MEDIDAS DE COACÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PRISÃO PREVENTIVA VERSUS OPHVE
Sumário

I–O princípio da presunção de inocência tão somente impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido, antes do trânsito em julgado de condenação, tenha natureza excecional, mas não impede a aplicação da medida de coação mais gravosa ou mais limitadora dessa liberdade, se e quando esta (prisão preventiva) seja (para além do termo de identidade e residência) a única medida de coação necessária adequada, proporcional e ajustada perante a gravidade do indiciado crime e respectiva sanção e perante os concretos e reais perigos indiciados;

II–A vigilância electrónica (da obrigação de permanência do arguido na habitação), através da pulseira electrónica, teria como única função dar a conhecer uma eventual e concreta violação de permanência na habitação por parte do arguido, mas, não teria a virtualidade de monitorizar o que efectivamente sucede com o arguido no interior da sua residência não ficando este impedido de, na residência e/ou a partir da residência, continuar a praticar condutas que integram essa actividade de tráfico de estupefacientes.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa


 I–Relatório:

 
Nos autos de inquérito 241/22.OJELSB-A que correm termos no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – J6, em que é arguido AA (de nacionalidade brasileira, domiciliado em Portugal e melhor identificado nos autos), no âmbito de primeiro interrogatório de arguido detido (nos termos do artigo 141º do C.P.P.), foi proferido, em 8/6/2022, despacho judicial que impôs ao arguido, como medida de coação, para além do TIR já prestado, a medida de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191º a 193º, 196º, 202º, nº 1, als.a) e c) e 204º, nº 1, als. a) e c), do CPP, por estar fortemente indiciado da prática, em co-autoria com mais dois arguidos (JTV e BT), de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo disposto no art.21º,nº1, do D.L. nº15/93, de 22/1, por referência à Tabela Anexa I-B, nos termos que a seguir se transcrevem (na parte com interesse para o efeito):

«…Factos indiciados:
No dia 7/6/2022, pelas 9:20horas, no Aeroporto de Lisboa, a arguida BB, que havia chegado num voo de São Paulo, Brasil, transportava, dissimuladas enroladas ás pernas, oito embalagens de cocaína, com o peso bruto aproximado de 2098 gramas.
Após a abordagem policial á arguida, pelas 10:40horas, ainda no aeroporto, foi interceptado também AA, no momento em que se encontrou com a arguida, após ter combinado o encontro com ela por telemóvel.
Cerca das 11:00 horas, em colaboração com a polícia, os dois arguidos dirigiram-se para fora do aeroporto para aguardara chegada do arguido CC, que vinha de carro buscá-los.
O arguido CC parou junto deles num Renault Clio e, de repente, o arguido AA entrou para o lugar do pendura, colocando-se ambos em fuga no carro.
A polícia perseguiu-os e interceptou-os cerca de 750 metros á frente.
A arguida aceitou fazer o transporte do produto estupefaciente, a troco de dinheiro, ficando de o entregar a indivíduos que iriam ao seu encontro em Lisboa.
Os arguidos pertencem á rede que contratou a arguida para fazer o transporte da droga, ficando de ir ao seu encontro para recolherem a droga.
Os arguidos sabiam que o transporte de droga é crime. (…)

Provas que sustentam os factos:
A matéria indiciariamente apurada resulta do auto de diligência e fotografias de fls. 2 a 14, do teste rápido de fls. 15, dos autos de apreensão e documentos de fls. 22 a 25, 28 a 29, 33 a 36, 38 a 47, e do auto de notícia por detenção de fls. 51 a 56. (…)
Tipo de Crime:
- em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.e p. pelo artº 21, nº1, do D.L. 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B anexa.
Perigos:

