EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CONTRATO-PROMESSA
PARTILHA DA HERANÇA
LEGITIMIDADE ATIVA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
CABEÇA DE CASAL
HERDEIRO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
INTERESSE EM AGIR
HERANÇA
Sumário


I. — O art. 2091.º do Código Civil, ao determinar que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros”, está a exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida — logo, a consagrar um caso de litisconsórcio necessário activo.
II. — O interesse relevante em casos de litisconsórcio necessário é um interesse uno, incindível ou indivisível.
III. — Entre os corolários da unidade, da incindibilidade e da indivisibilidade do interesse, está o de que  não é legítimo que “o litisconsorte necessário […] assum[a] uma estratégia que conduza à prática, por ele próprio, no processo de actos processuais destinados objectivamente à tutela, não do interesse dos demais litisconsortes necessários que figuram como seus compartes na causa, mas da contraparte de todos eles, a esta se associando na defesa de interesses estranhos e opostos aos dos demais litisconsortes necessários activos”.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

1. AA, invocando, a qualidade de herdeira e cabeça de casal da herança de BB, intentou acção declarativa com a força de processo comum contra CC pedindo que:

a) seja decretada a execução especifica de contrato promessa de partilha celebrado por BB, e pela sua ex-cônjuge, aqui Ré, CC, divorciada, “adjudicando-se aos herdeiros do falecido BB, o imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...45 e descrito na conservatória do registo predial ... na ficha nº ...92 e alusivo ao prédio sito na Rua ..., ..., e nos termos discriminados nas clausulas 3º, 4º e 5º do referido contrato”;

b) seja considerada como já efectuada a restante partilha, à excepção das obras de arte referidas pela Autora, agora Recorrente.

2. Foi proferido despacho, considerando haver litisconsórcio necessário activo, em face do disposto no art. 2091.º do Código Civil e, em consequência, convidando a Autora suscitar o incidente de intervenção principal provocada de DD e EE, herdeiras habilitadas de BB.

3. A Autora suscitou o incidente e, devidamente citadas, as requeridas habilitadas herdeiras de BB declararam que se opõem à acção.

4. Invocaram a ilegitimidade activa da Autora, para prosseguir, por si, só, a acção.

5. O Tribunal de 1.ª instância absolveu a Ré da instância:

I. — quanto ao pedido deduzido sob a alínea a), por ilegitimidade da Autora;

II. — quanto ao pedido deduzido sob a alínea b), por incompetência do Tribunal, em razão da matéria.

6. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.

7. O Tribunal da Relação do Porto:

I. — confirmou a decisão impugnada quanto ao pedido deduzido sob a alínea a);

II. — deu como prejudicada a impugnação da decisão quanto ao pedido deduzido sob a alínea b).

8. Inconformada, a Autora interpôs recurso de revista.

9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I. Estamos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

II. Estão em causa interesses de particular relevância social;

III. O Acórdão de que se recorre encontra-se em manifesta contradição com o acórdão proferido pela Tribunal da Relação de Lisboa em 28.04.2015, alusivo ao processo 806/13.0 TVLSB.L1-7. E este acórdão deliberado por unanimidade. Insere-se no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, sem que tenha sido proferido Ac. de Uniformização de Jurisprudência até à data.

IV. A questão fundamental de direito em causa circunscreve-se a:

O disposto no art. 2091 nº 1 do Código Civil, ao consignar que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros” tem o alcance de que tal pressuposto se cumpre com a presença de todos os herdeiros nos autos, designadamente através do incidente de intervenção principal provocada, (ainda que alguns/alguns dos intervenientes se oponha(m) à pretensão da A.”, ou, pelo contrário, todos os herdeiros chamados a intervir, tem de observar um só vontade relativamente à pretensão em causa formulada pela A. (litisconsórcio necessário ativo).

V. Não tendo sido consagrado, o recurso excecional de revista, como um triplo grau de recurso jurisdicional, e atenta excecionalidade da modalidade de recurso em questão é fulcral e perentória a necessidade imperiosa do STJ intervir, no sentido de uma melhor aplicação do direito, considerando a relevância dos contornos sociais em causa.

VI. Prevendo o artigo 2091 nº 1 do C.C. que “fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”, urge esclarecer a exata extensão das expressões “só” e “conjuntamente”, no âmbito do instituto do litisconsórcio necessário previsto no art. 33º do C.P.C.

VII. O litisconsórcio necessário verifica-se quando a lei ou negócio jurídico exige a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, ou quando pela natureza da relação jurídica, aquela intervenção seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (cfr. art. 33 nº 1 e 3 do C.P.C).

VIII. A decisão produz o seu efeito útil normal, sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado “é consabido que, na pendência do inventário, enquanto não está efetuada a partilha, em nome da herança (ou contra toda a herança) embora carecida de personalidade jurídica, que devem ser instauradas a ações destinadas a defender, ou a sacrificar interesses do acervo hereditário, sendo a herança normalmente representada nesse caso pelo cabeça de casal ( art. 2088 e 2089º do C.C.) desde que, a intervenção deste caiba nos seu poderes de administração e fora destes casos para todos os herdeiros como decorre do disposto no art. 2091 nº 1 do C.C.” – in Ac. recorrido.

IX. Não se enquadrando a execução específica de um contrato promessa de partilha celebrado pelo de cujus no conceito de “administração da herança”- o que se concede- aquando da dedução do incidente de intervenção principal provocada pela aqui recorrente (sua viúva e cabeça de casal da herança aberta pelo óbito do falecido, viúva esta do 2ª matrimonio do falecido) para o chamamento das demais herdeiras (filhas do de cujus na constância do 1ª matrimonio dissolvido com a 1ª Ré CC, portanto, enteadas da A/recorrente) resulta, assim que in casu é aplicável o disposto no art. 2091 nº1 do C.C. e subsequentemente o disposto no art. 33 do C.P.C.

