RECURSO PENAL
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
AGRAVAÇÃO
ARMA
TENTATIVA
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
PENA PARCELAR
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário


I - I. As finalidades da punição, que se refletem na espécie e medida da pena, não visam dar satisfação imediata aos assistentes, enquanto ofendidos pela prática dos crimes e, por isso, não se pode considerar, em regra, que são afetados pela espécie ou medida da pena, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio.
II - Nas conclusões da motivação do recurso a assistente, limita-se a alegar que não foram ponderados os pressupostos que justificam a aplicação da pena única no limite máximo da moldura do cúmulo, pelo que deveria ser o arguido condenado em 10 anos e 1 mês de prisão, não invocando, porém, um interesse ou vantagem próprios na aplicação de uma pena mais elevada ao arguido, ou seja, não invocando qualquer facto de que resulte a existência de um interesse concreto e próprio na escolha e determinação da medida da pena, pelo que carece de legitimidade para recorrer e, assim sendo, o recurso deve ser rejeitado nesta parte (na parte criminal) – arts. 401.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b), todos do CPP e Assento do STJ de 30-10-1997.
III - Quanto à medida da pena, no caso presente, tratando-se de recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de X, que por acórdão datado de 08-03-2022, condenou o arguido em pena única superior a 5 anos de prisão, visando exclusivamente matéria de direito, nos termos dos arts. 427.º e 432.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP, a competência para conhecer o presente recurso pertence ao STJ.
IV - Quanto à medida das penas parcelares, o que se constata é que as penas singulares foram fixadas no patamar mínimo permitido pela culpa, nomeadamente a pena concreta fixada de 7 meses de prisão pelo crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do CP; 1 ano de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do CP; 8 anos e 6 meses de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos arts. 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do CP e art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, que se situam todas elas muito abaixo do respectivo limite abstracto médio, mostrando-se justas, corretas e adequadamente fixadas, pois a sua redução, além de não ser justificada ao nível da prevenção especial mormente por qualquer circunstância com destaque ao nível da condição social do recorrente ou outra que pudesse ser tida como factor atenuativo, criaria relativamente a factos semelhantes uma aberrante ideia de impunidade.
V - Quanto à apreciação da condenação numa pena única, tendo presente a gravidade dos crimes, no que tange ao concreto contexto em que os factos foram praticados, que fornecem a imagem global de uma atitude significativamente desconforme ao direito, a demonstrar a clara incapacidade do arguido em interiorizar a ilicitude da sua conduta, demonstrada pela falta de arrependimento, tudo atribuindo à assistente, chegando ao ponto de dizer, quanto à factualidade conexa com a tentativa de homicídio, que não tinha qualquer memória, mas já a tinha para os outros factos cuja prática repudiou, revelando a sua postura profunda incapacidade de auto-crítica, e tendo ainda presente a moldura penal abstracta a considerar para a fixação da pena única, a qual se baliza entre os 8 anos e 6 meses de prisão, correspondente à mais elevada das penas parcelares aplicadas, e os 10 anos e 1 mês de prisão, considera-se perfeitamente adequada, ajustada e equilibrada a pena única de 9 anos de prisão, que o tribunal a quo tinha fixado, que assim será mantida.
VI - Quanto à indemnização civil, relevam para a ponderação da compensação pecuniária pelo dano não patrimonial, devida à assistente, a censurável actuação do arguido demandado, ficando demonstrado que a vítima sofreu, desde logo, medo e receio, lesões físicas (por ex. a paralisia da hemiface direita), dores, angustias, pesadelos, alterações do sono, depressão; a demandante esteve internada no hospital, ainda estão dois projécteis no inteiro do seu corpo, bem como, teve que suportar despesas, perdeu dias de trabalho, tudo em consequência directa da conduta dolosa do arguido. Por outro lado, a situação clínica da demandante, ainda não está completamente definida, o período de doença não foi determinado, as sequelas decorrentes da acção do arguido (os disparos na cabeça da demandante) também ainda não o estão, mas já se sabe que terá de ser submetida a, pelo menos, uma intervenção cirúrgica, não estando em causa apenas a conduta derradeira do arguido/demandado concretizada no homicídio tentado, mas também as condutas anteriores que se concretizaram nas ameaças e na ofensa à integridade física qualificada, como condutas igualmente geradoras de inquietação, medo e receio, portanto, atentatórias da paz e do sossego que à demandante (como a qualquer pessoa) é devida. Tendo presente o quadro fáctico descrito e os danos não patrimoniais sofridos pela demandante em consequência dos factos praticados pelo arguido, tudo aponta para que se tenha como adequado, proporcional, justo e equitativo, o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante em € 30 000,00, fixado na decisão recorrida, improcedendo também nesta parte, o recurso do arguido e improcedendo, também, o recurso da demandante, revelando-se exagerado o montante peticionado.

Texto Integral




 Processo 811/21.3PAPTM.S1

Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Crimina do Supremo Tribunal de Justiça.

I. RELATÓRIO:

I.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., por acórdão datado de 08/03/2022, foi o arguido AA condenado pela prática de:

- Um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- Um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;

- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02, na de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 9 (nove) anos de prisão.

- Mais foi julgado procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido pelo «C... EPE» e, em consequência, condenado o arguido/demandado AA a pagar a quantia de 4.147,84€ (quatro mil cento e quarenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida dos respectivos juros de mora, calculados às taxas legais aplicáveis, vencidos e vincendos, desde a data da notificação do pedido civil ao demandado e até ao efectivo e integral pagamento.

- Foi também julgado parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido por BB e, em consequência, condenado o arguido/demandado AA a

i) Pagar a quantia de 5.042,00€ (cinco mil e quarenta e dois euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável, contados desde a data da notificação do pedido civil e até efectivo e integral pagamento (danos patrimoniais);

ii) Pagar a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável, contados desde a data da notificação do pedido civil e até efectivo e integral pagamento (danos não patrimoniais);

iii) Pagar o valor dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) vindouros que se mostrem ser consequência da conduta do arguido/demandado, que vierem a ser liquidados em execução de sentença, nos termos do artigo 82.º, n.º 1, do Código de Processo Penal

*

I.2. Inconformado, o arguido interpôs recurso para o STJ, alegando, em síntese, que a pena única que lhe foi aplicada se mostra excessiva, sendo que, mais adequadamente deveria ter sido condenado na pena única de 5 anos de prisão, a qual, atendendo ao facto de não possuir antecedentes criminais conjugado com o estado de saúde e idade daquele, deveria ter sido suspensa na sua execução.

Da motivação do recurso, retira o recorrente as seguintes conclusões:

1) O arguido praticou como autor material e em concurso efetivo o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º1, al. a) e 273.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal e o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02.

2) Conforme determina o artigo 40.º, n.º 1 do C.P. “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

3) O artigo 71.º do C.P. estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”

4) A função da culpa encontra-se consagrada no n.º 2 do citado artigo 40.º, o qual estabelece que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”.

5) A pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

6) As circunstâncias e critérios do artigo 71.º devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

7) As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afetados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

8) Tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afetados.

9) Nos presentes autos, nos termos do artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, 72.º, nº1, n.º2 alínea c) do C.P. há que ter em conta:

a) O grau de ilicitude dos factos: no que respeita à ameaça agravada a mesma revela-se de uma intensidade diminuta (a circunstância de se tratar de crime agravado está já refletida na moldura do tipo), no crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada revela-se não ultrapassar a mediania face à falta de gravidade das suas consequências, já no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada a mesmo releva-se de intensidade elevada, atendendo às circunstâncias que rodearam a prática dos factos.

b) No que concerne à culpa: o arguido atentou contra a liberdade de ação e de decisão, a integridade física e a vida da sua mulher.

