USUCAPIÃO
EMPARCELAMENTO
Sumário

I – A uma escritura de “justificação” celebrada em fraude à lei deve ser aplicada a sanção da ineficácia relativa, traduzida na irrelevância ou desconsideração da mesma para legitimar a aquisição duma determinada área predial.
II – O instituto da usucapião tem potencialidades para, uma vez comprovada judicialmente a materialidade que lhe está subjacente, poder prevalecer sobre a proibição imposta pelo art. 1382º do C.Civil, em termos de requisitos legais para o emparcelamento predial.
III – O que não pode suceder quando nem sequer resultou provada a materialidade a tanto necessária

Texto Integral

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

L... S.A.” melhor identificada nos autos, demanda “R..., Lda.” também ela melhor identificada neste processo, requerendo a procedência da acção e em consequência: reconhecer-se a A. como legítima proprietária do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, com a área global de 65.200m2, com a configuração constante da planta que junta como documento nº 4; desocupação e restituição à posse da A. do terreno em causa que ilegitimamente a R. vem ocupando, retirando os pilares e correntes que lhe vedam o acesso.

Em síntese alega, que é dona e legítima possuidora de imóvel rústico que melhor descreve - inscrito na matriz sob o artigo ...05 - por o ter adquirido à sociedade “V... S.A.” por escritura pública outorgada em 15 de Abril de 2019.

Quer da inscrição matricial quer da descrição predial o aludido prédio tem a área de 65.200m2, desde há mais de 20 e 30 anos, com a configuração constante do levantamento topográfico que junta.

Esse imóvel pertenceu há mais de 30 anos a AA e BB, os quais o adquiriram por usucapião, tal qual resulta de escritura de justificação que outorgaram.

Posteriormente esse prédio foi adjudicado a BB na sequência de partilha subsequente a separação judicial de pessoas e bens e sucessivamente vendido a diversas entidades.

Há mais de 30 anos o artigo ...37 actual ...05 – prédio - tinha uma área de cerca de 35.200m2, sendo que por volta de 1970 AA e BB compraram verbalmente a CC o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...32 atualmente artigo ...00 omisso na respectiva conservatória.

Este prédio confinava a nascente com o ...37, sendo que depois da compra verbal, os acima referidos procederam à “anexação” dos prédios inscritos na matriz sob o artigo ...37 e ...32, passando este último a integral aquele, passando a ser um só. O que levou a que em 1994, AA requeresse junto do serviço de finanças a retificação da área do artigo ...37 que passou a ser de 65.200m2, correspondente à soma das áreas daqueles dois prédios.

Mais tarde CC requereu a eliminação do artigo ...32 por o mesmo ter sido ocupado pelo artigo ...37.

Pelo que há mais de 20, 30, 40 anos, a A. e seu antepossuidores vem retendo e fruindo do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial com a referida área de 65.200m2, à vista de todos e sem qualquer oposição.

A R. vem entrando no prédio da A. vedando inclusivamente o acesso ao mesmo e no seu todo, com a colocação a sudoeste de pilares de metal e uma corrente.

Exatamente no local pelo qual, quer a A. quer os seus antecessores sempre e há mais de 30 anos acederam ao terreno.

Pelo que é manifesta a violação do direito da A.

*

A R. citada contestou e reconveio.

Refere que o que foi por si vedado com a colocação de pilares e corrente é um imóvel que lhe pertence e não o prédio da A.

Esse seu imóvel, da R., é o prédio rústico situado no mesmo lugar do da A. e com ele confinante, inscrito na matriz sob o artigo ...00 que provem do artigo ...32.

Omite a A. que o direito da R. resulta de lhe ter sido adjudicado em venda por negociação particular no âmbito de acção executiva, em que eram executados AA, DD e EE, que veio a ser formalizada por título de compra e venda outorgada em 18 de Julho de 2018.

Os prédios de A. e R. são contíguos e faziam parte de uma vasta propriedade pertencente à família FF, com a área total de 101.170m2, inscrita na matriz rústica sob o artigo ...80.

E através de processo de discriminação esse imóvel deu lugar a cinco novos prédios rústicos com os artigos matriciais, ...31 a 4935. Após tal discriminação, um dos imóveis com o artigo ...31 com a área e 22.170m2, foi dividido em dois dando origem ao prédio que veio a ser inscrito na matriz sob o artigo ...37 com a área de 25.200m2, e ao prédio a que veio a ser atribuído o artigo matricial ...38 com a área de 39.600m2, ou seja, com uma área global muito superior à que tinha o prédio de que tiveram origem e que foi eliminado das matrizes.

Em Março de 1961 a família FF vendeu a AA um pinhal com a área de 31.500m2, inscrito na matriz como fazendo parte do artigo ...80 que deu origem ao nº...32 e que por seu turno deu origem ao artigo ...00 e que atualmente é o prédio da R.

E em Novembro de 1970 o referido AA adquiriu à família acima referida o artigo rústico ...38 que resultara da discriminação do artigo ...31 e depois comprou em 1973 à ... o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...37.

Ficou aquele proprietário dos artigos ...32, ...37 e ...39 entre si confinante.

Não houve, portanto, ao contrário do alegado pela A. anexação dos dois prédios de que a mesma se arroga dona.

Já que o prédio da R. que possuía o artigo ...32 e é o actual ...00 é independente de qualquer outro, e foi adquirido por tal R. no âmbito de execução em que um dos executados era o aludido AA.

Depois de o ter comprado o R. entrou na posse do mesmo e procedeu à sua desmatação e limpeza, sendo de juntar à sua posse a posse dos anteriores donos.

Pelo que a reconvinte por si e antepossuidores há mais de 60 anos que nele pratica os referidos atos de posse sem oposição.

Acresce que naquele prédio a A. já gastou o valor de € 10.000,00.

Termina pedindo seja a acção julgada improcedente e a reconvenção procedente, sendo a A. condenada a reconhecer a propriedade do R. sobre o seu prédio, ou assim não se entendendo e sendo a acção julgada procedente, ser a A. condenada no pagamento à R. do valor de € 10.000,00.

                                                           *

Houve réplica, na qual a A. impugnou os factos referentes à reconvenção.

Elaborou-se despacho saneador no qual se apreciaram os pressupostos processuais, indicou-se o objecto do litígio e temas da prova, sendo admitidos os róis probatórios e designando-se também julgamento.

*

Realizou-se a audiência final dentro do estrito formalismo, e em duas sessões, com observância das formalidades legais.

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir no sentido de que procedendo apenas em parte o primeiro pedido [na parte em que se reconhece a A. como proprietária do prédio rústico com o artigo nº ...05, não procedendo, contudo, o pedido relativo à área concreta desse mesmo prédio], consequentemente improcedendo também o 2º pedido formulado, porquanto a R. fez prova de que ela própria é proprietária do prédio rústico com o artigo nº ...00 que confina com o da A., donde procedendo a reconvenção na parte em que é pedido o reconhecimento da propriedade a favor da R. do prédio que esta última reivindicava, sendo certo que, em decorrência do que antecedia, ficava prejudicada a apreciação do pedido subsidiário formulado, o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«III - DECISÃO:

Pelo exposto, na parcial procedência da acção e total procedência da reconvenção, decide-se:

a) condenar a R. R... Lda. a reconhecer a A. L... S.A., como dona e legítima proprietária do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...05, da freguesia ... e ... que proveio do artigo ...37, e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...08, com área total indeterminada.

b) No demais peticionado por aquela A., vai a R. R... Lda. absolvida dos pedidos.

c) Condenar a A. L... S.A. - reconvinda - a reconhecer a R. R... Lda. - reconvinte -, como dona e legítima proprietária do prédio rústico, sito em ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...20, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...00, com origem no artigo ...32, da extinta freguesia ...

Custas da acção em 3/4 a cargo da A. e 1/4 a cargo da A (artigo 527º nº1 do CPC)

Custas da reconvenção a cargo da A (artigo 527º nº1 do CPC). »

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a A. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1. Na presente acção, a A invocou o direito de propriedade que detem sobre o prédio inscrito na matriz sob o art. ...05 (antigo art. ...37), artigo que, actualmente e desde há mais de 30 anos, corresponde à soma da sua área originária acrescida da área do prédio inscrito na matriz sob o art. ...00 (antigo art. ...32), na sequência da “anexação” deste imóvel àquele outro, ao tempo em que os mesmos pertenciam a AA e BB.