X. Conforme ensina o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, página 94, ensina:

“... Quando é que a relação jurídica litigiosa tem de ser resolvida de modo uniforme quanto a todos os interessados? Quando é que a decisão só pode ser proferida em relação a todos?

Procurou a lei portuguesa responder ao quesito que a lei alemã e a lei italiana deixaram sem resposta. E responde nestes termos: quando for necessária a intervenção de todos para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

Esta fórmula foi inspirada na doutrina de Redenti (...). Chiovenda dá-nos outro critério. A solução do problema, diz ele, deriva de dois princípios fundamentais: a) por um lado, o princípio da liberdade; b) por outro lado, o princípio do interesse, ou melhor, o princípio da utilidade. Princípio da liberdade: cada um tem o direito de proceder como quiser dentro dos limites da lei: ninguém pode ser forçado a propor uma acção que não está disposto a propor, nem a intentá-la contra quem não quer [o que, parecendo semelhante, está, contudo, nos antípodas do afirmado pelo Míssimo. Juiz a quo, na Sentença proferida, penúltima página, último parágrafo] Princípio da utilidade: não se pode pedir ao Tribunal uma coisa inútil, ou, por outras palavras, toda a demanda há-de-ter alguma utilidade prática, por mais limitada que seja.” (negrito nosso).

XI. Já na página 95, o mesmo Professor continua a ensinar: “O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando o caso julgado material (...). Se este resultado não puder conseguir-se sem que estejam em juízo todos os interessados, estaremos em presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica. Por outras palavras, se a relação litigiosa for de tal natureza que, para se formar o caso julgado substancial, seja indispensável que a sentença vincule todos os interessados, todos eles têm de figurar na acção, visto, por um lado, ser inadmissível que se profira uma sentença inútil, e, por outro, ser intolerável, em princípio, que uma sentença tenha eficácia contra interessados directos que não foram chamados à acção”

XII. Assim, este é, tão só o propósito processual do litisconsórcio necessário: 1º prever o direito de cada um proceder como quiser dentro dos limites da lei; 2º declarar de modo definitivo, formando o caso julgado material;

XIII. Como doutamente, V. Exas., Venerandos Juízes Conselheiros do STJ já entenderam: “na inexistência de decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, na obtenção de segurança e certeza na definição das situações jurídicas, sendo certo que a repartição dos vários interessados por ações distintas impede uma composição definitiva do litígio e, ainda assim, essa repartição pode obstar a uma solução uniforme entre todos os interessados. Assim, por exemplo, na ação de anulação de testamento, a sentença a proferir só produz o seu efeito útil normal com a intervenção de todos os interessados, porque só essa participação comum assegura uma decisão uniforme entre eles (STJ – 28.02.1975, BMJ 224, 235) .

XIV. Acrescente-se que também, Pires de Lima e Antunes Varela referem que “ a falta de qualquer dos herdeiros interessados na ação é fundamento de ilegitimidade” (in Código Civil Anotado, Volume VI, Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, pág 152). Não de concordância de todos os herdeiros-

XV. No caso dos presentes autos, e após as intervenientes principais DD e EE (descendentes do de cujos e da 1ª Ré CC, e com esta co residentes no imóvel em relação ao qual pretende a A. a execução especifica em benefício      da herança) virem aos autos “opor-se ao prosseguimento dos autos” estribam as mesmas a ilegitimidade da aqui recorrente naquela sua oposição, mediante (i) uma sua conclusão textual dos termos “só” e “conjuntamente” previstos no artigo 2091 nº 1 do C.C. e (ii) na citação de um parágrafo “descontextualizado” de FF Ascensão o qual no contexto em que insere esse mesmo parágrafo entende dever aplicar-se subsidiariamente as regras da compropriedade ao caso (como dos presentes autos) em que todos os herdeiros não observam uma só vontade.

XVI. “Há muito que vem sendo entendido que à herança não são aplicáveis os princípios da propriedade comum. Constitui entendimento praticamente pacífico que não se está perante caso de compropriedade, mas sim, de comunhão, que os herdeiros são contitulares da herança (vide, entre muita doutrina e jurisprudência, Acórdãos: do Supremo Tribunal de Justiça de 14-1-1972, in Revista dos Tribunais, ano 90.º/71; da Relação de Coimbra de 15-3-68 e respectivo comentário, in Revista dos Tribunais, ano 87.º/127; da Relação de Lisboa, de 1-7-60 in Revista dos Tribunais, ano 78.º/222 e a que se refere a nota 58 a pág. 196 da Revista dos Tribunais, ano 87.º/127; da Relação de Lisboa, de 1-7-60 iin Revista dos Tribunais, ano 78.º/222 e a que se refere a nota 58 a pág. 196 da Revista dos Tribunais, ano 84.º; do Supremo Tribunal de Justiça de 27-7-71 e respectiva anotação de Adriano Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 105.º/208).

Dos preceitos do Código Civil, já citados, resulta claramente que os herdeiros são titulares de um direito indivisível, enquanto se não fizer a partilha, que recai sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. Logo, não pode atribuir-se aos co-herdeiros antes da partilha, a qualidade de proprietários de qualquer bem da herança.

A Herança é, assim, um património autónomo. Acentuámos que a figura de herança não pode reconduzir-se à compropriedade, embora constitua uma comunhão.

A comunhão é uma figura mais ampla do que a compropriedade. Sempre que há compropriedade existe comunhão, mas a inversa não é verdadeira. Um dos casos de comunhão que não cabe na compropriedade, é o da chamada comunhão de mão comum ou propriedade colectiva e constitui um património afecto a certo fim, que pode ser integrado por relações jurídicas de diversa natureza e que pertence em contitularidade a dois ou mais indivíduos ligados por determinado vínculo. A doutrina costuma recorrer a este conceito para enquadrar o regime a que a lei subordina o património comum dos cônjuges e da herança indivisa” (Ilustre Juiz Conselheiro José Martins da Fonseca Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional).