Relativamente ao dolo, o arguido agiu em todos os crimes com dolo direto, ou seja, o seu comportamento revestiu a forma mais grave de culpa, mas tal não significa que tenha agido com dolo particularmente intenso, como se colhe da decisão recorrida. O dolo traduziu-se sempre no dolo característico exigido por cada tipo legal, já de si agravados.

c) Os motivos e fins determinantes: Faz-se notar que o arguido e a mulher encontravam-se separados definitivamente desde agosto de 2020, sendo certo que já se tinham separado pelo menos por mais duas vezes, voltando a juntar-se por causa das filhas. A ausência de atividade profissional da assistente e a sua total dependência económica do arguido, bem como a falta de adaptação da assistente à vida em ... e o facto da sua mãe e irmão terem vindo viver para Portugal com o casal, levou à sua rutura. Portanto, o arguido agiu sempre ainda sob influência da separação do casal. O arguido e a mulher de há tempos que vinham travando discussões entre si, tendo a situação sido agravada pela diferença de idades bastante significativa, 28 anos, entre o arguido e a mulher. O arguido é doente cardíaco, tendo a última intervenção cirúrgica a que foi submetido nesse âmbito ocorrido em 2020, em .... Tem ainda outros problemas de saúde associados à próstata e uma hérnia, como tudo resulta da matéria de facto dada como provada a partir do relatório social (n.º 21 da matéria assente). O arguido tem tido acompanhamento psiquiátrico e psicológico nos serviços do estabelecimento Prisional ... (n.ºs 22 da matéria assente).

10) Todo este quadro tem relevância para a determinação do quantum das penas, na medida em que se reflete na culpa, como expressão da liberdade de agir do ser humano, sem pôr em causa o dolo directo com que o arguido atuou, e se projeta na realização dos factos típicos ilícitos, que assim aparece como a culminação de frustrações acumuladas, de variada índole, mas em que teve influência o inter-relacionamento do casal, sobretudo nos últimos tempos, as múltiplas discussões, o facto do casal ter duas filhas menores e a maceração que tal provocou nesse relacionamento, bem como o facto do arguido ser uma pessoa em idade avançada e em precárias condições de saúde, físicas e psíquicas, agravadas nos últimos tempos, que sem justificar os factos, terão de militar em seu benefício.

11) O arguido não tem antecedentes criminais e apresenta-se socialmente enquadrado do ponto de vista profissional e familiar.

12) O arguido tem bom comportamento em meio prisional, sem registo de sanções disciplinares e ocupa-se a ter aulas de português.

13) O arguido parece conformado com a separação do casal e o sofrimento ocasionado pela prisão poderá ser nele mais sensível, exatamente pelo seu estado de saúde tão debilitado.

14) O arguido, de resto, com 69 anos de idade à data dos factos, nunca tinha praticado qualquer crime.

15) Entendemos por justo e equilibrado que relativamente ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal que, não deverá ser aplicada ao arguido uma pena superior a 1 (um) mês de prisão.

16) Ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 273.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal, que deverá ser aplicada ao arguido uma pena, que não deverá exceder os 2 (dois) meses de prisão.

17) E, ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02, não deverá ser aplicada ao ser aplicada ao arguido uma pena de prisão superior a 5 (cinco) anos.

18) Quanto ao cúmulo jurídico a efetuar, entendemos que a pena fixada peca por excesso, mostrando-se mais adequada a pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

19) De harmonia com o artigo 50.º n.º 1 do Código Penal há que ponderar a suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que a mesma se cifra em número de anos não superior a cinco.

20) Verifica-se que o arguido não tem antecedentes criminais, a acrescer o estado de saúde e a sua idade, as suas condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias em que o praticou, deverá pena de prisão aplicada neste crime ser suspensa na execução.

21) A suspensão da execução dessa pena de prisão deverá ser subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, tal como é previsto pelos artigos 50.º, n.º 2, 53.º, n.1 e 2 e 54.º do C.P., de forma a assegurar melhor a ressocialização, reeducação e reintegração do arguido na sociedade.

22) O arguido discorda do montante arbitrado pelo tribunal a quo a título de indemnização por danos não patrimoniais - € 30.000,00 (trinta mil euros), e decorrentes das dores, medos, pesadelos e abalo psicológico da ofendida, que se projetaram negativamente no seu quotidiano, conforme factos 28 e 30 dos factos dados como provados, sendo o mesmo manifestamente exagerado, devendo o mesmo ser fixado até ao limite máximo de € 5000,00.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências, devendo o douto Acórdão recorrido se revogado, no que concerne à medida da pena, sendo fixada em cúmulo jurídico a pena de 5 (cinco) anos de prisão, por ser a adequada e justa ao caso concreto, tendo por base casos semelhantes decididos por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

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I.3. O Magistrado do Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso do arguido AA, concluindo:

 1. O arguido AA interpôs recurso no que concerne ao douto acórdão proferido nos presentes autos datado de 08/03/2022, o qual, condenou aquele na pena única de 9 anos de prisão, alegando, em síntese, que esta se mostra excessiva e, bem ainda, que lhe deveria ter sido aplicada a pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução.

2. A propósito do grau de ilicitude no que tange ao crime de ameaça agravada, o arguido/recorrente AA, defendeu que o mesmo é diminuto, porquanto, «a circunstância de se tratar de crime agravado já está reflectida na moldura do tipo» e, no que tange ao crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, o grau seria mediano face «à falta de gravidade das suas consequências».

3. Todavia, cremos que, na base de tal alegação, com todo o respeito, está, por um lado, uma confusão de conceitos jurídicos e, por outro lado, o “esquecimento” ou pior, a desvalorização da circunstância de que, se consequências mais nefastas (a morte) não existiram para a vítima (mulher do arguido) tal ocorreu por motivos alheios à vontade do arguido/recorrente AA.

4. Com efeito, as circunstâncias agravantes previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 155.º, do Código Penal «revelam um maior desvalor da acção, são de funcionamento automático e constituem um elenco taxativo.».

5. Assim, não se pode confundir a intensidade da ilicitude que o agente em concreto empreende na prática do facto ilícito, com a circunstância de o legislador (dentro da sua livre opção) considerar que quando um crime é praticado de determinado modo releva automaticamente um maior desvalor da acção de quem o praticou.

6. In casu, conforme se escreveu no acórdão sob recurso e ora se transcreve:

«O grau de ilicitude a fixar-se, no que concerne ao crime de ameaça, será em um patamar médio/alto; Sendo, sem dúvida, em um patamar muito elevado, quanto aos outros dois crimes (ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado tentado), atenta a gravidade dos factos e por se tratar da esposa do arguido, pessoa com a qual está casado desde Julho de 2008 (a separação de facto só ocorreu em Agosto de 2020 e os factos findam em Maio de 2021), com a qual tem duas filhas, violando o arguido os mais elementares deveres de respeito e de assistência, sem esquecer quanto ao homicídio tentado, em que utilizou uma arma de fogo, em circunstâncias tais que impediram qualquer possibilidade de a sua esposa se defender;»

7. No que tange à inexistência de antecedentes criminais relativamente ao arguido AA, ou seja, a ausência da prática de crimes, é o que é exigível ao comum dos cidadãos, sendo certo também que, não obstantes os problemas de saúde de que o mesmo padece e a sua idade, tais factores não o impediram de atentar, primeiro contra a integridade física e, depois, contra a vida da sua esposa e mãe dos seus filhos, pessoa relativamente à qual impedia (em face da especial relação) um especial dever de respeito e consideração.