  • quanto a todos os arguidos
- perigo de continuação da actividade criminosa.
- perigo de fuga.
Medidas de Coação:
  • quanto a todos os arguidos
- Termo de identidade e residência já prestado
- Prisão preventiva.
Tudo nos termos dos arts. 191º a 193º, 196º, 202º nº 1 als. a) e c) e 204º al. a) e c), todos do CPP».                                               
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O arguido optou por não prestar declarações quanto aos factos, apenas tendo falado sobre as condições económicas pessoais e económicas, alegando (conforme consta da respectiva gravação da diligência, aqui dada como reproduzida e da qual consta (em suma)que: Vive em Portugal, há cerca de 2 anos e meio, com a esposa e um filho com 12 anos; paga renda de casa cerca de €400 mensais; trabalha por conta própria como vidraceiro e faz alguns outros trabalhos, tais como mudanças, auferindo cerca de € 800 a € 900 mensais e a sua esposa trabalha como esteticista por conta própria, auferindo cerca de 600 mensais. 
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Inconformado com aquela decisão, dela veio interpor recurso o arguido, em 23/6/2022, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando concluindo a sua motivação do seguinte modo (transcrição):
«1.–O arguido não possui antecedentes criminais, de nacionalidade brasileira, vive em Portugal onde trabalha e está a tratar de obter o visto de residência.
2.–O arguido está inserido na sociedade portuguesa, tendo criado laços afetivos no país.
3.–O arguido está empregado, sendo que devido a situação de covid 19 está já há algum tempo a exercer a sua atividade em regime de trabalho a distância, ou seja, teletrabalho.
4.–O arguido é casado e pai de um filho de 12 anos, sendo que o seu agregado familiar depende de si para a sua sobrevivência, todos vivem em Portugal, na morada indicada no TIR.
5.–Não existe dessa maneira risco de fuga, porquanto o arguido se mostrou desde o princípio cooperativo com a polícia de investigação criminal.
6.– Assim sendo e porquanto é do interesse do arguido provar a sua inocência no tempo oportuno e finda as investigações que o mesmo desde logo se mostrou colaborativo e mais desde já se dispõe a entregar o seu passaporte brasileiro.
7.–Desta feita se torna evidente que não esta preenchido um dos pressupostos da prisão preventiva, qual seja, o "pericula libertatis", previstos no art. 204° CPP, porquanto não existiu fuga nem esta o arguido em risco iminente de fuga, nem risco de perturbação do decurso do inquérito.
8.– Em consequência deve ser revogada a medida de coação de privação da liberdade, sendo-lhe imposta outra medida mais adequada — qual seja o uso de permanência na habitação com vigilância electrónica.
9.–Porquanto esta em causa a manutenção da atividade laborai do arguido e a subsistência da sua família, que não é demais repetir, não possui outro meio de sustento que não seja a atividade exercida pelo arguido.
10.–Atividade essa que a ser exercida em teletrabalho não implica a sua deslocação para fora da residência podendo ainda ser uma alternativa a prisão domiciliar.
11.–Tal medida não prejudica o inquérito por um lado e atende ao princípio da dignidade humana por outro, uma vez que não se deixa de exercer o poder penal, mas não se coloca em risco a subsistência da família do arguido.
12.–Sob pena de violação do principio da presunção da inocência e do principio constitucional da liberdade e da igualdade e do livre acesso à Justiça».
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos termos aqui dados como reproduzidos e de cujas conclusões consta (transcrição):
«1.º- Na sequência de 1.° interrogatório judicial de arguido detido, o Mmo. JIC considerou que se indiciava a prática, pelos três arguidos, em co-autoria um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 21°, n.° 1, do D.L 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B a este anexa.
2.º-Considerou verificar-se Perigo de fuga, e Perigo de continuação da actividade criminosa, impôs as medidas de coacção de Termo de Identidade e Residência e de prisão preventiva, atento o disposto nos arts.° 191.° a 193.°, 196.°, 202.°, n° 1 al, ais. a) e c) e 204.° als. a), e c), todos do Código de Processo Penal.
3.°-Pretende o recorrente a substituição da medida de coação aplicada de prisão preventiva pela de obrigação de permanência na habitação com recurso à vigilância eletrónica entendendo ser manifestamente suficiente e adequada nos presentes autos.
4.°- Continuam a verificar-se os perigos indicados do art.° 204.° do C.P.P., suas alíneas a) e c).
5.°-A jurisprudência, pelo menos largamente maioritária, considera que, no caso de tráfico de estupefacientes, pelas especificidades que este tipo de actividade assume, pela versatilidade e sofisticação dos meios de dissimulação a que os traficantes recorrem, regra geral só a medida de coação de prisão consegue prevenir de forma aceitavelmente eficaz mormente o perigo de continuação da actividade criminosa, sabido, da experiência comum, que, quem inicia tal actividade de tráfico de drogas, associada à obtenção de meios económicos, tendencialmente a continua.