2. Prédio com a configuração constante do levantamento junto à petição inicial sob Doc. nº 4 e cuja aquisição ocorreu, além do mais, por usucapião, expressamente invocada.

3. Para daí concluir pela inexistência física do prédio com o art. ...00 e, por conseguinte, pela impossibilidade de o mesmo poder ter sido adquirido pela Ré e, consequentemente, pela ilegitimidade da actuação desta (consubstanciada nos factos alegados nos arts. 26 a 28 da petição inicial).

4. Formulou o seu pedido no sentido de lhe ser reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio identificado no art. 1 da petição inicial, com a área global de 65.200 m2, com a configuração constante da planta junta àquele articulado sob doc. nº 4

5. A Ré contestou alegando, no essencial, que os dois prédios mantiveram a sua autonomia, conferida pelas suas próprias e distintas inscrições matriciais, sendo que o único elemento comum a ambos era o de serem do mesmo proprietário, o mencionado AA, cfr. art. 22

6. Ou, como se resume na sentença objecto do presente recurso, o prédio da R. que possuía o artigo ...32 e é o actual ...00 é independente de qualquer outro, e foi adquirido por tal R. no âmbito de execução em que um dos executados era o aludido AA.

7. Produzida a prova, o Tribunal a quo considerou provado, além do mais, o seguinte: 17 - Desde que adquiriram os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, que AA, e BB, por si, e em cada um desses prédios de forma indistinta, os cuidaram, mandando limpá-los, cortando madeira e depois semeando-os de novo, zelando-os, nivelando-os em parte, com deslocalização de saibro para aterro. 18 - À frente de todos, de forma pacífica e pública e sem qualquer oposição, de maneira contínua. 19 - O que aconteceu em relação a esses dois prédios, quer por si quer por aqueles que lhe sucederam até à aquisição aludida no facto 7º.

8. E, considerou não provado, além do mais, o seguinte: a) Após aquisição dos prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, AA e BB, anexaram-nos, passando o inscrito na matriz sob o nº ...32 a integrar o inscrito na matriz sob o artigo ...37; d) Os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, constituem um só, que é o referido em 1 a 4, propriedade da A., e foram sempre usados e fruídos como uma única unidade jurídica.

9. A sentença recorrida julgou procedente o pedido formulado pela A no sentido de lhe ser reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o art. ...05, proveniente do art. ...37 mas, já não com a área constante da inscrição matricial e registo na competente Conservatória do Registo Predial ou com a configuração constante do Doc. nº 4 junto à petição inicial, ou seja, por forma a considerar integrada naquele imóvel a área do prédio inscrito na matriz sob o art. ...00, anterior art. ...32, por força da “anexação” invocada.

10. O Tribunal a quo julgou, assim, improcedente o pedido formulado pela A no sentido de lhe ser reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o art. ...05, proveniente do art. ...37, considerando integrado neste a área do prédio inscrito na matriz sob o art. ...00, anterior art. ...32

11. Referindo expressamente que a A. não demonstra que efectivamente a área do seu prédio, é de 65200m2, por ter sido objecto de alteração pedida por anteriores proprietários, e que nessa área estaria integrado por anexação, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...00 anterior ...32. Não se provou a existência de qualquer anexação, e que a mesma tenha sido feita de forma legalmente admitida pelas normas fiscais. Por outro lado, o facto de anteriores proprietários dos prédios de A. e R. os terem amanhado fisicamente como um só, não é suficiente para concluir que juridicamente esses prédios são o mesmo. E nem logrou demonstrar e provar factos convincentes da aquisição originária - usucapião - de cada uma daquelas concretas parcelas com qualquer concreta área, ou seja, que amanhou o prédio x com a área y e o prédio z com a área i, ficando o mesmo a ser um só do ponto de vista jurídico a partir de determinado momento, por via de qualquer facto conducente a tal aquisição, a por si invocada “anexação”, cfr. decisão recorrida

12. Contrariamente ao julgador, a Recorrente entende que os factos provados – e os que não o tendo sido, deveriam também ter sido considerados – conduzem à procedência da acção, ainda que, admite-se, se não tenha logrado demonstrar a área exacta do imóvel, tal como, fisicamente, o mesmo existe de facto, actualmente e desde há mais de 30 anos mas, com a configuração do levantamento junto à petição inicial

Com efeito,

13. Em face da prova produzida, designadamente em sede audiência de julgamento, resulta que o Tribunal a quo não logrou apreender a realidade fáctica que lhe foi apresentada, desvalorizando os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela A e, por consequência, concluindo por uma errada valoração da matéria de facto.

Vejamos:

14. O Tribunal a quo considerou não provado o seguinte facto: Após aquisição dos prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, AA e BB, anexaram-nos, passando o inscrito na matriz sob o nº ...32 a integrar o inscrito na matriz sob o artigo ...37.

15. Invocando a fundamentação seguinte: Inexiste prova documental que ateste o facto a). Por outro lado, nenhuma das testemunhas arroladas pela A. (GG, HH, II, JJ, KK e LL) a tal facto se referiram de modo claro, preciso e sem dúvidas. Repare-se que GG, HH e JJ limitaram-se a referir terem, há alguns anos, andado a prestar serviços em terreno que seria do Sr. AA, nenhum deles concretizando a área do mesmo, se se tratava de um só ou de vários prédios independentes, quais as extremas dos mesmos, tão pouco se esses prédios eram de facto do Sr. AA. II foi o topógrafo que elaborou uma planta do terreno que nos autos a A. diz que lhe pertence e que integraria aquele que a R. reivindica, mas segundo refere, as áreas, confrontações e extremas desse prédio foram-lhe indicadas pela entidade que lhe solicitou o serviço, a saber a empresa M..., SA. Mais referiu até, que o documento que a A. junta com a petição inicial como documento nº 4, não corresponde àquele que foi por si elaborado tendo sofrido alterações por parte de pessoa que desconhece. Finalmente MM e LL (o primeiro presidente da Câmara Municipal ... em 2010/2011 e o segundo vereador a partir de 2013) referem ter contactado o 1º em 2010/11 com AA, no sentido de saber se este dispunha de terrenos susceptíveis de aquisição pela Câmara, ao que aquele lhe indicou para falar com o seu filho NN. Este NN mostrou a KK um terreno que seria seu, no local a que se alude no facto 1º, desconhecendo, contudo a testemunha, se se tratava de um único prédio ou de vários prédios. Nestas declarações, foi a testemunha secundada por LL, que em 2013 enquanto vereador visitou o mesmo terreno que havia sido visitado por KK, não sabendo, no entanto, referir em concreto, quem seria o proprietário do mesmo e se se trataria de um único artigo matricial. Concluindo, que inexiste prova do facto a), chamando-se à atenção que em 2010/2011 momento em que NN terá mostrado o terreno a KK, esse mesmo terreno era propriedade da Caixa Leasing E Factoring S.A. (veja-se o 3º documento junto com a petição inicial).

Ora,

16. Em momento algum a ora Recorrente invocou ter a anexação dos prédios inscritos na matriz sob os arts. ...05 (anterior art. ...37) e ...00 (anterior art. ...32) sido materializada através de processo formal junto de uma Repartição de Finanças, de acordo com o estabelecido pelas regras do CIMI.

17. Tendo em consideração a matéria constante dos arts. 6 a 25, o que resulta dos factos alegados na petição inicial é que a “anexação” daqueles dois prédios – e, por conseguinte, das respectivas áreas – se operou por usucapião.

18. Daí que, em circunstância alguma a A teria possibilidade de fazer prova de um facto que, efectivamente, não alegou.

Por outro lado,

19. Também não se aceita que os depoimentos das testemunhas referenciadas pelo julgador possam ser reduzidos à conclusão simplista da fundamentação.

20. Sendo certo que nenhuma das testemunhas referiu expressamente ter conhecimento do acto – formal ou informal – de anexação dos dois arts. matriciais ou da área concreta em causa, certo é também que os seus depoimentos são claros e sem margem para dúvidas quanto ao facto de, desde há mais de 30 anos, a área dos arts. ...37 e ...32 integrar um único terreno.

21. Mais, negaram, inclusivamente, a possibilidade de no mesmo terreno existir mais do que um artigo matricial, cfr. depoimentos prestados, em 30.11.2021, por GG, HH e OO, gravados em áudio no sistema informático H@bilus Media Studio entre as 14:23 e 14:53 horas, entre as 14:55 e 15:22 horas e entre as 15:56 e 16:11 horas, respectivamente.

