REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
NECESSIDADE DE APOSTILHA
Sumário


A revisão e confirmação em Portugal de uma Sentença proferida por Tribunal Suíço não carece de Apostilha (apesar de ambos os Países serem subscritores da Convenção de Haia de 05-10-1961) se, quanto à autenticidade do documento respectivo ou do seu reconhecimento, não se suscitarem fundadas dúvidas.

Texto Integral


I. RELATÓRIO

1.1. – Partes e objecto da causa

R. B., de nacionalidade portuguesa, natural de …, Esposende, residente em Route de …, Suíça; e C. M., de nacionalidade portuguesa, natural de Esposende, residente na Rua … Esposende;
Instauraram, conjuntamente, em 10-08-2022, neste Tribunal, ao abrigo dos artºs 80º e sgs., e 979º, e sgs., do CPC, a presente Acção Especial.
Pediram ambos, por consenso, na mesma petição e patrocinados pelo mesmo advogado (conforme procuração junta), a revisão e a confirmação da sentença, proferida em 15-06-2021, por Tribunal Suíço, que decretou o divórcio entre eles.

Alegaram, para tanto, em síntese, que a referida sentença obedece a todos os requisitos exigidos no artº 980º, do CPC, nomeadamente que “consta de documento [sobre] cuja autenticidade e inteligência não deve haver dúvidas” (item 3º, da pi),
Juntaram os documentos pertinentes.

Em face do acordo, foi, por despacho de 08-09-2022, considerada finda a fase dos articulados, declarada a desnecessidade de efectuar quaisquer outras diligências instrutórias e, ainda, na presunção de que os requerentes tal dispensavam, facultado o exame do processo para alegações, em conformidade com o disposto no nº 1, do artº 981º, CPC, apenas ao Ministério Público.

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta, apresentou, em 12-09-2022, requerimentonos termos e para os efeitos do disposto no art. 982º nº 1 CPC”, dizendo, apenas, que “Compulsados os autos, verifica-se que do documento apresentado com a PI, que contém a sentença proferida por tribunal estrangeiro, cuja revisão e confirmação se pretende, não consta qualquer Apostila, podendo, assim, suscitar-se dúvidas sobre a autenticidade do documento” e requerendo que o Tribunal “se digne determinar a notificação dos requerentes para, em prazo a fixar, suprirem tal deficiência”.

Pelo Relator, no dia imediato, foi exarado o seguinte despacho:

Conquanto, salvo o devido respeito, não se fundamente, no precedente requerimento, como ou em que medida resulta da ausência de Apostilha a possibilidade de se suscitarem dúvidas sobre a autenticidade da sentença suíça, nem se descortinando objectivas razões para tal, ouçam-se, no entanto, e antes de mais, os requerentes sobre o solicitado pelo Ministério Público.
Caso assim o entendam, e de modo a agilizar o procedimento, poderão espontaneamente juntar o aludido elemento documental.”.

Responderam os requerentes, em resumo, que o documento continente da sentença a rever está assinado pelo Juiz e pelo Escrivão do respectivo Tribunal Suíço. Não foi apresentada razão para se duvidar da sua autenticidade. A Apostilha apenas autentica a origem do documento público subjacente, não se relaciona com o conteúdo dele. Ela apenas permite que se legalize o documento, arredando a via diplomática, nada mais acrescentando. Concluem que não se verifica qualquer deficiência e que os autos devem prosseguir.

O Ministério Público, notificado, nada contrapôs e mais nada alegou.

1.2. Saneamento

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.

O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.

As partes, dotadas de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente patrocinadas.

Não há outras nulidades ou excepções, alegadas ou de que cumpra oficiosamente conhecer, susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito.

Há, porém, a questão prévia da necessidade ou desnecessidade de Apostilha que se irá conhecer de seguida.