XVII. Dúvidas não podem restar, assim, que estamos perante uma questão cuja apreciação pela sua relevância jurídica é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito ! (art. 672 nº 1 al.a) do C.P.C.)

XVIII. Entretanto, dispõe o Acórdão fundamento do presente recurso que: “Ainda que a intervenção na lide dos herdeiros pressuponha, por natureza, um interesse associado ao Autor no âmbito da relação controvertida, há que reduzir o incidente à sua única finalidade: enquanto medida processual que viabiliza a indispensabilidade da participação do co-herdeiro no processo, sem o obrigar a demandar contra quem não quer, mas também, por forma a garantir que não seja condicionado o direito fundamental de acção de um dos outros interessados - o Autor co-herdeiro - sujeitando-o à vontade do outro.

Esta clarificação de posições evidencia que a intervenção provocada dos restantes herdeiros no processo se revela adequada para sanar a ilegitimidade do Autor – cfr. artigo 316.º, n.º1, do Código de Processo Civil (assegurando, com isso, a possibilidade obtenção de decisão capaz de produzir o efeito útil normal) - independentemente da tomada de posição (processualmente viável – artigo 319.º, n.º3, do Código de Processo Civil) por parte de um dos herdeiros chamados (a aqui Recorrente) ao aderir ao posicionamento assumido pelo Réu nos autos, unindo-se ao articulado (contestação) por este apresentado, e que constitui uma manifestação do seu poder de dispor do objeto do litígio (sem coartar o direito de ação dos restantes interessados). Nestes termos, ao invés do pugnado pela Recorrente, encontra-se sanada a ilegitimidade inicial do Autor e a continuação da lide não só não consubstancia qualquer violação do princípio do dispositivo, mas garante a efectivação do mesmo sob a perspectiva da liberdade de disposição do objecto do litígio por parte de cada um dos titulares de interesses protegidos, salvaguardando a unidade substancial da relação jurídica subjacente”.

XIX. Acórdão fundamento aquele, de resto, na mesma linha de raciocínio, do Professor Alberto dos Reis, conforme supra citado na conclusão X: “Esta fórmula foi inspirada na doutrina de Redenti (...). Chiovenda dá-nos outro critério. A solução do problema, diz ele, deriva de dois princípios fundamentais: a) por um lado, o princípio da liberdade; b) por outro lado, o princípio do interesse, ou melhor, o princípio da utilidade. Princípio da liberdade: cada um tem o direito de proceder como quiser dentro dos limites da lei: ninguém pode ser forçado a propor uma acção que não está disposto a propor, nem a intentá-la contra quem não quer [o que, parecendo semelhante, está, contudo, nos antípodas do afirmado pelo Míssimo. Juiz a quo, na Sentença proferida, penúltima página, último parágrafo] Princípio da utilidade: não se pode pedir ao Tribunal uma coisa inútil, ou, por outras palavras, toda a demanda há-de-ter alguma utilidade prática, por mais limitada que seja.” (negrito nosso).

XX. Podendo parecer semelhante o referido nas conclusões XIX e XVIII supra com o afirmado pelo Mª Juiz a quo, na sua original e não menos douta sentença, penúltima página, ultimo parágrafo, na verdade, não poderia, esse mesmo afirmado, situar-se mais nos antípodas do rezado pelo próprio pai do Código do Processo Civil Português, Professor Alberto dos Reis.

XXI. Por seu turno o Ac. recorrido prevê que:

“II - Na execução específica do contrato promessa de partilha de património comum, intentada pela herança de um dos ex-cônjuges, contra o cônjuge sobrevivo, a falta de acordo quanto ao cumprimento da promessa de parte das co herdeiras equivale ao desinteresse da herança pelo cumprimento, uma vez que a ação tem de ser intentada por todos os herdeiros, que nela, por isso têm de observar, uma só vontade (art. 2091 nº 1 do C.C)”.

XXII. A relação de identidade entre a questão que foi objeto de cada um dos acórdãos em confronto, a qual pressupõe que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual reconduz-se ao alcance do consignado no art. 2091 nº 1 do C.P.C quanto à representação da herança e ao facto de ter de ser “intentada por todos os herdeiros”, sendo que em ambos o caso foi efetuado o chamamento através de litisconsórcio necessário.

XXIII. Vai assim, demonstrada a manifesta contradição do Ac. da RL de que se recorre com o supra identificado Ac. fundamento, já transitado em jugado, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

XXIV. Tem entendido o STA que a relevância jurídica ou social “afere-se em termos da utilidade jurídica, com capacidade de expansão da controvérsia que ultrapasse os limites da situação singular” (Ac. de 26.06.2008, Proc. n.º 515/08, e Ac. de 02.07.2008, Proc. n.º 173/2008).

XXV. Estatisticamente nos últimos 60 anos, passamos do chamado modelo de família nuclear para o chamada família reconstituída, em que, com o crescimento exponencial do divórcio, surge um novo conceito de família, que além de juntar marido e mulher, junta igualmente, as mais das vezes filhos provenientes das relações anteriores. A par desta realidade temos, hodiernamente, as modalidades de casamento entre indivíduos do mesmo sexo, as famílias monoparentais ou as famílias informais (em que o matrimónio não é oficializado, independentemente da existência de filhos atuais ou anteriores às famílias informais).

XXVI. Dúvidas não existem que o direito deve acompanhar a realidade social mormente na vertente do direito da família e do direito das sucessões ( de que é exemplo vivo a Lei 48/2018 de 14 de Agosto, por exemplo).