6.°- A medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que controlada por vigilância electrónica, não é impeditiva da continuação da actividade criminosa do arguido em causa, pois pode perfeitamente continuar a ter lugar a partir do interior da respectiva residência e possui limitados efeitos cautelares no caso de destruição do dispositivo de controlo ("pulseira electrónica") o arguido deixa de estar de imediato localizável.
7.°–Quanto à medida de coacção prevista no art.° 201.° do C.P.P, — obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, estando indiciada a prática do crime p. e p. no art.° 21.° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, vem entendendo a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, que tal medida não é apta a fazer cessar os perigos que se pretendem acautelar, nem impedir os arguidos de continuarem a cometer o crime em apreço.
8.°–Aliás, a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, vêm entendendo nesse sentido.
9.°–PORÉM, não há que olvidar que a imposição de qualquer medida de coacção tem de ser apreciada caso a caso, pois já não há "crimes incaucionáveis".
10.°–Estamos  perante uma   situação   de   tráfico internacional, legalmente, considerado criminalidade altamente organizada (artigo 1°, al. m), do Código Processo Penal.
11.º– O destinatário da cocaína eram o recorrente e o arguido e BT que ia buscar o recorrente e a arguida JTV ao aeroporto, aguardando estes a chegada daquele. Quando "o arguido BT parou junto dele, num Renault Clio e, de repente, o arguido AA entrou para o lugar do pendura, colocando-se ambos em fuga no carro". A polícia perseguiu-os e interceptou-os cerca de 750 metros á frente.
12.°–Parece lógico que as 2098 gramas de cocaína seriam introduzidos no mercado nacional, aqui sendo vendidos e consumidos.
13.°–A cocaína é um dos produtos estupefacientes de maior nocividade para a saúde dos seus consumidores, dos que mais facilmente criam habituação, pois pode criar dependência em 48 horas e ao contrário dos opiáceos produz um efeito excitante, eliminando os mecanismos de inibição psíquica- (Sequeros Sazator nil, El Trafico de Drogas Ante El Ordenamento Jurídico, 877).
14.°–O tráfico de estupefacientes é dos crimes que mais preocupa e alarma a nossa sociedade pelos seus nefastos efeitos e que mais repulsa causa quando praticado como meio de obtenção de proveitos à custa da saúde e liberdade dos consumidores, com fortes reflexos na coesão familiar e da comunidade em geral.
15.°–Trata-se, de um problema universal, de dimensão mundial, que, obviamente, atinge também o nosso País.
16.°–Lamenta-se o recorrente por a prisão preventiva pôr "em causa a manutenção da atividade laborai do arguido e a subsistência da sua família, que não é demais repetir, não possui outro meio de sustento que não seja a atividade exercida pelo arguido".
17°–Sobre estes pontos oferece-nos dizer que a situação em que se encontra, é da sua inteira responsabilidade por se ter enveredado no mundo de tráfico de estupefaciente quando se encontrava a trabalhar em regime de teletrabalho.
18.°–O crime imputado ao recorrente, p. e p. pelo art.° 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 15/93 é apenas comparável pela sua repercussão antiética aos crimes mais graves contra as pessoas, as drogas são uma grave ameaça para a saúde e o bem estar de toda a humanidade, para a independência dos Estados, para a democracia, estabilidade dos países, estrutura de todas sociedades e para a esperança de milhões de pessoas e suas famílias, é assim que se lhes referiu a 20.a Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas - Rui Pereira e Luís Bonina, Problemas Jurídicos da Droga e da Toxicodependência, RFDUL, págs. 154 e 191.
19.°–A prisão preventiva é a única medida de coacção necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
20.°– O douto despacho recorrido não violou qualquer preceito legal.
21.°–Deve, pois o recurso deve ser julgado improcedente e confirmada a douta decisão recorrida.».
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Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, nos termos aqui dados como reproduzidos e de cujas conclusões consta (transcrição): « Em síntese, acompanhando a esclarecedora e bem fundamentada posição assumida em 1ª Instância, propugnamos pela validação do douto e judicioso Despacho censurado, fundado na inevitabilidade da prisão preventiva, por qualquer outra opção, menos gravosa, não possuir a força obstativa necessária a esconjurar os concretos receios enunciados».
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Notificado deste parecer, nos termos e para os efeitos do artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado nos termos previstos pelo art. 419º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal.
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Cumpre decidir.