2. FACTOS PROVADOS

Com base nos diversos documentos juntos, não impugnados, e no acordo das partes, consideram-se relevantes e provados os seguintes factos:

a) Os requerentes casaram, um com o outro, civilmente, em 30-12-1999, sem convenção antenupcial, na Conservatória do Registo Civil de Esposende, e, catolicamente, em ..-08-2001, na freguesia de …, Esposende, conforme certidão do Assento de Casamento e Averbamentos, nº …, do ano de 2012, da CRC de Esposende - cfr. documento respectivo junto e aqui dado como reproduzido.
b) Encontra-se junta com a petição inicial a tradução, oficialmente certificada por tradutor autorizado para a língua portuguesa, de uma cópia (fotocópia) de sentença, escrita em língua francesa – documento nº 2.
c) O acto fotocopiado (sentença) apresenta como entidade decisora e dele emitente o Tribunal de 1ª Instância – 7º Juízo – da República e Cantão de Genebra, Suíça, ostenta o Brasão respectivo, refere o número do processo JTPI/7999/2021 e o número do julgamento C/7838/2021-7, o nome do respectivo Juiz bem como o do Escrivão e mostra-se por ambos rubricado em todas as folhas e no final assinado, aí constando também aposta a declaração de que a sentença foi devidamente notificada às partes em 08-07-2021, com as respectivas advertências – documento 2.
d) Encontra-se também junta com o referido articulado a tradução, oficialmente certificada por tradutor autorizado para a língua portuguesa, de uma certidão, escrita em língua francesa – documento nº 3.
e) Verifica-se dessa certidão que ela foi emitida em 13-09-2021, pelo mesmo Tribunal Civil, cuja identificação e Brasão do Cantão ostenta, nela declarando o respectivo Escrivão que o julgamento número C/7838/2021-7 realizado no processo número JTPI/7999/2021 adquiriu força de caso julgado em 21-08-2021, mostrando-se tal certidão assinada pelo Escrivão e carimbada com um carimbo que contém os dizeres alusivos ao Tribunal e, bem assim, o Brasão do Cantão respectivo – documento 3.
f) Da sentença referida em b) e c) resulta que o Tribunal respectivo, com data de 15-06-2021, decretou a dissolução, por divórcio, do casamento referido em a) e homologou o acordo entre ambos os requerentes quanto à casa de morada de família, à guarda da filha, alimentos e demais questões respectivas.

3. O DIREITO

Questão prévia - Apostilha

A cópia (fotocópia) do acto – sentença estrangeira – cuja revisão vem pedida não tem Apostilha. Tal como a não tem a certidão que atesta o respectivo trânsito.
A conformidade ou exactidão da referida cópia (reprodução mecânica) com o original por ninguém foi posta em causa nos autos (impugnada) – artº 444º, nº 1, CPC.
Por isso, ela faz prova plena do documento que incorpora a sentença original que representa – artº 368º, do CC.
As partes concordam que a sentença documentada é autêntica.
Apenas o Ministério Público notou a falta de Apostilha, pediu o suprimento de tal deficiência, fundamentando-o na alegação de que podem suscitar-se dúvida sobre a autenticidade.
Ao que os requerentes objectaram que ela não é necessária.
Ora, sobre a questão já nos pronunciámos em recente despacho de 02-10-2022, proferido em idêntico processo em que também ela se suscitou – o nº 125/22.1YRGMR.
Em processo semelhante deste Tribunal e Secção nº 13/21.YRGMR –, sobre a mesma questão e em idêntico sentido também já se pronunciou, em Decisão Sumária de 05-07-2022, a Exmª Desembargadora Alexandra Lopes.
Vamos, por isso, uma vez que razões para qualquer alteração do entendimento assumido não foram opostas nem as vislumbramos, seguir, e reproduzir mesmo, adaptando, o que explanámos no aludido processo 125/22.1YRGMR, mas que para aqui é transponível.