8. De resto, a circunstância de o arguido/recorrente AA ter agido sob influência da separação do casal, ou seja, as suas condutas resultarem de não aceitar o fim do relacionamento marital, denotam por banda do mesmo impreparação para gerir sentimentos exacerbados e incapacidade de auto-controlo, nomeadamente, para não voltar a repetir as mesmas condutas, reclamando, por isso, apertadas necessidades de prevenção especial.

9. Acresce ainda que, conforme é sabido, no que tange ao crime de homicídio, são muito elevadas as exigências de prevenção geral (cfr. a este propósito o Acórdão do STJ de 02/06/2021, cujo relator foi o Ex.mº Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha; disponível em www.dgsi.pt).

10. Pelo exposto, verificamos que, tendo em conta as molduras penais abstractas aplicadas aos ilícitos em causa, a fixação em concreto da pena única (e das penas parcelares) mostra uma generosidade humanista por parte do Tribunal «a quo» na fixação do quantum da pena única de 9 anos de prisão, em face da qual, não se mostraria possível, a suspensão da execução da pena de prisão (cfr. artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal), sendo certo ainda que, em qualquer caso sempre estaria inviabilizada, porquanto, nos termos acima expostos, in casu, não seria possível «concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

11. Termos em que, por o douto colectivo ter estabelecido criteriosamente a pena concreta a aplicar e, inexistindo a violação de qualquer norma legal, deverá ser julgado improcedente o recurso e, por conseguinte, ser mantido na íntegra o douto acórdão proferido nos presentes autos.

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I.4. A assistente BB, também não se conformando com a decisão proferida interpôs recurso, alegando, em síntese, que o acórdão sob recurso padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto, não obstante o Tribunal «a quo» ter considerado, para além do mais, um elevado grau de ilicitude no que tange à prática pelo arguido AA dos crimes de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada e homicídio qualificado na forma tentada e, bem ainda, serem prementes as necessidades de prevenção especial, não aplicou como deveria a pena única de 10 anos e 1 mês de prisão.

Da motivação do recurso, retira a recorrente as seguintes conclusões:

A. A recorrente entende que se verifica o vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410.º, n. 2, al. b) do Código de Processo Penal – quanto à aplicação da pena única em 9 (nove) anos de prisão.

B. Tal entendimento encontra fundamento na própria decisão do Tribunal a quo que considerou em desfavor do arguido ao menos 7 (sete) fatores (cfr. ponto 3.1 do douto Acórdão), dentre eles, o grau de ilicitude de patamar elevado, o modo de execução, o dolo direto (na forma mais intensa do querer), as consequências da conduta do arguido (todos os traumas físicos e psicológicos causados à recorrente), os bens jurídicos afetados, as exigências de prevenção geral elevadas, as necessidades de prevenção especial.

C. Em contrapartida indicou em favor do arguido apenas a ausência de antecedentes criminais e o facto de o mesmo estar socialmente inserido, o que há enorme controvérsia diante da factualidade dada como provada.

D. Além do      conteúdo criminal da decisão, ressalta-se ainda a desproporcionalidade na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais.

E. Diante da natureza e intensidade do dano, do grau de culpa, da situação económica da lesada e do responsável, afigura-se desproporcional e inadequada a fixação do valor da indemnização pelos danos não patrimoniais em € 30.000,00.

F. Pelo que deverá ser dado provimento ao presente recurso, anulando o Acórdão do Tribunal a quo, quanto à aplicação da pena única, devendo o arguido ser condenado na pena única de 10 (dez) anos e 1 (um) mês de prisão.

G. Mais, atendendo à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, deverá ser o arguido condenado a pagar à recorrente o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais em pelo menos € 150.000,00.

*****

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento   ao presente recurso, substituindo-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo por outra que aplique ao arguido a punição em pena única de 10 (dez) anos e 1 (um) mês de prisão, no que concerne à moldura do cúmulo.

Mais, deverá condenar          o demandado/arguido a pagar à demandante/recorrente a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescido de juros moratórios, contados desde a data de vencimento até o integral pagamento, a título de danos não patrimoniais, fazendo-se assim, JUSTIÇA!

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I.5. O Magistrado do Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso da assistente BB, concluindo:

1. A assistente BB insurge-se contra o acórdão condenatório proferido nos presentes autos, alegando, em síntese, que aquele padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto, não obstante o Tribunal «a quo» ter considerado, para além do mais, um elevado grau de ilicitude no que tange à prática pelo arguido AA dos crimes de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada e homicídio qualificado na forma tentada e, bem ainda, serem prementes as necessidades de prevenção especial, não aplicou como deveria a pena única de 10 anos e 1 mês de prisão.

2. QUESTÃO PRÉVIA: uma vez que a assistente BB não invocou um interesse ou vantagem próprios na aplicação de uma pena mais elevada ao arguido AA afigura-se-nos, sempre com o devido respeito por opinião contrária, que o recurso interposto por aquela (na parte criminal) deve ser rejeitado – artigos 401.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal e Assento do STJ de 30 de Outubro de 1997.

3. Todavia, sem prejuízo do acima referido e, porque, outro poderá ser o mais correcto entendimento do Venerando Supremo Tribunal            de Justiça, nomeadamente, porque, embora erradamente, é invocado o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, não deixaremos de tentar demonstrar a falta de razão dos fundamentos do recurso em análise.

4. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nada tem que ver com a discordância da assistente CC relativamente ao quantum da pena de prisão que foi aplicada ao arguido, sendo que, aquele tem que ser verificável pelo simples exame do texto da decisão sob recurso considerado na sua globalidade.

5. Ora, no caso em apreço, para a determinação da medida da pena o acórdão sob recurso atendeu, por um lado, ao grau de ilicitude, modo de execução e consequências dos factos, as necessidades de prevenção especial e geral, tudo conforme consta do texto daquele e ora se transcreve:

«O grau de ilicitude a fixar-se, no que concerne ao crime de ameaça, será em um patamar médio/ alto; Sendo, sem dúvida, em um patamar muito elevado, quanto aos outros dois crimes (ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado tentado), atenta a gravidade dos factos e por se tratar da esposa do arguido, pessoa com a qual está casado desde Julho de 2008 (a separação de facto só ocorreu em Agosto de 2020 e os factos findam em Maio de 2021), com a qual tem duas filhas, violando o arguido os mais elementares deveres de respeito e de assistência, sem esquecer quanto ao homicídio tentado, em que utilizou uma arma de fogo, em circunstâncias tais que impediram qualquer possibilidade de a sua esposa se defender;

O modo de execução dos factos, caracterizado nas situações da ofensa qualificada e do homicídio tentado, por uma evidente supremacia do arguido; além, utilizou uma viatura; aqui, uma arma de fogo; em ambos os casos sem que lhes precedesse qualquer tipo de provocação da assistente, com o arguido a fazer uma “espera” e depois a disparar e à cabeça, não uma, mas três vezes;

As consequências do facto no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado tentado, com o traumatismo da região cervical e da face, a paralisia da hemiface direita, a necessidade de vir a ser submetida a cirurgia maxilo-facial, o internamento hospitalar, as dores, o sofrimento e a angústia, o abalo psicológico, o estado de saúde da assistente ainda por definir na sua inteireza, as sequelas por determinar; As exigências de prevenção geral são elevadas tendo em atenção o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino em um horizonte de relação existencial, cumprindo obstar à banalização ou vulgaridade, a um sentir de impunidade;

As necessidades de prevenção especial fazem-se sentir com acuidade perante a personalidade do arguido, para que interiorize as consequências dos seus actos, que sempre desvalorizou, e tudo atribuiu à assistente, chegando ao ponto de dizer, quanto à factualidade conexa com a tentativa de homicídio, que não tinha qualquer memória, mas já a tinha para os outros factos cuja prática repudiou, revelando a sua postura profunda incapacidade de auto-crítica;»

6. Sendo certo também que, por outro lado, o Tribunal «a quo» ponderou, conforme estava legalmente obrigado, os factores favoráveis ao arguido AA, a saber: i) a ausência de antecedentes criminais e ii) a inserção social e o bom comportamento em estabelecimento prisional.