II–Fundamentação
           
Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal (diploma, doravante, denominado com a abreviatura CPP) que: “A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

O objecto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º do CPP - naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág.340; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122; e Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

Isto significa que o âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente na respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior (ad quem), as questões a decidir e as razões pelas quais que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

No caso em apreço, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
-da inexistência do perigo de fuga e do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas;
-da adequação e suficiência da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, sob pena de violação dos princípios da presunção de inocência e da liberdade.

Para a respectiva apreciação e decisão, desde já, importa ter em conta a factualidade indiciariamente provada aquando do 1º interrogatório judicial dos três arguidos detidos – sem que o arguido/recorrente tivesse questionado, nas sobreditas conclusões, quer essa factualidade quer o respectivo enquadramento jurídico- :
«No dia 7/6/2022, pelas 9:20horas, no Aeroporto de Lisboa, a arguida BB, que havia chegado num voo de São Paulo, Brasil, transportava, dissimuladas enroladas ás pernas, oito embalagens de cocaína, com o peso bruto aproximado de 2098 gramas.
Após a abordagem policial á arguida, pelas 10:40horas, ainda no aeroporto, foi interceptado também AA, no momento em que se encontrou com a arguida, após ter combinado o encontro com ela por telemóvel.
Cerca das 11:00 horas, em colaboração com a polícia, os dois arguidos dirigiram-se para fora do aeroporto para aguardara chegada do arguido CC, que vinha de carro buscá-los.
O arguido CC parou junto deles num Renault Clio e, de repente, o arguido AA entrou para o lugar do pendura, colocando-se ambos em fuga no carro.
A polícia perseguiu-os e interceptou-os cerca de 750 metros á frente.
A arguida aceitou fazer o transporte do produto estupefaciente, a troco de dinheiro, ficando de o entregar a indivíduos que iriam ao seu encontro em Lisboa.
Os arguidos pertencem á rede que contratou a arguida para fazer o transporte da droga, ficando de ir ao seu encontro para recolherem a droga.
Os arguidos sabiam que o transporte de droga é crime.»

Este quadro factual indiciário configura a prática, em co-autoria por parte do arguido/recorrente e dos outros dois arguidos, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 21, nº1, do D.L. 15/93, de 22-01, por referência à Tabela I-B anexa, e segundo o qual:

« Artigo 21.º
Tráfico e outras actividades ilícitas
1- Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».

Constando dessa mesma Tabela anexa a substância em apreço nos autos, isto é, a cocaína.
Este tipo-legal contém a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, de maneira compreensiva e de largo espectro, isto é, correspondendo ao tipo base, fundamental, essencial, matricial. Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação. Tem sido englobado na categoria do "crime exaurido", "crime de empreendimento" ou "crime excutido". É um crime de perigo comum pois está em causa o perigo ou risco para a saúde pública na dupla vertente física e moral. E, também, é um crime de perigo abstracto pois consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para aquele bem jurídico protegido.
Dada a sua enorme perigosidade/gravidade, este tipo de crime é punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.
E, também, atenta a sua enorme gravidade/perigosidade, o legislador fez questão de, expressamente, considerar como «Criminalidade altamente organizada» as condutas que integrarem o crime de tráfico de estupefacientes - cfr. o art. 1º, al. m), do CPP.

Para além disso, as condutas que integram este tipo de criminalidade «altamente organizada» (as quais podem ser as mais variadas, conforme a previsão expressa do citado art. 21º, nº1, do D.L. 15/93, de 22/01), também podem ser praticadas através de vários agentes, nomeadamente em co-autoria.

A este respeito prevê o art. 26º do Código Penal:
“É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”

Desta forma, dada a contribuição de cada um dos co-autores, o legislador pretendeu que tais comportamentos proibidos sejam punidos como se fossem integralmente realizados por um único agente. Caso contrário, não poderia ser punido pela prática daquele tipo de crime, por exemplo, o agente que apenas tivesse prestado auxílio ao seu cometimento ou que tivesse, em colaboração com outro ou outros e por acordo com eles, realizado uma parte da conduta típica e os restantes praticando os demais actos necessários à consumação do crime.

Conforme escreveram, em anotação ao art. 26° do Código Penal, Leal Henriques e Simas Santos (edição 1991,vol.1, págs. 190-197): "…para incorrer na co-autoria de um crime precedido de um plano, quando nele participaram vários agentes, não é necessário que todos eles tenham tido intervenção na elaboração desse plano. Basta que vários agentes participem na execução de actos que integrem a conduta criminosa, não sendo, contudo, necessário que intervenha em todos eles, desde que actue conjugadamente e em comunhão de esforços, no sentido de alcançar o objectivo criminoso…".

Voltando ao caso em apreço, está indiciado o facto de o arguido/recorrente saber que tal actuação configura uma prática criminosa e tal modo de actuação deste arguido em conjunto com os demais arguidos, configura tráfico (internacional) de estupefacientes, na medida em que integram uma organização que contratou a arguida BB para fazer o transporte dissimulado das 2098 gramas de cocaína desde o Brasil até Portugal e de entregar esta droga a indivíduos que iriam ao seu encontro em Lisboa. Tendo os arguidos AA e CC ficado de ir ao encontro daquela, uma vez chegada a Lisboa, para recolherem a droga. Tendo o arguido AA ido ao encontro daquela, após aquele ter combinado o respectivo encontro por telemóvel. E depois de estes arguidos terem ido para fora do aeroporto para aguardar a chegada do arguido CC, que vinha de carro buscá-los, quando este aí chegou, parou junto deles num Renault Clio e, de repente, o arguido AA entrou para o lugar do pendura, colocando-se ambos em fuga no carro. Tendo sido perseguidos pela polícia que os interceptou-os cerca de 750 metros à frente.