Assim:
Na alínea a), do artº 980º, do CPC, consta como um dos requisitos necessários para que a sentença estrangeira a rever seja confirmada:
Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão”.
Se as houver, se forem suscitadas e elas não forem removidas é, pois, apodítico concluir que a sentença não poderá ser confirmada.
Como se viu, só o Ministério Público e apenas por não constar a Apostilha, aventou a possibilidade de se suscitarem dúvidas, sem a menor sustentação fáctica ou invocação de qualquer argumento sequer, sobre a autenticidade do documento.
Ao Tribunal competindo verificar [1], oficiosamente, se concorre essa condição (e as demais) – o que significa dever examinar o documento, certificar-se e assegurar desse modo que, quanto à sua autenticidade, não há motivos para duvidar –, também nenhum este encontrou, nem encontra, nem lhe vem apontado, sendo que a falta de Apostilha não tem como consequência gerar tal efeito, nem uma afirmação vaga ou teórica da possibilidade de alguma dúvida surgir releva para tal.
O artº 983º, nº 1, em sintonia com o sistema de delibação (revisão formal) vigente entre nós [2] limita as possibilidades de impugnação do pedido a certos e determinados fundamentos – “só pode ser impugnado…” – e, entre eles, o da falta do requisito da alínea a), do artº 980º.
Só que este é, como se viu: que “não haja dúvidas sobre a autenticidade…”.
O artº 982º, nº 1, reserva ao Relator a realização das diligências que “tenha por indispensáveis”, não lhe impõe a efectivação das que, se considerar não o serem, lhe sejam requeridas pelas partes.
Faltará, pois, o requisito referido se tais dúvidas emergirem do documento.
Verificar-se-á o mesmo se, ao invés, nenhuma for suscitada dispositivamente, nem verificada oficiosamente.
A condição legalmente exigida apresenta-se na negativa – “Que não haja dúvidas sobre a autenticidade…”. Se nenhuma for suscitada pelas partes, pelo Ministério Público, nem sobressair do documento por ocasião do exame oficioso do mesmo, há-de positivamente presumir-se intocada, logo assente, aquela autenticidade e, assim, verificado o requisito, considerando-se, assim, que inexistem, nesta hipótese, quaisquer dúvidas e que a autenticidade está verificada.
O documento de que conste a sentença, ou melhor, que a comprove, refere-se, como é evidente, a um documento originalmente estrangeiro e a sua autenticidade afere-se segunda a respectiva lei.
Havendo dúvidas sobre a autenticidade, o tribunal, nos termos do artº 370º, do CC: i) pode ouvir a autoridade ou oficial público a quem o documento é atribuído com vista a esclarecê-las e removê-las; ii) pode excluir oficiosamente a presunção de autenticidade quando seja manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta; iii) julgá-la ilidida mediante prova (e pressuposta alegação) em contrário.

Efectivamente, tal norma dispõe:

1. Presume-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respectivo serviço.
2. A presunção de autenticidade pode ser ilidida mediante prova em contrário, e pode ser excluída oficiosamente pelo tribunal quando seja manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta de autenticidade; em caso de dúvida, pode ser ouvida a autoridade ou oficial público a quem o documento é atribuído.”.

Entre nós, a autenticidade de um documento pressupõe, segundo o nº 2, do artº 363º, e o artº 369º, do nosso Código Civil (CC), que ele foi exarado com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência, em razão da matéria e do lugar, sem que estejam impedidas de o lavrar ou, dentro do círculo de actividades que lhes é atribuído, designadamente por notário ou outro oficial público provido de fé pública, considerando-se exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respectivas funções.
A força probatória plena dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade – artºs 371º e 372º-

Porém, conforme dispõe o artº 365º, sobre documentos passados em país estrangeiro:

1. Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.
2. Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização.”
Note-se que relativamente à questão diversa das reproduções mecânicas (caso das cópias ou fotocópias), elas “fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão” – artº 368º.

Impugnação esta que deve ser feita de acordo com o artº 444º, do CPC.

Como, sobre a autenticidade de documentos passados em país estrangeiro, comentavam P. Lima e A. Varela acerca daquele artº 365º [3]:

A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente da legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento”.

A respeito da legalização dos documentos passados em país estrangeiro a lei processual estabelece, no artº 440º, nº 1, do actual CPC (correspondente ao 540º, do velho), que:
Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.”.