22. Todos se referem a um terreno que, como explicaram, conheceram quando o mesmo constituía já uma unidade física, sendo que apenas a testemunha JJ referiu ter prestado trabalhos no dito terreno a pedido de AA mas, há trinta e tal anos; depois, fez o mesmo trabalho a pedido da D. BB (que foi esposa do AA)

23. Todas as demais testemunhas referiram como proprietário do terreno a M..., SA ou NN, ao contrário do que resulta do entendimento preconizado pelo julgador, quando refere que GG, HH e JJ limitaram-se a referir terem, há alguns anos, andado a prestar serviços em terreno que seria do Sr. AA, nenhum deles concretizando a área do mesmo, se se tratava de um só ou de vários prédios independentes, quais as extremas dos mesmos, tão pouco se esses prédios eram de facto do Sr. AA

Acresce que,

24. O Tribunal a quo desvalorizou em absoluto o levantamento junto à petição inicial sob Doc. nº 4, considerando que o mesmo não é da autoria da testemunha II por não ter sido este quem, no mesmo levantamento, assinalou, a tracejado, a localização e área dos artigos matriciais outrora ali existentes.

25. A verdade é que aquela testemunha foi peremptória quando referiu ter feito tal levantamento – de um terreno só – as circunstâncias em que o fez, a pedido de quem e a exactidão do mesmo, cfr. depoimento prestado, em 30.11.2021, por II, gravado em áudio no sistema informático H@bilus Media Studio entre as 15:23 e 15:55 horas.

26. É óbvio que, com o tal tracejado e indicação de áreas, a A apenas pretendeu, para efeitos da presente acção e para melhor esclarecimento da sucessão de factos que conduziram à “anexação”, indicar ao Tribunal a anterior localização dos arts. ...37 e ...32.

27. Razão pela qual o depoimento de II se entende como relevante, não só quanto ao esclarecimento relativo ao imóvel em questão – um terreno – como à configuração do mesmo – o constante do levantamento que elaborou e que, consideradas as explicações apresentadas, deverá ser considerado.

28. Importa ainda considerar a desvalorização pelo julgador do depoimento prestado por KK, quando refere que o contacto deste com NN para negociação do terreno ocorreu em 2010/2011, época em que o mesmo terreno era propriedade da Caixa Leasing E Factoring, SA.

29. Desvalorização que não se aceita uma vez que, tal como resulta do Doc. nº 3 junto à petição inicial, àquela época, existia um contrato de locação financeira celebrado entre Imoleasing – Sociedade de Locação Financeira Imobiliária, SA (cujo património foi transferido para a Caixa Leasing E Factoring, SA) e M... S.A., significativo de que, nunca, a sociedade M... S.A. esteve desligada do terreno em discussão (acabando mesmo por voltar a adquiri-lo).

Assim sendo,

30. Interpretando os depoimentos prestados pelas supra referidas testemunhas que, no essencial, declararam conhecer, no local onde se situaram os dois artigos matriciais em causa, um terreno apenas que foi pertença, primeiro de AA e depois da sociedade M..., SA para quem ali executaram serviços diversos e quem lhes efectuou os correspondentes pagamentos,

31. Interpretando ainda o depoimento da testemunha II que expressamente declarou ter procedido ao levantamento do terreno em causa, confirmando ser da sua autoria a base do documento junto à petição inicial sob o nº 4 e confirmando, em consequência, a configuração e área do mesmo,

32. Conjugando esses depoimentos com os documentos juntos à petição inicial, sempre, ao contrário do entendimento do julgador, haverá que considerar como PROVADO que após aquisição dos prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, AA e BB, anexaram-nos, passando o inscrito na matriz sob o nº ...32 a integrar o inscrito na matriz sob o artigo ...37

33. O Tribunal a quo considerou ainda não provado o seguinte facto: Os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, constituem um só, que é o referido em 1 a 4, propriedade da A., e foram sempre usados e fruídos como uma única unidade jurídica

34. Invocando a fundamentação seguinte: (…) O que temos são dois prédios inscritos na matriz desde 1962 (o ...05 e anterior ...37 e o ...00 anterior ...32). Apesar de os mesmos poderem ter sido propriedade ambos de AA e depois dos sucessivos adquirentes, temos que pelo menos desde 2018, o rústico ...00 foi registado a favor da R. por compra em processo de execução (vide documento nº1 junto com a contestação), execução essa em que foi parte entre outro AA. Ora se esse prédio não tivesse existência jurídica e como tal fizesse parte do ...05 como pretende a A., não se vê como é que no âmbito da execução não fossem aí apresentados embargos de terceiro pela anterior proprietária desse ...05, a saber a sociedade V... S.A. que era proprietária do mesmo desde 21 de Abril de 2016 (vide 3º documento junto com a petição inicial) Por outro lado, se não foi apresentada oposição à penhora por parte ao menos de AA, o que não foi alegado nem demonstrado, é sinal que tal executado saberia que esse prédio mantinha autonomia em relação ao ...05. E o facto de AA ter cuidado, amanhado e possuído aqueles dois prédios como se de um só se tratasse, não é suficiente para concluir estar-se perante um único prédio do ponto de vista jurídico, apesar de do ponto de vista físico não existirem barreiras entre os dois.

Ora,

35. Reiterando quanto acima referido relativamente à prova testemunhal produzida em sede de julgamento, entende a Recorrente que logrou demonstrar os factos consubstanciadores da integração por anexação/junção dos dois imóveis em questão, ainda que – admite-se – não tenha feito prova cabal da área e confrontações concretas do prédio reivindicado.

36. O que, de resto, resulta igualmente dos Factos Provados 17,18 e 19: 17 – Desde que adquiriram os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, que AA, e BB, por si, e em cada um desses prédios de forma indistinta, os cuidaram, mandando limpá-los, cortando madeira e depois semeando-os de novo, zelando-os, nivelando-os em parte, com deslocalização de saibro para aterro.

18 - À frente de todos, de forma pacífica e pública e sem qualquer oposição, de maneira contínua. 19 - O que aconteceu em relação a esses dois prédios, quer por si quer por aqueles que lhe sucederam até à aquisição aludida no facto 7º.

37. Importa ainda considerar a seguinte sequência de factos, documentados nos autos: A) AA, então casado com BB, adquiriu por compra o prédio inscrito na matriz sob o art. ...37 (actual art. ...05) em 17.07.1973. B) Este prédio tinha na sua inscrição matricial original a área de 25.200 m2. C) AA, então casado com BB, adquiriu por compra o prédio inscrito na matriz sob o art. ...32 (actual art. ...00) em 17.03.1961 (ainda que na respectiva escritura se aluda a “um pinhal e eucaliptal … com a área de trinta e um mil e quinhentos metros quadrados … fazendo parte do artigo quatro mil seiscentos e oitenta da freguesia dos ......”. D) Este prédio tinha na sua inscrição matricial original a área de 38.000 m2. E) Sendo que, em 03.04.1961, AA e BB venderam o mesmo prédio a CC. F) Que, por seu turno, o vendeu verbalmente ao referido AA por volta do ano de 1970. G) Em 16.08.1994, AA e mulher, BB, justificaram a aquisição por usucapião (com a actual área e composição, em nome próprio, continuamente, há mais de vinte anos, sem interrupção …) do prédio inscrito na matriz sob o art. ...37, com a área de 65.200 m2 (doc. nº 5, junto à petição inicial). H) Ou seja, 24 anos decorridos sobre a aquisição a CC do prédio inscrito na matriz sob o art. ...32 (actual art. ...00), AA e mulher, BB, justificaram a aquisição do prédio inscrito na matriz sob o art. ...37 (actual art. ...05), atribuindo-lhe, agora, a área de 65.200 m2. I) Uma área muito aproximada da soma das áreas originárias dos referidos arts. ...32 e ...37. J) O mesmo prédio, com a área de 65.200 m2, foi descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... em 08.02.1995. L) Posteriormente, em 1997, foi registada a aquisição daquele art. ...37 a favor de BB, na sequência da partilha de bens subsequente à separação judicial de pessoas e bens de AA. M) Ou seja, o prédio com o antigo art. ...37 deixou de pertencer a AA. N) Sendo certo que, tal como resultou provado, os dois prédios com os actuais arts. ...05 e ...00 foram, desde o tempo em que os mesmos pertenciam ao casal AA e BB até, pelo menos, à venda na acção executiva, retidos e fruídos, por aqueles e por todos os que lhes sucederam, de forma indistinta, à frente de todos, de forma pacífica e pública e sem qualquer oposição, de maneira contínua, O) o mesmo é dizer que, após a partilha de bens outorgada entre AA e BB, AA não mais exerceu qualquer acto de posse sobre o prédio inscrito na matriz sob o art. ...32 (actual art. ...00), do qual deixou de ser proprietário. P)   Em 2002, 2003, 2016 e 2019, foram registadas as aquisições a favor dos sucessivos adquirentes do mesmo imóvel, naturalmente, com a mesma referida área de 65.200 m2

38. Conjugando-se tal circunstancialismo com a celebração da escritura de justificação a que acima se alude, facilmente se pode concluir que a outorga desta visou “formalizar” a “anexação” dos dois referidos imóveis e, subsequentemente, a sucessiva venda do actual art. ...05 com dita área de 65.200 m2, correspondente à soma dos antigos arts. ...37 e ...32.