7. Termos em que, por o douto colectivo ter estabelecido criteriosamente a pena concreta a aplicar e, inexistindo a violação de qualquer norma legal, deverá ser julgado improcedente o recurso e, por conseguinte, ser mantido na íntegra o douto acórdão proferido nos presentes autos.

*

I.6. A Exmª. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, sufragando os argumentos constantes da resposta ao recurso do arguido AA, apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, emitiu douto parecer no sentido de que será de improceder o recurso em análise.

Quanto ao recurso da assistente BB, uma vez que não invocou um interesse ou vantagem próprios na aplicação de uma pena mais elevada ao arguido AA, o recurso interposto por aquela (na parte criminal) deve ser rejeitado – artigos 401.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal e Assento do STJ de 30 de Outubro de 1997. Quanto ao mais, sufragando os argumentos constantes da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder em toda a sua extensão, mantendo-se a decisão recorrida.

*

I.7. Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP nada tendo sido requerido.

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I.6. Não tendo sido requerida a audiência, o processo prossegue através de julgamento em conferência (arts. 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), ambos do CPP).

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I.7. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto provada, bem como a fundamentação de facto e de direito, determinação da medida da pena e pedidos de indemnização civil, da decisão recorrida (transcrição):

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A. Matéria de facto provada.

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos (com exclusão das conclusões e das inocuidades):

1. O arguido AA e a ofendida DD casaram entre si em Julho de 2008, tendo-se separado no mês de Agosto de 2020, data em que a ofendida saiu da residência onde vivia com o arguido, sita no ..., Rotunda ..., ..., em ....

2. Da sua relação nasceram duas filhas, EE e FF, actualmente com 15 e 13 anos de idade, respectivamente.

3. O arguido não aceitou de bom grado a separação e, a partir desse momento, passou a abordar a ofendida, ora no seu local de trabalho, no ... – Praia ..., ora junto à sua residência, sita na Av. ..., ..., ..., em ..., o que fez um número de vezes não apurado.

4. Em data não concretamente apurada, mas no período compreendido entre o dia 20 de Agosto de 2020 e o início de Abril de 2021, pelo menos por uma vez, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo “é melhor ires para o ... senão acabo contigo”, “dou-te um tiro na tua cara”.

5. Ao proferir tais palavras, o arguido agiu com o propósito concretizado de causar medo e inquietação à ofendida, bem como de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu, pois esta acreditou que aquele tivesse intenção de concretizar o mal anunciado.

6. Em dia não concretamente apurado do início do mês de Abril de 2021, na Rotunda ..., em ..., o arguido, que seguia ao volante da sua viatura de matrícula ... ..-..2VB – juntamente com a sua filha FF, que seguia no lugar do passageiro – ao ver a ofendida, que seguia apeada no passeio, conduziu a viatura na sua direcção, galgando o passeio, com o propósito de a atingir.

7. O arguido apenas não atingiu BB em virtude de esta se ter desviado de imediato, evitando assim o embate da viatura no seu corpo.

8. O arguido agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde da ofendida, mediante a utilização da viatura automóvel acima identificada, apesar de saber que o automóvel é um meio particularmente perigoso para lesar a integridade física de outrem, o que não conseguiu porque a BB se desviou.

9. No dia 17 de Maio de 2021, pelas 20h20, o arguido dirigiu-se à Rua ..., Urbanização ..., em ....

10. Nesse local, munido de uma arma de fogo devidamente municiada com munições de calibre 6.35mm, esperou escondido atrás de uma palmeira que a ofendida por ali passasse, uma vez que era do seu conhecimento que aquele era o seu caminho habitual de regresso a casa, após o trabalho, no ..., sito na Praia ..., em ....

11. Quando a ofendida se dirigia para a sua residência, pelas 20h40m, e subia a pé a referida artéria, o arguido saiu repentinamente do local onde permanecia escondido, aproximou-se daquela e disse-lhe “vais ligar para a polícia?”

12. Acto contínuo, o arguido, que se encontrava a cerca de um metro de distância da ofendida BB, apontou a arma de fogo na direcção da sua cabeça e efectuou três disparos de forma consecutiva, atingindo-a no lado direito da face e na zona cervical, abandonando o local de seguida.

13. A ofendida foi imediatamente auxiliada por GG e outra pessoa, que se encontravam no local no momento em que os factos ocorreram, tenho sido accionados os meios de socorro e efectuado o transporte da ofendida para o Hospital ..., onde deu entrada em estado grave.

14. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu traumatismo da região cervical e da face e paralisia da hemiface direita, carecendo de cirurgia maxilo-facial.

15. Tais lesões determinaram um período de doença ainda não determinado, bem como sequelas de natureza ainda não concretamente apurada.

16. Ao agir pela forma anteriormente descrita, atento o instrumento utilizado (arma de fogo) e a região corporal atingida (cabeça), teve o arguido o propósito de causar a morte da ofendida, resultado este que pretendia alcançar e que apenas não se concretizou devido à rápida assistência médica que àquela foi prestada.

17. O arguido detinha no dia 17 de Maio de 2021 uma arma de fogo carregada com munições de calibre 6.35mm, bem sabendo que não a podia deter e que a sua utilização da forma supra descrita era susceptível de produzir a morte da ofendida.

18. O arguido tinha perfeito conhecimento que a detenção, uso e porte de uma arma com aquelas características era proibida por lei, não se abstendo de a deter, como fez.

19. Em todas as ocasiões o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

20. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.

21. Do relatório social do arguido extrai-se:

«I. Condições pessoais e sociais

Aquando da sua prisão preventiva em 18/05/2021 no estabelecimento Prisional ... à ordem deste processo, AA, cidadão de nacionalidade ..., encontrava-se separado da sua mulher, DD, residindo sozinho em apartamento ... adquirido em 2018 em ..., embora passasse períodos com as duas filhas deste casamento, atualmente com 15 e 12 anos de idade.

Nascido na zona norte de ... há 69 anos, o arguido é filho de pai ..., empregado do setor do vidro, sendo o segundo de quatro irmãos, criados num ambiente familiar instável. Frequentou a escola apenas até aos 15 anos e depois de deixar de estudar começou a trabalhar como mecânico de viaturas de transportes, tendo obtido um diploma profissional nesta área. Aos 20 anos foi chamado para o serviço militar obrigatório e depois empregou-se durante 2 anos numa fábrica da ... na sua região de origem, a que se seguiu a exploração de um café/bar, negócio a que se dedicou cerca de 3 anos.

Regressou posteriormente à ... com a profissão de geometrista e nesta qualidade trabalhou em unidades fabris desta marca em ..., mas também noutras fábricas de vários países europeus, na ..., nos ... e diversos países da HH, incluindo no ..., reformando-se em 2012 em ..., com uma pensão de reforma de aproximadamente 1.300 euros mensais.