XXVII. O exemplo legislativo citado na conclusão anterior é manifestamente revelador de que, se por um lado o legislador quis criar um quadro adequado ao modelo familiar atual, por outro lado nunca foi pretensão do mesmo legislador penalizar “o novo cônjuge” pela pré-existência de descendentes anteriores.

XXVIII. O caso dos presentes autos resume-se, infelizmente, à situação em que as filhas de um prévio casamento do de cujus, co residentes com a mãe e primeira mulher do de cujus, pretendem obstar a que a “madrasta”, A. e aqui recorrente exerça um direito que lhe assiste, sob a veste jurídica de que “ninguém pode ser forçado a exercer um direito que não pretende”, mas esquecendo-se de que “ninguém pode ser privado de exercer um direito que lhe assiste”.

XXIX. Acresce que, a ordem jurídica não pode consentir que o (ou os) herdeiro(s) possa (m) impor à herança invocando aquela mesma sua qualidade uma decisão, que é contrária aos interesses da herança, enquanto, património autónomo e comunhão de direitos, em seu interesse pessoal e egoísta, e em claro prejuízo dos demais herdeiros.

XXX. Estão em causa, indubitavelmente, interesses de particular relevância social,

XXXI. Verificando-se assim preenchido todos os pressupostos previstos no art. 672 nº 1 do C.P.C.

XXXII. Acresce que, a própria lei civil (além dos supra citados normativos) também não é alheia à situação particular me causa, no caso concreto. Mormente, no que concerne ao direito obrigacional.

XXXIII. Prevê o art. 412 nº do C.C. que: “os direitos e obrigações resultantes do contrato promessa que não sejam exclusivamente pessoais, transmitem-se aos sucessores das partes” , ao mesmo tempo que o art. 538 nº 1 do C.C. (aplicável às prestações indivisíveis) prevê que “sendo vários os credores da prestação indivisível, qualquer deles tem o direito de exigi-la por inteiro ….”

XXXIV. Como resulta do disposto no artº 209 do C.C. duvidas não restam que, o cumprimento das obrigações resultantes da celebração de um contrato promessa, relativamente ao contrato prometido, são indivisíveis (como se infere, por exemplo, de http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ef1331ef14b4b3828025791e004906c9).

XXXV. Não se pode, nem se deve tolerar que, quer o despacho do Meritíssimo Juiz a quo, quer o Acórdão de que se recorre, além de se traduzirem num violento e ostensivo condicionamento do direito fundamento de ação de um dos interessados, redundem igualmente na violação do direito “de crédito que assiste ao mesmo interessado, por força do previsto do art. 538 do C.C- direito que o legislador, sem margem para quaisquer dúvidas, quis proteger, quando redigiu este mesmo dispositivo.

at last but not least

XXXVI. Também não será pretensão do meritíssimo Juiz a quo, nem dos Ex.mo Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, coartar à aqui recorrente no seu livre exercício do direito constitucionalmente previsto de propriedade privada: art. 62 da C.R.P. que prevê que “ a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos Constituição.

XXXVII. E, cfr. acórdão fundamento “ A imposição legal do litisconsórcio (necessário) dos co-herdeiros na herança indivisa assume justificação no facto de, só com a presença de todos os interessados no processo, a decisão judicial pode obter o seu efeito útil, isto é, para que o direito possa ser declarado de modo definitivo. Cumpre tal finalidade a presença no processo dos co-herdeiros por via do incidente de intervenção provocada ainda que, no âmbito da acção, um deles não queira assumir ou, mesmo, se encontre em oposição com a pretensão do autor.”

XXXVIII. O Acórdão recorrido efetuou uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 33º do C.P.C e artº 2091 nº 1; 412º e 538º do C.C. bem violou o art. 62 n.º 1 e da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos,

E nos melhores de direito que V. Excelências mui doutamente suprirão, se requer que:

a) Deve ser admitida a presente revista e cumulativamente,

b) Revogando o Douto Acórdão ora recorrido e substituindo-o por outro que declare como legalmente admissível a legitimidade processual da A./recorrente, para intentar a ação de execução especifica para cumprimento de contrato de promessa de partilha,

assim se fazendo justiça.

10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

I. — se se verifica a excepção dilatória nominada de ilegitimidade (de falta de legitimidade);

II. — se se verifica a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir / de falta de interesse processual.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

11. Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.

O DIREITO

12. A questão da admissibilidade do recurso é uma questão prévia.

13. A Autora, admitindo que estivessem preenchidos os pressupostos do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, interpôs recurso de revista excepcional — art. 672.º do Código de Processo Civil.

14. O art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

15. O acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1.ª instância.

16. O problema está em averiguar se o fez com ou sem fundamentação essencialmente diferente — enquanto o Tribunal de 1.ª instância absolveu a Ré da instância dando por verificada a excepção dilatória nominada de ilegitimidade [1], o Tribunal da Relação absolveu-a da instância dando por verificada a excepção inominada de falta de interesse em agir.

18. O Tribunal de 1.ª instância explicou a ilegitimidade ou falta de legitimidade da Autora, agora Recorrente, dizendo o seguinte:

I. — A legitimidade processual activa para a propositura de uma acção de execução específica do contrato-promessa de partilha dependeria do preenchimento cumulativo de duas condições: de que todas as herdeiras habilitadas estivessem presentes na acção e de que, estando presentes na acção todas as herdeiras habilitadas, exprimissem unânime ou maioritariamente a vontade de actuar ou de exercer o direito invocado [2]:

“A presença de todos os herdeiros na ação, através do mecanismo processual do incidente de intervenção principal, é condição necessária, mas poderá não ser suficiente para suprir a preterição do litisconsórcio necessário ativo.