39. Tanto mais quanto é certo que não subsistem dúvidas quanto à localização do prédio em questão.

40. Como não subsistem dúvidas que, muito embora as testemunhas não tenham conseguido esclarecer se o terreno aos mesmos correspondente respeita a um artigo matricial ou à soma dos dois em causa nos autos (o que, inevitavelmente, resulta da integração dos mesmos),

41. facto é que, dos seus depoimentos resulta muito claro o conhecimento que têm do terreno, como um só.

42. Sabendo-se a respectiva localização e configuração, necessariamente haverá que concluir-se que toda a área indistintamente retida e fruída por AA e subsequentes possuidores, como se proprietários fossem, corresponde hoje e, pelo menos desde 16.08.1994 (data da escritura de justificação) a um prédio único de que o referido AA e sucessivos adquirentes foram proprietários.

43. Como, de resto, o próprio julgador acaba por reconhecer quando refere: O que temos são dois prédios inscritos na matriz desde 1962 (o ...05 e anterior ...37 e o ...00 anterior ...32). Apesar de os mesmos poderem ter sido propriedade ambos de AA e depois dos sucessivos adquirentes, temos que pelo menos desde 2018, o rústico ...00 foi registado a favor da R. por compra em processo de execução (vide documento nº1 junto com a contestação), execução essa em que foi parte entre outro AA. (bolt nosso)

44. Independentemente de os artigos matriciais em questão constituírem/integrarem actualmente e desde há mais de 20 e 30 anos um prédio único, certo e determinado, física e economicamente autónomo e delimitado, assim tendo sido retido e fruído por todos os sucessivos adquirentes como se seus proprietários fossem,

45. Não pode aceitar-se que a circunstância de o mesmo (ou o que é sua parte integrante) ter sido objecto de venda, ainda que no âmbito de processo de execução, confira ao comprador a segurança da aquisição.

46. Na verdade, o direito do adquirente, em processo de execução, filia-se no direito do executado, dele dependendo, quer quanto à sua existência, quer quanto à sua extensão.

Ora,

47. Face ao acima referido, sempre haverá que concluir-se que, à data da penhora e da venda do imóvel alegadamente adquirido pela Ré, o mesmo já não pertencia a AA.

Por outro lado,

48. Não pode a existência jurídica, consubstanciada num artigo matricial que não foi eliminado, sobrepor-se à existência de uma situação de facto consubstanciada na aquisição por usucapião, aqui demonstrada à saciedade.

49. A prova da aquisição originária por parte da A, ora Recorrente, sobrepõe-se à compra e venda e, em consequência, ao registo da aquisição derivada a favor da Ré.

Como tal,

50. Ao contrário do que na sentença recorrida se considera como facto não provado sob a al. d), deverá ter-se como PROVADO que os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8 constituem um só, que é o referido em 1 a 4, propriedade da A e foram sempre usados e fruídos como um prédio único, certo e determinado.

51. Considerando tudo quanto supra exposto, impõe-se a CORRECÇÃO DA REDACÇÃO do nº 16 dos Factos Provados que deverá passar a ser a seguinte: Os prédios a que se alude em 1 a 4 e 6 a 8 CONFRONTARAM entre si pelo lado nascente.

52. Impondo-se, ainda, assinalar a manifesta contradição entre os factos constantes dos nºs 20 e 21 dos Factos Provados e o que expressamente se refere na sentença em apreciação: Está assente que o prédio da R confina com o da A, mas são prédios autónomos do ponto de vista jurídico, constituindo assim duas realidades diferentes ainda que fisicamente possa não haver distinção visível sobre cada um deles (sublinhado nosso)

53. Na verdade, o considerado provado sob os nºs 20 e 21 não se compagina com a referida conclusão do julgador (a agora sublinhada), conjugada com os Factos Provados nºs 17, 18 e 19.

54. Porquanto, não havendo uma distinção física entre os dois artigos matriciais, não é possível afirmar-se que quaisquer actos levados a cabo pela Ré tenham ocorrido na área do prédio que corresponde(u) ao art. ...32.

O DIREITO

55. A usucapião é uma forma de aquisição originária da generalidade dos direitos reais de gozo que pressupõe o exercício da posse correspondente ao respetivo direito por um certo período de tempo – art. 1287 do C. Civil

56. A usucapião tem, pois, como fundamento a posse, definindo-se esta no art. 1251 do C. Civil, como o poder de facto – corpus – que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – animus – mantido, de forma pacífica, pública e ininterrupta, (arts. 1261 e 1262, ambos do C. Civil), durante um certo período de tempo, que varia em função da natureza do bem – móvel ou imóvel – sobre que incide e também de acordo com os caracteres da mesma posse titulada ou não titulada e de boa-fé ou de má-fé – arts. 1259 e 1260 do C. Civil.

57. Deste modo, considerando a prova produzida, designadamente os Factos Provados nºs 17,18 e 19, bem ainda a factualidade vertida nas als. a) e d) dos Factos Não Provados, alterada em conformidade com o supra exposto, conclui-se que a posse ininterrupta pela A e respectivos antecessores sobre os prédios com os artigos matriciais ...37 (actual art. ...05) e ...32 (actual art. ...00), como se de um só prédio se tratasse, conduz inexoravelmente à aquisição originária pela A, por usucapião, do direito de propriedade sobre o terreno em causa, como prédio certo e determinado.

58. Com efeito, não existe qualquer norma – aplicável à situação concreta dos presentes autos – que estabeleça que a posse por mais de 20 anos mantida sobre prédios rústicos anexados de facto, não pode conduzir à usucapião.

Ou seja,

59. Sendo certo que a Ré declarou adquirir o prédio rústico, sito em ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...55/..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...00, com origem no art.º ...32, da extinta freguesia ...,

60. Na verdade, a Ré declarou adquirir um imóvel que, objectivamente, não existe fisicamente desde 1970.

61. Ou seja, ainda, trata-se de um negócio jurídico ferido de nulidade, conforme decorre do disposto no nº 1 do art. 280 do Código Civil.

Nestes termos e, sobretudo, pelo que V. Excs. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, substituída por outra que:

i. Considere PROVADA a factualidade vertida nas als. a) e d) dos Factos Não Provados

ii. Proceda à correcção da redacção do nº 16 dos Factos Provados que deverá passar a ser a seguinte: Os prédios a que se alude em 1 a 4 e 6 a 8 confrontaram entre si pelo lado nascente.

iii. Reconheça que a A é dona e legítima proprietária do prédio melhor identificado no art. 1 da petição inicial, correspondente à soma das áreas dos arts. ...37 (actual art. ...05) e ...32 (actual art. ...00), adquirido por usucapião, com a configuração constante do levantamento junto àquele articulado sob Doc. nº 4

Assim se fará

JUSTIÇA»                                                       

                                                                       *

            Por sua vez, apresentou a Ré contra-alegações, pugnando no sentido e que «(…)

deve ser negado provimento ao recurso, com o que se fará JUSTIÇA!»

