O artº 387º do Cód. Penal (crime de maus tratos a animais) é materialmente inconstitucional, quer por violação dos artºs 27º e 18º, nº 2, quer também por violação do artº 29º, nº 1, da C.R.P..
RELATÓRIO
No âmbito do processo 5/20.5GBSTB a arguida AA foi submetida a julgamento, no âmbito do qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, o tribunal julga a acusação procedente e, em conformidade, decide:
A) Condenar a arguida AA pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.1 do Código Penal (na redação da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto), e 388.º-A, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal (na redação da Lei n.º 110/2015, de 26 de agosto), na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz € 420,00 (quatrocentos e vinte euros);
B) Condenar a arguida na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 1 (um) ano;
C) Condenar a arguida no pagamento de taxa de justiça, que se fixa em 3 UC, e nas demais custas do processo, suportando os honorários devidos ao Ilustre Defensor nomeado, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, nos termos dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e do artigo 8.º, n.º 9, por referência à Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
D) Após trânsito, remeta boletins para efeitos de registo criminal, nos termos do artigo 374.º, n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
E) Consignar que, após o trânsito em julgado da presente decisão, a medida de coação a que o/a arguido/a se encontra sujeito/a de termo de identidade e residência mantém-se até à extinção da pena, ao abrigo do disposto nos artigos 196.º, n.º 3, alínea e), e 214.º, n.º 1, alínea e), ambos do Código de Processo Penal.”
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Inconformada com a referida condenação, a arguida recorreu da sentença, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“I. O presente recurso vem interposto da sentença datada de 25 de Março de 2022, que condenou a Arguida pela prática, como autora material, um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. no n.º 1 do art. 387.º (na redacção da Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto), e na alínea a) do n.º 2 do art. 388.º-A (na redacção da Lei n.º 110/2015, de 26 de Agosto), ambos os preceitos do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à razão diária de 6,00€.
II. O presente Recurso tem como objecto toda a matéria do Acórdão Condenatório proferido nos presentes autos.
III. O Tribunal a quo refere ter formado a sua convicção, relativamente aos factos provados e não provados na sentença ora em crise, na globalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento e na livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.
IV. A ora Recorrente considera que a supra referida prova, salvo o devido respeito, não foi apreciada e valorada de forma correcta.
V. Verifica-se uma clara e evidente contradição entre os factos provados (pontos 2 e 20) e não provados (pontos b) e c)), que, indubitavelmente, conduz a uma contradição insanável da fundamentação apresentada pelo Douto Tribunal a quo.
VI. Destarte, o Tribunal a quo violou, de forma ostensiva, o preceituado na alínea b) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P.
VII. A prova testemunhal produzida e a documentação clínica junta aos autos não se mostra suficiente para a prova dos factos consignados nos pontos 7), 10), 11) e 12).
VIII. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão erradamente, não se entendendo porque não lançou mão da prova pericial constante do processo a folhas 58, isto é, do relatório de necropsia executado em 25/05/2020, pela Faculdade de Medicina Veterinária.
IX. Pelo que o Tribunal a quo violou o disposto no art. 151.º, 163.º e na alínea a) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., ao dar por provados os factos constantes nos pontos 7), 10), 11) e 12) do Douto Acórdão ora em crise.
X. A matéria pericial não é de livre valoração pelo Tribunal, pelo que se torna necessária a fundamentação da eventual divergência da convicção do julgador quanto ao juízo técnico pericial constante daquele relatório.
XI. O Tribunal recorrido violou o preceituado no n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., ferindo de nulidade a decisão proferida, uma vez que a prova pericial regularmente produzida impunha decisão diversa da que foi agora produzida.
XII. Os pontos supra referidos da matéria de facto foram incorrecta e erroneamente apreciados, o que redundou numa deficiente apreciação da prova e na injusta condenação da arguida pela prática do crime de maus tratos a animais.