A esta luz, considera-se, pois, legalizado, “nos termos da lei processual” e para o efeito de fazer a prova adequada (plena, no caso), como decorre do artº 365º, CC, o documento “desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo” – artº 440º, nº 1.
Assim se considerará nessa condição ou pressuposto, mas sem prejuízo do que estiver “estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais” – nº 2, do mesmo artigo.
Não se questionando que a sentença estrangeira objecto do presente pedido de revisão constitui, prima facie, à luz da lei helvética, um documento autêntico, tal como, aliás, o é à luz da lei nacional, nem que, portanto, ele foi emitido em conformidade com as normas legais daquele país – ou seja, por um tribunal, no exercício da sua função e de acordo com as suas competências, com observância dos requisitos formais –, é certo que, para ele estar abrangido pela presunção de autenticidade e não ser necessária a demonstração desta – isto é, de estarem reunidos aqueles ditos pressupostos – e, consequentemente, para ele se revestir de eficácia probatória plena do juízo de facto e de direito e decisão nele contidos e, ainda, para poder produzi-la no processo civil português como se tivesse esta origem, maxime no que tem por objecto a revisão e reconhecimento da sentença nele contida, há-de a assinatura do respectivo juiz estar reconhecida pelo selo do respectivo serviço.
É o que resulta da conjugação das citadas normas.
Mas quando é que, não obstante, pode ser exigida [4] a sua legalização?
O nº 2, do artº 365º, CC, responde: caso não esteja legalizado, se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade [5] ou da autenticidade do reconhecimento [6].
Sublinhe-se que a legalização, nos termos da lei processual portuguesa, do documento autêntico passado em país estrangeiro assegura a presunção da sua autenticidade. Mas note-se também que a legalização, mesmo que regular, não impede a possibilidade de a autenticidade ser ilidida ou até oficiosamente excluída, como já se viu, à luz do nº 2, do artº 370º, CC.
Portanto, a legalização não é, à partida, necessária. Muito menos obrigatória. Pode ser usada à cautela. Pode ser exigida, se se perfilarem as referidas dúvidas. Tem a vantagem de assegurar a presunção. Esta, contudo, pode sempre ser ilidida ou excluída.
Assim, se a parte espontaneamente tencionar juntar a legalização ou se o tribunal, por fundamentadamente ter dúvidas sobre a autenticidade, a exigir, é que se coloca o problema de como fazê-la ou obtê-la de modo a que o documento possa considerar-se legalizado.
É disso que trata e é aí que deve convocar-se o citado artº 440º, do CPC.
Chegámos, pois, ao âmago do nosso problema.
O artº 540º, do velho CPC, estabelecia que, para o efeito de se poderem considerar legalizados os documentos autênticos estrangeiros, requeria-se o reconhecimento da assinatura do funcionário público estrangeiro autor do acto por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo (cuja assinatura também teria de ter o selo branco consular).
O artº 440º, do novo CPC, acolhendo a mesma previsão normativa, cuidou ainda de ressalvar expressamente o estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais – como nem seria até necessário face ao disposto no artº 8º, da Constituição da República.
Assim, os documentos estrangeiros serão considerados também legalizados nas condições previstas no direito internacional vinculante do Estado Português.
É aí que deve convocar-se a Convenção de Haia, de 05-10-1961, que foi entre nós aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 48 450, publicado no DR nº 148, de 24-06-1968.
Portugal e a Suíça estão ambos vinculados à mesma, é certo.
Tal instrumento, como resulta do seu título – Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros – e se proclama no seu Preâmbulo, visou exactamente suprimir a exigência de legalização diplomática ou consular entre nós prevista no artº 540º (actual 440º) CPC – exigência cabível nas condições já referidas (artº 365º, nº 2, CC).
Ele aplica-se aos actos públicos lavrados no território de um dos Estados contratantes que devam ser apresentados no território de outro deles – artº 1º.
Aí se define o que são, para tal efeito, actos públicos, nenhuma dúvida existindo de que, na sua definição, se enquadra a sentença judicial enquanto acto jurisdicional provindo de órgão da justiça pública, assim como não a havendo também de que não deixa de ser acto público (mas administrativo) aquele em que um funcionário desse órgão (caso do Escrivão do Tribunal) certifica a conformidade de uma cópia (ou fotocópia) daquele com o original respectivo e o trânsito em julgado.
Abra-se aqui um parêntesis para deixar claro que tudo aquilo que se refere à autenticidade do próprio acto estrangeiro e sua legalização compreende a autenticidade e a legalização do acto de reconhecimento ou certificação, sendo certo que, por isso mesmo, as Conclusões e Recomendações (nº 11, de 2003) emanadas da Comissão Especial sobre a aplicação prática da Convenção de Haia, designadamente no que concerne à Apostilha, foram no sentido de que as cópias de documentos também serão de considerar como actos susceptíveis de ser abrangidos pela supressão de legalização diplomática ou consular e de esta poder ser substituída pela Apostilha [7].
Ora, o que a Convenção dispôs foi, não que a legalização diplomática ou consular dos actos passava a ser substituída pela Apostilha e esta como obrigatória, mas antes que tal legalização passava, por regra, a ser dispensada.
Nesse sentido, o artº 2º, refere que “Cada um dos Estados contratantes dispensará a legalização dos actos aos quais se aplica a presente Convenção e que devam produzir os seus efeitos no seu território. A legalização, no sentido da presente Convenção, apenas abrange a formalidade pela qual os agentes diplomáticos ou consulares do país sobre cujo território o acto deve produzir os seus efeitos reconhecem a assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto.”.
Dispensará a legalização … – bem entendido –, quando ela for pretendida ou exigível. Fora isso, não sendo obrigatória, não faria sentido tratar-se de prescindir dela e dispor sobre isso.
Quando muito, ou seja, nas situações em que a legalização diplomática ou consular se tornar necessária, então é que poderá, para a alcançar e como sucedânea daquela, ser exigida, como única formalidade, a Apostilha (e nem sequer esta se os costumes vigentes no Estado onde se celebrou o acto ou um acordo entre dois ou mais Estados contratantes a afastarem, simplificarem ou dispensarem).

