RESPONSABILIDADES PARENTAIS
EDUCAÇÃO RELIGIOSA
RECURSO DA DECISÃO QUE DECRETA A MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE CONFIANÇA COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
CONTACTOS DA CRIANÇA COM OS FAMILIARES
INTERESSE DA CRIANÇA
Sumário

I - Pertence aos pais decidir sobre a orientação da educação religiosa, e, portanto, do seu baptismo de harmonia com a confissão religiosa católica, da filha menor de 5 anos de idade, e não à menor ou ao patrono que lhe foi nomeado no contexto de um processo judicial de promoção e protecção.
II - Tendo sido interposto recurso, com efeito suspensivo, do acórdão que aplicou à menor a medida de promoção e protecção de confiança com vista a futura adopção, continuam os pais investidos no exercício das responsabilidades parentais correspondentes.
III – Resultante dos factos que a menor não tem actualmente vínculos afectivos estruturantes de relevo com ninguém não é objectivamente do interesse da criança a manutenção de contactos, presenciais ou não, com os seus familiares.

Texto Integral


                                                                                        

I. Forma de julgamento do recurso.

Dado que a questão objecto do recurso não é complexa, mas é urgente, declaro que este será julgado, liminar, sumária e singularmente (art.ºs 652.º, n.º 1, c), e 656.º do CPC)

II. Julgamento do recurso.

1. Relatório.

Por despacho de 23 de Dezembro de 2021, o Senhor Juiz de Direito do Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., decidiu, sob promoção do Ministério Público – com fundamento em que nenhuma outra medida das legalmente elencadas se afigurar adequada a debelar o perigo verificado, e muito menos a sua mera cessação o lograria minimamente – prorrogar a medida de acolhimento residencial a título cautelar aplicada AA, nascida no dia .../.../2021, pelo período de três meses computados desde 4 de Dezembro de 2021, na casa de acolhimento em que a criança presentemente se encontra e determinar que se aguardasse o debate judicial, momento em que o Tribunal, a requerimento ou promoção, se pronunciará sobre a necessidade de revisão da medida ora prorrogada.

O Tribunal Colectivo Misto deliberou, por acórdão, publicado no dia 10 de Fevereiro de 2022,  aplicar  em benefício da criança AA, nascida no dia .../.../2017, a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, mantendo-se a criança na instituição em que se encontra acolhida, "A ...", declarar os progenitores inibidos do exercício das responsabilidades parentais assim como cessar todas as visitas à AA por parte de qualquer membro da família biológica e designar como curador provisório da AA o Sr./Sr.ª Diretor/a da instituição em que a criança se encontra acolhida[1].

O Exmo. Patrono da criança logo interpôs recurso deste acórdão, no qual – sem impugnar a matéria de facto nele considerada provada – pede a sua revogação e substituição por outro que reabra o debate judicial e equacione a aplicação da medida de apoio junto de outro familiar (alínea b) ou a da confiança a pessoa idónea previstas no artigo 35º nº 1 – c) e 43º da LPCJP, seja aos avós paternos seja aos futuros padrinhos, cumprindo assim com o princípio do primado da família biológica e natural em detrimento da solução artificial e inadequada da adoção[2] - recurso que foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Exmo. Patrono da criança, requereu, depois, a cessação da medida de acolhimento residencial e a repristinação da medida de acolhimento junto dos avós paternos, bem como a autorização de visitas de familiares, nos termos anteriores ao decretamento da medida de acolhimento residencial.

Fundamentou esta pretensão no facto de a criança ter estado sujeita a medida cautelar de acolhimento residencial, por períodos prorrogáveis de três meses, revista a 23 de Dezembro de 2021, com fim a 4 de Março de 2022, de, tendo ocorrido o termo daquela medida há quase dois meses, não se perspectivar que haja decisão nos próximos meses, já que estão pendente três recursos, relativos ao indeferimento do baptizado da criança, ao indeferimento de realização de novo debate judicial e á decisão final de confiança daquela a pessoa selecionada para adopção, não tendo a mãe sido notificada do acórdão nem se sabendo quando o será, atenta a dificuldade em notificá-la, pelo que entende que deverá ser entregue aos cuidados dos avós paternos, dado que o afastamento há demasiado tempo da família  biológica, proibida de contactar consigo, lhe poderá causar danos psicológicos irreparáveis, de o acórdão que inibiu os pais do exercício das responsabilidades parentais e ordenou a cessação das visitas por parte da família biológica, não ter transitado em julgado, estando em aberto a reversão da decisão, sendo de novo autorizadas as vistas dos familiares podendo até ser a confiada a um deles ou a pessoa idónea, o que, se vier a suceder, já terá decorrido demasiado tempo sobre a última visita e a nova situação familiar, podendo ficar comprometido o reatar dos laços de afecto com aqueles familiares, e de existir o risco de a futura família adoptiva não a querer baptizar, dado que vindo de uma família de matriz católica é natural que a família biológica pretenda que essa cerimónia seja realizada quanto antes.

Sobre este requerimento, ouvido o Ministério Público, recaiu este despacho do Sr. Juiz de Direito:

Compulsados os autos verifica-se que a progenitora ainda não foi notificada do teor do acórdão proferido em 10Fev2022. Tendo em conta a razão dessa falta de notificação e o teor do dispositivo do referido acórdão, mostra-se inadmissível o protelamento da situação vigente o que impede na prática, a implementação da decisão e o seu trânsito em julgado e/ou tramitação de recurso interposto.

Assim, tendo-se em conta a específica informação de rei. ...09, solicite-se nova tentativa de notificação da progenitora através de OPC, sendo certo que, gorando-se a mesma, será a mesma notificada por via edital, o que desde já se determina.

A ref. 8662991 veio o li. patrono da menor requerer que a menor seja entregue aos cuidados dos avós paternos com quem se encontrava a residir até à aplicação da presente medida cautelar que, refere já se mostrar esgotada no seu prazo.

Pronunciou-se o Ministério Público a ref. 100356541 promovendo no sentido do seu indeferimento.

Cumpre apreciar e decidir.

O li. patrono da menor, como vem sendo hábito a partir de Outubro do ano transacto, vem apresentando recorrentemente requerimentos nos quais prima por articular apenas as partes factuais e legais que enviesadamente aportem ao vencimento do que vem requerendo, olvidando concomitante e selectivamente, quer os factos, quer as disposições legais que dispõem precisamente em contrário.

ln casu, vem referir - numa interpretação a roçar a má-fé - que era com os avós paternos que a menor se encontrava a residir (o que provadamente apenas se verificou em  parte do mês de Agosto de 2021, nunca tendo acontecido antes, nem depois) assim como que a menor se encontra sujeita à medida cautelar de acolhimento residencial, tentando obnubilar de forma absurda, que a decisão, ainda que recorrida, aplicou medida diversa.

Ademais, o teor do art. 62° A LPCJP expressamente dispõe no seu nº 1 e 2 que "a medida de confiança a (. . .) instituição com vista a adopção, dura até ser decretada a adoção" e só será excepcionalmente revista caso a sua execução se mostre manifestamente inviável. A inviabilidade a que a lei se refere não é concerteza por falta de notificação da progenitora, uma vez que em nada tem essa falta de notificação impedido a execução da medida determinada e aplicada (não a adopção mas a confiança com vista à adopção, entenda-se).

Por outro lado, ainda, refere nº 6 do mesmo artigo, igualmente ignorado pelo requerente, que "aplicada a medida prevista no nº 1, não há lugar a visitas por parte da família biológica ou adaptante".

O li. patrono pretende, por conseguinte, que a medida aplicada judicialmente - e os efeitos da mesma - simplesmente não se produzam porque a progenitora não se mostra notificada por culpa que não pode ser assacada senão a ela própria. Pretende que apesar de legalmente proibidas as visitas, candidamente, a menor seja entregue aos avós com quem - pretensamente - vivia. E continua a insistir pelo baptismo da menor enquanto decisão a ser tomada por quem não tem a menor legitimidade para o efeito conforme decorre da decisão proferida e como se esta - e a factualidade em que se estriba – nunca houvesse sequer sido proferida.

Trata-se, em suma, de requerimento tão temerário, quanto infundado, que simplesmente aposta numa menorização mental deste Tribunal, pelo que se indefere in totum o requerido.

É este despacho que o Exmo. Patrono da criança impugna no recurso, no qual pede a sua revogação e substituição por outro que autorize as visitas e os contactos da criança com os seus familiares, determine a realização de relatórios sociais pata apurar as condições pessoais, sociais e logísticas, quer dos avós quer dos futuros padrinhos, e autorize o baptizado da criança.

O recorrente condensou a sua alegação nestas conclusões:

29. O douto despacho recorrido viola o artigo 62º da LPCJP na medida em que, prematuramente, está a aplicar a medida prevista no artigo 62º-A (medida de confiança para adoção) quando, em boa verdade, a decisão que a aplicou ainda não transitou em julgado e até poderá nem sequer transitar.

30. Não tendo havido trânsito em julgado, não poderá produzir efeitos.

31. Tendo terminado o prazo pelo qual foi decretada a medida cautelar de acolhimento residencial em instituição e não tendo a mesma sido revista e prorrogada, deverá ser tomada outra decisão quanto à Menor enquanto se encontrarem pendentes os três recursos de decisões tomadas nestes autos.

32. Ao não dar como cessada nem revista a medida cautelar de acolhimento da menor, o douto despacho recorrido violou o artigo 62º nº 1 e nº 2 da LPCJP.

33. Entende a Menor que a comunicação à Casa de Acolhimento da decisão de confiança para adoção e proibição dos contatos entre a criança e os seus familiares foi prematura, atento o facto de o acórdão ainda não ter transitado em julgado.

34. Destarte, deverá a decisão de comunicação à Casa de Acolhimento ser revogada e substituída por outra que autorize os contatos e visitas nos moldes anteriores.

35. Deverá igualmente ser pedido à Segurança Social que elabore um relatório acerca das condições pessoais, sociais e logísticas dos avós paternos e do casal que a fls. 488-489 manifestou disponibilidade para acolher a Menor porquanto, cessada a medida de acolhimento residencial, haverá que equacionar alternativas enquanto a decisão de confiança para adoção estiver pendente de recurso e, portanto, não puder produzir efeitos.

36. Deverá ser autorizada a realização da cerimónia de batismo da Menor com a presença dos seus familiares próximos porquanto é no superior interesse da Menor que tal evento decorra, conforme ponderação e avaliação feita pelo ora signatário.