XIII. Sem prescindir, a ora Recorrente suscita a inconstitucionalidade da norma incriminatória inserta no art. 387.º do C.P., na redação introduzida pela Lei 69/2014, de 29 de Agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 18.º/2, 27.º e 29.º da CRP.
XIV. A tipificação do crime de maus tratos a animais é inconstitucional, por ofensa dos princípios da legalidade penal e da tipicidade, constitucionalmente consagrados.
XV. Ainda que se tenha entendimento diverso, a tipificação do crime de maus tratos a animais sempre seria inconstitucional, uma vez que não é possível identificar na norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico com manifestação e protecção constitucional, violando desta feita o preceituado no n.º 2 do art. 18.º da CRP.
XVI. O Tribunal a quo violou, grosseiramente, o preceituado no art. 27.º da CRP, porquanto, as normas aplicadas sob a epígrafe “maus tratos a animais”, p. e p. pelos artigos 387.º e ss. do CP, não salvaguardam direitos ou interesses que detenham manifestação ou protecção constitucional.
XVII. Existindo a dúvida razoável e insanável, sempre deveria a arguida ser absolvido da prática dos factos pelos quais vinha acusada, sob pena de violação do consagrado no n.º 2 do art.32.º da Constituição da Republica Portuguesa: “IN DUBIO PRO REU”.
XVIII. A prova produzida em audiência de julgamento apenas se compadecia com a absolvição da Arguida.
Em suma, nos presentes autos, da prova produzida, quer testemunhal, quer documental e pericial, não resultaram provados os factos pelos quais a arguida vinha acusada e foi condenada.
Ainda que dúvidas existissem sempre deveria a Arguida ser absolvida face à consagração constitucional do princípio do “in dubio pro reu”.
Nestes termos e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente Recurso e, por via dele, ser revogada a Sentença recorrida, tudo com as legais consequências,
Fazendo-se, assim, a Costumada e Necessária Justiça!”
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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:
“1) Veio a arguida recorrer da Douta Sentença que condenou pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.1 do Código Penal (na redação da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto), e 388.º-A, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal (na redação da Lei n.º 110/2015, de 26 de agosto), na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz € 420,00 (quatrocentos e vinte euros), e na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 1 (um) ano.
2) O Tribunal a quo analisou criteriosamente todos os depoimentos das testemunhas, efectuando um juízo crítico acerca das declarações prestadas por todas elas, tendo todos os depoimentos sido correctamente valorados, em conjugação com a demais prova documental.
3) A conclusão a que o Tribunal a quo chegou não poderia ser outra que não fosse a condenação nos termos, fundamentos e extensão em que o foi.
4) A nosso ver, não merecem qualquer reparo os factos dados como provados e não provados, tendo estes sido correctamente julgados e tendo a prova sido bastante.
5) O Tribunal a quo valorou correctamente a prova produzida, fundamentando a formação da sua convicção e os motivos que levaram a considerar os factos provados e os factos não provados, verificando-se uma correcta e irrepreensível aplicação dos critérios legais estabelecidos no artigo 127º, do Código de Processo Penal;
6) Não assiste razão à Recorrente nesta matéria, aliás, a mesma não põe em causa a existência dos fundamentos que alicerçam a convicção do Tribunal “a quo”, limitando-se apenas a questionar a relevância que lhes foi conferida pelo tribunal recorrido.
7) Mas o Tribunal “a quo” fez uma correcta análise de toda a prova produzida em julgamento.
8) Entende também a Recorrente que devia ter sido aplicado o princípio do “in dubio pro reo” contudo, não revela a decisão ora impugnada pela Recorrente que, o Tribunal “a quo”, tenha tido qualquer dúvida relativamente aos factos dados como provados tendo os mesmos sido afirmados de forma convicta, não se justificando desse modo que tivesse sido lançada mão daquele princípio.
9) A conjugação dos elementos que resultaram provados na audiência, permitiram que o Tribunal “a quo” formasse a sua convicção e desse como provados e não provados factos que se pretendem atacar, mas que, em nosso entender, nenhum reparo merecem.