Veja-se o artº 3º:
A única formalidade que pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto consiste na aposição da apostila definida no Artigo 4.º, passada pela autoridade competente do Estado donde o documento é originário.
Todavia, a formalidade mencionada na alínea precedente não pode ser exigida se as leis, os regulamentos, os costumes que vigorem no Estado onde se celebrou o acto, ou um acordo entre dois ou mais Estados contratantes afastem, simplifiquem ou dispensem o acto da legalização.”.
Suprimiu-se, portanto, deliberadamente, a legalização diplomática ou consular mas previu-se ao mesmo tempo, como ressalva abrangente das situações em que a autenticidade do documento ou do seu reconhecimento (da assinatura do seu autor, respectiva qualidade, autenticidade do selo ou carimbo) suscitem dúvidas, que, então, poderá ser exigida a Apostilha. [8]
Mas só nessas.
Não existe, pois, uma obrigatoriedade de, à partida, quem pretende usar documento estrangeiro, o dotar e se munir da Apostilha.
A sua exigência e necessidade só surgirão exactamente nas mesmas condições e circunstâncias em que, já antes, surgia a da legalização diplomática ou consular, todavia suprimida pela Convenção – ou seja, se houver fundadas dúvidas acerca da autenticidade do documento.
A obrigatoriedade, insista-se, fora, em princípio, abolida [9] e, como diziam P. Lima e A. Varela, ela só ressurgirá se se suscitarem tais dúvidas sobre a autenticidade do acto ou a autenticidade do reconhecimento.
Então é que poderá ser exigida a Apostilha.
Não as havendo, o documento é autêntico, nos termos do artº 363º, nº 2, e por força do artº 365º, nº 1, CC.
A Apostilha, conforme prevê artº 5º da Convenção, enquanto única formalidade susceptível de ser exigida, “atestará a veracidade da assinatura, a qualidade em que agiu o signatário do acto e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto” – os requisitos da autenticidade do documento.
Mostrando-se estes evidentes, e parafraseando o Acórdão da Relação de Lisboa de 01-02-2011 [10], “Perante o que se expôs, não há dúvidas sobre a autenticidade do documento onde consta a sentença a rever e por isso, não se mostra necessário que se proceda à sua legalização nos termos da lei processual através do reconhecimento da assinatura do funcionário do referido Tribunal Superior estrangeiro que emitiu a certidão ou através da apostilha prevista na Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961.”
A tal entendimento se aderiu no Acórdão do STJ, de 12-07-2011 [11], que corroborou e confirmou aquele, e no da Relação de Lisboa, de 12-05-2020, já atrás citado.
Segue-o a escassa Doutrina que conseguimos localizar sobre o assunto. [12]
Embora, que saibamos, a Jurisprudência divirja.
Em suma, julgamos nós: Só suscitando-se fundadas dúvidas sobre a autenticidade da sentença a rever ou da autenticidade do seu reconhecimento ou certificação, será exigível a legalização por meio de Apostilha. Nenhuma se suscitando (nem se impugnando a exactidão das reproduções mecânicas dos actos), nada mais é necessário.
Ora, no caso aqui em apreço, nenhuma razão para duvidar se detecta e nenhuma vem apontada, acrescendo-lhe até a especial mas sempre relevante circunstância de ser consensual a posição de ambos os directos interessados requerentes quanto à autentidade da sentença cujo revisão pedem por acordo, bem como quanto à genuinidade dos documentos juntos, não objecto de qualquer impugnação.
Não é necessária, por tudo isso, a Apostilha. Não se trata de diligência indispensável. A sua exigência infundada não é legal e a sua junção redundaria em acto inútil, logo proibido, nos termos do artº 130º, do CPC. Colidiria, aliás, com os objectivos subjacentes à lei adjectiva nos artºs 6º e 7º. Igualmente aos visados pela Convenção de Haia.
Têm, pois, razão os requerentes.
Não a tem o Ministério Público – ressalvado o devido respeito pela sua ou por outra opinião diversa desta –, uma vez que a hipótese de dúvida aventada não se mostra justificada e, por isso, não há deficiência a suprir.
Daí que seja de indeferir o seu requerimento e de prosseguir, posto que nenhuma outra questão se coloca que obste ao conhecimento do mérito da causa.
Para o efeito, consideram-se plenamente provados os factos contidos no documento a rever e na certidão do trânsito em julgado adjunta – artº 371º, nº 1, CC.