Ora (desde já, se adianta que), perante todo este forte indiciário quadro factual não há dúvidas de que tal actuação do arguido/recorrente configura a prática, em co-autoria com os outros dois arguidos, do sobredito crime doloso punível com pena de prisão cujo limite máximo é de 12 anos e afigura-nos haver quer perigo de fuga quer perigo de continuação da actividade criminosa.
Significa isto que estão preenchidos os respectivos requisitos legais exigidos (nos arts. 202º, nº 1, al. a), e 204º, nº 1, als. a) e c), do CPP) para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.
A propósito destes indiciados perigos concretos importa, desde já, referir que não é necessária a sua verificação cumulativa para que seja decretada a prisão preventiva, bastando a verificação de qualquer um deles - conforme resulta da previsão, em alternativa, contida nas várias als. a), b) e c) do nº 1 do art. 204º do C.P.P.
Na parte com interesse para o caso concreto, importa fazer uma breve resenha doutrinal sobre os sobreditos requisitos da prisão preventiva.

- Quanto aos fortes indícios exigidos pelo art. 202º, nº 1, als. a) e c), do CPP:
Subscreve-se o entendimento do Prof.Germano Marques da Silva (em Curso de Processo Penal, II, 2a ed., pág. 240): "A indiciação do crime necessária para a aplicação de uma medida de coacção significa a probatio levior", isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação (…)no momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, que pode ocorrer ainda na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.

Também Vital Moreira e Gomes Canotilho (a fis. 185 da Constituição da República Portuguesa Anotada, edição 1993) que, por sua vez, dizem que: "quando a lei fala em fortes indícios pretende exigir uma indiciação reforçada, filiada no conceito de provas sérias".

Também Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal, 1968, pág.37) e Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, pág.133) fazem notar que: Esta noção de fortes indícios comporta uma exigência acrescida relativamente à noção dos indícios suficientes consagrada no artigo 283º, nº 1, do Código Penal a propósito da acusação. Pressupondo aqueles a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento, com a única diferença apenas na maior fragilidade dos elementos considerados, já que resultam de uma actividade não contraditória, sem imediação nem oralidade. E sendo facilmente compreensível, aquela maior exigência, pois que é muito mais grave sujeitar alguém a prisão preventiva do que deduzir contra si uma acusação.

- Quanto ao perigo de fuga e/ou ao perigo de continuação da actividade criminosa exigido no art. 204º, nº 1, als. a) e c), do CPP, respectivamente:
Subscreve-se o entendimento quer de Germano Marques da Silva (Sobre a Liberdade no Processo Penal ou do Culto da Liberdade como Componente Essencial na Prática Democrática, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, 2003, pág. 1378) quer de Frederico Isasca (A prisão preventiva e restantes medidas de coacção, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, 2004)no sentido de que: Qualquer um desses perigos tem de se traduzir numa probabilidade real e iminente de verificação em face dos elementos factuais disponíveis no processo, globalmente analisados/avaliados de acordo com as regras de experiência comum, face a cada caso concreto, nomeadamente, à natureza do crime indiciado, à personalidade do arguido, às respectivas circunstâncias em que foi cometido o indiciado crime e às circunstâncias que rodearam a sua execução.

Conforme refere Maia Costa (Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição revista, págs. 821-822): Tal juízo de perigosidade deve ser concreto ou real o risco ou probabilidade da sua verificação.

O juízo sobre o real perigo de fuga deve fundar-se, perante o caso concreto, na ponderação de todas as circunstâncias (tais como, a gravidade da pena cominada para o crime, a personalidade revelada pelo arguido, a sua situação financeira, familiar, social e profissional e as suas ligações em países estrangeiros) que possam revelar a sua vontade de se pôr em fuga.

O juízo sobre o real perigo de continuação criminosa deve referir-se à prática de crimes de natureza idêntica e a plausibilidade dessa reiteração criminosa deve aferir-se a partir das circunstâncias do caso concreto (quer anteriores quer contemporâneas à conduta indiciada e relacionadas com esta) e da personalidade revelada pelo arguido. 

Voltando ao caso em apreço, a sobredita factualidade indiciada permite formar a convicção sobre a prática, em co-autoria pelo arguido recorrente mais os dois outros arguidos, de um crime de tráfico de estupefacientes e sobre a probabilidade séria da sua condenação como tal.

E perante a sobredita factualidade indiciada também se verificam tais perigos:
Por um lado, o perigo de fuga afigura-se evidente, pois o arguido recorrente pôs-se em fuga, juntamente com o arguido Baba, aquando da sua recolha por este, fora do aeroporto e na viatura conduzida por este e só não lograram fugir mais de 750 metros devido a facto alheio à vontade dos mesmos, isto é, porque foram alvo de perseguição policial e que os interceptou volvidos 750 metros à frente.