37. Assim, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que autorize as visitas e contatos da Menor com os seus familiares, determine a realização de relatórios sociais para apurar as condições pessoais, sociais e logísticas, quer dos avós quer dos futuros padrinhos, e autorize o batizado da criança.

O Ministério Público, na resposta ao recurso – depois de observar que a medida aplicada pelo acórdão de 10 de Fevereiro de 2022 substituiu a medida de acolhimento residencial até aí vigente, que a cessação das visitas à menor por parte dos seus familiares surge como decorrência da lei, sendo adequada no caso concreto, que não se vislumbra que corresponda ao interesse da criança ser baptizada pelos familiares e que nenhum pároco poderá legitimamente aceitar a incumbência de a baptizar – concluiu pela sua improcedência.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

O Tribunal Colectivo Misto considerou provados, no acórdão, os factos seguintes[3]:

1. A criança AA (dora em diante referida como AA), nasceu no dia .../.../2017, sendo filha de BB e de CC (assento de nascimento de tis. 98) 2. A criança residiu com os pais até 13Mai2018, então na ...., em ... (tis. 74 e 88), embora tenha residido anteriormente em ... onde a CPCJ ... aplicou e assim foi aceite pelos progenitores a medida de apoio junto dos pais em 6Mar2017 (tis. 345)

3. Os progenitores mudaram-se para a zona limítrofe de ... e deixaram de contactar com a CPCJ e quando o progenitor voltou a contactar a CPCJ, informou que o agregado se encontrava já a residir em ..., continuando a alternar posteriormente atividades laborais sucessivas e precárias, com ausência de trabalho e de meios de subsistência.

4. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 16Jan2018, a avó paterna e o seu marido, residentes no ..., ..., contactaram a CPCJ a disponibilizarem-se para se constituírem como alternativa no projeto de vida da AA, recebendo-a no seu agregado e cuidando dela (tis. 63);

5. A CPCJ deliberou em 30Jan2018 pela substituição da medida de promoção de apoio junto dos pais pela medida de apoio junto de outro familiar, substanciado na pessoa da avó e do marido, o que não mereceu, porém, a concordância dos progenitores (tis. 72). Foi então celebrado novo acordo de promoção e proteção de apoio junto dos pais em 15Fev2018 (tis. 75) tendo durante o período da sua vigência o agregado recebido refeições no âmbito da cantina social (tis. 87).

6. Na data referida em 2., e após saída da progenitora com a criança para parte incerta (fls. 88), a criança veio a ser acolhida em ..., ..., em ..., no dia 29Mai2018 (fls.106v) por decisão judicial, aplicada a título cautelar, datada de 25Mai2018 (fls. 94)

7. Entre a data do acolhimento e 14Ago2018 ambos os progenitores visitaram a AA com frequência, mais a progenitora devido aos horários laborais do progenitor, revelando a criança satisfação pela presença dos pais e apresentando um registo de choro aquando da saída das visitas retornado à situação de tranquilidade após a saída da progenitora. Nesse período a progenitora verbalizou que discordava do acolhimento e que a menor estaria melhor consigo, e que não via qualquer utilidade em assumir um acompanhamento psiquiátrico e processo terapêutico, assim como o progenitor reclama inverdades em referências processuais no que respeita a que haja retomado consumos de estupefacientes e que já demonstrou ter capacidades parentais (relatório de fls.143).

8. Em 4Set2018 é celebrado acordo de promoção e proteção para aplicação de medida de acolhimento residencial pelo período de 6 meses, com revisão a· final, o qual previu visitas, fins de semana e férias nos moldes a serem definidos pelo gestor do processo e pelo/a diretor/a da instituição de acolhimento (fls. 159).

9. Em 12Set2018 a AA foi transferida para a ..., em .... (fls. 162).

10. Em 4Out2018 é reportado que a AA entra com satisfação nas visitas da progenitora, mas que fica agitada no decurso da visita, chora com frequência e despede-se com grande angústia, choro e sofrimento. A progenitora é descrita como ansiosa, agitada e com discurso confuso com perfil ansiogénico, reportando-se o progenitor como adotando uma postura cuidadora pelo que lhe foi proposto acompanhar a AA num internamento decorrente de exame oftalmológico, ao que este respondeu que teria que falar com a progenitora primeiro, o que acabou por provocar sentimentos de exclusão por parte da progenitora (fls. 167 e 168).

11. Em 27Nov2018 foi requerido por ambos os progenitores da AA que esta passasse o Natal junto da família alargada (fls. 174) tendo sido, em consequência, autorizada pela casa de acolhimento uma visita da AA pelos pais no exterior da instituição no dia 24Dez2018 pelo período de 2 horas (fls.178), o que acabou por ser aceite pelos progenitores (fls. 180).

12. Em 4Jan2019 foi a progenitora sujeita a exame de avaliação psicológica donde se concluiu a mesma ter dificuldades de empatia, uma atitude imatura na forma como gere e programa a parentalidade, com fracos conhecimentos sobre características distintivas dos filhos, bem como as suas necessidades desenvolvimentais específicas (v.g. médicas) chegando a ser negligente e também que a progenitora organiza as suas condições de vida em torno das suas relações afetivas e românticas em detrimento da parentalidade. (fls. 208).

13. Em 14Jan2019 a avó paterna formulou pedido para ser autorizada a visitar a AA (fls. 184), tendo-o feito por duas vezes nesse período. Nessas visitas, a avó e o marido equacionaram a possibilidade de se constituírem alternativa aos progenitores, tendo sido então reportada como com condição física potencialmente limitadora para acompanhar uma criança na presente fase de desenvolvimento da AA. Foi então ponderada a avaliação da avó e do marido como potenciais cuidadores da AA (fls. 199).

14. Até 11Mar2019 a AA continuou a ser visitada regularmente pelos progenitores, separadamente, numa média de 2 vezes por semana, que depois passou a uma vez por semana (fls.

197 e ss.). O progenitor mudou de local de trabalho, continuando a progenitora a ser referenciada por discurso confuso e sem registos de rendimentos.

15. Até 28Ago2019 os progenitores mudaram uma vez mais de residência e afirmaram terem mudado de local de trabalho, sempre sem avisarem previamente o ISS, agindo sempre em conjunto e visitando juntos a AA na instituição. Pelo ISS é proposto um projeto de parentalidade ao progenitor sem o envolvimento da progenitora, o que motivou reação desta quando o veio a saber através do progenitor. Concluiu-se igualmente que os avós não são alternativa, por avaliação personalizada da equipa do SIATT ... e propôs-se desde então a aplicação de medida de confiança com vista a adoção (fls. 229 e 229v)

16. Em 29Nov2019 o progenitor pediu autorização para a AA passar consigo a quadra natalícia (fls. 248) o que foi indeferido pelo Tribunal mediante prévio parecer técnico desfavorável por parte da casa de acolhimento (fls. 256)

17. Em 4Dez2019 na sequência de uma visita domiciliária à residência apontada pelo progenitor, verificaram-se factos dos quais se retira que ambos os progenitores mantêm ainda então uma ligação afetiva entre eles, ao contrário do que era, por ambos, induzido ao ISS (fls. 254).

18. Até 10Fev2020, e por relatório do ISS dessa data nada de novo e de relevante se verifica (fls. 268) mantendo-se as ligações à AA por visita e por telefone, por ambos os progenitores e pela avó e marido (fls. 266v), sendo que foi visitada pela avó por 4 vezes, que também telefonou para saber do bem-estar da AA por 15 vezes (fls. 290).

19. Em 1 Mar2020 a avó paterna dirigiu um requerimento aos autos (fls. 267) prontificando-se a cuidar da AA e juntando documentação e fotografias que consideraram relevantes para a sua pretensão (fls. 268 a 274).

20. Em Mar2020 as visitas presenciais à AA foram suspensas em virtude da pandemia mantendo-se os contactos então por videochamada quer com os progenitores quer com a avó. O progenitor deixou de contactar com a AA com frequência, embora a progenitora ainda o faça. A avó paterna fez uma videochamada com periodicidade mensal (fls. 327).

21. Em 29Mar2021 o progenitor não contactava com a AA há 4 meses e desconhecia-se o seu paradeiro, e a progenitora continuava a visitar a filha embora de forma irregular. A avó paterna continua a contactar a AA de forma regular, com as limitações inerentes à distância geográfica da sua residência (fls. 341).

22. Em 23Jul2021 o progenitor deixara totalmente de contactar a AA desde há 8 meses, continuando desconhecido o seu paradeiro e atividade laboral.

23. Em 5Ago2021 a AA foi autorizada a passar um mês de férias de verão com a avó paterna, com término previsto para 30Ago2021.

24. Durante o período referido em 23. supra e em dias diversos, a AA fez 3 birras, chorando e gritando compulsivamente, e recusando-se a comer por pretender ver televisão durante a noite com volume elevado e a avó a ter confrontado com a impossibilidade de o fazer.

25. Por não saberem como reagir e assustados com as proporções da reação da AA, mormente sobre o que os vizinhos pensariam do que se passaria em sua casa com a AA, a avó paterna e o seu marido decidiram ligar à ... a ..., por pelo menos duas vezes, queixando-se do facto e referindo que não sabiam o que deviam fazer. Foi-lhes referido que viessem trazer a AA de volta à ..., o que aconteceu no dia 28Ago2021, tendo-a recebido a funcionária DD a quem a avó perguntou: "E agora? Tenho que falar com a Dra. EE para saber como é que vai ser agora"

26. O progenitor apresenta em 9Fev2018 um histórico de adição a produtos estupefacientes encontrando-se em programa de metadona o qual cumpre de forma regular o tratamento, mantendo posteriormente um padrão de abstinência continuada de substâncias psicotrópicas (fls. 72, fls. 80 e fls. 129), não sendo possível prever-se a data da sua conclusão. Tem 3 filhas de relacionamentos anteriores (em 2017, com 8, 10 e 18 anos) com quem mantém contacto periódico, mas não contínuo (fls. 328). Em 25Mai2020 apresenta uma personalidade estruturada, livre de sintomatologia psicopatológica, revela possuir estratégias adequadas para enfrentar situações de stress, com funcionamento adequado a nível familiar, afetivo e social com modelo de vinculação seguro ajustado que condicionará positivamente o exercício individual da parentalidade. (fls. 313). Apresenta e sempre apresentou uma situação errante e descontinuada em termos laborais, e também em termos geográficos e residenciais.

27. É intenção do progenitor expressa desde pelo menos 8Out2021 que a AA seja entregue aos cuidados da avó paterna para que ele possa visitá-la ou ir morar para perto da sua mãe e ajudar a criá-la (fls. 387), não tendo condições atualmente para poder cuidar da filha.