No plano familiar o arguido mencionou ter casado pela primeira vez com 19 anos, divorciando-se cerca de 6 anos depois. Deste matrimónio AA tem dois filhos, com 49 e 46 anos, ambos autónomos e com vida organizada em ..., com os quais mantém contactos telefónicos regulares. Quanto a DD, o arguido conheceu-a no ano de 2005 quando estava a trabalhar no ... e iniciou um namoro que se prolongou até ao casamento em 2008, sendo que a filha mais velha (EE) ainda nasceu no ... e a mais nova (FF) já nasceu em ....

Sobre os problemas desta relação matrimonial a narrativa do arguido centra-se na ausência de atividade profissional da sua mulher e na total dependência económica desta, enquanto DD menciona problemas iniciais de adaptação à vida em ..., longe da sua família, e no feitio intolerante por parte de AA, questões que foram minando a ligação do casal, apesar de permanecerem juntos, sobretudo por causa das filhas. Gozando de boa situação económica, AA e a mulher decidiram em 2017 mudar-se para Portugal, perspetivando a criação de um negócio comum que pudesse ocupar profissionalmente DD.

No entanto esta mudança não terá contribuído para uma melhoria do relacionamento do casal, não se concretizando um investimento profissional, embora a mulher do arguido tenha obtido trabalho em limpeza de apartamentos e depois no Hotel .... O facto de a mãe e um irmão de DD terem vindo viver para ... também não ajudou a desanuviar a má relação entre AA e DD que, antes da separação definitiva em agosto de 2020, já se tinham separado pelo menos por duas vezes, voltando a juntar-se por causa das filhas. Apesar de não ter aceitado bem este afastamento da mulher, o arguido continuou a estar com as filhas e a pagar 500 euros de pensão de alimentos. Desde que foi preso praticamente não voltou a ter contacto com as filhas, emocionando-se quando fala das menores.

O arguido apresenta bom comportamento em meio prisional, sem registo de sanções disciplinares.

Ocupa-se a ter aulas de português e faz medicação para dormir. Refere ter problemas na próstata e uma hérnia, tendo sido operado ao coração em 2020, antes de ser preso. Tem contactos telefónicos com os filhos em ..., recebeu visitas esporádicas de amigos ... e tem apoio da sua advogada.

No decurso da entrevista realizada e quando confrontado com os factos muito graves pelos quais vem acusado no presente processo, AA não se revê no despacho de acusação, apresentando uma narrativa totalmente distinta. (…)».

22. O arguido tem tido acompanhamento psiquiátrico e psicológico nos serviços clínicos do estabelecimento Prisional ....

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Do pedido de indemnização civil deduzido pelo “C... - C... EPE”:

23. A Unidade Hospitalar ... do C... EPE, no exercício da sua actividade, tem vindo a prestar cuidados de saúde a BB desde o dia 17/05/2021, os quais consistiram em um episódio de urgência, internamento, diversas consultas subsequentes, com tratamentos de técnicas de relaxamento, estimulação eléctrica neuromuscular, fortalecimento muscular, massagem, consulta de otorrino e de oftalmologia, tratamentos que ainda não findaram, devido às lesões pela mesma sofridas, com o custo global, até este momento, de 4.147,84€.

-

Do pedido de indemnização deduzido pela demandante BB:

24. Em consequência dos disparos a demandante BB foi atendida no Hospital ... no dia 17/05/2021 e ficou internada durante 10 dias.

25. A demandante deverá ainda ser submetida a cirurgia maxilo-facial no Hospital ....

26. Em deslocações para realização de exames ao aludido Hospital a demandante já gastou 300,80€.

27. Em medicamentos prescritos por causa das lesões a demandante já gastou a quantia de 308,61€,

28. Desde o dia 17/05/2021 que a demandante tem tido dificuldade em adormecer, sente dores, sofre com a secura do olho direito devido à paralisia, por vezes tem pesadelos, e apresenta dificuldades em mastigar alimentos de consistência dura.

29. Actualmente ainda se encontram 2 projécteis alojados no corpo da demandante.

30. A assistente sofreu desgaste emocional e profundo abalo psicológico, ainda se encontra angustiada e abalada com o sucedido e apresenta um quadro depressivo ansioso.

31. À data dos factos a demandante exercia as funções de empregada de mesa e auferia um mensal ordenado líquido de 675,32€.

32. Por causa das lesões a demandante deixou de trabalhar, como o fazia, nos períodos que se seguem, não auferindo os seguintes valores:

            - em Maio de 2021, 14 dias – 315,15€;

- em Junho de 2021, 30 dias – 675,32€;

- em Julho de 2021, 30 dias – 675,32€;

- em Agosto de 2021, 30 dias – 675,32€;

- em Setembro de 2021, 30 dias – 675,32€;

- em Outubro de 2021, 30 dias – 675,32€;

- em Novembro de 2021, 30 dias – 675,32€;

- em Dezembro de 2021, 3 dias – 65,52€, o que perfaz a quantia global de 4.432,59€.

33. A demandante tem a seu cargo o exercício das responsabilidades parentais relativo às filhas do casal.

34. A situação clínica da demandante ainda não está estabilizada.

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B. Matéria de facto não provada.

Não se provaram os seguintes factos da acusação:

1. que o arguido se tenha feito transportar no veículo de matrícula ... ..-..2VB que estacionou na Praceta...;

2. que o arguido detivesse desde data não concretamente apurada um revolver;

3. que o arguido tenha abandonado o local na sua viatura.

4. que o arguido tenha surpreendido a ofendida.

5. que o arguido pretendia que a ofendida fosse para o ..., o que não logrou alcançar por razões alheias à sua vontade.

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C. Motivação da decisão de facto.

O Tribunal formou a sua convicção sobre os factos considerados provados e não provados com base na análise crítica e conjugada de toda a prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos, segundo as regras da experiência e a livre convicção, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

O arguido disse não ter qualquer lembrança sobre o que passou no dia 17/05/2021 e, quanto aos demais factos narrados na acusação, com excepção dos vertidos nos artigos 1.º e 2.º, repudiou-os, referindo que não os praticou, que nunca ameaçou a assistente BB, que não teve qualquer arma, que não dirigiu o carro contra a assistente BB, etc.

Apresentou, por mais de uma vez, um discurso pautado pela auto-comiseração.

Por sua vez, a assistente BB prestou declarações onde descreveu os factos de modo claro.

Referiu estar «mais do zangada» com o arguido por causa do que se passara, mas em momento algum prestou declarações pautadas pelo acinte, vingança ou desejo de o prejudicar.

Não produziu um relato pautado pelo exagero ou invenção.

A assistente deu nota do episódio em que resolveu findar a relação (o almoço no verão no restaurante) e fixou-o no tempo (Agosto ou Setembro de 2020).

Disse que a partir desse momento o arguido aparecia no seu local de trabalho (o que foi confirmado pela testemunha II, colega de trabalho), bem como, junto à sua residência, que muitas vezes lhe dizia para se ir embora, que devia voltar para o seu país, que a mataria, que sentiu medo e receio.

Disse também que em uma ocasião o arguido a ameaçou com um tiro na cabeça, que se sentiu abalada, com medo do que lhe pudesse suceder, tendo alterado os seus percursos.

A indefinição do número de ocasiões e caráter algo vago e genérico do inciso «o arguido dirigia-se à ofendida dizendo que a iria matar e que deveria regressar ao seu país de origem» (cf. artigo 4.º da acusação) seguido de uma concretização «é melhor ires para o ... senão acabo contigo», «dou-te um tiro na tua cara», dentro do mesmo período de tempo (de 20 de Agosto de 2020 ao início de Abril de 2021), leva-nos a desconsiderar parte da matéria vertida no artigo 4.º da acusação (até em decorrência das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual penal ao arguido), ou se quiser, a tudo unificar, e a ter por provado apenas que, dentro do período compreendido entre 20 de Agosto de 2020 e o início de Abril de 2021, em data não apurada, pelo menos em uma ocasião, o arguido terá dito para a assistente que era melhor ir para o ... senão acabava com ela.