 Não colhendo, à luz das regras de experiência comum, o argumento alegado pelo arguido recorrente segundo o qual ao entrar naquele carro o seu condutor arrancou e ao arrancar se tivesse fechado a porta do “pendura” ou arguido recorrente, passageiro ao lado do condutor e sem que o arguido recorrente a tivesse fechado – sendo que nada disto ficou demonstrado.

E, aliás, se não tivesse havido tal intenção de fuga, o arguido recorrente sempre poderia ter impedido que a porta se fechasse ou, uma vez fechada, sempre poderia tê-la aberto, independentemente do andamento do carro e, para além disso, estando ao lado do condutor sempre poderia ter interferido na condução deste – sendo que nada disto tão pouco se apurou que tivesse sucedido.

Por outro lado, o perigo de continuação deste tipo de actividade criminosa também se afigura evidente, face à natureza deste tipo de crime, à natureza da droga e à quantidade da cocaína apreendida e às demais sobreditas circunstâncias do seu cometimento por parte do arguido recorrente em co-autoria com aqueles outros dois arguidos.

É sabido, pelas regras de experiência comum, que a prática do crime de tráfico de estupefacientes é geradora de enormes lucros/receitas líquidas porque livres de qualquer tributação fiscal e de ganho rápido sem necessitar de grande dispêndio laborativo, sendo uma aliciante, muitas vezes irresistível, para qualquer homem comum, mesmo que tenha uma actividade profissional tributada.

Por outras palavras, o crime de tráfico de estupefacientes constitui, ele próprio, um forte impulso à continuação da atividade criminosa, com efeito, quem se dedica a este tipo de atividade delituosa já tem em mente a obtenção de dinheiro fácil e o desafogo que o mesmo pode proporcionar.

As regras da experiência comum têm-nos dado conta que os indivíduos traficantes, quando envolvidos na atividade de tráfico, raramente ou nunca a abandonam voluntariamente, desde logo, porque não querem prescindir dos rápidos e elevados rendimentos que tal atividade proporciona.

Pelo que se afigura óbvio o perigo de este arguido recorrente ser impelido a continuar nesta atividade criminosa.

A respeito da personalidade do arguido recorrente, importa ainda referir que se desconhece qualquer postura de interiorização da gravidade dos factos indiciados, de arrependimento ou de disposição diversa para o futuro, porquanto em sede de primeiro interrogatório este optou por se remeter ao silêncio, quanto aos factos, no uso de um direito que a lei lhe confere.

Para além disso, o arguido recorrente, aquando do primeiro interrogatório, apenas quis prestar declarações sobre a sua situação pessoal e económica, mas sem que tivesse apresentado qualquer prova, nomeadamente, quanto ao alegado trabalho em Portugal, ao respectivo rendimento e ao respectivo dispêndio no alegado sustento da alegada família. Mas, ainda que tais alegações tivessem sido demonstradas, não o haviam impedido de praticar os factos em apreço nos autos.

Aqui chegados, resta saber se (para além do aplicado termo de identidade e residência) a prisão preventiva aplicada ao arguido recorrente era a medida de coação necessária e a única ajustada face à gravidade do sobredito crime e da respectiva sanção e face às sobreditas exigências cautelares – conforme exigem os arts. 191º, nº 1, 193º, 195º, 202, nº 1, e 204º, nº 1, do CPP.

A prisão preventiva é a medida de coacção mais gravosa pois limita, totalmente, a liberdade pessoal na acepção de liberdade ambulatória da respectiva pessoa.

Como sabemos, o direito a essa liberdade individual é um direito fundamental da pessoa humana que está consagrado quer na Constituição da República Portuguesa (art.27º, nºs 1 e 2, deste diploma, quer na Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. III e IX deste diploma), quer no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 9º deste diploma) e quer na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 5º deste diploma). 

Mas (também, conforme todos esses diplomas ressalvam nos respectivos preceitos, sendo a CRP no seu art. 27º, nº 3 e a DUDH no seu art. XXIX), este direito basilar/ fundamental não é um direito absoluto. Pois, pode sofrer restrições, desde que, estas obedeçam às exigências legalmente previstas para o efeito (a título excepcional), visando a prossecução do respeito de outros direitos de outrem, inerentes às justas exigências da ordem pública, como condição (excepcional e indispensável) à realização da justiça. 
 
Ora (conforme tão bem refere Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. II, pág. 254,): As medidas de coação e, em especial a prisão preventiva, são precisamente meios legais processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no tocante ao desenvolvimento deste quer no tocante à execução das decisões condenatórias.

Pelo que, a aplicação de qualquer medida de coação está dependente do cumprimento ou observância, em cada caso concreto, das respectivas exigências legais.

Desde logo, só pode ser aplicada uma ou várias medidas de coação das que estejam, expressamente, previstas na lei (art. 191º, nº 1, do CPP que consigna o princípio da legalidade ou tipicidade).