28. A progenitora tem um filho de anterior relacionamento (em 2017, com 3 anos de idade) que se encontra entregue à avó paterna. Provém de família disfuncional com histórico de alcoolismo e consumo de drogas (avó materna) e que ela quer as suas irmãs tiveram processo de promoção e proteção que correu termos na CPCJ. Em Dez2019 os progenitores deixaram de manter relação afetiva e a progenitora iniciou novo relacionamento tendo tido novo filho em Ago2020 (fls. 331 v). Sofreu de hidrocefalia pós meningite tuberculosa sem alterações neurológicas (fls. 123). Afirma-se atualmente como não sendo opção para cuidar da filha, preferindo que a mesma seja entregue à avó paterna.

29. A avó paterna tinha (em Março de 2020) 64 anos de idade e o seu marido 55 anos. São casados desde 2008 após 7 anos de união de facto e integram apenas ambos o seu agregado. A avó tem 5 filhos e o marido não tem filhos. Residem num apartamento de tipologia T2 em ..., .... A avó paterna encontra-se reformada por invalidez desde 13Set2006, com limitação funcional do braço direito (fls. 298 e 299).

30. Entre 2Out2020 e 19Jan2022 a AA recebeu visitas 6 visitas do progenitor, 12 visitas da progenitora (3 por videochamada) e 7 visitas dos avós;

31. Entre 25Dez2020 e 22Jan2022 foram feitas chamadas para a ... para saberem do bem-estar da AA: 35 chamadas da avó materna e 31 chamadas da progenitora;

32. A AA tem atualmente 5 anos de idade, sofre de estrabismo, carece de especiais cuidados no que respeita à sua saúde oftalmológica e não tem atualmente vínculos afetivos estruturantes de relevo com ninguém.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objetivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635 nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

Assim, considerados estes parâmetros de delimitação da competência decisória desta Relação, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se a decisão impugnada deve ser revogada e logo substituída por outra que autorize os familiares da criança, AA, a visitá-la e a contactá-la, ordene a realização de inquéritos sociais sobre as condições, pessoais e sociais, tanto dos avós como dos futuros padrinhos, e autorize o seu baptismo católico.

A resolução destes problemas implica o exame, leve, mas minimamente estruturado da legitimidade para decidir sobre a educação religiosa da criança, dos fundamentos finais da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança, dos pressupostos das medidas de promoção e protecção de apoio junto de outro familiar, de acolhimento residencial e de confiança com vista à adopção e da exequibilidade da decisão que aplique esta última medida antes do seu trânsito em julgado.

3.2. Legitimidade para a decisão sobre a educação religiosa da criança.

Vem pedida, no recurso – formalmente pela criança, materialmente pelo seu Exmo. Patrono – autorização para o seu baptismo católico.

Este pedido implica ou pressupõe, necessariamente, uma escolha prévia quanto à educação religiosa da criança.

Pertence aos pais – ou a quem em dado momento exercer as responsabilidades parentais –  decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores de dezasseis anos (art.º 1886 do Código Civil). Os pais têm o direito de educação dos filhos em coerência com as próprias convicções em matéria religiosa, no respeito pela integridade moral e física dos filhos e sem prejuízo da saúde destes; a partir dos 16 anos, os menores têm o direito de realizar por si as escolhas relativas à liberdade de consciência, de religião e de culto (art.º 11.º, n.ºs e 2, da Lei da Liberdade Religiosa, aprovada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, na sua redacção actual).

Até atingir os 16 anos a orientação religiosa do filho é decidida por ambos os pais; se não houver acordo destes, dado que, comprovadamente, a educação religiosa ou não do filho, é uma questão de particular importância, caberá ao tribunal decidir, ouvida a criança maior de 14 anos (art.º 1901.º do Código Civil). Perfazendo a criança 16 anos de idade, cessa o poder de decisão dos pais na área da educação estritamente religiosa, cabendo a decisão à criança.

No caso, o pedido de autorização do baptismo católico – e consequentemente a opção pela orientação religiosa católica que tem necessariamente implícita – não procede dos pais, mas da criança. Simplesmente, por força da sua idade não é esta que compete decidir sobre a sua educação religiosa. Essa competência pertence aos pais.

De outro aspecto, pede-se autorização para o baptismo católico, pelo que há que considerar as normas reguladoras da administração deste sacramento, dispostas na ordem jurídica canónica.

Assim, para que a criança seja licitamente baptizada, requerer-se que: a) que os pais, ou ao menos um deles, ou quem legitimamente fizer as suas vezes, consintam; b) que haja esperança fundada de que a criança irá ser educada na religião católica (Cânone 868.º, § 1, do Código Canónico). Solução que se explica pelo facto de a criança não ter ainda a capacidade racional de professar a fé por si própria, pelo que esta é assegurada, como condição do baptismo, por que tem a responsabilidade de a educar e instruir na vida da fé católica. Aquele Código declara que é maior a pessoa que completou 18 anos de idade e que o menor, antes de completar 7 anos, chama-se infante e considera-se que não tem o uso da razão; completando os sete anos de idade, presume-se que o tem (Cânone 97.º). Considera-se, assim, que para ser baptizado, o menor que estiver dentro desta idade do “uso da razão”, passa a ser considerado como adulto. Por isso, deve requerer-se o seu consentimento para o baptismo, que, portanto, será uma escolha sua e não apenas dos pais e se é essa a sua vontade, supõe-se que já tenha algum conhecimento do que é a vida cristã católica e das suas exigências pessoais e profissionais.

A criança com menos de 7 anos de idade não tem, em termos canónicos, o uso da razão e, portanto, quem decide sobre o seu baptismo católico são, pois, os pais, ou um deles, ou quem exercer as funções inerentes à parentalidade.

3.3. Fundamentos finais da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança, dos pressupostos das medidas de promoção e protecção de apoio junto de outro familiar, de acolhimento residencial e de confiança com vista à adopção.

AA, dado que ainda não perfez 18 anos de idade, é menor (artºs 122.º, 123.º, 129.º e 130.º do Código Civil).

Está, por essa razão, sujeito ao poder paternal, rectior, às responsabilidades parentais (artºs 124.º e 1877.º do Código Civil, o último na redacção do art.º 3 da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro)[4].

As responsabilidades parentais consistem num conjunto de poderes-deveres, funcionalmente afectados à prossecução do bem-estar moral e material do filho (artºs 1784.º, n.º 1, e 1878.º, n.º 1, do Código Civil).

As responsabilidades parentais não são, estruturalmente, um direito subjectivo: são antes uma situação jurídica complexa em que avultam poderes funcionais e alguns direitos, mas ao lado de puros e simples deveres.

Constituindo nítido exemplo de direito pessoal familiar, as responsabilidades parentais não são, porém, um direito a que se ajuste a noção tradicional de direito subjectivo: trata-se, antes, de um poder dever, um poder funcional, nos termos do qual incumbe, a cada um dos pais, no interesse exclusivo do filho, guardar a sua pessoa, manter com ele relações pessoais, assegurar a sua educação, sustento, representação legal e a administração dos seus bens (art.ºs 1878.º, n.º 1, 1881.º e 1885.º do Código Civil)[5].

Portanto, as responsabilidades parentais não são um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre – mas de faculdades de carácter altruísta, que devem ser exercidas primariamente no interesse do menor – e não dos pais (art.º 1878.º, n.º 1 do CC)[6].

O menor não é, porém, apenas um sujeito protegido pelo direito; é ele próprio, titular de direitos reconhecidos juridicamente (v.g., artºs 64.º, n.º 2, 67.º, 68.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa - CRP)[7].

A criança apresenta um conjunto de necessidades cuja satisfação é necessária ao seu bem-estar psicológico e cuja não realização compromete o seu desenvolvimento posterior e o seu ajustamento social[8]. Entre essas necessidades avultam, entre outras, os cuidados físicos e de protecção; afecto e aprovação; estimulação e ensino; disciplina e controlo consistente e desenvolvimentalmente apropriados; oportunidade e encorajamento da autonomização gradual.

O conceito de necessidades e o imperativo desenvolvimental da sua satisfação cria as condições para o reconhecimento do direito que assiste à criança de as ver realizadas.

As necessidades da criança convertem-se, assim, em direitos subjectivos extensivos que constituem normas educativas relativamente às quais se afere a qualidade, competência e adequação dos pais[9].

A criança conquistou já um incontornável estatuto de cidadania social, tendo deixado de ser vista como mero sujeito passivo e objecto da decisão de outrem – o seu representante legal – sem qualquer capacidade para influenciar a condução da sua vida e passou a ser vista como verdadeiro sujeito de direitos, ou seja, como sujeito dotado de progressiva autonomia no exercício dos seus direitos em função da sua idade, maturidade e grau de desenvolvimento das suas capacidades.

Por isso que falar no interesse do menor equivale hoje a falar de direitos do menor (art.ºs 1.º e 3.º, n.º 1, da LPCJP, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, na sua redacção actual, e 1905.º, n.º 1, do Código Civil).
Esses direitos, sem prejuízo daqueles que devem reconhecer-se aos pais - que exercem poderes funcionais para desempenharem deveres no interesse do filho - reclamam que a função parental, seja qual for a vertente considerada, se coloque ao serviço do desenvolvimento, são e harmonioso, da personalidade da criança e do seu bem-estar moral e material[10] e da regular evolução do seu processo de socialização[11].

O desenvolvimento pleno da criança implica, na verdade, o reconhecimento e a realização de direitos sociais, culturais, económicos e civis[12]. O exercício dos direitos que a criança titula reclama responsabilidade parental, i.e., que os pais assumam os seus deveres para com o filho.

A criança tem, desde logo, um direito à protecção da sociedade e do Estado (art.º 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). Trata-se, nitidamente, de um direito social, que impõe, seja ao Estado, seja á sociedade, deveres de prestação e de actividade e que supõe, por definição, um direito negativo da criança a não ser abandonada, discriminada ou oprimida (art.º 69.º, n.º 1, 2ª parte, da Constituição da República Portuguesa).

Esse direito tem por fundamento final o desenvolvimento integral da criança, noção cuja matriz constitucional deve ser aproximada da noção de desenvolvimento da personalidade, que assenta em dois pressupostos: a garantia da dignidade da pessoa humana, elemento estático mas fundamental que constitui o alicerce do direito ao desenvolvimento; a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades (art.ºs 1.º e 26.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).