A assistente não referiu a expressão «dou-te um tiro na tua cara», mas disse que o arguido a ameaçou com um tiro na cabeça o que temos por equivalente em termos de sentido.

Porém, considerando que o arguido ficou desagradado com a separação – a assistente a abandonar o almoço e depois a não regressar à casa comum, como esta referiu – e por isso começou a incomodá-la, tanto não é congruente com o propósito de a constranger a abandonar o nosso país.

Fosse esse o desejo do arguido, o mesmo não ficaria desagradado com a separação.

Acresce que o arguido negou todos factos vertidos na acusação, com excepção dos narrados nos artigos 1.º e 2.º.

De certo modo, tanto também poderia consubstanciar uma forma de pressão para a assistente voltar pois o arguido sabia que a assistente nunca iria deixar as duas filhas para trás.

Razões porque se consideram provados os factos nºs. 1 a 5.

Para a factualidade não provada vai alegação «Com a sua conduta, pretendia ainda o arguido que a ofendida fosse para o ..., o que não logrou alcançar por razões alheias à sua vontade» sendo certo, ademais, que o inciso «por razões alheias à sua vontade» é manifestamente conclusivo.

Com efeito, necessário seria que se alegassem e provassem os factos concretos que permitissem alicerçar a aludida conclusão.

Prosseguimos.

A assistente não teve qualquer dúvida em dizer que se não tivesse “pulado” o arguido iria atingi-la com o veículo – Abril de 2021, na Rotunda ....

Referiu que estava no passeio e que o arguido avançou com o carro na sua direcção, subindo o passeio e ela pulou para não ser atingida, «ele não freou», disse, infirmando as declarações a este respeito prestadas pelo arguido (a assistente BB estaria “no estacionamento”, “a julga-lo”, sem querer sair do sítio, e ele estaria a querer entrar, e fez-lhe sinal, porque havia outros carros, e ela foi para a passadeira, nada mais tendo ocorrido).

As declarações da assistente foram corroboradas pelas declarações prestadas por FF (filha do casal) que seguia dentro do veículo conduzido pelo arguido, sentada no banco da frente ao lado do condutor, como referiu.

O arguido, a este respeito, mesmo sem nada lhe ter sido perguntado, logo disse que a filha não tinha visto nada, que não vinha no banco da frente, etc.

Perguntamos, mas haveria de não ver o quê? Se o arguido nada tivesse feito?

Ao contrário, o que é que haveria a ver se o arguido estacionasse normalmente o veículo?

Obviamente que o arguido quis adiantar uma versão em seu exclusivo interesse ou benefício.

Debalde o fez, pois tais declarações não têm o condão de afastar as que foram produzidas pela assistente e pela filha de ambos, FF, que o fizeram de modo lógico e coerente.

Pelo somatório das razões antecedentes consideram-se provados os factos n.º s 6 e 7.

Avançamos.

A assistente BB também não teve qualquer dúvida em dizer que foi o arguido quem disparou contra ela interpelando-a, quando a abordou e imediatamente antes, com a expressão “vais ligar para a Polícia?”.

Viu-o a curta distância, sendo certo que a este respeito o arguido referiu não ter qualquer memória.

Disse a assistente que, enquanto caminhava, viu o arguido e resolveu, nesse momento, munir-se do telefone para o pôr a gravar e assim tentar obter provas, o que tem o condão de relativizar o efeito surpresa, isto é, o aparecimento súbito do arguido, pois que a assistente já o vira, antes de ao pé dele chegar, o que se clarifica com a arrumação nos factos não provados do «surpreendendo» vertido no artigo 13.º do libelo (cf. n.º 4).

Quer-se dizer: a assistente não seguia ensimesmada ou distraída e, a dado momento, surge repentinamente o arguido. Não foi assim. A assistente avistou-o antes de chegar ao pé dele. Viu-o.

Ora, este relato da assistente só reforça a credibilidade das suas declarações pois se existisse vontade em «carregar nas tintas» sempre poderia vitimizar-se referindo que fora verdadeiramente surpreendida com a presença do arguido naquele local e do qual só se teria apercebido no preciso momento em que aquele a interpelou e, de seguida, contra si disparou. Mas não o fez.

As declarações lógicas, serenas, congruentes e firmes da assistente foram relevantes para firmar a factualidade, com excepção do tipo de arma (ser um revólver), do modo como o arguido se deslocou para e saiu do local onde disparou no dia 17/05/2021, pois a este respeito nada disse, e do já aludido «surpreendendo», (cf. nºs. 1 a 4 dos factos não provados e factos provados nºs. 9 a 13).

Doutra banda, a arma utilizada não foi apreendida.

Por isso se desconhecem as suas concretas características, se pistola ou revólver, etc.

Apenas sabemos com segurança que se tratou de uma arma de fogo, capaz de produzir disparos com munições de calibre 6,35mmm, razão porque se dá como não provado tratar-se de um “revólver”, pois que existem outras armas de fogo capazes de disparar aquelas munições e que não são revolveres, (cf. facto não provado n.º 2).

As declarações que a assistente prestou relativamente ao episódio do dia 17/05/2021 quanto à autoria dos disparos são também corroboradas por estes outros elementos de natureza objectiva:

No local – que foi preservado por agentes da PSP (cf. declarações do agente JJ) – foram recolhidas três cápsulas de munição de calibre 6,33mm e verificada presença de vestígios de sangue no solo (cf. fls. 8-9 e fls. 12-29);

Confirmou-se que se tratava de vestígios de sangue e obteve-se um único perfil de ADN que se revelou ser idêntico ao perfil da KK (cf. relatório pericial a fls. 407-408v.º);

Apurou-se que as três cápsulas/invólucros deflagradas encontradas no local eram da mesma marca, PRVI PARTIZAN, com origem na ..., inscrição “PPU” – “25. Auto”, calibre 6,35mmm Browning e foram deflagradas na mesma arma (cf. relatório pericial a fls. 760-766);

Apurou-se também que nas amostras recolhidas ao arguido AA foram detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparo de arma de fogo, manipulação ou proximidade a disparo de arma de fogo e que as partículas detectadas nas amostras recolhidas ao arguido são do mesmo tipo das partículas detectadas nas cápsulas deflagradas e recolhidas no local (cf. relatório pericial a fls. 1018-1019 v.º = 980 e s.),

O que tudo entre si conjugado só permite concluir, para lá da dúvida razoável, ter sido o arguido AA quem, por três vezes, disparou sobre a assistente e não que tanto tivesse ocorrido por acção de terceiro.

Porquanto o sangue recolhido no solo só à assistente pertence, no local foram recolhidas cápsulas/invólucros de munições disparadas por arma de fogo, a assistente foi socorrida no local na sequência de ter sido atingida por projécteis disparados por arma de fogo (cf. relatório do episódio de urgência a fls. 83 e s.), no arguido recolheram-se partículas características/consistentes com disparo de arma de fogo (cf. também o depoimento de LL, Especialista, PJ) e, por fim, que essas partículas recolhidas no arguido eram idênticas às partículas recolhidas nas cápsulas/invólucros que ficaram caídas no chão no local onde os factos ocorreram, o que só contribui para reforçar as declarações da assistente quando esta disse que foi o arguido quem disparou contra si.