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos AA. nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - impugnação da decisão sobre a matéria de facto, fundamentada em incorreta valoração da prova produzida, que levou ao incorreto julgamento de factos como “não provados”, a saber, os factos constantes das als. “a)” e “d)” [os quais deviam passar a figurar como “provados”] e bem assim que devia ser reformulada a redação do ponto “16-” dos factos “provados” [quanto ao tempo verbal dele constante, a saber, de “confrontam” para “confrontaram”];

- desacerto na decisão de direito [deverá ser revogada a sentença, substituindo-a por outra que contemple a procedência da ação relativamente ao imóvel dela A., mais concretamente que «Reconheça que a A é dona e legítima proprietária do prédio melhor identificado no art. 1 da petição inicial, correspondente à soma das áreas dos arts. ...37 (actual art. ...05) e ...32 (actual art. ...00), adquirido por usucapião, com a configuração constante do levantamento junto àquele articulado sob Doc. nº 4».]

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

«Factos Provados

1- Sob o artigo 2756/...08 encontra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., o prédio rústico indicando-se como “situado em ...” com a “área total de 65200m2” tendo o artigo matricial “...05 natureza rústica: freguesia ... e ...” composição e confrontações: “pinhal e eucaliptal – Norte, PP; Nascente, QQ; Sul, RR e outro, e Poente, SS e outro”.

2- Sob tal prédio encontram-se em vigor os seguintes registos:

i- “Ap ...82 de 2016/04/21 – Averbamento (Informação Anterior)

Averbamento de Alteração:

Matriz nº ...37

Freguesia: ...”.

ii- “Ap ...82 de 2016/04/21 Aquisição

Abrange 36 prédios e 3 frações

Causa: Compra

Sujeito ativo

V... S.A.

Sujeito passivo

M... S.A.”.

iii- “Ap ...24 de 2019/04/15

Abrange 36 prédios e 3 frações

Causa: Compra

Sujeito ativo

L... S.A.

Sujeito passivo

V... S.A.”

3- Sob o mesmo prédio foram inscritos, tendo passado a constar como “histórico” os seguintes factos de natureza registral:

i- “Ap ...2 de 1995/02/08 - Aquisição

Abrange 6 prédios

Causa: Usucapião

Sujeito ativo

AA e mulher BB, separados judicialmente de pessoas e bens”.

ii- “Ap. ...7 de 1997/07/03

Abrange 11 prédios

Causa: Partilha subsequente à Separação Judicial de Pessoas e Bens

Sujeito ativo

BB

Separada Judicialmente de Pessoas e Bens

Sujeito Passivo

AA

Separado Judicialmente de Pessoas e Bens”.

iii- “Ap. ... de 2002/09/27 Aquisição

Abrange 10 prédios

Causa: Compra

Sujeito ativo

M... S.A.

Sujeito passivo

BB”.

iv- “Ap. ... de 2003/01/28 – Aquisição

Abrange 34 prédios

Causa: Compra

Sujeito ativo

Imoleasing - Sociedade de Locação Financeira Imobiliária S.A”.

v- “Ap. ... de 2003/01/29 Locação Financeira

Abrange 7 prédios

Prazo – 120 meses

Com início em: 2002/12/23

Sujeito ativo

M... S.A.”.

vi- “Averb. ap. ...45 de 2009/08/19 – Transmissão por Transferência de Património Registo no Sistema em: 2009/08/19 Da apresent. 6 de 2003/01/28 – Aquisição

Causa: Fusão

Sujeito ativo

Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito S.A.

Sujeito passivo.

Imoleasing – Sociedade de Locação Financeira e Imobiliária S.A.”

vii- “Averb - Ap. ...83 de 2016/01/29 – Cancelamento

Registado no sistema em: 2016/01/29

Da Apresent. 9 de 2003/01/29”.

viii- “Ap. ...93 de 2016/01/29 Aquisição

Abrange 57 frações

Causa: Compra

Sujeito ativo

M... S.A.

Sujeito passivo

Imoleasing – Sociedade de Locação Financeira e Imobiliária S.A.”.

4- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...05, que proveio do artigo ...37, o prédio rústico, que conforme em tal matriz se indica, localiza-se em “...” União de Freguesias ... e ..., aí se indicando que tal prédio confronta de Norte com “PP”, Sul “RR e Outro”, Nascente “QQ” Poente “Dr. TT e Outro”, mais se referindo que o ano de inscrição na matriz foi o de “1962”, com o “valor patrimonial inicial de € 35,91” com o “valor patrimonial actual de € 5.377,04, determinado no ano de 1989”, com a indicada “área total de (ha) 6,520000”, descrito como “um pinhal e eucaliptal”, sendo titular inscrito “L... S.A.”.

5- O prédio aludido em 1 a 4 apesar de ter como primeira causa de aquisição a usucapião aludida em 3 i), foi adquirido por AA casado com BB, à ..., através da competente escritura pública celebrada em dezassete de Julho de mil novecentos e setenta e três na secretaria notarial ....

6- Sob o artigo ...5/...20, encontra-se descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., o prédio rústico indicando-se como “situado em ...” com a “área total de 38000m2” tendo o artigo matricial “...00 natureza rústica: freguesia ... e ...” composição e confrontações: “pinhal e eucaliptal – Norte, UU e outros; sul; estrada; nascente vendedores; poente VV”.

7- Sob tal prédio encontra-se em vigor o seguinte registo:

i- “Ap ...72 de 2018/07/12 Aquisição

Causa: Compra em Processo de Execução

Sujeito ativo

R..., Lda.

Sujeito passivo

AA

DD

EE

(proc. exec. nº 4486/12....)”.

8- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...00, que proveio do artigo ...32, o prédio rústico, que conforme em tal matriz se indica, localiza-se em “... (Quinta ...)” União de Freguesias ... e ..., aí se indicando que tal prédio confronta de Norte com “UU e outros, Sul “Estrada”, Nascente “os vendedores” Poente “VV”, mais se referindo que o ano de inscrição na matriz foi o de “1962”, com o “valor patrimonial inicial de € 47,19” com o “valor patrimonial actual de € 71,40, determinado no ano de 1989”, com a indicada “área total de (ha) 3,800000”, descrito como “um pinhal e eucaliptal”, sendo titular inscrito “R..., Lda.”.

9- O prédio aludido em 6 a 8, foi adquirido por AA casado com BB, a PP esta outorgando por si e enquanto representante de WW, XX por si e como procuradora de YY, através da competente escritura pública celebrada em dezassete de Março de 1961, sendo que nela se refere que se trata de “um pinhal e eucaliptal, no sítio da ... com a área de trinta e um mil e quinhentos metros quadrados já devidamente demarcada, confronta do lado norte com ZZ, nascente com os vendedores, sul com a estrada e poente com VV, descrito na competente conservatória desta comarca fazendo parte da descrição número ... do livro B cento e sessenta e cinco e inscrito na matriz fazendo parte do artigo quatro mil seiscentos e oitenta da freguesia dos ...…”

10- Em três de Abril de 1961 o prédio indicado em 9 foi alienado por AA e BB a CC.

11- E foi verbalmente adquirido por AA casado com BB, por volta do ano de 1970, ao CC.

12- AA casado com BB, através de escritura pública de 12 de Novembro de 1970, veio a adquirir a AAA representada no acto por YY, o imóvel correspondente ao artigo rústico ...38, ou seja, um pinhal e eucaliptal, que conforme de tal escritura resulta estava “sito na ..., freguesia ..., deste concelho, a confrontar do norte com UU e outro, do nascente com QQ e outro, do sul com a ..., e do poente com o Dr. BBB”.

13- O artigo rústico ...80 a que se alude em 9, deu origem aos artigos ...31, ...32, 4933, 4934.

14- O artigo inscrito na matriz rústica sob o artigo ...32, actual nº ...00, foi inscrito na matriz com a seguinte descrição:

- Pinhal e eucaliptal, sito em ... (Quinta ...) com a área de 38.000m2, confrontado a norte com UU e Outros, nascente os vendedores, sul estrada e poente VV.

15- O artigo ...37 (actual ...) foi inscrito na matriz com a seguinte descrição:

- Pinhal e eucaliptal, sito em ..., com a área de 25.200m2, confrontado a norte com PP, nascente QQ e Outro, sul CCC e Outro e poente Dr. DDD e Outro.

16- Os prédios a que se alude em 1 a 4 e 6 a 8 confrontam entre si pelo lado nascente.

17- Desde que adquiriram os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, que AA, e BB, por si, e em cada um desses prédios de forma indistinta, os cuidaram, mandando limpá-los, cortando madeira e depois semeando-os de novo, zelando-os, nivelando-os em parte, com deslocalização de saibro para aterro.