É condição necessária, porque caso não seja suscitado o incidente de intervenção principal provocada com vista a chamar à ação – para além do autor – todos os interessados na relação jurídica controvertida, cuja intervenção a lei exige (art. 33.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e art. 2091.º, n.º 1 do Código Civil), ocorre preterição de litisconsórcio necessário ativo e, consequentemente, ilegitimidade do autor.

O chamamento é, pois, necessário, mas poderá não ser suficiente. Dito de outro modo, num caso como o dos autos, é necessário que estejam no processo todos os herdeiros do de cujus. Mas essa presença na lide poderá não ser suficiente, caso os herdeiros chamados que representem a maioria da herança manifestem a sua oposição à instauração da ação [3].

Em concreto, a legitimidade processual dependeria de que, estando presentes na acção todas as herdeiras habilitadas, exprimissem unânime ou maioritariamente a vontade de actuar ou de exercer o direito de execução específica do contrato-promessa de partilha.

II. — Existindo divergência entre as herdeiras habilitadas, deveria aplicar-se o art. 985.º do Código Civil [4], aplicável à compropriedade por remissão do 1407.º [5] e aplicável à propriedade em comum da herança indivisa por aplicação do art. 1404.º do Código Civil  [6]:

“[…] estando em causa a comunhão de direitos (como é o caso da comunhão hereditária), em caso de divergência entre os litisconsortes, haverá que aplicar as disposições sobre a compropriedade (art. 1404.º do Código Civil, segundo o qual, ‘as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles’), designadamente, o estabelecido no art. 1407.º, n.º 1 do Código Civil, no qual se determina que ‘é aplicável aos comproprietários, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 985.º; para que haja, porém, a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas’.

Em concreto, “[…] tendo as Intervenientes Principais DD e EE manifestado a sua oposição ‘ao prosseguimento destes autos’, ‘à respetiva tramitação e existência’, representando elas 2/3 da herança e representando a Autora 1/3 da herança, a Autora, só por si, não dispunha de legitimidade para instaurar a ação e não dispõe de legitimidade para prosseguir com a lide”.

19. O Tribunal da Relação, admitindo a legitimidade da Autora depois de requerida a intervenção principal das herdeiras habilitadas DD e EE, explicou a falta de interesse em agir nos seguintes termos:

“5. […] perante a construção da lide evidenciada na petição inicial, a legitimação da A. pressupõe um interesse direto da Herança, em demandar (artigo 30.º CPC), que não se confunde com o seu próprio interesse, na qualidade de herdeira. Este interesse da Herança é de todo ausente no caso dos autos; dado que as co-herdeiras, coautoras necessárias, não pretendem o cumprimento da promessa. A sua vontade enquanto parcela da mesma parte unitária (Herança) outorgante de um negócio é coincidente com a vontade da outra parte outorgante no mesmo negócio.

A atuação do tribunal pressupõe um conflito de interesses entre duas partes (não uma convergência de interesses) e a resolução deste conflito tem de ser pedida por quem ocupa (por todos e cada um dos que ocupam) a posição de A. (artigo 3º/1, CPC).

Havendo dissonância entre os herdeiros enquanto demandantes na ação quanto ao interesse no cumprimento do contrato promessa de partilha, falta um dos pressupostos para demandar - a controvérsia, que no caso tem de se verificar de modo unitário em face da natureza jurídica da herança e dos direitos dos herdeiros, pelo que, a ação não poderá prosseguir, havendo que utilizar o meio processual adequado à situação. […]

6. A falta de acordo de parte das co-herdeiras do falecido ex-cônjuge na execução da promessa de partilha equivale ao desinteresse do cumprimento. A partilha das meações terá, pois, de fazer-se por inventário, artigo 2102º nº1 e 2 a) do C. Civil, ao que, não obsta, o contrato promessa celebrado cujo cumprimento se terá que ter por renunciado pelos outorgantes, dada a referida posição de convergência na sua não execução entre parte dos herdeiros habilitados na posição do ex cônjuge falecido e da ex cônjuge, aqui Ré.

Sem prejuízo, entendemos mesmo, que a ausência de controvérsia conduz à falta de interesse em agir (na perspetiva da parte autora / herança representada pelas três herdeiras) O ‘interesse em agir’ entendido aqui como uma relação entre necessidade e adequação. Necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a atuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve ter a virtualidade de corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura. Do exposto se retira a inadequação desta ação para a solução da questão decidenda, constituindo uma atividade inútil a prossecução da causa, também por isso.

A falta de pressuposto processual tem como consequência a absolvição da instância conforme ficou decidido no saneador sentença recorrido a qual se estende ao pedido formulado na alínea b)”.

20. A legitimidade deve autonomizar-se e distinguir-se do interesse em agir [7] — de quando em quando designado como interesse processual [8] ou como necessidade de protecção jurídica [9]. O pressuposto da legitimidade consta dos arts. 30.º ss. do Código de Processo Civil [10]; consiste no “poder de dispor do processo — de o conduzir ou gestionar […] na qualidade no papel de parte” [11]. Em relação ao autor, deve dar-se como preenchido o pressuposto da legitimidade quando tenha interesse directo em demandar [12] [13]. O pressuposto do interesse processual, ainda que não conste do Código de Processo Civil, é admitido e reconhecimento pela doutrina e pela jurisprudência [14];  consiste na “necessidade de usar do processo, de instaurar ou de fazer prosseguir a acção” [15]. Em relação ao autor, deve dar-se como preenchido o pressuposto do interesse processual quando tenha interesse em obter a intervenção dos tribunais [16]; “quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais” [17]: “Exige-se, por força dele [scl, por força do requisito do interesse em agir ou do interesse processual] uma necessidade razoável, justificada, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção — mas não mais do que isso” [18].