*
Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções ou regulamentos comunitários e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia na ordem jurídica interna portuguesa, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar judicialmente revista e confirmada pelos tribunais nacionais – artº 978, nº 1, CPC.
Porém, o sistema português de revisão da sentença estrangeira não se destina a um reexame do seu mérito (salvo na hipótese residual, não alegada, prevista no nº 2, do artº 983º), mas tão só à verificação do preenchimento dos requisitos previstos nas diversas alíneas do artigo 980º, do Código de Processo Civil, como necessários e suficientes para que ela seja confirmada (Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume II, 1981, páginas 139 a 204).
No caso, o exame do documento que transcreve e certifica a sentença a rever, como vastamente se explanou, não deixa dúvidas sobre a sua autenticidade, nem sobre a inteligibilidade da decisão traduzida.
O mesmo sucede em relação ao seu trânsito em julgado, certificado no documento junto.
Não foi alegado nem há nos autos o menor indício de que a competência do tribunal estrangeiro referido tenha sido provocada em fraude à lei.
À luz do artº 63º, CPC, a matéria em causa não é da exclusiva competência dos tribunais nacionais.
Não há notícia de haver causa afecta a tribunal português susceptível de fundamentar a invocação de litispendência ou de caso julgado.
Não se vê que o julgado seja susceptível de conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Em suma: estão verificados todos os requisitos e condições de que depende a confirmação da sentença, e, portanto, da procedência do pedido.