18- À frente de todos, de forma pacífica e pública e sem qualquer oposição, de maneira contínua.

19- O que aconteceu em relação a esses dois prédios, quer por si quer por aqueles que lhe sucederam até à aquisição aludida no facto 7º.

20- A R. após o ter adquirido, vedou o acesso ao prédio indicado em 6 a 8 com pilares de metal e uma corrente, na parte em que o mesmo confronta com a estrada.

21- E procedeu à sua desmatação, desbaste, limpeza, cortando silvas e árvores, pulverizando, e procedendo à queima de sobrantes, solicitando ainda licença para poda e abate de sobreiros.

22- Para tanto usando mão de obra, motosserras, veículo ligeiro de mercadorias, tractor agrícola, máquina giratória.

23- Despendendo directamente através da R. sociedade, e sem pagar a terceiros, montante não concretamente apurado relativamente à desmatação, desbaste, limpeza, corte de silvas e árvores, pulverização e queima de sobrantes.  

Factos não provados:

a) Após aquisição dos prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, AA e BB, anexaram-nos, passando o inscrito na matriz sob o nº ...32 a integrar o inscrito na matriz sob o artigo ...37.

b) CC requereu, a eliminação do artigo ...32 em virtude de o mesmo ter sido ocupado pela totalidade do prédio rústico sob o artigo ...37, através de requerimento de rectificação de área nº 933/94.

c) E em 1994, por causa do facto aludido em b), AA requereu junto do serviço de finanças a rectificação da área do artigo ...37 para 65.000m2.

d) Os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, constituem um só, que é o referido em 1 a 4, propriedade da A., e foram sempre usados e fruídos como uma única unidade jurídica.

e) A R. despendeu o valor de € 250,00 com a licença para poda e abate de sobreiros.».

                                                                       *         

3.2 – A A./recorrente deduz impugnação da decisão sobre a matéria de facto, fundamentada em incorreta valoração da prova produzida, que levou ao incorreto julgamento de factos como “não provados”, a saber, os factos constantes das als. “a)” e “d)” [os quais deviam passar a figurar como “provados”] e bem assim que devia ser reformulada a redação do ponto “16-” dos factos “provados” [quanto ao tempo verbal dele constante, a saber, de “confrontam” para “confrontaram”]:

Sustenta enfaticamente a A./recorrente que “é destituído de qualquer sentido” o referido pelo julgador «Não se provou a existência de qualquer anexação, e que a mesma tenha sido feita de forma legalmente admitida pelas normas fiscais», isto pela liminar e singela razão de que a própria nunca invocou (na p.i.) que a anexação dos prédios inscritos na matriz sob os arts. ...05 (anterior art. ...37) e ...00 (anterior art. ...32) tivesse sido materializada através de processo formal junto de uma Repartição de Finanças, de acordo com o estabelecido pelas regras do CIMI (daí a referência da expressão anexação sempre entre aspas), isto é, que «tendo em consideração a matéria constante dos arts. 6 a 25, o que resulta dos factos alegados na petição inicial é que a “anexação” daqueles dois prédios – e, por conseguinte, das respectivas áreas – se operou por usucapião», donde, «em circunstância alguma, a A. teria possibilidade de fazer prova de um facto que, efectivamente, não alegou».

Ademais, sustenta a A./recorrente que «em face da prova produzida, designadamente em sede audiência de julgamento, resulta que o Tribunal a quo não logrou apreender a realidade fáctica que lhe foi apresentada, desvalorizando os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela A e, por consequência, concluindo por uma errada valoração da matéria de facto.»

Sendo com base nesta linha de argumentação que passa a aprofundar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que se traduziu em julgar como “não provados” as duas referenciadas alíneas do correspondente elenco [as als. “a)” e “d)”].

Que dizer?

Rememoremos, antes de mais, o teor literal dessas duas referenciadas alíneas, a saber:

«a) Após aquisição dos prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, AA e BB, anexaram-nos, passando o inscrito na matriz sob o nº ...32 a integrar o inscrito na matriz sob o artigo ...37.»;

«d) Os prédios indicados em 1 a 4 e 6 a 8, constituem um só, que é o referido em 1 a 4, propriedade da A., e foram sempre usados e fruídos como uma única unidade jurídica.»

Ora, sendo esta a redação literal respetiva, a resposta a esta pretensão da A./recorrente de que se cuida parece-nos óbvia e incontornável: as ditas duas alíneas em análise encerram claramente ambas um juízo conclusivo de facto, para além de assentes em conceitos normativos e jurídicos, face ao que a resposta não pode deixar de ser a de que não se pode dar acolhimento à pretensão da A./recorrente [de considerar o deles constante como “provado”], impondo-se até que seja determinada a sua eliminação do elenco da matéria de facto.

Senão vejamos.

Na al. “a)” em referência, o “punctum saliens” é precisamente terem ou não os adquirentes dos dois prédios, após a aquisição dos mesmos, procedido à “anexação” de ambos (traduzida na integração dum no outro).

Como é bom de ver, o poder concluir-se que a invocada “anexação” se operou ou não, corresponde a um juízo conclusivo, isto é, seria o resultado da apreciação e valoração da factualidade que o pudesse substanciar positivamente e que tivesse sido alegada materialmente – e de forma concreta e especificada.

De referir que a A./recorrente alegou efetivamente o que teve por relevante a esta luz e para este efeito, mais concretamente nos arts. 15º a 24º da p.i., designadamente que no ano de 1994 o adquirente AA requereu junto das Finanças a retificação da área do art. ...37 para 65.200 m2 (correspondente à soma das áreas dos dois imóveis), o que foi confirmado pela Fiscalização Tributária em sede de avaliação do imóvel, que o próprio vendedor requereu a eliminação do prédio que vendeu (o ...32, por ter sido ocupado integralmente pelo outro que o comprador já tinha, o ...37), o que fez através de requerimento de retificação de área (nº 933/94) junto das ditas Finanças, que desde aí foram pagos os impostos com base em avaliação fiscal com referência aos ditos 65.000 m2, e bem assim que desde há mais de 20, 30 e 40 anos, a A. (por si e seus antecessores) vem retendo e fruindo o prédio com a área de 65.000 m2, tratando-o como um todo e atuando nesse sentido, nomeadamente procedendo à movimentação de terras por forma a alterar a morfologia do terreno, isto é, no sentido de o mesmo ficar uniformemente nivelado.

Sucede que esta factualidade só muito restritamente logrou resposta positiva – como flui inquestionavelmente do confronto dos factos “provados” e “não provados”, sem prejuízo de alguma dela não constar nem de uns nem de outros, por claramente “instrumental” e como tal não tendo de figurar expressamente (cf. art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil).

Como quer que seja, o que é certo é que a al. “a)” em referência [constante no elenco dos factos “não provados”] encerra manifestamente um juízo conclusivo.

O que idem se diga quanto à al. “d)” também em referência.

Na verdade, os dois prédios “constituírem um só” (ou não) é claramente um juízo conclusivo de facto e de direito que o julgador terá que tirar em termos de enquadramento jurídico da situação, mas que, por isso mesmo, não se pode considerar factualidade que possa ou deva figurar no elenco dos factos “provados” ou “não provados”.

Ademais, a alegação de que os prédios «foram sempre usados e fruídos como uma única unidade jurídica» remete claramente para um conceito normativo e de direito como é o de “unidade jurídica”, pelo que, também por aí não se pode considerar factualidade que possa ou deva figurar no elenco dos factos “provados” ou “não provados”.

                                                           ¨¨

Resta apreciar a pretensão de que seja reformulada a redação do ponto “16-” dos factos “provados” [quanto ao tempo verbal dele constante, a saber, de “confrontam” para “confrontaram”]

Cremos que a resposta já inteiramente se adivinha.

Como a própria A./recorrente reconhece nas suas alegações recursivas, a alteração pretendida seria a consequência natural e lógica do deferimento da pretensão precedente, a saber, que devia ficar consignado nos factos “provados” que os dois prédios passaram a ser um só.

Ora, tendo-se indeferido nos termos vindos de explicitar a uma tal pretensão, naturalmente que improcede esta decorrente e subsequente pretensão.    

                                                           ¨¨

Nesta linha de entendimento e sem necessidade maiores considerações, improcede “in totum” a impugnação à decisão sobre a matéria de facto deduzida pela A./recorrente.