O elenco das várias medidas de coacção, expressamente, previstas neste diploma consta desde o art. 196º até ao art. 202º inclusive [seguindo uma ordem de crescente gravidade/restrição de direitos do arguido]: começando no termo de identidade e residência; seguido da caução; da obrigação de apresentação periódica; da suspensão do exercício de profissão, actividade e direitos; de proibição e imposição de condutas; de obrigação de permanência na habitação; e de prisão preventiva.

Sendo a prisão preventiva a medida de coação mais gravosa para o arguido, compreende-se que o legislador a tenha consagrado com natureza subsidiária e excepcional, isto é, só pode ser aplicada pelo juiz como “extrema ratio” – cfr. os arts. 18º, 27º e 28º, da Constituição da República Portuguesa.

Quer isto dizer que a prisão preventiva só pode e deve ser aplicada se e quando todas as restantes medidas de coacção se mostrarem inadequadas ou insuficientes para a salvaguarda das exigências processuais, de natureza cautelar, que o caso concreto requeira, em face da ponderação das concretas circunstâncias e do respectivo juízo de prognose (nomeadamente para garantir a presença do arguido nos demais actos processuais; para assegurar que o arguido não se exima a execução de condenação futura ou já decretada mas ainda não definitiva; para garantir a aquisição e conservação dos meios de prova; e/ou para garantir que o arguido não reitere essa prática delituosa).

Pelo que (seguindo os ensinamentos doutrinais de Maia Costa na 3ª edição revista do “Código de Processo Penal Comentado”, págs. 796-798; de Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal”, 2ª edição, vol. II, pág. 250; e de Leal Henriques e Simas Santos em “Código de processo Penal Anotado”, vol. 1, 3ª edição, pág. 1270:

A aplicação de qualquer uma das medidas de coacção e, em especial da medida de coacção de prisão preventiva, é sempre regida pelos seguintes princípios:
  • O princípio da necessidade ou exigibilidade significa que só através da aplicação daquela concreta medida de coação, e não outra menos gravosa para o arguido, se consegue assegurar as exigências cautelares do caso concreto;
  • O princípio da adequação significa que é necessário haver uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coação imposta ou a impor no caso concreto, como sendo a mais idónea;
  • O princípio da proporcionalidade significa que deve ser escolhida e aplicada aquela medida de coação por ser a que melhor garante tais exigências cautelares na justa medida, isto é, sem ser excessiva porque proporcional à gravidade do crime e às respectivas sanções previsivelmente aplicáveis.

Desta forma, o legislador pretendeu que, perante cada caso concreto, se encontre sempre um ponto de equilíbrio entre dois direitos em confronto [o direito à liberdade individual e o direito da realização da justiça penal], pois só assim se garante o respeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e se impede o livre arbítrio.

Aliás, todas estas garantias emanam do princípio jurídico constitucional da presunção de inocência (consagrado no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), configurando uma compressão deste mesmo princípio jus-constitucional justificada pela realização da justiça penal.

Quer isto dizer que o constitucional princípio da presunção de inocência não obsta à aplicação de medidas de coacção, pois é a própria CRP que prevê (no seu art. 28º, nºs 2 e 3) a possibilidade de aplicação de prisão preventiva e de outras medidas de coação, privativas ou não da liberdade.

Simplesmente, a realização da justiça penal só legitima a aplicação de uma medida de coação concreta se a medida de coação que antecede (no sobredito elenco ou escala de gravidade) já não assegurar o visado fim cautelar.

Ora, é precisamente por isso que, no caso em apreço, se nos afigura injustificada a medida de coação pretendida pelo arguido recorrente (de obrigação de permanência na habitação) em detrimento da prisão preventiva a que está sujeito.

A este propósito, não podemos deixar de salientar que – contrariamente ao entendimento do arguido recorrente – o princípio da presunção de inocência tão somente impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido, antes do trânsito em julgado de condenação, tenha uma natureza excecional.

Mas, não impede a aplicação da medida de coação mais gravosa ou mais limitadora dessa liberdade, se e quando esta (prisão preventiva) seja (para além do termo de identidade e residência) a única medida de coação necessária adequada, proporcional e ajustada perante a gravidade do indiciado crime e respectiva sanção e perante os concretos e reais perigos indiciados.

Pois, perante o caso em apreço [em que há fortes indícios de que o arguido recorrente, em co-autoria com mais outros dois arguidos, praticou um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível no art. 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22-1, e, também, está suficientemente indiciado quer o perigo de fuga do arguido recorrente quer o perigo de continuação dessa mesma actividade criminosa por parte do arguido recorrente], a medida de coação de obrigação de permanência do arguido na habitação e com vigilância electrónica, através da vulgarmente designada “pulseira electrónica” (antecipadamente consentida por este para essa fiscalização) não seria proporcional à gravidade daquele crime e à respectiva sanção, nem seria suficientemente idónea para acautelar aqueles perigos concretos e reais e sairiam comprometidas as necessidades de natureza cautelar, ínsitas às finalidades do processo penal e da justiça penal no caso concreto.