21. Ora, como a legitimidade deva autonomizar-se e distinguir-se do interesse em agir, do interesse processual ou da necessidade de protecção jurídica, a fundamentação das decisões do Tribunal de 1.ª instância e do Tribunal da Relação deve considerar-se essencialmente diferente — o Tribunal da Relação confirmou a decisão do Tribunal de 1.º instância com fundamentação essencialmente diferente.

22. Entrando na apreciação das questões suscitadas no recurso de revista:

23. A primeira questão suscitada pela Autora, agora Recorrente, consiste em determinar se se verifica a excepção dilatória nominada de ilegitimidade (de falta de legitimidade).

24. O art. 2091.º, n.º 1, do Código Civil determina que, “[f]ora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”; ao determinar que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros”, está a exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida [19] — logo, a consagrar um caso de litisconsórcio necessário activo [20].

25. O Tribunal de 1.º instância considerou que havia ilegitimidade, ainda que tivesse sido requerida a intervenção principal de todas as herdeiras habilitadas — a acção não correspondia à vontade da maioria das herdeiras (habilitadas), ou à vontade da herdeira ou das herdeiras habilitadas que representassem a maioria da herança.

26. Em contraste com o Tribunal de 1.ª instância entende-se que não há ilegitimidade, desde que tenha sido — como foi — requerida a intervenção principal de todas as herdeiras habilitadas.

27. Em termos em tudo semelhantes aos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 2015 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1-7 [21]:

“[…] a intervenção provocada dos restantes herdeiros no processo [revela-se] adequada para sanar a ilegitimidade do Autor […], independentemente da tomada de posição (processualmente viável […]) por parte de um dos herdeiros chamados […]”.

28. Em primeiro lugar, o critério da maioria dos herdeiros, ou da maioria da herança, conflituaria com o conceito de litisconsórcio necessário — o interesse relevante em casos de litisconsórcio necessário é um interesse uno [22], incindível ou indivisível [23]: em lugar de um interesse uno da herança indivisa, como património de afectação especial [24], haveria uma cisão ou uma divisão.

29. Em segundo lugar, o critério da maioria dos herdeiros, ou da maioria da herança, conflituaria com o direito de acção de cada um dos litisconsortes necessários.

           

30. O autor dispõe de um meio, dispõe de um único meio, para assegurar a sua legitimidade, no contexto de um litisconsórcio necessário activo — o requerimento de intervenção principal [25]; como o autor dispõe de um único meio para assegurar a sua legitimidade — o requerimento de intervenção principal —, o critério da maioria determinaria que a maioria dos herdeiros, ou que os herdeiros que representassem a maioria da herança, dispusessem de um meio de condicionar a actuação ou o exercício do direito fundamental de acção dos demais co-herdeiros, sujeitando-os à sua vontade [26].

31. Evitando que a maioria dos herdeiros, ou  que os herdeiros que representassem a maioria da herança, condicionem a actuação ou o exercício do direito fundamental de acção dos demais co-herdeiros, deve interpretar-se o incidente de intervenção principal como mera “medida processual que viabiliza a indispensabilidade da participação do co-herdeiro no processo” [27]: nem o autor fica sujeito à vontade dos demais co-herdeiros, nem os demais co-herdeiros, como intervenientes, ficam sujeitos à vontade do autor, no sentido de que não ficam impedidos de exprimir a sua opinião sobre a procedência ou improcedência do pedido [28].

32. Em resposta à primeira questão, dir-se-á que não se verifica a excepção dilatória nominada de ilegitimidade da Autora, agora Recorrente.

33. A segunda questão suscitada pela Autora, agora Recorrente, consiste em averiguar se se verifica a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir.

34. A Autora, agora Recorrente, alega que:

XXI. […] o Ac. recorrido prevê que:

“II- Na execução específica do contrato promessa de partilha de património comum, intentada pela herança de um dos ex-cônjuges, contra o cônjuge sobrevivo, a falta de acordo quanto ao cumprimento da promessa de parte das co herdeiras equivale ao desinteresse da herança pelo cumprimento, uma vez que a ação tem de ser intentada por todos os herdeiros, que nela, por isso têm de observar, uma só vontade (art. 2091 nº 1 do C.C)”.

XXVIII. O caso dos presentes autos resume-se, infelizmente, à situação em que as filhas de um prévio casamento do de cujus, co residentes com a mãe e primeira mulher do de cujus, pretendem obstar a que a “madrasta”, A. e aqui recorrente exerça um direito que lhe assiste, sob a veste jurídica de que “ninguém pode ser forçado a exercer um direito que não pretende”, mas esquecendo-se de que “ninguém pode ser privado de exercer um direito que lhe assiste”.

XXIX. Acresce que, a ordem jurídica não pode consentir que o (ou os) herdeiro(s) possa (m) impor à herança invocando aquela mesma sua qualidade uma decisão, que é contrária aos interesses da herança, enquanto, património autónomo e comunhão de direitos, em seu interesse pessoal e egoísta, e em claro prejuízo dos demais herdeiros.

35. Embora deva admitir-se que a questão do interesse em agir ou do interesse processual foi suscitada de forma imperfeita, o contraste entre as conclusões da alegação de recurso e a fundamentação da decisão recorrida é evidente:

III. — na fundamentação da decisão recorrida, afirma-se ou em todo o caso sugere-se que a ausência de uma vontade comum dos herdeiros, ou da maioria dos co-herdeiros, determina que a Autora não possa propor a acção, por não estar preenchido o pressuposto do interesse em agir ou interesse processual;

IV. — nas alegação de recurso de revista, sustenta-se que a ausência de uma vontade comum dos co-herdeiros, ou da maioria dos co-herdeiros, não determina (não deve determinar) que a Autora não possa propor a acção.