Atentou-se ainda nos depoimentos de MM (Inspector da PJ – DIC ...), de LL (Especialista da PJ – DIC ...), NN e OO (ambos agentes da PSP), GG (que viu os disparos sobre a assistente no local e depois a socorreu, cf. facto provado n.º 13), PP (arrendou o quarto à assistente em Outubro de 2020), FF (filha do arguido e da assistente), QQ (amiga da assistente) e II (colega de trabalho da assistente).

Os incisos «fazendo-se transportar no veículo de matrícula ... ..-..2VB, que estacionou nas imediações daquela rua, na Praceta...» e «na sua viatura» vertidos, respectivamente, nos artigos 11.º e 14.º da acusação têm-se por não provados pois sobre eles não se alcançou qualquer prova que impusesse distinta consideração (cf. factos não provados nºs. 1 e 3).

O inciso «o arguido deteve a referida arma de fogo desde data não concretamente apurada e até ao dia 17 de Maio de 2021» vertido no artigo 19º da acusação não pode considerar-se inteiramente provado.

O que resulta líquido à luz dos factos provados praticados no dia 17/05/2021 é a detenção pelo arguido, pelo menos nesse dia, de uma arma de fogo capaz de disparar munições de calibre 6,35mm.

Nada se provou quanto ao início e duração (tempo) da detenção que a própria acusação também não concretizou, nem, muito menos, que se tratasse de um «revólver».

Nem se sabe, por ex., se o arguido não obteve a arma pouco tempo antes e justamente para a utilizar naquela ocasião. Certo é que não apreendida tal arma, nem quando o arguido foi abordado pelos OPC’s nesse mesmo dia, nem subsequentemente.

Haverá que ajustar a alegação reduzindo, em decorrência das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual penal, nomeadamente, do princípio da presunção de inocência, cf. artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, o período da detenção ao dia em que o arguido deteve e fez uso da arma, passando essa parte do facto a dizer assim: «O arguido detinha, no dia 17 de Maio de 2021, uma arma de fogo carregada com munições de calibre 6,35mm”, permanecendo o demais alegado (cf. facto provado n.º 17).

E detinha tal arma de fogo sem dispor de qualquer permissão legal para o efeito – facto nem sequer alegado na narração da acusação! – pois não era possuidor de qualquer título de uso e porte de arma, nem possuía qualquer arma manifestada e registada em seu nome, como decorre da informação remetida pelo Núcleo de Armas e Explosivos da PSP a fls. 456.

Finalmente, quanto aos factos provados nºs. 13 a 15 a eles chegamos por meio da conjugação do relatório do episódio de urgência (assistência a BB prestada no C... com admissão pelas 21:18 de 17/05, cf. fls. 83-88 = original a fls. 126-137) com os relatórios periciais de fls. 446-447v.º e de fls. 840-842 (datado de 22/01/2022), resultando destes elementos que, tal como BB dissera, a situação relativa ao dano (corporal/saúde) ainda não está completamente estabilizada/definida.

Para o plano da factualidade subjectiva:

A ela chegamos a partir dos factos de natureza objectiva dados como provados, por inferência a extrair à luz das regras de experiência, porque a tanto nada obsta.

De um lado, o arguido conhecia a ilicitude dos actos que queria empreender (as condutas atentatórias da liberdade de acção, da integridade física e da vida traduzem condutas já proibidas há séculos, constituem exemplos de mala in se), sendo o arguido inteiramente capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos, de desta estar cônscio, e de se determinar de acordo com referida avaliação, pois não era possuidor de qualquer anomalia psíquica (cf. relatório pericial de fls. 390-394).

De outro, quem, para outra pessoa, lhe diz que a vai matar, como se provou ter dito o arguido à assistente, sabe, obviamente, que está a agir de modo adequado a provocar receio e inquietação, como ademais, sucedeu, sabe e quer, limitar a liberdade de acção e decisão daquela.

Quem, ao volante de um automóvel em andamento se apercebe, a dado momento, de uma pessoa e contra esta dirige o veículo, subindo o passeio, como se provou ter feito o arguido, sabe que pode atingi-la na sua integridade física e, se ainda assim, leva a cabo tal acção, podendo dela se abster, sabe e quer atingi-la no corpo com o veículo, como sabe, obviamente, que está a fazer uso dum meio – o veículo – particularmente perigoso para a integridade física duma pessoa, considerada a massa e a cinética do veículo e suas consequências este no embate contra o corpo de uma pessoa.

Se a assistente, porque pulou, conseguiu evitar o embate, como se provou, tanto só firma a aludida intenção do arguido cujo resultado (o impacto no corpo da assistente) só não ocorreu por acção daquela e não do arguido.

Quem, empunhando uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6,35mm, a empunha e, a curta distância, efectua três disparos na direcção da cabeça doutra pessoa, como se provou ter feito o arguido, obviamente que representa e quer acabar com a vida dessa pessoa.

Se lhe acerta, mas a morte não sobrevém por intervenção de terceiros, como se provou, também aqui tanto só firma a aludida intenção do arguido cujo resultado (a morte da assistente) só não ocorreu por acção de terceiros e não do arguido, que abandonou o local após ter disparado, como se provou.

Finalmente, quem sabedor da exigência de licença para deter e usar uma arma de fogo, e cônscio de dela não ser titular, ainda assim a detém e inclusive faz uso da mesma, necessariamente que representa e quer deter e usar a aludida arma de fogo à margem das condições previstas na lei para tanto, portanto, representa e quer deter e usar ilegalmente a arma (cf. factos provados n.ºs. 5, 8, 16, 17, 18 e 19).

Tiveram-se ainda em conta o certificado do registo criminal do arguido a fls. 912-913, o relatório social do arguido que se mostra junto aos autos a fls. 1062 e s., os relatórios emitidos nos serviços clínicos do estabelecimento Prisional ... a fls. 995-996 (psiquiatria) e fls. 997 (psicologia), que suportam os factos provados nºs. 20, 21 e 22 e o depoimento da testemunha RR (amigo de longa data do arguido).

Relativamente à factualidade relativa ao pedido de indemnização civil deduzido pelo “C... – C... EPE” valoraram-se as declarações da assistente que confirmou ter sido aí assistida, ter ficado internada e encontrar-se, ainda, em tratamento, o que se conjugou com as facturas de fls. 677-690 (= 4.085,84€), de fls. 892 (= 31,00€) e de fls. 1078 (= 31,00€), que perfazem o valor total de 4.147,84€.

No que concerne à factualidade vertida no pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB valoraram-se as declarações que prestou, conjugadas com os documentos de fls. 704-705 (deslocações), de fls. 706-715 (despesas medicamentos/taxas), de fls. 716 e s. (recibos de vencimento) e com o depoimento da testemunha QQ.

Acrescem ainda os relatórios da perícia médico-legal que constam dos autos e, por último, a informação/relatório de psiquiatria oferecido já na audiência de julgamento.
Y
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

A) Enquadramento jurídico-penal.

1. Do imputado crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

1.1. Tais normas prescrevem, respectivamente, assim:

«1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».

1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º (…) forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou (…)

o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º (…)».

1.2. Breve análise do tipo.

O bem jurídico protegido pela norma de incriminação é a liberdade de decisão e de acção, ou seja, a liberdade pessoal que se pretende existente e actuante à margem de qualquer tipo de pressão ou constrangimento.

E essa liberdade ficará prejudicada quando se anuncia ao seu titular um mal futuro e incerto.