10) Os factos ocorreram da forma como foi considerada pelo Tribunal “a quo”.
11) Entende a Recorrente que, mesmo que toda a factualidade viesse a ser dada como provada, ainda assim, deveria a arguida ter sido absolvida por entender que o crime de maus tratos a animais padece de inconstitucionalidade.
12) Cumpre desde logo referir que a arguida não recorreu de tal inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional.
13) Ainda assim, somos do entendimento que, também nesta matéria não assiste razão à arguida, ora Recorrente, acompanhando na íntegra os fundamentos expendidos na Douta Sentença, os quais damos aqui por integralmente reproduzidos.
14) Da prova produzida em julgamento, não vemos possibilidade de explicar os factos de forma diferente daquela que está consagrada na Douta Sentença ora recorrida.
15) Posto isto, e porque nenhum reparo nos merece a Douta Sentença recorrida, dúvidas não temos de que o Tribunal “a quo” andou bem ao condenar a arguida nos moldes em que o fez.
16) A sentença condenatória está em conformidade com a prova produzida em julgamento, não padece de vícios e fez uma correcta subsunção jurídica dos factos em apreciação, razão pela qual pugnamos pela sua manutenção.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”
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Neste tribunal a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e tendo sido cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P. não foi apresentada resposta.
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APRECIAÇÃO
Tendo em conta o que consta nas conclusões, importaria apreciar as seguintes questões (pela ordem referida nas conclusões):
- contradição entre os factos provados 2 e 20 e os não provados sob as als. b) e c);
- falta de prova relativamente aos factos 7, 10, 11 e 12;
- desconsideração da prova pericial consistente na necrópisa;
- inconstitucionalidade do artº 387º do Cód. Penal;
- violação do princípio “in dúbio pro reo”.
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A questão da inconstitucionalidade material do artº 387º do Cód. Penal, na versão que foi introduzida pela L. 69/2014 de 29/8, que era a que estava em vigor à data dos factos (de qualquer forma as alterações introduzidas pela Lei n.º 39/2020, não têm especial relevância para a apreciação da questão da constitucionalidade), é logicamente prioritária, pois que caso a mesma seja atendida por este tribunal com verificada, todas as outras quedarão de conhecimento inútil.
Vejamos, pois, a referida questão.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a mesma, sendo a “decisão base” o acórdão nº 867/2021 de 10/11/2021, relatado pelo Exmº Cons. Lino Ribeiro, o qual decidiu:
“a) Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição;”
O referido acórdão do tribunal constitucional incidiu sobre o acórdão deste tribunal da relação de Évora de 18/6/2019 (procº 90/16.4GFSTB.E1), relatado pela agora Exmª Cons. Ana Brito (o qual é referido na decisão recorrida em apoio do aí decidido), o qual encontra-se sumariado da seguinte forma:
“I – O bem jurídico protegido pelo artigo 387.º do Código Penal não reside na integridade física e na vida do animal de companhia. É sim um “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém”.
II – O tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia não é inconstitucional.”
Depois do referido acórdão do tribunal constitucional, o mesmo tribunal veio reiterar o entendimento de inconstitucionalidade, pelas seguintes decisões sumárias:
- nº 248/2022, de 29/3/2022, subscrita pelo Exmº Cons. Gonçalo de Almeida Ribeiro;
- nº 344/2022, de 5/5/2022, subscrita pelo Exmº Cons. Afono Patrão;
- nº 427/2022, de 20/6/2022, igualmente subscrita pelo Exmº Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro.