Sendo que, na linha do entendimento que foi perfilhado para tanto, se determina a eliminação do elenco dos factos “não provados” das duas referenciadas alíneas [as als. “a)” e “d)”], por nem sequer aí deverem figurar.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, igualmente deduzida pela A./recorrente, questão essa já diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu desacerto na decisão de direito [deverá ser revogada a sentença, substituindo-a por outra que contemple a procedência da ação relativamente ao imóvel dela A., mais concretamente que «Reconheça que a A é dona e legítima proprietária do prédio melhor identificado no art. 1 da petição inicial, correspondente à soma das áreas dos arts. ...37 (actual art. ...05) e ...32 (actual art. ...00), adquirido por usucapião, com a configuração constante do levantamento junto àquele articulado sob Doc. nº 4».]

Como já supra se enunciou, o que a A./recorrente basicamente reclama e pretende é que lhe seja declarado e reconhecido o direito de propriedade sobre o seu prédio [art. ...37/atual art. ...05] considerando integrado neste a área do prédio inscrito na matriz sob o art. ...00 [anterior art. ...32].

De referir que a A./recorrente reconhece e aceita que a “anexação” desses prédios não foi por si operada/materializada através de processo formal junto de uma Repartição de Finanças, contudo sustenta que a “anexação” desses dois prédios – e, por conseguinte, das respetivas áreas – se operou por usucapião.

Será, então, que os factos “provados” permitem concluir que teve lugar uma “anexação” dos dois prédios pela A. (por si e antecessores) através de usucapião a favor da mesma?

Independentemente de esta construção jurídica em si nos merecer ab limine algumas reservas quanto à sua admissibilidade em tese (academicamente falando), o que é certo é que – e releve-se o juízo antecipatório! – a resposta aquela questão de base é inequivocamente de sentido negativo.

Senão vejamos.

Consabidamente, as presunções registrais emergentes do art. 7º do Código do Registo Predial não abrangem fatores descritivos, como as áreas, limites, confrontações, isto é, do seu âmbito exorbita tudo o que se relacione com os elementos identificadores do prédio, donde, as ditas presunções apenas fazem presumir que o direito existe e pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.

Daí decorre que no caso vertente cabia à A. ora recorrente lograr a prova dos factos em que assentava o seu título de aquisição – usucapião – do direito de propriedade sobre a unidade predial supra referida, a saber, como uma só unidade predial, com a área (total) de 65.200 m2, fruto da integração da área do prédio inscrito na matriz sob o art. ...00 [anterior art. ...32] na área do prédio inscrito na matriz sob o art. ...05 [anterior art. ...37].

Ora, o instituto jurídico da usucapião, de acordo com o disposto nos arts.1287º e 1316º, do C.Civil, representa uma das formas de aquisição do direito de propriedade.

Com efeito, de acordo com este último preceito legal citado, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei – art. 1316º do mesmo C.Civil.

 A noção de usucapião consta do art. 1287º: «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.».

 A posse, como é sabido, desdobra-se em dois elementos essenciais: o “corpus” (elemento objetivo) que se analisa no conjunto de atos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa e o “animus” (elemento subjetivo) que corresponde à atuação do possuidor com a convicção de que está a exercer um direito próprio – arts. 1263º, al.a) e 1251º do mesmo C.Civil.

Porém, considerando a dificuldade de demonstrar a posse em nome próprio, consagrou-se uma presunção de posse “animo domini”, por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa - “corpus”- razão pela qual, quando seja necessário o “corpus” e o “animus”, em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste, com base no disposto no artigo 1252º, nº2, do C.Civil.[2]

Das disposições especiais relativas à usucapião de imóveis resulta, além do mais, que:

- Só a posse pacífica e pública conduz à usucapião, pois se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos só começam a contar-se desde  que cesse a violência ou a posse se torne pública – art. 1297º.

- O lapso de tempo indispensável para a aquisição por usucapião é variável – cfr. arts. 1294º a 1296º.

- Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião tem lugar ao  termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé e de vinte anos se for de má-fé – art. 1296º do C.Civil.

Vejamos então o caso vertente.

Sendo certo que importa ter presente que, tanto quanto resulta dos autos, os antecessores da A. [mormente AA e mulher BB] eram proprietários de ambos os prédios, os quais eram contíguos entre si [confrontando entre si pelo lado nascente], sendo que os dois prédios tinham a mesmas características e composição [basicamente florestal – de “pinhal e eucaliptal”].

Ora, com relevo para a apreciação da questão em apreço provou-se que desde que adquiriram os dois prédios, os referidos AA e mulher BB, por si, e em cada um desses prédios de forma indistinta, os cuidaram, mandando limpá-los, cortando madeira e depois semeando-os de novo, zelando-os, nivelando-os em parte, com deslocalização de saibro para aterro [cf. facto “provado sob “17-”], o que fizeram à frente de todos, de forma pacífica e pública e sem qualquer oposição, de maneira contínua [cf. facto “provado sob “18-”], sendo que tal aconteceu em relação a esses dois prédios, quer por si quer por aqueles que lhe sucederam, até à aquisição por parte da aqui Ré/recorrida [na venda em execução que teve lugar em 2018 – cf.  factos “provados sob “7-” e “18-”].

Que dizer?

Em nosso entender, salvo o devido respeito, que daqui não resulta suficientemente provado o “corpus” da posse correspondente ao direito de propriedade sobre os imóveis como constituindo uma só unidade predial [nem com a área (total) de 65.200 m2, nem qualquer outra].

Na verdade, de tal factualidade não resulta minimamente que os ditos antecessores da A. tivessem atuado sobre aquela realidade predial tratando-a como um todo, e atuando nesse sentido: um cuidar, mandar limpar, cortar madeira e depois semear de novo, bem como um zelar de ambos os prédios, enquanto feito indistintamente, era em si natural e lógico, enquanto traduzindo uma atuação conjunta e simultânea, face a prédios com a mesma composição e características, mormente porque contíguos.

O que relevaria – e seria impressivo e concludente! – seria, por exemplo, que tivesse sido “provado” que se tinham eliminado os marcos naturais (ou colocados) que estabeleciam a estrema entre ambos, que tivesse sido “provado” que se tinha feito uma qualquer replantação que indiciasse ser uma única e mesma propriedade (nomeadamente de árvores implantadas e sobre a anterior linha de estrema), que se tivesse provado que se havia atuado no sentido de alterar a morfologia do terreno ao nível da estrema entre ambos (nomeadamente nivelando-os integralmente e estabelecendo uma perfeita continuidade entre os prédios), etc.   

Ou, pelo menos, que tivesse resultado apurado que se havia diligenciado junto das Finanças no sentido da retificação da área do art. ...37 para 65.200 m2 (correspondente à soma das áreas dos dois imóveis), e que tal tivesse sido confirmado pela Fiscalização Tributária em sede de avaliação do imóvel, ou que o próprio vendedor tivesse requerido a eliminação do prédio que vendeu (o ...32, por ter sido ocupado integralmente pelo outro que o comprador já tinha, o ...37), e que tal tivesse sido feito através de requerimento de retificação de área junto das ditas Finanças[3], e bem assim que desde aí tivessem sido pagos os impostos com base em avaliação fiscal com referência aos ditos 65.000 m2

Ora nada disso sucedeu [leia-se, resultou “provado”[4], ou é legítimo concluir do que restritamente se encontra “provado”]!

Assim sendo, e na medida em que o “animus” em si não resultava de todo provado, se não existiu “corpus” da posse, nem sequer existe qualquer presunção da existência de “animus” que possa ser invocado/afirmado.

O que tudo serve para dizer que entendemos não resultar provado, ou ser de concluir, pela existência de uma atuação dos antecessores da A. no sentido de usar e fruir os dois referenciados prédios como uma “única unidade jurídica”.

Donde que soçobra inapelavelmente a pretensão da A./recorrente no sentido de que a “anexação” desses dois prédios – e, por conseguinte, das respetivas áreas – se operou por usucapião.

Ademais, salvo o devido respeito, dar tutela à invocada usucapião, no sentido e para os efeitos pretendidos, sempre consistiria em legitimar uma atuação em fraude à lei – como tal vedada ex vi do disposto no art. 280º do C.Civil! – isto com referência à escritura de “justificação” que os já referenciados AA e mulher BB fizeram no ano de 1994, relativamente ao prédio então inscrito na matriz sob o art. ...37, que fora adquirido como tendo a área de 25.200 m2, em ordem a o “transformar” no atual art. ...05, com a área de 65.200 m2 (por via da integração nele da área de 38.000 m2 do prédio inscrito na matriz sob o art. ...32) .