36. Em acções constitutivas, “o interesse processual consist[e] no facto de o direito potestativo, que lhes sirva de base, não ser daqueles que podem ser exercidos por simples acto unilateral do seu titular” [29]; ora, o direito potestativo de execução específica de um contrato-promessa, designadamente de partilha, não é daqueles que possa ser exercido por simples acto unilateral — a execução específica decorre, sempre, de uma decisão judicial.

37. O texto do art. 830.º, n.º 1, do Código Civil é de todo em todo inequívoco:

“… pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso”.

38. O ponto está em averiguar se os co-herdeiros poderão opor-se à propositura da acção de execução específica; caso afirmativo, se a oposição da maioria dos co-herdeiros, ou dos co-herdeiros que representem a maioria da herança, determinará que não deva ser admitida a acção de execução específica; caso afirmativo, se a oposição da maioria dos co-herdeiros, ou dos co-herdeiros que representem a maioria da herança, determinará que a acção de execução específica não deva ser admitida por falta de interesse em agir.

39. Em concreto, o problema é particularmente grave, por estar em causa a prática pelas Intervenientes principais de actos processuais objectivamente contrários ou objectivamente desfavoráveis aos interesses da Autora, agora Recorrente.

40. O acórdão do STJ de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 — distingue duas coisas:

41. Em primeiro lugar, sustenta que os co-herdeiros podem opor-se à propositura de uma acção.

42. Entre os corolários do direito de livre expressão, concretizado no direito de livre expressão processual, está o de que é legítimo que os litisconsortes necessários exprimem a sua opinião acerca do litígio, p. ex., “toma[ndo] posição no sentido da inexistência ou inverificação dos factos invocados como suporte da relação material controvertida” [30].

           

42. Em segundo lugar, o STJ sustenta que a oposição da maioria dos co-herdeiros, ou dos co-herdeiros que representem a maioria da herança, não determinará (não deverá determinar) que não seja admitida a acção, ou em todo o caso não deverá determinar que não seja admitida por falta de interesse processual ou por falta de interesse em agir.

43. Entre os corolários da unidade, da incindibilidade e da indivisibilidade do interesse, está o de que  não é legítimo que “o litisconsorte necessário […] assum[a] uma estratégia que conduza à prática, por ele próprio, no processo de actos processuais destinados objectivamente à tutela, não do interesse dos demais litisconsortes necessários que figuram como seus compartes na causa, mas da contraparte de todos eles, a esta se associando na defesa de interesses estranhos e opostos aos dos demais litisconsortes necessários activos”.

44. O acórdão do STJ de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 — explica, em termos paradigmáticos, que

“[… ] as situações de litsconsórcio necessário – em que se integra o litisconsórcio necessário legal dos herdeiros para o exercício de direitos da herança, previsto no art. 2091º do CC, […] implicam que exista uma única acção com pluralidade de sujeitos (art. 35º do CPC): ora, como é evidente, esta unidade da acção que caracteriza as situações de litisconsórcio necessário é manifestamente incompatível com a possibilidade de um dos litisconsortes necessários (activos, no caso) se associar com a parte contrária (neste caso, o R.), praticando actos processuais que a esta aproveitam (sendo objectivamente desfavoráveis aos interesses — incindíveis — dos demais litisconsortes necessários activos)”.

45. Em consonância com o critério do acórdão do STJ de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 —, deve concluir-se que a oposição da maioria dos co-herdeiros, ou dos co-herdeiros que representem a maioria da herança, é irrelevante para a admissibilidade ou inadmissibilidade da acção de execução específica — e, em particular, para o preenchimento do requisito do interesse em agir ou do interesse processual.

46. Em resposta à segunda questão, dir-se-á que não se verifica a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir ou de falta de interesse processual da Autora, agora Recorrente.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido.

Custas a final.

Lisboa, 15 de Setembro de 2022

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

_____

[1] Cf. arts. 30.º e 33.º, em ligação com o art. 577.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

[2] Cf. fundamentação do despacho saneador: “[r]esulta do art. 2091.º, n.º 1 do Código Civil que, do lado ativo, os herdeiros têm de estar na ação e têm de querer estar na ação: ninguém pode ser constrangido a instaurar uma ação e a apoiar o seu prosseguimento (na verdade, ‘regulando o processo civil a discussão judicial de relações jurídicas privadas e estando estas na disponibilidade das partes, diz-se que o processo civil é, essencialmente, dispositivo, ou seja, está dependente da livre disponibilidade das partes, podendo estas instaurá-lo ou não (dominus litis), fazê-lo continuar ou não e mesmo pôr-lhe cobro. Quer dizer, a disponibilidade das relações jurídicas privadas repercute-se na disponibilidade do processo – é esta a nota essencial do princípio do dispositivo’”.

[3] Cf. fundamentação do despacho saneador.

[4] O artigo 985.º do Código Civil, sob a epígrafe é Administração, é do seguinte teor: “1. — Na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder para administrar. 2. — Pertencendo a administração a todos os sócios ou apenas a alguns deles, qualquer dos administradores tem o direito de se opor ao acto que outro pretenda realizar, cabendo à maioria decidir sobre o mérito da oposição. 3. — Se o contrato confiar a administração a todos ou a vários sócios em conjunto, entende-se, em caso de dúvida, que as deliberações podem ser tomadas por maioria. 4. — Salvo estipulação noutro sentido, considera-se tomada por maioria a deliberação que reúna os sufrágios de mais de metade dos administradores. 5. — Ainda que para a administração em geral, ou para determinada categoria de actos, seja exigido o assentimento de todos os administradores, ou da maioria deles, a qualquer dos administradores é lícito praticar os actos urgentes de administração destinados a evitar à sociedade um dano iminente.

[5] O artigo 1407.º, sob a epígrafe Administração da coisa, é do seguinte teor: “1. — É aplicável aos comproprietários, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 985.º; para que haja, porém, a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas. 2. — Quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade. 3. — Os actos realizados pelo comproprietário contra a oposição da maioria legal dos consortes são anuláveis e tornam o autor responsável pelo prejuízo a que der causa”.

