a revisão (sem qualquer limitação), por estarem reunidos todos os requisitos referidos no art. 980º do C. Processo Civil, incluindo o constante da alínea f), da qual são exemplos, os Acórdãos do STJ de 26-09-2017 e de 29-01-2019, o Acórdão do TRL de 11-12-2019 (processo nº 1535/19.7YRLSB) e o Acórdão do TRL de 25- 01-2022 (Processo nº 162/22.6YRLSB);

2 - a que conclui em sentido oposto, conclusão essa baseada quer na falta de interesse em agir (que importará absolvição da instância), quer, sobretudo, no facto de estarmos perante um simples meio de prova, sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal – mormente o da aquisição da nacionalidade - pelo que a mencionada escritura fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira nos termos do artigo 978º nº 2 do C. Processo Civil -, da qual são exemplos os Acórdãos do STJ de 28-02-2019, 21-03-2019, 09-05-2019 e 12-11- 2020, e vários Acórdãos do TRL, nomeadamente o de 08-02-2022 (Processo nº 2751/21.7YRLSB).

- Com este enquadramento, confia-se na Justiça que V. Exªs, Senhores Juízes Conselheiros, certamente farão.”

(fim de cópia)


6. Por despacho de 22 de Abril de 2022, a relatora junto deste STJ ordenou a suspensão do processo por estar pendente um RUJ, o que fundamentou nos seguintes termos:

No processo 151/21.8YRPRT.S1-A, por despacho de 24 de março de 2022, foi admitido o Recurso de Uniformização de Jurisprudência no qual veio invocada contradição de acórdão do STJ relativa à questão que também é suscitada na presente revista, dizendo-se:

“Na verdade, no Acórdão recorrido entendeu-se que: “A declaração exarada numa “Escritura Pública de Declaração de União Estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião), limita-se a confirmar as declarações prestadas pelos outorgantes, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir, daí que, não se poderá reconhecer que aquele documento conquanto apelidado de “escritura pública” esteja compreendida, enquanto “decisão”, pelo normativo adjectivo civil decorrente do citado artigo 978.º, n.º 1, do CPC, devendo apenas ser valorado como meio probatório, sujeito à livre apreciação do julgador, não possuindo, por isso, força de caso julgado, não tendo virtualidade para poder ser confirmada/revista pelos Tribunais portugueses”, ao passo que o Acórdão fundamento, proferido em 8 de setembro de 2020, no âmbito do Processo n.º 1884/19.4YRLSB.S1, perfilhou-se orientação divergente, no sentido de que “Uma escritura pública de declaração de união estável, outorgada no tabelião de notas que refere “Os contratantes reconhecem expressamente o facto de estarem vivendo como se casados fossem desde janeiro de 2005 e que “Assim o disseram, dou fé, pediram-me e lhes lavrei este instrumento, o qual feito e lido em voz alta, foi achado conforme, aceitaram, outorgam e assinam juntamente com as testemunhas a todo o ato presentes”, é suscetível de ser revista e confirmada, nos termos do artigo 978.º e ss.do CPC.


7. Em Outubro de 2022, o Recurso de Uniformização de Jurisprudência relativo ao processo 151/21.8YRPRT.S1-A foi decidido (e já transitou em julgado), tendo sido uniformizada jurisprudência nos seguintes termos:

A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.”


II. Fundamentação

De facto

8. No acórdão recorrido os factos relevantes e a partir dos quais a decisão foi tomada foram os seguintes:

1 - Por escritura pública declaratória de união estável, outorgada no livro n.º ...16, página 065, a 19 de maio de 2021 no 22.º tabelião de Notas da Capital, cidade e comarca ..., no Brasil, e perante a escrevente notarial, os Requerentes, BB, nascida em .../.../1959, brasileira, divorciada, …, e AA, nascido em .../.../1948, brasileiro, divorciado, declararam que: «após manterem uma relação de namoro desde 2011, passaram a viver de forma pública, contínua e duradoura em união estável desde maio de 2013».

2 - Consta do assento de nascimento n.º 319-F, fls. 160, da Conservatória de Registo Civil ... que AA, nasceu no dia .../.../1948, em ..., ..., Brasil, filho de DD e EE, tendo o seu casamento com FF sido dissolvido por divórcio decretado por sentença de 15 de abril de 2011.

3 - Consta da “certidão de nascimento” do Registo Civil da Municipalidade de cidade ... que GG nasceu em ..., ..., no dia .../.../1959, filha de HH e de II.

4 - Consta de Certidão emitida pelo ..., ..., ..., que o Ministro da Justiça da República ... concedeu naturalização a BB a fim de poder gozar dos direitos outorgados pela Constituição e leis do Brasil.


De Direito

9. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

A questão suscitada na revista é assim a de saber se, no caso concreto, estão reunidos os pressupostos de revisão de sentença estrangeira.


10. Vejamos como a questão foi equacionado no Tribunal recorrido.

Antes de se debruçar sobre o pedido formulado pelos AA, o Tribunal recorrido identificou a problemática por ele suscitado, indicando que estaria em causa, considerando que “a presente ação visa a revisão e confirmação de ato notarial emanado de autoridade estrangeira, no caso brasileira, nos termos do qual os Requerentes declararam que passaram a viver juntos, em união estável, de forma pública, contínua e duradoura, desde maio de 2013, tendo por finalidade o reconhecimento judicial da existência de união de facto, com vista ao preenchimento do requisito previsto no Art. 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade.”, e que foi o seguinte:

- A verificação dos requisitos legais de que depende a revisão e confirmação do acto de direito estrangeiro;

 - O interesse em agir e adequação do processo apresentado tendo em conta a possibilidade da presente ação poder constituir meio processual para a obtenção da nacionalidade portuguesa, pela verificação do requisito previsto no Art. 3.º n.º 3 do Lei da Nacionalidade.