A dimensão fundante da dignidade da pessoa da criança e do desenvolvimento da sua personalidade coloca o interesse da criança como parâmetro material básico da sua protecção e da promoção dos seus direitos, legitimando a intervenção do Estado, através da actuação de medidas indispensáveis a tal protecção e promoção (art.º 69.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Esse direito da criança à protecção especial deve-lhe ser assegurado, por exemplo, sempre que se mostre privada de um ambiente familiar normal (art.º 69.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). A densificação do conceito ambiente familiar normal não deve, porém, dar lugar a equívocos: a anomalia deve ser vista apenas na perspectiva de falta de condições para o cuidado e desenvolvimento da criança e não por referência a qualquer modelo normativo de família.

A Constituição da Família não reconhece direitos apenas à criança; reconhece-os também aos pais.

Desde logo, o direito e o dever dos pais de educação e manutenção dos filhos (art.º 36.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). Trata-se, verdadeiramente, de um direito-dever subjectivo - e não uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática, integrando o chamado poder paternal – que se traduz na compreensão deste último como obrigação de cuidado parental[13].

O direito e o dever de educação têm, no contexto constitucional, um sentido mais amplo do que ensino já que abrange designadamente todo o processo global de socialização e aculturação, na medida em que ele é realizável dentro da família.

A garantia da não privação dos filhos é também um direito subjectivo titulado pelos pais – como, de resto, também pelos filhos (art.º 36.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa). As restrições a este direito estão sujeitas a uma dupla reserva; reserva de lei - que deve estabelecer os casos em que os filhos poderão ser separados dos pais, quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais; reserva de decisão judicial - quando se trate de separação forçada, contra a vontade dos pais.

Este direito constitui, de outro aspecto, dimensão ineliminável da garantia constitucional da protecção da família - que significa desde logo e em primeiro lugar, a protecção da unidade da família, ideia cuja manifestação mais relevante é o direito à convivência ou seja, o direito dos seus membros de viverem juntos ou, pelo menos, de manterem contactos pessoais entre si, direito que comporta uma dimensão negativa, como o direito de não serem impedidos de se juntarem ou, ao menos, de se contactarem, e que exige a realização das condições que permitam essa convivência (art.º 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

Por último, os pais gozam, enquanto tais, quer dizer, nas suas relações com os filhos, também do direito fundamental à protecção, i.e., ao auxílio da sociedade e do Estado no desempenho da tarefa de educar os filhos (art.º 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). Este direito tem, naturalmente, como pressuposto, o direito de cuidar dos filhos, considerando-se, logo no plano constitucional, insubstituível a acção paterna e materna de criação e educação dos filhos. Neste domínio não releva já tanto a protecção da criança – mas sobretudo a protecção dos pais nos seus direitos e deveres em relação aos filhos, que vincula à proibição de princípio de separação da criança dos pais.
Do conjunto destes direitos de matriz constitucional decorrem, entre outros, no plano infraconstitucional, os princípios orientadores da intervenção para a promoção e protecção da criança e do jovem em perigo, representados pelo interesse superior da criança – que vincula a que se atenda prioritariamente aos interesses da criança, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos presentes no caso – pela responsabilidade parental – que impõe que a intervenção se efectue de modo a que os pais assumam os seus deveres para com a criança – e pela prevalência da família – que obriga à actuação preferencial de medidas que a integre na sua família ou que promovam a sua adopção (artº 4 a), f) e g) da LPCJP).
A amarga realidade é, porém, que muitas vezes, o reconhecimento e o exercício dos direitos que a criança titula exigem a sua separação dos pais. Todavia, para que essa separação não seja constitucionalmente ilegítima nem legalmente imprópria, reclama-se a exposição ou a sujeição da criança a uma situação jurídica de perigo (art.ºs 1918.º do Código Civil e 3.º, n.º 1, da LPCJP).

A criança ou o jovem considera-se em perigo quando se encontra numa situação que torne legítima a intervenção para a promoção dos seus direitos ou a protecção da sua pessoa, designadamente quando está abandonada ou vive entregue a si própria, sofre maus tratos físicos ou psíquicos[14], não recebe os cuidados e afeição adequados à sua idade e situação pessoal ou está sujeita ou assume a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança e o seu equilíbrio emocional ou a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento, respectivamente, sem que, no último caso os pais se lhes oponham de modo adequado a remover a situação (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, a) a c), e) e f) da LPCJP e 1918.º do Código Civil).

A medida de promoção e protecção, ainda que meramente cautelar e, portanto, provisória, que tenha como consequência incontornável a separação da criança dos pais ou de um deles e do respectivo meio social destes deve ser cuidadosamente reflectida. Essa reflexão exige a ponderação de outras alternativas de modo a evitar que, embora surgindo como a solução imediata e estrategicamente mais adequada, se mostre, a prazo, lesiva tanto dos direitos da criança como dos pais, seja de ambos seja só de um deles.

A colocação da criança sob a guarda de terceira pessoa, familiar ou não, constitui uma resposta jurídica e socialmente útil, de apoio à criança e à família. Protege a criança do risco físico ou psíquico eminente ou actualizado no seu contexto de origem, presta-lhe os cuidados necessários e faculta-lhe uma oportunidade de acesso a modos relacionais eventualmente distintos dos vividos no seio da família biológica; desempenha um papel supletivo em relação a esta, no período que precede a reunificação familiar. É um recurso social e jurídico disponível para todas as famílias temporariamente impedidas de desempenhar normalmente as suas funções.

Sendo este o papel, a função e os objectivos da intervenção, convém, contudo, não esquecer que, do ponto de vista sistémico, a medida é constituída por três subsistemas básicos: os pais biológicos, a criança e a pessoa que a acolhe[15].

A colocação da criança sob a guarda de terceira pessoa, ainda que no contexto de uma medida cautelar, não é neutra e as suas repercussões inevitáveis. Salvaguardando as distâncias entre si, a família biológica e a pessoa que acolhe a criança estão ligadas num enredo onde a rivalidade e o antagonismo inevitavelmente se instalam, não obstante as diferentes matizes, formas e intensidades e a evolução que esta relação pode vir a registar. O contexto da criança é, nitidamente, a curto prazo, de parentalidades cruzadas.

Para que a medida não se descaracterize e permaneça funcional, tanto os pais como a pessoa ou pessoas que acolhem devem assumir, sem ambiguidades, os seus papéis na relação em torno da criança. As suas atribuições e competências requerem uma definição clara e consensual, para que sejam evitados conflitos que possam por em causa a lealdade da criança, dificultando ou mesmo impedindo o estabelecimento de laços afectivos estáveis.

A proximidade entre a família nuclear e a pessoa que acolhe a criança deve ser inclusiva, permitindo que ambos ocupem o devido lugar, despenhando os respectivos papéis: por um lado, os pais da criança não se desresponsabilizam pela sua educação, permanecendo activos e presentes no seu quotidiano; por outro, a pessoa que acolhe ganha um conhecimento mais próximo da criança, da sua origem, podendo ter uma acção mais adequada junto dela. A possibilidade de retorno deve manter-se, deste modo, actual para todos.

A medida não deve ser entendida como um fim, mas como uma solução a prazo, um meio para uma intervenção social mais ampla. Por isso se o tempo é uma dimensão crucial da análise das intervenções sociais, neste caso, os prazos são de especial relevância, evitando que a colocação e a adopção ainda que meramente informal se confundam na mente dos seus intervenientes.

A colocação da criança sob a guarda de terceira pessoa não deve, por exemplo, ser um caminho para uma qualquer espécie de adopção, uma vez que as atitudes e competências requeridas por um e outro tipo de família são distintas. Sendo institutos jurídicos diversos com intencionalidades desiguais e dinâmicas relacionais e psicológicas igualmente diferenciadas, na sua actuação concreta acontece que o acolhimento evolui, por vezes, para o que se pode denominar adopção afectiva[16].

Nestas condições, a colocação da criança nesse contexto deve ser fundamentada numa avaliação e diagnósticos prévios e cuidadosos. Se a decisão de colocação não parte nem tem a anuência de um ou de ambos pais da criança, estes mantêm o direito de participação no processo.

A proximidade física e relacional entre a pessoa sob cuja guarda a criança é colocada em relação à família nuclear de origem – incluindo a partilha de espaços habitados e conhecidos pela criança – deve ser considerado um factor crucial da sua adaptação e, por isso, de sucesso da solução, suavizando as mudanças e evitando rupturas.

Na realidade, a colocação da criança sob a guarda de pessoa diversa dos pais, seja qual for o instrumento jurídico que a legitime, comporta riscos bem identificados.

A deslocação da criança para um contexto familiar alternativo pode, a breve trecho, tornar-se erosiva, fragilizando-a pela sucessão de vínculos e de separações que pode exigir.

A actuação da medida, cuja intenção primária é proteger a criança, pode ter várias consequências que levam ao paradoxo da intervenção, i.e., se o objectivo da intervenção, através da colocação da criança sob guarda de pessoa situada fora do círculo parental nuclear, é protegê-la e criar-lhe condições de desenvolvimento e bem-estar, que não são asseguradas pelo contexto familiar, o resultado pode, a prazo breve, traduzir-se num acréscimo dos danos na criança já sensibilizada, fragilizada e carenciada.

A separação do agregado familiar de origem não é, na verdade, isenta de danos e requer um trabalho técnico consistente, junto da criança e da sua família, no sentido da constituição da vinculação relacional típica da relação de filiação ou de evitar a ruptura definitiva desse laço de afeição, no caso de se mostrar já constituído.

O desempenho de uma função não é neutro nem indiferente. Entende-se, por isso, que assumir um determinado conteúdo funcional possa envolver a assunção de conteúdos implícitos de ordem afectiva; daí o risco de parentalização da relação afectiva que se estabelece entre o adulto que acolhe e a criança acolhida, podendo mesmo chegar à apropriação em relação ao menor.

A criança é sujeita à tensão decorrente da dupla parentalidade paradoxal: de um lado a parentalidade leal; de outro a parentalidade funcional[17]. Tudo isto aporta para a vida da criança uma conflitualidade acrescida.

A conflitualidade subjacente entre as duas famílias, muitas vezes expressa em termos de desqualificação mútua, chantagem emocional e de estratégias mais ou menos óbvias de oposição aos contactos da criança com os pais biológicos ou ao menos com um deles, contribuem para o agravamento da tensão inerente à situação.

A frequente desqualificação, por parte da pessoa que acolhe, em relação aos pais biológicos ou pelo menos a um deles, constitui um contributo relevante para a tensão associada á dupla parentalidade paradoxal. No mesmo sentido, concorre a oposição a um contacto regular da criança com os pais, o que acaba por a remeter para uma situação em que se vê desprovida, não voluntariamente, do seu património relacional de origem ou é impedida de o adquirir.