[6] O art. 1404.º, sob a epígrafe Aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão, estabelece: “As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles2.
[7] Expressão preferida por Artur Anselmo de Castro, Lições de processo civil, vol. II — Pressupostos processuais, Livraria Almedina, Coimbra, 1967, págs. 803-810.
[8] Expressão preferida por Manuel de Andrade (com a colaboração de João de Matos Antunes Varela), Noções elementares de processo civil (nova edição, revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves), Coimbra Editora, Coimbra, 1979, págs. 79-83; João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 179-189; ou Miguel Teixeira de Sousa, O interesse processual na acção declarativa, AAFDUL, Lisboa, 1989.
[9] Expressão corrente na doutrina e na jurisprudência alemãs — referida, p. ex., por Manuel de Andrade (com a colaboração de João de Matos Antunes Varela), Noções elementares de processo civil, cit., pág. 79; ou por João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., págs. 179-180.
[10] Sobre a interpretação do art. 30.º do Código de Processo Civil, vide por todos José Alberto dos Reis, anotação aos arts. 27.º e 28.º, in: Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I — Artigos 1.º a 137.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1960, págs. 39-42; José Alberto dos Reis, anotação ao art. 27.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 406.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1982 (reimpressão), págs. 86-97; Manuel de Andrade (com a colaboração de João de Matos Antunes Varela), Noções elementares de processo civil (nova edição, revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves), Coimbra Editora, Coimbra, 1979, págs. 79-83; João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 179-189; Artur Anselmo de Castro, Lições de processo civil, vol. II — Pressupostos processuais, Livraria Almedina, Coimbra, 1967, págs. 803-810, Miguel Teixeira de Sousa, O interesse processual na acção declarativa, AAFDUL, Lisboa, 1989;
[11] Manuel de Andrade (com a colaboração de João de Matos Antunes Varela), Noções elementares de processo civil, cit., pág. 84.
[12] Cf. art. 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
[13] Cf. João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 129: “Ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo” — daí que uma parte tenha legitimidade como autor “se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão diante da demandada, admitindo que a pretensão exista”.
[14] Cf. desigdamente os acórdãos do STJ de 5 de Fevereiro de 2013 — processo n.º 684/10.1YXLSB.L1.S1 —, de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 —, de 6 de Outubro de 2016 — processo n.º 1946/09.6TJLSB.L1.S1 —, de 29 de Junho de 2017 — processo n.º 5043/16.0T8STB.S1 —, de 9 de Maio de 2018 — processo n.º 673/13.4TTLSB.L1.S1 — ou de 19 de Dezembro de 2018 — processo n.º 742/16.9T8PFR.P1.S1.
[15] Cf. João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 179 — cujo critério é adoptado, p. ex., pelos acórdãos do STJ de 5 de Fevereiro de 2013 — processo n.º 684/10.1YXLSB.L1.S1 — e de 6 de Outubro de 2016 — processo n.º 1946/09.6TJLSB.L1.S1.
[16] Cf. João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 366: “… interesse da parte activa em obter a tutela jurisdicional”.
[17] João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 180.
[18] João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 181.
[19] Cf. art. 33.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
[20] Cf. designadamente na doutrina Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela, anotação ao art. 2091.º, in: Código civil anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, págs. 151-152; na jurisprudência, os acórdãos do STJ de 1 de Fevereiro de 2000 — processo n.º 99A1149 —, de 6 de Outubro de 2009 — processo n.º 158/1999.S1 —, de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 —, de 6 de Julho de 2021 — processo n.º 3250/19.2T8VCT-B.G1.S1 — ou de 24 de Maio de 2022 — processo n.º 1791/04.5TBPBL-C.C1.S1; e, por último, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. I, cit., pág. 354 — dando o caso do art. 2091.º do Código Civil como exemplo de litisconsòrcio necessário legal.
[21] Embora haja sido parcialmente revogado pelo acórdão do STJ de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 —, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 2015 foi confirmado em tudo aquilo que contendia com a legitimidade ou com a ilegitimidade.
[22] Expressão do acórdão do STJ de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1.
[23] Cf designadamente o acórdão do STJ de 22 de Outubro de 2015 — processo n.º 2394/11.3TBVCT.G1.S1 —, sobre a situação de interesses subjacente ao litisconsórcio necessário passivo: “[…] embora tal situação de necessária pluralidade de partes não decorra explicitamente de uma norma legal ou de estipulação dos interessados, ela decorre da natureza - da incindibilidade e da indivisibilidade - de relação litigiosa plural, cujo mérito só pode ser efectiva e definitivamente apreciado quando estiverem em juízo todos os interessados, a todos sendo facultado o exercício do direito de acção ou de defesa, de modo a alcançar-se uma simultânea composição do pleito, vinculativa de todos os interessados”.
[24] Expressão do acórdão do STJ de 29 de Outubro de 2020 — processo n.º 604/18.5T8LSB-C.L1.S1.
[25] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 33.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 361.º, 4.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 98-100 :“o requerimento de intervenção principal é o único meio que o autor tem ao seu alcance para assegurar o litisconsòrcio necessário activo, quando quem com ele deve estar associado não quer propor a acção”
[26] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 2015 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1-7. 
[27] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 2015 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1-7 .
[28] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 2015 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1-7 .
[29] Cf. João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 185.
[30] Cf. acórdão do STJ de 17 de Março de 2016 — processo n.º 806/13.0TVLSB.L1.S1 —, continuando com a afirmação de que “a expressão de tal posição pessoal sobre a matéria litigiosa — que , em nenhuma circunstância, pode valer como confissão (art. 353º, nº2, do CC) — apenas assume relevância no plano probatório”.