No acima referido acórdão 867/2021, a Exmª Consª. Joana Fernandes Costa lavrou declaração e voto, a qual termina nos seguintes termos:
“Tendo em conta o acentuado nível de indeterminação dos conceitos utilizados na descrição quer do objeto da conduta incriminada - «qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1) -, quer do conteúdo da ação proibida - «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos» a animal que se encontre naquelas condições, «sem motivo legítimo» (artigo 387.º, n.º 1) -, o tipo legal em que se concretizou o processo de criminalização dos maus tratos a animal de companhia não dispõe de precisão e densidade suficientes para permitir ao conjunto, mais ou menos vasto, dos potenciais autores do ilícito-típico a antecipação do comportamento vedado (sobre os vários problemas hermenêuticos suscitados pelo tipo, v. Pedro Mendes Lima e Pedro Soares de Albergaria, “Sete vidas: a difícil determinação do bem jurídico protegido nos crimes de maus tratos e abandono de animais”, Julgar, n.º 28, p. 156 e ss.), tornando-se por isso incompatível com a exigência de lei certa, decorrente do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição. Incompatibilidade tanto mais severa quanto certo é que, justamente por se tratar da proteção de um bem jurídico não recondutível às dimensões existenciais individuais e coletivas da pessoa, a observância dos parâmetros de determinabilidade do tipo assume um papel decisivo tanto na referência da conduta proibida ao bem jurídico com assento constitucional, como no acatamento da contenção postulada pela natureza subsidiária e pelo carácter fragmentário de toda a lei penal.
É aqui, e não na violação dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, que reside, a meu ver, a razão que torna materialmente inconstitucional a norma que integra o objeto do presente recurso.”
Por sua vez, nesse mesmo acórdão, o Exmº Cons. Gonçalo de Almeida Ribeiro lavrou declaração de voto, a qual termina nos seguintes termos:
“Daí a inevitabilidade da conclusão de que a norma que consta do n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na redação aplicável nos autos, é inconstitucional por violação do princípio da tipicidade penal que se extrai do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.”
O certo é que nas decisões sumárias subsequentes o referido Exmº Cons. Gonçalo de Almeida Ribeiro “aderiu” a decisão proferida no acórdão acima referido.
Seja como for, o que é certo é que o tribunal constitucional entendeu ser o artº 387º do Cód. Penal inconstitucional, seja por violação por violação dos artºs 27º e 18º, nº 2, da C.R.P., seja (só ou também) por violação do artº 29º, nº 1.
Temos para nós como mais acertada a conclusão de que o referido artigo do Cód. Penal viola a constituição, quer por violação dos artºs 27º e 18º, nº 2, quer também por violação do artº 29º, nº 1, nos termos (quanto a este último) da acima referida declaração de voto da Exmª Cons. Joana Fernandes Costa.
Neste entendimento, seguimos de perto, quer a decisão, quer a respectiva fundamentação, inserta no recente acórdão desta relação de 7/6/2022, relatado pelo Exmº Desembargador Moreira das Neves, o qual está assim sumariado:
“I. O crime de maus tratos a animais de companhia, previsto no artigo 387.º do Código Penal (na redação da Lei n.º 69/2014 de 29 de agosto) é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição:
a) Por não encontrar na ordem axiológica jurídico-constitucional uma imposição ou necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta no § 2.º do artigo 18.º da Constituição;
b) E por a descrição típica do ilícito apresentar um nível de indeterminação dos seus elementos objetivos, incompatível com o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta, a que se reporta o § 1.º do artigo 29.º da Constituição.”
Quanto à restrição dos direitos fundamentais, ou seja, violação dos artºs 27 ºe 18º, nº 2, da C.R.P., refere-se no referido acórdão desta relação:
“Por não encontrar na ordem axiológica jurídico-constitucional uma imposição ou uma necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, à luz do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta no § 2.º do artigo 18.º da Constituição contém resulta.
Com efeito, apesar de a Constituição atribuir ao legislador parlamentar larga margem de conformação das ações ou omissões criminalmente relevantes, esse poder de definir novos crimes é um poder constitucionalmente vinculado, não prescindido do referencial axiológico-constitucional.