A complexidade do processo de intervenção reside na exigência da funcionalidade das relações que mobiliza no momento da crise. Importa que as pessoas envolvidas estabeleçam entre si um pacto de colaboração em torno de metas definidas. A sua competição não é só contraproducente como pode ser um acto acrescentado de mau trato à criança em torno da qual gravitam. Esta não deve ser fragmentada na sua identidade, dividida no seu passado e no presente, clivada em termos afectivos, dualizada em termos sociais, se diferentes são os espaços físico-sociais em que vive.

A solução é uma resposta complexa e conflitual, espaço de confronto de (des)afectos e (in)competências, de parentalidade e filiações desencontradas, onde a prestação de cuidados básicos se transfigura pelo simbolismo que é investida.

É axiomático que todos estes riscos são exponenciais sempre que a separação e a colocação da criança ocorram nos primeiros anos de vida.

A intervenção deve, por isso, equacionar devidamente o problema da separação física entre a criança os pais ou um deles e a pessoa ou pessoas sob cuja guarda a criança é colocada, reflectindo-se, de forma ponderada, sobre a repercussão da separação na vinculação[18] da criança a ambos pais ou àquele de quem está separado.

 O objectivo deve, por princípio, continuar a radicar no retorno do menor ao seu meio familiar de origem de modo a evitar a apropriação, afectiva e física da criança. Para isso é necessário que a pessoa a cuja guarda a criança se encontre partilhe com os pais do menor uma mesma função e um sentimento de filiação afectiva, evitando o abandonando qualquer situação de cumplicidade paradoxal ou a supressão de qualquer espaço em que seja possível um mínimo de aliança[19]: a providência não deve deixar de revestir a natureza de prestação social, de carácter transitório, visando garantir à criança um meio sócio-familiar adequado, enquanto não existe ou se averigua a possibilidade de retorno à família de origem.

A estas considerações – sublinha-se - não subjaz qualquer ideologia do vínculo, segundo a qual o vínculo jurídico, real, entre a criança e os pais tem um valor absoluto e intocável, que leva muitas vezes a subestimar a patologia e o sofrimento da criança separada e impede, correspondentemente, que se encare uma substituição válida[20]; esta retórica argumentativa repousa, muito simplesmente, na necessidade de a colocação da criança num contexto familiar alternativo ser precedida de um diagnóstico e de uma avaliação cuidada, que demonstre a impossibilidade da intervenção por recurso a uma medida menos intrusiva nos direitos dos pais na sua relação com o filho e que disponibilize à criança a possibilidade de vinculação à família de origem.

A medida de apoio junto de outro familiar é, por definição, como, de resto, toda a intervenção, uma medida temporária, que pode ser de curta duração – sempre que seja possível o retorno da criança á família biológica num prazo não superior a seis meses – ou prolongada (art.ºs 50.º, n.ºs 1 e 2, por analogia, e 60.º, n.ºs 1 e 2 da LPCJP).

Todavia, os especialistas alertam para o facto de não ser aconselhável que a criança viva numa situação transitória por períodos superiores a 18 meses[21], e é esse, na verdade, o prazo de duração máxima legalmente admissível da medida de apoio junto de outro familiar (art.º 60.º, n.ºs 1 e 2, da LPCJP). Com a delimitação temporal das medidas de promoção dos direitos e de protecção da criança e do jovem em perigo quer-se, nitidamente, vincar que a intervenção deve ser intensiva e não - extensiva.

De outro aspecto, a colocação residencial, sobretudo de longa duração, da criança deve constituir a extrema ratio da intervenção de protecção (art.º 4.º, g), da LPCJP).

Contudo, não existindo qualquer contexto alternativo, no meio social e natural de vida do menor, a aplicação da medida de promoção e protecção de colocação em acolhimento residencial constitui uma inevitabilidade, pelo que, nestas circunstâncias a medida, surge, apesar de tudo, como adequada e proporcional relativamente à situação de perigo a que a criança se mostra exposta (art.ºs 3.º n.ºs, 1 e 2, a) a c), e) e f), 4.º e) f) e g), 12.º n.º 1, 34.º a), 35.º, n.º 1 f), 49.º e 50.º, nºs 1 e 4, da LPCJP).

Decerto que a institucionalização sendo um último recurso não significa necessariamente um mau recurso.

Todavia, a institucionalização ou acolhimento residencial da criança, sobretudo quando se tende a perpetuar sem critério – como entre nós sucede não raramente – pode tornar-se erosiva, fragilizando-a pela sucessão de vínculos e de separações que pode exigir[22].

Este modo de intervenção, cuja intenção primária é proteger a criança, pode ter várias consequências que levam, também  ao paradoxo da institucionalização, dado que também – e sobretudo - aqui,  se o objectivo do internato é proteger a criança, criar-lhe condições de desenvolvimento e bem-estar, que não são asseguradas pelo contexto familiar, o resultado pode, nalguns casos, traduzir-se também num acréscimo dos danos nas crianças já sensibilizadas, fragilizadas e carenciadas[23].

Ainda que esta asserção deve relativizar-se - pela constatação de que alguns desses sintomas já estavam presentes antes da institucionalização, por virtude da vulnerabilidade das circunstâncias da criança no seu meio natural de vida, não sendo portanto, causados pela sua experiência em meio institucional[24] - a amara verdade é que a institucionalização protege a criança – nada mais; a instituição cuida da criança – mas não a ama.

A intervenção não deve, pois, esgotar-se na colocação residencial ou institucional do menor; deve, antes, desde logo, ser teleologicamente orientada para uma providência que afaste a criança, de forma definitiva, da situação de perigo a que se encontra sujeita.

No contexto da execução de uma medida – provisória ou definitiva – de acolhimento residencial, há que ponderar adequadamente a questão das visitas à criança acolhida.

De modo a não ferir a garantia constitucional da protecção da família - que significa desde logo e em primeiro lugar, a protecção da unidade da família, ideia cuja manifestação mais relevante é, conforme já se apontou, o direito à convivência ou seja, o direito dos seus membros de viverem juntos ou, pelo menos, de manterem contactos pessoais entre si, direito que comporta uma dimensão negativa, como o direito de não serem impedidos de se juntarem ou, ao menos, de se contactarem, e que exige a realização das condições que permitam essa convivência – deve, como regra, fixar-se um regime de visitas, que garanta aos pais e a outras pessoas a quem a criança se mostre afectivamente vinculada um mínimo de regularidade dos contactos pessoais recíprocos.

A instituição de um regime de visitas - maxime no contexto de uma medida tutelar de protecção de acolhimento em instituição ou residencial - tem, notoriamente, por escopo, a manutenção ou restabelecimento de contactos pessoais entre a criança e os pais ou outros familiares de modo a manter ou a restabelecer uma relação de grande proximidade recíproca para que, ulteriormente, caso se verifique a estabilização social e a reorganização familiar dos pais ou a aquisição por estes de competências pessoais e educativas, o filho seja, de forma segura,  como é desejável, inserido no seu núcleo; simultaneamente, visa evitar o efeito, sempre perverso, de evicção ou desresponsabilização dos pais relativamente ao destino da criança.

O direito de visita resolve-se, assim, no direito de pessoas ligadas entre si por laços familiares ou vínculos afectivos estabelecerem relações pessoais.

O objecto do direito de visita – que tem por fim aprofundar e solidificar as relações entre a criança e o seu titular – abrange toda uma constelação de relações, desde contactos esporádicos, por poucas horas, que constituem a expressão mínima desse direito, a estadias, por vários dias, a ainda qualquer forma de comunicação – por escrito, telefónica ou electrónica, etc. Isto mostra que a expressão direito de visita é redutora e pode, com vantagem, ser substituída pela expressão direito de acesso, vincando assim que corresponde a qualquer forma de relação ou de comunicação com a criança.

Todavia, criado a favor do parente, o direito de visita é, na realidade, determinado pelo interesse da criança, rectior, pelos direitos desta.

O exercício do direito de visita, melhor se diria, do direito de acesso - com o conteúdo assinalado - deve funcionar como meio por aquele a quem compete o seu exercício de manifestar a sua afectividade pela criança, de ambos se conhecerem e reciprocamente e partilharem sentimentos de amizade, as suas emoções, ideias, esperanças e valores íntimos, etc.

O direito de visita configura-se, deste modo, também, como um direito-função, portanto, um direito a ser exercido altruisticamente, não no interesse exclusivo do seu titular – mas sobretudo no interesse da criança.

Trata-se nitidamente, também, de um direito pessoal familiar - mas não de um direito subjectivo proprio sensu; é antes um poder funcional, um poder-dever e como tal v.g., irrenunciável e indisponível.

Enquanto os direitos de crédito e, em geral os direitos patrimoniais se destinam a servir – salvos os limites que eventualmente lhe sejam impostos pela doutrina do abuso do direito – qualquer interesse do seu titular, os direitos familiares pessoais devem ser exercidos de certo modo – do modo que for exigido pela sua função. E a sua função é de garantir o cumprimento dos particulares deveres éticos que incumbem ao seu titular para com a pessoa contra quem se dirigem.

Serve isto para fazer sentir que, face ao relevo da função que assume o direito de visita, o seu exercício, porque não serve só seu interesse não é livre, i.e., aquele não pode exercê-lo quando e como queira. Ao contrário, a pessoa a que se deva reconhecer o direito de visita é obrigado a exercê-lo e a exercê-lo de certo modo, do modo que é exigido pela sua função, pelo interesse que ele serve: o da criança.

Isto mostra, concludentemente, que quando se fala de direito de visita se tem ainda em vista, fundamentalmente, os direitos da criança.

Um instrumento definitivo de protecção adequado para esconjurar definitivamente a situação de perigo experimentada pela criança e que melhor valoriza o seu bem-estar é, seguramente, a adopção.

A adopção centra-se na defesa e na promoção do interesse da criança, constituindo, além de um instrumento de política de infância, uma tecnologia jurídica de protecção da criança desprovida de meio familiar normal[25], permitindo a constituição ou a reconstituição de vínculos em tudo semelhantes aos que resultam da filiação biológica, de essencial relevância no contexto dos complexos processos de desenvolvimento de competências sociais e psicológicas, próprias da formação da autonomia individual.

Correspondentemente, a medida mais adequada à protecção da criança é a de confiança a pessoa selecionada para a adopção, a família de acolhimento ou a instituição com vista á futura adopção (artº 35.º, n.º 1, g), da LPCJP).

Esta medida, que consiste na colação da criança sob a guarda de candidato selecionada para a adopção pelo organismo de segurança social ou sob a guarda de família de acolhimento ou de instituição com vista a futura adopção exige, porém, coerentemente, a verificação dos pressupostos de que a lei faz depender a confiança judicial do menor com vista à futura adopção (art.º 38.º-A da LPCJP e 1978.º do Código Civil).