4. DECISÃO

Pelo exposto, decide este Tribunal da Relação de Guimarães confirmar a sentença proferida em 15-06-2021, pelo Tribunal Civil de 1ª Instância – 7º Juízo – da República e Cantão de Genebra, Suíça, transitada em julgado em 21-08-2021, que decretou o divórcio entre os requerentes R. B. e C. M., acima identificados.
*
Custas pelos Requerentes (artºs 527º e 535º, do CPC).
*
Valor da causa: € 30.000,01 (artºs 303º, nº 1, e 306º, nº 1, ambos do CPC).

Notifique.
*
Oportunamente, cumpra o disposto nos artigos 7º, nº 2, 78º, nºs 1 e 2, do CRC, na redacção introduzida pelo DL 324/2007, de 28 de Setembro, e Lei 103/2009, de 11 de Setembro, com referência ao Assento de Casamento nº 353, de 2019, da CRC de Braga.
Guimarães, 19 de Outubro de 2022

Assinado electronicamente no Citius pelo Relator José Fernando Cardoso Amaral (Juiz Desembargador).


1. Repare-se que o artº 984º em vista apenas é isso que diz: “verifica”. Nem sequer exige que “apure”, como sucede quanto aos outros requisitos se, em resultado de tal “apuramento” concluir pela sua falta.
2. Como se tem reafirmado, o sistema português de revisão da sentença estrangeira não se destina a um reexame do seu mérito (salvo na hipótese residual, prevista no nº 2, do artº 983º, mas tão só à verificação do preenchimento dos requisitos previstos nas diversas alíneas do artigo 980º, do Código de Processo Civil, como necessários e suficientes para que ela seja confirmada – Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume II, 1981, páginas 139 a 204.
3. Código Civil Anotado, volume 1, 4ª edição, 1987.
4. Se por ela não tiver diligenciado previamente (em conformidade com a lei processual) a parte que o oferece e dele pretende prevalecer-se, e a não tiver espontaneamente oferecido nos autos de modo a prevenir quaisquer objecções.
5. Portanto, que foi emitido por um tribunal, no exercício da sua função e de acordo com as suas competências, com observância dos requisitos formais.
6. Ou seja, o reconhecimento da assinatura do seu autor (no caso, o juiz) com o selo (ou carimbo) do respectivo tribunal.
7. Disso dá conta o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12-05-2020, proferido no processo nº 78/19.3YRLSB-1 (Maria Adelaide Domingues), sendo certo que não localizámos o texto traduzido da referida Recomendação nº 11, de 2003.
8. Sublinhe-se que, de acordo com o citado artigo 2º, da Convenção, a legalização tida em vista apenas abrange a formalidade respeitante ao reconhecimento da assinatura, da qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, da autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto.
9. Nesse sentido e no de que só pondo-se em crise o documento, designadamente nos termos dos artºs 446º e sgs, CPC, então será exigível a legalização, cfr. o Acórdão do STJ, de 08-05-2003, no processo nº 03B11232 (Ferreira de Almeida).
10. Processo nº 987/10.5YRLSB-1 (Anabela Calafate).
11. Processo nº 987/10.5YRLSB.S1 (Paulo Sá).
12. Processos Especiais, obra coordenada por Rui Pinto e Ana Alves Leal, volume I, página 316 e notas 15 a 17, artigo de João Gomes de Almeida: a legalização não é indispensável mas, se o for, entre os países subscritores da Convenção de Haia, bastará a Apostilha; J. Lebre de Freitas, A. Montalvão e Rui Pinto: “A legalização não é indispensável para que o documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal. O art. 365º do CC confere a tal documento, seja autêntico seja particular, desde que elaborado em conformidade com a lex loci, a mesma força probatória que têm os documentos da mesma natureza elaborados em Portugal; e só se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização nos termos do art. 540º “ - Código de Processo Civil anotado, volume 2, 2ª edição, página 474.