(…)
Sucede, porém, que no ilícito típico a que nos vimos referindo, seja pela respetiva conformação descritiva, seja ainda pela sua inserção sistemática não se evidencia o bem jurídico que visa proteger! E com isso, inapelavelmente, sai vulnerado o artigo 27.º, com referência ao § 2.º do artigo 18.º da Constituição.”
Já quanto à violação do artº 29º, nº 1, da C.R.P., ou seja, violação do princípio da tipicidade, escreveu-se no mesmo referido acórdão:
“A segunda razão pela qual entendemos que o artigo 387.º CP é inconstitucional prende-se com o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta, a que se reporta o § 1.º do artigo 29.º da Constituição. Decorre deste princípio que a norma conformadora do tipo de ilícito penal contenha os seus elementos objetivos e subjetivos bem identificados, por forma a que qualquer potencial infrator conheça (possa conhecer) bem a conduta ilícita.
(…)
Ora, a descrição típica do ilícito em referência apresenta um nível de indeterminação que é incompatível com o princípio enunciado.
Basta ver a indeterminação do que possa cogitar-se serem «quaisquer outros maus tratos físicos» e a não menor indeterminação do que seja o próprio objeto da infração («animal de companhia»).”
Os dois excertos do acórdão desta relação de 7/6/2022 exprimem de tal forma clara e exaustiva o nosso entendimento que nos escusamos aqui de reproduzir o mesmo por outras palavras, acrescentando-se apenas que como se refere no acima referido acórdão do T.C. nº 867/2021, que aqui também seguimos de perto, “(…) o direito internacional e o direito da União Europeia (UE), conforme recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, não oferecem elementos suplementares relativamente aos decorrentes da própria Constituição. De facto, mesmo deixando de parte as questões de hierarquia normativa convocadas por aquele preceito constitucional, não é possível identificar ali um ponto de suporte alternativo por referência ao qual pudesse realizar-se aquele exercício.”
Recentemente foi noticiado que em Inglaterra uma senhora foi multada porque se recusou a acabar com uma infestação de ratos, pois que preferia tratá-los como animais de estimação.
Por aqui se vê (levando-se ao exagero quase absurdo) até onde é que nos pode levar a indefinição do que se pode considerar animal de companhia.
Não se pretende com este entendimento significar que o bem-estar dos animais, designadamente dos de companhia, não deva ser protegido, incluindo por via da criminalização de determinados comportamentos que o ponham em causa.
Tudo terá que passar, porém, em primeira linha, pela expressa previsão constitucional de protecção do bem estar dos animais, sejam eles só os de companhia (com concretização na medida do que foi possível), ou também de quaisquer outros.
Assim aconteceu em 2002 na constituição alemã, como se dá conta no referido acórdão do tribunal constitucional.
E, terminando como termina o referido acórdão do tribunal constitucional: “Não exprime este juízo de inconstitucionalidade uma visão segundo a qual a Constituição da República Portuguesa sempre se oporá, por incontornáveis razões estruturais, à criminalização de uma conduta como essa. Exprime simplesmente uma visão segundo a qual essa criminalização não encontra suporte bastante na vigente redação da Constituição da República Portuguesa, que é aquela que se impõe ao Tribunal Constitucional como parâmetro de avaliação das normas aprovadas pelo legislador. Juízo diverso implicaria que este Tribunal se substituísse ao poder constituinte, exorbitando da esfera de competências que por esse mesmo poder lhe foram outorgadas.”
Entendendo-se ser materialmente inconstitucional a prevista do artº 387º do Cód. Penal, como já acima se referiu, torna-se inútil a abordagem de todas as outras questões suscitadas no recurso.
DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso procedente e, em consequência, decidem:
- Declarar materialmente inconstitucional o artigo 387.º do Cód. Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, nº 2, por um lado, e 29º, nº 1, todos da C.R.P., por outro lado;
- Em consequência, absolver a arguida AA da prática do crime de maus tratos a animais pelo qual foi condenada.
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Sem tributação.
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Nuno Garcia
António Condesso
Edgar Valente