Como se notou já, a Constituição estabelece, a favor dos pais, uma garantia de não privação dos filhos, que é também um direito subjectivo daqueles. As restrições a este direito estão subordinadas a uma dupla reserva: sob reserva de lei e sob reserva de decisão judicial. Os filhos não podem ser separados dos pais, excepto quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais que estão adstritos relativamente a eles, sempre mediante decisão judicial (art.º 36.º n.º 6).

Assim, tendo em vista a futura adopção, o tribunal pode, confiar a criança com vista à futura adopção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivas próprios da filiação[26], se objectivamente se verificar que os pais abandonaram o filho, que por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puseram em perigo a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor, ou que, estando o filho acolhido, por particular ou instituição, revelaram manifesto desinteresse por ele, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança (art.º 1978.º, n.º 1 c), d) e) do Código Civil, na sua redacção actual).

Na comprovação de qualquer destas situações objectivas deve atender-se, prioritariamente, aos interesses da criança (art.º 4.º, a), da LPCJP).

A medida de confiança com vista á futura adopção não é, por regra, revisível, implica ex-vi legis, a inibição dos pais do exercício das responsabilidades parentais e determina a proibição de visitas por parte da família biológica (art.º 1978.º-A do Código Civil e 62.º- A, n.ºs 1, 2 e 6, da LPCJP).

Como decorre da exposição anterior, a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo é actuada através da aplicação de uma providência que proteja a criança ou jovem. Essa providência consiste numa medida de promoção e protecção (art.º 5.º, e), da LPCJP.

A lei assinala às medidas de promoção e protecção uma tripla finalidade: o afastamento do perigo – em sentido jurídico - em que a criança ou o jovem se encontram; a disponibilização de condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; a garantia da recuperação física e psicológica das crianças e jovens que tenham sido vitimizadas por qualquer forma de exploração ou abuso (art.º 34.º, a) a c), da LPCJP).

Todavia, nem sempre a situação de perigo a que a criança ou do jovem se encontram expostos pode aguardar o proferimento de uma decisão do tribunal que, por exemplo, os afaste, de forma definitiva, daquela situação de perigo.

A necessidade de assegurar a efectividade da tutela jurisdicional e a utilidade da decisão justificam, por vezes, uma composição provisória da situação da criança ou do jovem. Essa composição provisória – que pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito da criança ou do jovem, de definir uma regulação provisória da sua situação jurídica ou de antecipar a tutela pretendida ou requerida para os seus direitos e interesses - é disponibilizada pelas medidas cautelares (art.º 37.º da LPCJP).

As medidas cautelares – a que é assinalada a duração máxima de seis meses - são aplicáveis em duas situações diferenciadas: nas situações de emergência; enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente (art.º 37.º, n.ºs 1 e 3, da LPCJP).

As medidas cautelares são aplicáveis seja qual for o direito ou o bem jurídico da criança ou do jovem ameaçado ou colocado em perigo: apenas para os procedimentos de urgência – judiciais ou não – é que a lei exige, como condição da decisão provisória, que a situação de perigo, actual ou eminente, tenha por objecto dois bens jurídicos de personalidade especialíssimos: a vida ou a integridade física da criança ou do jovem (art.ºs 91.º, n.º 1 e 92.º, n.º 1, da LPCJP). Não é, porém, admissível – por razões que se compreendem por si - a aplicação a título cautelar da medida de confiança com vista á adopção: a aplicação desta medida só é admissível a título definitivo (art.º 37.º. n.º 1 do LPCJP).

O processo tutelar de promoção dos direitos e de protecção visa a aplicação de uma medida de promoção e protecção que afaste a criança ou o jovem da situação de perigo, que lhe proporcione as condições desenvolvimentalmente adequadas e que garanta, à criança ou ao jovem vítimas de exploração ou de abuso, a sua recuperação bio-psíquica. Simplesmente, logo em momento anterior ao processo ou na sua pendência, pode mostrar-se necessário acautelar certos efeitos dessas medidas ou definir provisoriamente alguns desses efeitos. Isso justifica a consagração das medidas – e decisões – cautelares que constituem, notoriamente, providências cautelares específicas do processo de promoção e protecção que – nos termos gerais – são julgadas segundo critérios não normativos de conveniência e oportunidade (art.º 986.º do CPC, ex-vi art.º 100.º da LPCJP).

A prossecução da finalidade específica das medidas cautelares exige que a composição provisória que disponibilizam seja concedida com celeridade e justifica-se ainda que o diagnóstico da situação da situação da criança ou do jovem não se mostre concluído. A decisão cautelar satisfaz-se, por isso, como uma apreciação sumária (art.º 92.º, n.º 1, da LPCJP).

Consequência directa da summario cognitio é o grau de prova que é suficiente para a demonstração da situação jurídica de perigo, da criança ou do jovem, que se pretende esconjurar ou afastar provisoriamente. A decisão cautelar não exige uma prova stricto sensu - mas apenas uma prova sumária da situação de perigo a que a criança ou o jovem se mostrem sujeitos: a prova stricto sensu da situação de perigo alegada só é exigida para a decisão e para a medida definitivas, só então se reclamando do tribunal uma convicção, absolutamente certa e segura, sobre a situação de perigo legitimadora da intervenção.

Porque a intervenção tutelar de promoção e protecção não tem uma feição retrospectiva, mas sim um carácter prospectivo, de promoção e protecção, compreende-se, com facilidade, que a situação de perigo que afecte a criança ou jovem – e a correspondente necessidade de promoção e protecção – deva subsistir no momento da aplicação da medida ou da tomada de decisão, provisória ou definitiva.

A intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem deve, portanto, decorrer sob o signo estrito do princípio da actualidade (art.º 4.º, e), da LPCJP). Se o pressuposto da aplicação de uma medida de promoção e protecção é a exposição da criança ou do jovem a uma situação de perigo, a intervenção só tem sentido se essa situação de perigo subsistir no momento da decisão, ainda que meramente cautelar.

3.4. Exequibilidade da decisão que aplique a medida de promoção e protecção de confiança com vista à futura adopção.

O acórdão do Tribunal Colectivo Misto aplicou á criança a medida de confiança a instituição com vista a adopção, declarou os pais inibidos do exercício das responsabilidades parentais e proibiu as visitas à criança pelos familiares biológicos.

Ao passo que, como regra, cabe ao tribunal fixar o efeito – extraprocessual – do recurso das decisões que apliquem, alterem ou cessem a medida de promoção e protecção, no tocante ao recurso da decisão que aplique a medida de confiança com vista a futura adopção, o efeito do recurso é, fixado, injuntivamente, pela lei ela mesma: o recurso tem sempre um efeito – extraprocessual – suspensivo. A fixação deste efeito ao recurso compreende-se em face da severidade dos efeitos daquela decisão, designadamente na esfera jurídica dos pais da criança (art.º 124.º, n.º 2, da LPCJ)

E com esse efeito do recurso pretende-se evidentemente tornar inadmissível a execução da decisão que decretou a medida de promoção e protecção de confiança com vista à futura adopção. Por mais que corresponda ao interesse da criança, aquela decisão não é passível de execução durante a pendência do recurso, só o sendo, portanto, depois de transitada em julgada. E, no caso, o apontado acórdão não transitou em julgado, dado que dele foi interposto recurso – que se encontra pendente de decisão – a que foi atribuído o efeito – extraprocessual – suspensivo, recurso deve ser decidido no prazo máximo de 30 dias, contado do recebimento do processo pelo tribunal ad quem (art.º 628.º do CPC, ex-vi art.º 126.º da LPCJ, e 123.º, n.º 3, da LPCJ).

3.5. Concretização.

Está adquirido que tanto por aplicação do ordenamento jurídico do Estado como por aplicação da ordem jurídica canónica, reguladora no caso, do baptismo, cuja autorização é solicitada, a quem cumpre decidir sobre a orientação da educação religiosa, e, portanto, do seu baptismo de harmonia com a confissão religiosa católica, dada a idade da AA, são os seus pais – e não a menor e, muito menos, claro, o patrono que lhe foi nomeado no contexto de um processo judicial de promoção e protecção.

É exacto que o acórdão do Tribunal Coletivo Misto que se decidiu pela aplicação à menor da medida de promoção e protecção de confiança com vista à futura adopção declarou a inibição dos pais para o exercício das responsabilidades parentais relativas à criança. Mas não é menos que esse acórdão, por ter dele ter sido interposto recurso a que atribuído um efeito – extraprocessual – suspensivo não transitou e julgado e não é exequível, sequer provisoriamente, pelo que os pais da criança continuam investidos no exercício das responsabilidades parentais correspondentes.

Ora, no caso quem pede a autorização para o baptismo – é a criança. Mesmo abstraindo do facto de a intervenção judicial só ser admitida para ultrapassar a divergência dos pais é, patente, a improcedência do requerimento.

Resta, portanto, decidir o problema, deveras mais espinhoso, da autorização das visitas e dos contactos da criança com os seus familiares.

E aqui há que considerar os factos julgados provados no acórdão que aplicou à criança a medida de promoção e protecção – cujo julgamento não foi impugnada no recurso que dele foi interposto – dos quais decorre que, no momento actual, não é, objectivamente do interesse da criança, a manutenção de contactos, presenciais ou não, com os seus familiares biológicos.

Realmente, AA, não tem atualmente vínculos afetivos estruturantes de relevo com ninguém.

Esta circunstância - que se encontra intimamente ligada ao princípio da continuidade das relações da criança -  torna evidente a inexistência actual de uma relação afectiva consistente de qualidade da criança com os pais, constatação que torna lícita a inferência da ausência de uma ligação de progenitura psicológica - já que esta noção supõe um progenitor que, numa base de continuidade, no dia a dia, através da interacção, companhia, acção recíproca e mútua, preencha as necessidades psicológicas que a criança tem de uma imagem parental.

Os pais deixaram, notoriamente, de constituir para a criança as suas pessoas de referência, a fonte de satisfação das suas necessidades afectivas, o esteio securizante indispensável para o reconhecimento de qualquer relação de parentalidade afectivamente consistente.

Os pais deixaram de assumir qualquer papel relevante na vida da criança. A sua conduta – traduzida no não cumprimento competente e adequado dos deveres e na omissão do exercício dos direitos que a ordem jurídica reconhece relativamente à pessoa da filha - importou, mais do que o simples comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação, a ruptura desses vínculos. Pais que não dispõem de qualquer projecto de vida que o inclua a criança e que se limitam a assistir passivamente ao funcionamento da intervenção judicial para a promoção dos direitos do filho e para a protecção da sua pessoa, desinteressaram-se definitivamente pelo seu destino.