10.1. Entrando na análise da primeira problemática, o Tribunal socorreu-se de jurisprudência deste STJ, na qual se reviu, e afirmou:

Trata-se, pois, de uma ação de simples apreciação com processo especial, que tem por finalidade reconhecer efeitos jurídicos de decisões estrangeiras no nosso ordenamento nacional. O que pressupõe que o nosso ordenamento atribua à mesma situação jurídica declarada por autoridade estrangeira efeitos jurídicos relevantes, por mera decorrência do reconhecimento da sua existência.

Dito isto, importa estar ciente que não está em causa nestas ações de revisão e confirmação de sentença estrangeira a aplicação no nosso ordenamento jurídico de normas de direito estrangeiro, por força das normas de conflito de Direito Internacional Privado (v.g. Art.s 14.º a 65.º do C.C.). Pelo que, o estatuto pessoal decorrente da “união estável” reconhecida pelo direito brasileiro, nomeadamente para efeitos sucessórios ou familiares, não depende de processo de revisão de sentença estrangeira, pois eles resultam da aplicação a cada caso das normas de conflitos previstas, nomeadamente nos Art.s 25.º, 31.º n.º 1 ou 62.º do C.C., confrontadas com as correspondentes normas do direito brasileiro.


Em seguida, analisou o direito brasileiro no que concerne à união de facto, dizendo:

Reconhecidamente a lei brasileira atribui à “união estável” um conjunto de efeitos jurídicos que vão muito para lá do que é estabelecido na realidade nacional. A este propósito, realçamos o Código Civil brasileiro, aprovado pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, refere-se em diversos preceitos legais a esta figura, dedicando-lhe especificamente alguns artigos no Livro IV do Direito de Família, a saber:

Art. 1.723.º: «É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável».

Art. 1.724.º: «As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos».

Art. 1.725.º: «Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens».

Art. 1.726.º: «A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil».

Art. 1.727.º: «As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato».”


 Mas porque entendeu que não se tratava de reconhecer aos AA os direitos decorrentes da lei brasileira, mas tão só analisar «os efeitos jurídicos que as partes pretendem obter na nossa ordem jurídica pelo reconhecimento da própria situação jurídica de “união estável”, que só pode ser equiparada no direito português, pela sua intuitiva semelhança, à situação jurídica da “união de facto”».


Aqui o tribunal teve dificuldade em afirmar que podia reconhecer a “decisão estrangeira” solicitada porque “No caso está em causa o reconhecimento da situação de “união de facto” entre os requerentes, que residiam no Brasil, situação essa reconhecida através de “escritura declaratória de união estável”, nos termos previstos no direito brasileiro.”, questionando-se  “se tal “decisão” está sujeita ou não ao processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira previsto no Art. 978º e ss. do C.P.C…

E, ponderada a posição defendida em vários arestos do STJ – e alguns do Tribunal da Relação –, veio a tomar a opção de considerar que a “decisão estrangeira” apresentada não pode ser objecto de reconhecimento em Portugal, afirmando que daquela “decisão estrangeira” só se pode extrair uma “eficácia jurídica própria (correspondente à que – nosso acrescento )terão as declarações prestadas perante o notário, para além de servirem de mero meio de prova da existência duma mera situação de facto, à qual a nossa lei também pode reconhecer certos efeitos jurídicos, para certos e determinados casos aí concretizados.”, estando-se perante um  « documento, “escritura declaratória de união estável”, vale por si só, como meio de prova, não sendo finalidade típica da ação de revisão de sentença estrangeira o reconhecimento da autenticidade de meios de prova. »

A improcedência da acção foi também justificada na impossibilidade de se obter o reconhecimento/atribuição da nacionalidade por via do reconhecimento e confirmação de sentença estrangeira, atento o regime jurídico da atribuição da nacionalidade, obrigando à apresentação de uma “ação judicial a interpor no tribunal cível (de primeira instância), contra o Estado Português” e na qual se “pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, razão pela qual a ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira se revela meio processual inadequado para atingir tal desiderato (Neste sentido: Ac. do TRP de 18-12-2018 - Ana Paula Amorim, proc. n.º 184/18.1YPRT).”


10.2. A posição sufragada pelo acórdão recorrido quanto à impossibilidade de revisão e confirmação de sentença estrangeira na situação dos autos, perante uma escritura declaratória de união estável, nos termos previstos no direito brasileiro” mereceu, no STJ, entendimento divergentes, até à prolação do acórdão de Uniformização de jurisprudência de 19/10/2022, a partir do momento em que a jurisprudência se considera estabilizada com o seguinte entendimento:

A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.”


11. Tendo o acórdão recorrido decidido de acordo com a orientação fixada na jurisprudência uniformizada – e sendo essa a única questão objecto do recurso – é de considerar que a decisão acolheu a melhor solução jurídica no quadro do ordenamento jurídico nacional, impondo-se a sua confirmação, com os fundamentos que nela foram indicados – e que aqui se consideram fundamentadores da presente decisão-


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 29 de Novembro de 2022


Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto de Oliveira