Pois a vigilância electrónica (da obrigação de permanência do arguido na habitação), através da aludida pulseira electrónica, teria como única função dar a conhecer uma eventual e concreta violação de permanência na habitação por parte do arguido.

Mas, nem sequer teria a virtualidade de monitorizar o que sucede com o arguido dentro da sua residência e, muito menos, de impedi-lo da inutilização desse meio de vigilância com imediata fuga.

Mesmo que o arguido se mantivesse confinado a uma residência, tal não o impediria de repetir comportamentos de tráfico de estupefacientes, nomeadamente, não teria a virtualidade de impedir os contactos e transações com fornecedores e clientes de droga, nomeadamente, fazendo uso do telemóvel, da internet, das redes sociais e/ou de terceiros, poderia adquirir produto estupefaciente junto de outrem, bastando-lhe diligenciar depois por arranjar alguém que lho trouxesse a casa para posteriormente o poder vender a quem o contatasse e se deslocasse, por si ou por interposta pessoa, à sua habitação.

E assim tem sido entendido pelos Tribunais da Relação, sendo de assinalar os seguintes constantes de www.dgsi.pt: o acórdão desta Relação de Lisboa de 11/6/2019 proferido no processo 1534/17.3T9TVD-A.L1-5 e de 17/6/2020 proferido no processo 130/18.2SWLB-A; os acórdãos da Relação de Coimbra de 2/3/2015 proferido no processo 6/15.5GASRTC.C1 e de 7/10/2009 proferido no processo 14/09.5GAOVR-A.C1; o acórdão da Relação do Porto de 9.6.2010 no processo 3/10.7SFPRT-A.P1; o acórdão da Relação de Évora de 31/1/2012 no processo 8/11.0TESTB-B.E1; e o acórdão da Relação de Guimarães de 8/9/2008 no processo 1853/08-1.

Cremos assim que, no caso concreto, aplicar a medida de coação de permanência na habitação mediante vigilância eletrónica (pretendida pelo arguido/recorrente) não surtiria qualquer efeito útil, em termos de impedir a continuação da atividade de tráfico.

As condutas que integram o crime de tráfico de estupefacientes constituem criminalidade altamente organizada, que urge combater e que o arguido poderia continuar a praticar a partir da residência, pois a implementação dos meios de vigilância eletrónica, por motivos óbvios, não tem a virtualidade de impedir que o arguido pratique  condutas que integram essa actividade de tráfico de estupefacientes.

Não relevando, para este efeito, a mera alegação do arguido/recorrente de que a pretendida substituição por obrigação de permanência em habitação, alegadamente arrendada em local de Portugal lhe permitirá exercer teletrabalho remunerado. Aliás não se descortina como seria possível teletrabalho remunerado como alegado vidreiro e que tal lhe permitiria garantir o alegado sustento da alegada família. 

E, conforme tão, certeiramente, referem os Exmos. Procuradores, tal eventual situação de carência da alegada família, mesmo a existir, será da inteira responsabilidade do arguido/recorrente por ter enveredado por este tipo indiciado de prática criminosa, mesmo sabendo disso mesmo e do risco de vir a ser descoberta tal prática delituosa seguida de detenção em flagrante delito e de aplicação de medida de coação de prisão preventiva. 

Em face de tudo o exposto, atenta a gravidade do ilícito, da sanção aplicável e dos perigos que urge acautelar, é manifesto que (cumulativamente ao termo de identidade e residência) a medida de coação de prisão preventiva é a única que respeita todos os princípios acima expostos, nomeadamente, da necessidade, adequação, proporcionalidade e também da subsidiariedade.

Pelo que, sem necessidade de outras considerações, não tendo sido violada nenhuma das normas legais e/ou constitucionais invocadas pelo arguido/recorrente, nenhuma censura merece a decisão recorrida, que se confirma, sendo manifesta a improcedência do presente recurso.


III–Dispositivo
    
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se o despacho recorrido, devendo o arguido continuar a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art. 513º, nº1, do CPP e art. 8º, nº9, do RCP e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.
Comunique-se de imediato ao tribunal a quo a presente decisão, remetendo cópia da mesma.
D.n.

         
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários)



Lisboa, 29 de Setembro de 2022

 
                             
A Juiz Desembargadora Relatora
Paula de Sousa Novais Penha

O Juiz Desembargador Adjunto 
Carlos da Cunha Coutinho

A Juiz Desembargadora Adjunta
Raquel Correia de Lima