Na verdade, não se evidencia, há largo tempo, uma efectiva e consistente disponibilidade de qualquer dos requeridos para um investimento afectivo na criança, o que se resolve numa forma de abandono emocional a que associam inevitáveis efeitos prejudiciais sobre o desenvolvimento psicossocial daquele, designadamente a auto-estima, estabilidade emocional e a capacidade de estabelecer relações pessoais gratificantes.

À vulnerabilidade da criança adicionou-se a sua exposição, por força da sua inserção prolongada em meio institucional, a um abandono emocional, a que ainda não foi posto termo.

Todavia a ruptura dos vínculos afectivos da criança não se verifica apenas relativamente aos pais; o rompimento desses vínculos é também patente no tocante a outros familiares: a menor – recorde-se - não tem atualmente vínculos afetivos estruturantes de relevo com ninguém. A esta luz – embora o julgamento definitivo da adequação da medida de confiança com vista à adopção decidida no acórdão dever ser feito naquele que julgar o recurso que dele foi interposto – aquela medida surge como a mais adequada para por termo à institucionalização da criança e lhe dar uma oportunidade de se vincular afectivamente com uma pessoa adulta dotada de competências para o exercício das respectivas responsabilidades parentais.

AA esteve sujeita, a título cautelar, à medida de acolhimento residencial, prorrogada, por último, por três meses, contados desde 4 de Dezembro de 2021.

Entretanto, foi decidido, por acórdão de 10 de Fevereiro de 2022, aplicar à criança a medida de confiança de confiança a instituição com vista a futura adopção, declarar os pais inibidos do exercício das responsabilidades parentais e proibir as visitas à criança por parte da família natural.

Simplesmente, esta decisão não transitou em julgado uma vez que dela foi interposto recurso a que foi atribuído um efeito – extraprocessual – suspensivo, que ainda se não mostra decidido. E não tendo a decisão que aplicou aquela medida transitada em julgado, ela não é exequível, v.g. quanto à proibição das visitas da família biológica da criança.

Mas não é esse o entendimento do despacho impugnado que nitidamente acha que, apesar de a decisão que aplicou a medida de confiança com vista á futura adopção não ter transitado em julgado ela é exequível, ponto de vista que é partilhado pelo Sra. Magistrada do Ministério Público que é do parecer que aquela medida substituiu a de acolhimento residencial anteriormente aplicada á criança. Todavia, é claro e cristalino que, não tendo a decisão que aplicou a medida de confiança com vista a ulterior adopção transitada em julgado e competindo ao recurso dela interposto, injuntivamente, efeito suspensivo, aquela decisão não é dotada de exequibilidade provisória, que é aquela que respeita a uma decisão ainda não definitiva, ou seja, a uma decisão que ainda não possui o valor de caso julgado, por ser passível de um recurso ordinário (ou reclamação) (art.º 628.º do CPC). Ao determinar que ao recurso daquela decisão compete um efeito – extraprocessual – suspensivo, a lei não consente sequer o risco de uma execução injusta para assegurar a vantagem de uma execução pronta. De resto, seria sistematicamente incongruente que a lei, depois de não admitir a aplicação, a título cautelar, da medida de confiança com vista à adopção, permitisse depois a exequibilidade provisória da decisão, não transitada, que aplicou essa mesma medida.

À luz destas considerações considera-se que o despacho ao concluir pela exequibilidade da decisão que aplicou a medida de confiança com vista à futura adopção é desacertado e, portanto, que, quanto a este ponto, o recorrente tem realmente razão.

Mas daqui não decorre, como corolário que não possa ser recusado, que – como é pedido no recurso - se deva autorizar as visitas e contactos da criança com a família biológica. Há, sempre, que verificar, em concreto, se as visitas à criança dão satisfação aos direitos e interesses que titula.

E no caso – considerados os factos julgados provados no recurso que foi interposto do acórdão que aplicou à menor a medida de promoção e protecção, cujo julgamento não foi impugnado no recurso que dele foi interposto – deve considerar-se que, no momento actual, não é, objectivamente do interesse da criança, a manutenção de contactos, presenciais ou não, com os seus familiares

Realmente, face à ausência actual de uma vinculação afectiva consistente com os seus familiares, a visita destes resolver-se-ia num ritual vazio e sem uma interacção de qualidade, pelo que se julga mais prudente esperar pela decisão do recurso interposto do acórdão que aplicou a menor a medida de promoção e protecção de confiança com vista à futura adopção.

Decidido esse recurso – por decisão passada em julgado – uma de duas: o tribunal ad quem confirma o acórdão; aquele tribunal revoga este mesmo acórdão. No primeiro caso, o problema da visita da criança pelos seus familiares fica definitivamente resolvido, dado que a execução da medida de promoção e protecção nele decidida importa, ex-vi legis, a proibição daquelas visitas; no segundo haverá que reorientar a intervenção e a definição do projecto de vida da criança, através da aplicação de uma outra qualquer medida de promoção, ainda que de índole cautelar, portanto, provisória, no contexto da qual haverá que reponderar cuidadosamente, sempre à luz dos direitos e interesses da criança, aquelas visitas, a sua periodicidade, a pessoa ou pessoas a quem se deve reconhecer esse direito, etc. E só neste último caso haverá que ponderar a possibilidade de aplicar à menor a medida de apoio junto de outro familiar – designadamente dos avós – e, consequentemente, só nesse momento devem ser realizadas as diligências de prova, ou de aquisição da prova – v.g. relatórios sociais - tendentes a aferir das competências, pessoais e sociais, daqueles parentes da criança, para assumirem, relativamente a esta, o cuidado parental.

Realmente, seria de todo desrazoável autorizar as visitas à criança para, no caso de improcedência do recurso – logo voltar a proibi-las.

Maneira que se considera mais conveniente aguardar a decisão do recurso interposto do acórdão que aplicou a medida de confiança com vista à adopção, decisão que, considerado o prazo máximo que a lei assinala à decisão desse recurso, será proferida a breve trecho. Dada a mais que provável curta duração da proibição das visitas, não se julga que a proibição seja particularmente danosa para a criança. Por duas razões, de resto. Por um lado, porque essa proibição não constituirá motivo de sofrimento para a criança, dada a sua desvinculação afectiva actual com os membros da sua família de origem; por outro, porque, apesar de tudo, a criança dispõe de uma capacidade de reconstrução das suas relações afectivas, bastando que lhe seja dada a oportunidade consistente de as restabelecer.

Duas palavras mais para salientar o seguinte:

O estado da intervenção para promoção dos direitos e da protecção da criança, AA, é o este: a medida, de índole cautelar, de acolhimento residencial, prorrogada, por último, por três meses, contados desde 4 de Dezembro caducou em Março de 2022 (art.º 63.º, n.º 1, a da LPCJP); a medida de promoção e protecção que lhe foi aplicada pelo acórdão do Tribunal Coletivo em 10 de Fevereiro de 2022 não é exequível, ainda que provisoriamente, por não ter passado em julgado, dado que ao recurso interposto daquele acórdão compete um efeito – extraprocessual - suspensivo. Quer dizer: a criança, que continua institucionalizada, não beneficia actualmente de qualquer medida de promoção e protecção exequível e, portanto, a sua permanência no equipamento de acolhimento não dispõe, na actualidade, de qualquer título judicial bastante que a legitime.

Todavia – como decorre, tanto do despacho impugnado como das alegações das partes – a criança encontra-se numa situação de perigo, embora seja patente a divergência entre o Tribunal e o Ministério Público, por um lado, e a apelante, por outro, sobre a medida adequada para atalhar esse perigo. É instante, por isso, a adopção de uma medida de promoção e protecção, ainda que meramente cautelar, que esconjure o perigo experimentado pela criança.

Simplesmente, há que atender à proibição da reformatio in pejus – que mais não é do que uma consequência da vinculação do tribunal superior á impugnação do recorrente cuja violação, por importar o conhecimento pelo tribunal ad quem de matéria que não se inscreve na sua competência decisória, determina a nulidade, por excesso de pronúncia, do acórdão – ou da decisão singular do relator - correspondente (artºs 615.º, n.º 1, d), 2ª parte, e 666.º, n.º 1, do CPC).

A decisão do tribunal ad quem não pode ser mais desfavorável ao recorrente de que a decisão recorrida: é nisto que consiste exactamente a reformatio in pejus (art.º 635.º, n.º 4, do CPC). Maneira que a esta Relação não é lícita aplicar à menor qualquer medida de promoção e protecção, ainda que meramente cautelar, e portanto, provisória, que afaste do perigo a que se encontra exposta, enquanto se procede ao seu encaminhamento subsequente, i.e., até à adopção de uma medida de promoção e protecção que a subtraia, definitivamente, àquela situação de perigo, designadamente aquela que lhe foi aplicada pelo acórdão não transitado em julgado - a medida de confiança com vista à ulterior adopção - devendo essa aplicação ser ponderada – se assim o entender – pelo Tribunal de 1.ª instância.

O recurso deve, pois, ser julgado improcedente.

Os menores e os seus representantes legais gozam, nos recursos de decisões relativas à aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares em processos de jurisdição de menores, de isenção de custas (art.º 4.º, i), do RC Processuais).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nego provimento ao recurso.

Sem custas.