Com efeito, a A./recorrente, sem qualquer hesitação ou rebuço, afirma e sustenta nas suas alegações recursivas, que posteriormente a essa escritura de “justificação”, no ano de 1997, foi registada a aquisição daquele art. ...37 a favor de BB (na sequência da partilha de bens subsequente à separação judicial de pessoas e bens de AA), do que decorreu que o prédio com o (antigo) art. ...37 deixou de pertencer a AA, acrescendo que, «após a partilha de bens outorgada entre AA e BB, AA não mais exerceu qualquer acto de posse sobre o prédio inscrito na matriz sob o art. ...32 (actual art. ...00), do qual deixou de ser proprietário» (?!) [sublinhado a negrito da nossa autoria]

Mais prossegue ainda a A./recorrente com a invocação, constante das “conclusões” do recurso, de que é toda esta “engenharia” que permite sustentar a sua pretensão, a saber:

«38. Conjugando-se tal circunstancialismo com a celebração da escritura de justificação a que acima se alude, facilmente se pode concluir que a outorga desta visou “formalizar” a “anexação” dos dois referidos imóveis e, subsequentemente, a sucessiva venda do actual art. ...05 com dita área de 65.200 m2, correspondente à soma dos antigos arts. ...37 e ...32.»

Que dizer?

Desde logo que não se vislumbra a necessidade, nem fundamento legítimo, para a celebração duma escritura de “justificação” relativamente ao prédio com o art. ...37, quando o mesmo havia sido adquirido por escritura pública no ano de 1973 à “...” [cf. facto “provado” sob “5-”], donde, relativamente a esse prédio existia título jurídico e formal.

Para além disso, é justificado dizer-se que nem essa escritura se mostra materialmente apta e idónea para o fim que, confessadamente, visava, na medida em que, contraditoriamente com o mesmo, nela se invocou que o prédio com o art. ...37 tinha como confrontação a poente “SS e outro”, isto é, precisamente com o prédio correspondente ao art. ...32 (segundo os dados dos autos, nomeadamente pelo confronto de fls. 25 e 48), cuja subsistência e autonomia enquanto tal assim teria ficado salvaguardada!

É, assim, caso para dizer que – e releve-se o plebeísmo! – que “não bate a bota com a perdigota”, pois que, face a esse dado, se torna perfeitamente legítimo dizer que o prédio (e respetiva área) correspondente ao art. ...32 não foi visado com a escritura de “justificação”, tornando até plausível a tese alternativa aduzida nas contra-alegações da Ré/recorrida, a saber, que o que terá sido efetivamente visado foi o prédio (e respetiva área) correspondente ao art. ...39 (cf. fls. 48), com o art. ...37 confrontando a norte…

Sem embargo do vindo de dizer, acresce decisivamente que o que a A/recorrente pretende é que seja tutelado e legitimado um “emparcelamento” que foi operado fora do determinado legalmente.

Com efeito preceitua-se pela seguinte forma no C.Civil:

                                               «Artigo 1382.º

                                                                      (Emparcelamento)

1. Chama-se emparcelamento o conjunto de operações de remodelação predial destinadas a pôr termo à fragmentação e dispersão dos prédios rústicos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições técnicas e económicas da exploração agrícola.

2. Os termos em que devem ser realizadas as operações de emparcelamento são fixados em legislação especial.» [sublinhados nossos]

Tendo em conta o período histórico em causa, podem-se elencar com relevo para esta matéria os diplomas que sucessivamente sobre ela regularam, nomeadamente num primeiro momento o Decreto-Lei n.º 384/88 de 25 de Outubro [diploma do emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas] e o DL n.º 103/90, de 22 de Março [diploma que desenvolve as bases gerais do regime de emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos], e, num segundo momento, a Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto [estabelece o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária], sendo que em ambos o emparcelamento obedecia a regras de alguma complexidade, constituindo um procedimento a ser promovido junto de órgãos do Estado [Direcção-Geral de Hidráulica e Engenharia Agrícola e Municípios/Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, respetivamente].

Como é bom de ver, nada disso teve lugar no caso vertente.

E mesmo com referência ao procedimento mais simples da “anexação de prédios rústicos contíguos”, previsto nos arts. 50º de ambos os citados diplomas, dos quais resulta que os prédios nessas condições «devem ser anexados oficiosamente pelo serviço de finanças, ou a requerimento do proprietário», também inequivocamente tal não sucedeu no caso vertente.

Neste quadro, na invocada tese da A./recorrente, o que os antecessores da A. [os ditos AA e mulher BB] alegadamente teriam feito foi, face à inobservância dos procedimentos legais estabelecidos, tendo em vista o objetivo da “anexação” jurídica dos prédios, ao arrepio do determinado legalmente, “contornar” a situação através da invocada escritura de “justificação”, o que ademais fizeram invocando pressupostos inverificados, nomeadamente a falta de título.

 Só que, existirá fraude à lei quando se lança mão de uma norma de cobertura para lograr ultrapassar – ou incumprir – a norma defraudada, ou seja a que seria a aplicável à relação jurídica.

Trata-se de, por via indireta, por através da prática de um ou vários atos lícitos (já com propósito de defraudar, numa concepção subjetivista; ou mesmo sem tal propósito, se aderindo a uma concepção objectiva) obter um resultado que a lei proíbe.

Já nos foi doutamente ensinado serem fraudulentos os atos que tenham por escopo «contornar ou circunvir uma disposição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que, por essa forma, pretendem burlar a lei.»[5].

Sendo certo que «A sanção da fraude à lei não necessita da nulidade, é-lhe suficiente a sanção de ineficácia. A nulidade acarreta a ineficácia e, por isso, parece resolver alguns casos, mas é excessiva porque, na verdade, não é necessária uma ineficácia total (que é excessiva) sendo suficiente uma ineficácia específica, que se limite à desconsideração do que seria a eficácia fraudatória. Esta solução da desconsideração é a que está no artigo 21º do Código Civil e resolve todas as questões de fraude à lei mantendo os atos e factos instrumentais, mas privando-os da eficácia de aplicação ou de desaplicação do regime jurídico de ordem pública que, de outro modo, seria aplicado ou desaplicado.»[6]

Dito de outra forma: não pode ser legitimada a aquisição por usucapião ora pretendida, com referência e suporte na dita escritura de “justificação”, antes se impõe concluir pela “irrelevância” desta última para esse efeito.

Em todo o caso, se bem que a situação jurídica que serviu de fundamento ao pedido de reconhecimento da “anexação” seja a usucapião e ainda que este instituto tenha potencialidades para, uma vez comprovada judicialmente a materialidade que lhe está subjacente, poder prevalecer sobre a proibição imposta pelo art. 1382º do CC, a verdade é que a materialidade a tanto necessária não resultou provada, como exposto precedentemente.[7]

Nestes termos, improcede sob qualquer enquadramento que se faça, a pretensão recursiva da A./recorrente, nada havendo que censurar ao sentido da decisão em recurso.  

Donde, “brevitatis causa”, improcede fatalmente o presente recurso.

                                                           *

(…)                                                                *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo o sentido da sentença recorrida nos seus precisos termos.  

            Custas do recurso pela A./recorrente.                                                                                                                                 *

Coimbra, 25 de Outubro de 2022

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, 2ª edição, a págs. 8; MOTA PINTO, in “Direitos Reais”, 1970-1971, a págs.191; HENRIQUE MESQUITA, in “Direitos Reais”, 1967, a págs. 72.

[3] Sendo que se invocou que o fora com o “nº 933/94”!
[4] Atente-se que em contraponto ao “nivelamento uniforme” que havia sido invocado, apenas resultou provado que os prédios foram “nivelados em parte”…
[5] Assim por MANUEL DE ANDRADE, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1992, II, a págs. 337.
[6] Neste sentido vide RUI PINTO DUARTE, in “A Fraude à Lei – Alguns Apontamentos”, Revista de Direito Comercial, acessível em www.revistadedireitocomercial.com, 2020-08-30, a págs. 1614.
[7] Cf., com algum paralelismo, a situação subjacente ao acórdão do STJ de 07.11.2006, proferido no proc. nº 0625149, acessível em www.dgsi.pt/jstj.