                                                                                                         2022.09.13

Henrique Antunes

Mário Sérgio Silva

Cristina Neves




[1] Informação adquirida pela consulta do processo principal de que o recurso, que subiu em separado, constitui dependência.  
[2] Informação adquirida também pela consulta do processo principal de que o recurso, que subiu em separado, constitui dependência.
[3] Informação adquirida pela consulta do processo principal de que o recurso, que subiu em separado, constitui dependência.
[4] A expressão poder paternal era, até há muito pouco, utilizada comummente pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas. A expressão estava, já então, profundamente desajustada da evolução da realidade social e jurídica. A expressão é nitidamente tributária duma concepção do poder paternal como poder - sujeição, como poder arbitrário exercido única e exclusivamente pelo pai sobre a pessoa e os bens do filho. Em consonância com experiências oriundas de outros espaços jurídicos europeus, em que a expressão tradicional foi substituída por outras mais de acordo com a Recomendação nº R (14) 4 sobre as Responsabilidades Parentais adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, com a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança, propunham alguns autores como conveniente e oportuna a substituição da expressão poder paternal pela expressão responsabilidades parentais, o que entre nós só ocorreu através da alteração dos artºs 1901 a 1912 do Código Civil pelo artº 1 da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro. Esta última expressão merece, contudo, também alguns reparos. Os pais não têm só responsabilidades, mas também um dever de exigência em relação ao filho. Desvalorizar este dever seria enfraquecer o significado do laço da filiação. Maneira que tendo como referência o modelo democrático de família – concebida também como centro privilegiado de relações afectivas – em que a relação entre pais e filhos se baseia no respeito mútuo e na particular atenção a prestar às necessidades do filho como ser em desenvolvimento, sem minimizar a actividade de controlo e supervisão da educação e formação do filho, no contexto de uma relação interactiva em que este assume a qualidade de sujeito, parece ser de acolher a expressão cuidado parental. Cfr. Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e das Sucessões, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 1997, págs. 370; António H. L. Farinha e Conceição Lavadinho, Mediação Familiar e Responsabilidades Parentais, Coimbra, Almedina, págs. 47, António H.L. Farinha, Relação entre os Processos Judiciais, Infância e Juventude, nº 2/99, Abril - Junho, 1999, pág. 69, Irene Thery, Couple, filiation et parente d´aujourd´hui, Paris, Editions Odile Jacob, 1998, pág. 190 e Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Parental nos Casos de Divórcio, 4ª edição, revista, aumentada e actualizada, Coimbra, Almedina, 2002, pág. 15.
[5] Armando Leandro, Poder Paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitação. Algumas reflexões de prática judiciária, Temas de Direito da Família, Almedina, Coimbra, 1986, págs. 117 e 118 e José Carlos Moitinho de Almeida, Efeitos da Filiação, OA, Instituto da Conferência, 1981, págs. 140 a 145.
[6] Maria de Fátima Abrantes Duarte, O Poder Paternal, Contributo para o Estudo do seu Actual Regime, AAAFDL, Lisboa, 1994, págs. 41 e 42, Jorge Miranda, Poder Paternal e Assistência Social, Direcção-Geral de Assistência, Gabinete de Estudos Sociais, Série A, nº 1, págs. 291 e ss. e Maria Manuela Baptista Lopes e António Carlos Duarte Fonseca, Aspectos da relação jurídica entre pais e filhos, Revista Infância e Juventude, nº 4 Out./Dez., 1988, pág. 10.
[7] Marta Santos, A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, Documentação e Direito Comparado nºs 35/36, 1988, pág. 214 e ss. A Convenção foi aprovada para ratificação pela Resolução da AR nº 20/90, de 12.9.90, ratificada pelo Decreto do PR nº 4/90, de 12.2.90 com início de vigência no dia 21 de Out. de 90 (DR 2º suplemento de 17.9.90 e aviso de 26.10.90, DR nº 248). Para uma apreciação da consistência da fundamentação psicológica da Convenção, em sentido crítico, Paula Cristina Martins, Sobre a Convenção dos Direitos da Criança. Da Psicologia dos Direitos aos Direitos da Psicologia, Infância e Juventude, Julho - Setembro, 99.3, págs. 61 a 70.
[8] E. Groenseh, O papel da família na integração social dos jovens, Revista Infância e Juventude, nº 4, Outubro - Dezembro, págs. 7 a 37.
[9] Da natureza jurídica do instituto das responsabilidades parentais, do seu conteúdo e da forte influência do princípio do interesse superior da criança a que se encontra exposto, decorrem os seus fundamentos finais: o de protecção da pessoa e bens do filho, ditada pela sua situação de incapacidade; o de promoção da autonomia e independência do filho. Os pais não devem apenas proteger a criança e promover os seus direitos; compete-lhes ainda garantir-lhes as condições favoráveis ao pleno desenvolvimento das suas faculdades físicas, intelectuais, morais, emocionais e sociais de forma a habilitá-los para o exercício da sua plena capacidade quanto atingirem a maioridade. Cfr. Rosa Cândido Martins, Poder Paternal vs Autonomia da Criança e do Adolescente? Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Centro de Direito da Família, Ano 1, nº 1, 2004, págs. 68 e 69.
[10] Além da sua dimensão funcional, que aponta decisivamente para uma concepção filiocêntrica, as responsabilidades parentais visam também promover a auto-realização dos pais, como tal. A educação do filho corresponde não apenas ao interesse deste, mas também à plena realização da personalidade dos pais. Cfr. Antunes Varela, Direito da Família, Lisboa, 1999, 5ª ed., vol. I, págs. 79 e 80. Sobre a evolução do instituto do poder paternal, cfr. Parecer da Procuradoria-Geral da República, nº 8/91, Pareceres vol. II, págs. 345 a 348.
[11] A socialização resolve-se num processo de aquisição de atitudes e habilidades que são indispensáveis para o desempenho de um determinado papel social. A importância da socialização na família é sublinhada, una voce, pela sociologia e psicologia, embora segundo perspectivas diferentes. Para a sociologia, a função socializante da família tem em conta a aprendizagem dos valores e papéis sociais; a psicologia defende a importância do contexto familiar no desenvolvimento da personalidade da criança e do jovem. A psicossociologia articula estes dois aspectos, preconizando que a assunção de papéis e de valores, bem como o desenvolvimento psicológico da criança e do jovem se fazem através de um processo de interacção e de comunicação. Cfr. A. Michel, Sociologia da Família e do Casamento, Porto, Rés-Editora, 1983.
[12] Esta concepção resulta, designadamente, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque em 1989, e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90.
[13] J. J. Canotilho/Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I., 4ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 565.
[14] O conceito de mau trato é essencialmente caracterizado pela controvérsia e pela indefinição, não havendo acordo quanto aos critérios de definição do mau trato, se o comportamento do adulto, as suas intenções ou as consequências sofridas pela criança, o contexto da ocorrência da situação maltratante ou combinação de todos ou alguns destes factores. O mau trato infantil surge historicamente vinculado à ideia de abuso, com danos físicos. É neste sentido que pode ser entendido o dado de que a maior parte das situações de abuso não suscita dúvidas quanto ao seu carácter maltratante, o mesmo não acontece com a negligência. A negligência parece ser, assim, uma categoria de mau trato menos estabelecida e organizada, podendo mesmo especular-se relativamente a uma tolerância social das formas de negligência que, mais comuns e, nesse sentido, mais normais. A negligência tenderá a impor-se na medida crescente da preocupação com a qualidade de vida proporcionada à criança, a par do alargamento do próprio conceito de mau trato. Cfr. Paula Cristina Martins, “As representações sociais e profissionais do mau trato infantil”, Infância e Juventude, Ver. IRS, Jan. – Mar., 00.1, págs. 45 a 66; sobre a etiologia do mau trato da criança na família, Cfr. J. Vesterdal, “Aspectos criminológicos dos maus tratos às crianças na família – factores etiológicos e consequências a longo prazo”, Infância e Juventude, 91, número especial, págs. 50 a 83.
[15] A estes três subsistemas básicos acrescenta-se às vezes um quarto: os serviços de acção social, a quem compete o acompanhamento dos pais biológicos do menor; seleccionar, formar e acompanhar a pessoa ou família sob cuja guarda a criança é colocada; apoiar o menor e colaborar na definição do seu projecto de vida. No quadro das suas funções, acaba por estabelecer uma relação triádica com os pais biológicos e a família de acolhimento, no qual se observa, em regra, uma coligação mais ou menos secreta, com a família de acolhimento contra os pais biológicos, Cfr. Fátima Tribuna e Ana Paula Relvas, Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência, Novas Formas de Família, Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.), Quarteto, 2002, pág. 63.
[16] F. Vital, M. Viegas e V. Laia, Respostas Institucionais às Crianças Privadas de Meio Familiar Normal, Uma Experiência na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, in D. Silva, J. Barroso, J. Cóias e R. Bruto da Costa (orgs.), Actas do Congresso os Jovens e a Justiça, Lisboa (1999) APPORT, págs. 137 a 147.
[17] Cfr. Fátima Tribuna e Ana Paula Relvas, Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência, Novas Formas de Família, Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão, cit., pág. 65.
[18] Entendida como relação privilegiada com uma figura que confere segurança e protecção através dos cuidados que a mesma proporciona. Esta relação e interactiva, desenvolvendo-se uma relação complementar entre os diversos intervenientes: um que solicita cuidados e atenções que lhe garantam a satisfação das suas necessidades de segurança e protecção; outro que tem de ser responsivo, i.e., capaz de compreender adequadamente às solicitações recebidas através da prestação de cuidados. Se a figura de vinculação realizar regularmente esse papel, a figura vinculada pode desenvolver uma confiança básica que lhe proporciona um sentimento de segurança necessário ao desenvolvimento da actividade de exploração do mundo envolvente.
[19] Compreendida como a ligação entre duas ou mais pessoas que partilham os mesmos objectivos ou interesses, de modo a adoptar as mesmas atitudes ou os mesmos comportamentos.
[20] Maurice Berger, A Criança e o Sofrimento da Separação, Lisboa, 1998, pág. 78.
[21] Cfr., no contexto da medida de acolhimento familiar, C. Capdevila, Acogimiento familiar, um medio de protección infantil, Ochotorena & M. Madariaga (Eds.), Manual de Protección Infantil, Barcelona, Maison 1996, págs. 350 a 392.
[22] Eduardo Sá, in prefácio à edição portuguesa do livro de Maurice Berger A criança e o sofrimento da separação. Risco de fragilização que se deve ter por maximizado se o percurso institucional da menor se haver repartido por equipamentos de acolhimento diferenciados.
[23] Isabel Marques Alberto, Como pássaros em gaiolas? Reflexão em torno da institucionalização de menores em risco, in Violência e Vítimas de Crimes, Vol. 2 – Crianças, pág. 229. Como implicações negativas da institucionalização, a Autora enumera o sentimento de punição; a demissão/diminuição da responsabilização familiar; estigmatização e discriminação social e a função de controlo social/reprodução das desigualdades sociais. Como potencialidades das instituições indica a função securizante; a função de contenção de angústias e a promotora do desenvolvimento pessoal e da construção da identidade.
[24] H. Rudolph Schaffer, Decidir sobre as Crianças, Instituto Piaget, Horizontes Pedagógicos, págs. 135 a 139.
[25] Ac. da RP de 15.4.99, BMJ nº 486, pág. 364.
[26] O comprometimento sério dos vínculos típicos da filiação deve, obviamente, ser aferido a partir do ponto de vista da criança e não da perspectiva dos pais. Basta, para a verificação do requisito legal que a vinculação – i.e., a relação privilegiada interactiva da criança com os pais – seja rompida pela criança, sendo indiferente que esse laço se mantenha do lado dos progenitores.