Não um mal qualquer, como lançar um mau-olhado ou rogar uma praga ou outra coisa similar, mas sim e apenas quando tal mal anunciado convoque a prática de um dos crimes referidos no tipo objectivo: vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual, etc.

Trata-se de crime comum (pois o tipo não demanda qualquer especial qualidade ao autor) e unicamente punido a título doloso, cf. artigos 14.º e 153.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

1.3. Da relevância jurídico-penal da conduta que se provou.

Resultou provado que o arguido no período compreendido entre o dia 20 de Agosto de 2020 e o início de Abril de 2021, pelo menos por uma vez, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo “é melhor ires para o ... senão acabo contigo”, “dou-te um tiro na tua cara”.

Provou-se igualmente que ao proferir tais palavras, o arguido agiu com o propósito concretizado de causar medo e inquietação à ofendida, bem como de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu, pois esta acreditou que aquele tivesse intenção de concretizar o mal anunciado.

Finalmente, provou-se que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A expressão «acabo contigo» e «dou-te um tiro na cara» têm o sentido de anunciar um mal futuro que concretamente se consubstanciará na causação da morte, portanto, anuncia-se a prática de um crime contra a vida (homicídio).

A expressão «dou-te um tiro na cara» mesmo isoladamente considerada sempre significará, no mínimo, o anúncio de uma desfiguração do rosto (ofensa grave).

Em qualquer dos casos a punição é sempre superior a 3 anos.

Como a acção do arguido foi dolosa (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal) estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça (artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal) agravada (artigo 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal).

Considerando que inexistem quaisquer causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa, o arguido será condenado pela prática, em autoria material e sob forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º (primeira proposição), 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.
-
2. Do imputado crime de coacção, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
2.1. A norma prescreve assim:
«1- Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2- A tentativa é punível. (…)».
2.2. Breve análise do tipo.

O bem jurídico protegido pelo crime de coacção é a liberdade de decisão e de acção, a liberdade pessoal, liberdade que é atingida quando, por ex., por meio de uma ameaça com mal importante se provoca um sentimento de insegurança no ameaçado que, por via disso, acaba por fazer o não queria, ou omitir o que queria realizar, ou a tolerar o que nunca admitiria suportar.

Do terminado de exemplificar logo resulta a execução vinculada no que concerne à concretização da modalidade de acção constranger outra pessoa a uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade.

Esse constrangimento terá que ser logrado por meio de violência ou de ameaça com mal importante.

É crime comum e unicamente punido a título doloso, artigo 14.º do Código Penal.

A punibilidade da tentativa está expressamente prevista no artigo 154.º, n.º 2, do Código Penal.

2.3. Da relevância jurídico-penal da conduta que se provou.
Dos factos provados não resulta qualquer constrangimento à prática de uma acção ou omissão levada a cabo com violência.
Nem rigorosamente um constrangimento à prática de uma acção ou omissão alcançada com uma ameaça com mal importante, pois não se e provou que o arguido pretendia que a ofendida fosse para o ..., sendo esse o seu propósito.
A relevância desta matéria esgota-se no âmbito do crime de ameaça agravada, cf. supra pontos 1 a 1.3.
Em conformidade, será o arguido absolvido da prática do crime de coacção agravada na forma tentada.
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3. Do imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. h), ambos do Código Penal.
3.1. Tais normas dispõem assim:
A ofensa à integridade física qualificada prevista no artigo 145º do Código Penal,
«1- Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
(…)
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º»;
O artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal,
«Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com (…)»
E, por fim, a alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, com o seguinte teor:
«Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum».
A acusação, quiçá por lapso, não faz referência, no enquadramento jurídico penal dos factos que narra à tentativa. Todavia, tais factos porque narram uma acção tentada (e não consumada) demandam obviamente a convocação de parte do complexo normativo da tentativa, nomeadamente o previsto nos artigos 22.º e 23.º do Código Penal, o que empreenderemos a seu tempo.
3.2. Breve análise do tipo.

O bem jurídico protegido pela norma de incriminação fundamental ou matriz, a prevista no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, é a integridade física em sentido amplo, ou seja, tanto o corpo como a saúde, de outra pessoa, aliás em conformidade com o artigo 25.º da Lei fundamental.

É, por conseguinte, o interesse na manutenção de um certo estado relevante e valioso (que o corpo ou a saúde não sofram ataques com consequências) o que se pretende salvaguardar por meio da incriminação.

Desta sorte, a reacção criminal actuar-se-á, sempre e quando, uma acção de alguma dimensão tenha por efeito provocar uma modificação (resultado de dano), ainda que sem consequências, por ex., lesões ([1]), do estado em que se encontrava, antes dela, o corpo ou saúde da pessoa concreta (a vítima).

Estamos a pensar na ofensa consumada.

Quando não ocorra o resultado ofensa no corpo ou na saúde de outra pessoa e se trate do crime fundamental (previsto no artigo 143.º) a acção não será punível por a moldura penal não permitir a actuação da tentativa, nem a punibilidade de tal acção estar legalmente prevista, cf. artigos 143.º, n.º 1, e 23.º, n.º 1.

Porém, em causa está o tipo qualificado p. no artigo 145.º, n.º 1, al. a) e 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. h), ambos do Código Penal, ou seja, a especial censurabilidade ou perversidade do agente e a utilização de meio particularmente perigoso, cuja moldura é superior a 3 anos (cf. artigo 23.º, n.º 1 e artigo 145.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal).

Trata-se de crime comum e unicamente punido a título doloso, cf. artigos 14.º e 145.º, n.º 1, al. a) e 2, todos do Código Penal.

3.3. Da relevância jurídico-penal da conduta que se provou.
Resultou provado que em dia não concretamente apurado do início do mês de Abril de 2021, na Rotunda ..., em ..., o arguido, que seguia ao volante da sua viatura de matrícula ... ..-..2VB – juntamente com a sua filha FF, que seguia no lugar do passageiro – ao ver a ofendida, que seguia apeada no passeio, conduziu a viatura na sua direcção, galgando o passeio, com o propósito de a atingir, tanto só não aconteceu porque BB se desviou de imediato, evitando assim o embate da viatura no seu corpo.
Mais se provou que o arguido agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde da ofendida, mediante a utilização da viatura automóvel acima identificada, apesar de saber que o automóvel é um meio particularmente perigoso para lesar a integridade física de outrem, o que não conseguiu porque a BB se desviou e provou-se também que agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A primeira nota a fazer sobressair sob o horizonte norma/facto, facto/norma, é a seguinte: o exemplo padrão – utilizar meio particularmente perigo meio – refere-se aqui à integridade física (lato senso) pois é este o bem jurídico protegido.
Temos para nós ser evidente a particular perigosidade do meio empregado (o automóvel) e a consequente maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima.
O automóvel estava em andamento, não estava parado; bastou alterar a sua direcção, e isto, queira-se ou não, consubstancia a utilização de um meio com uma perigosidade muito superior à da normalidade dos meios utilizados para agredir (socos, paus, etc.).
O atropelamento só não ocorreu porque a assistente conseguiu desviar-se; o embate do veículo no corpo da assistente só não se verificou porque esta se desviou, não porque o arguido tenha travado o veículo, etc.
Ao alterar a marcha do veículo e dirigi-lo na direcção da assistente, galgando o passeio, para a atingir, o arguido já está a praticar actos de execução (artigo 22.º, n.º 2, al. b) do CP) do crime que decidiu cometer (artigo 22.º, n.º 1 do CP) que só não se consuma, isto é, cujo resultado (ofensa no corpo ou na saúde) não acontece, porque a assistente se desvia.
O arguido, apesar de a filha menor seguir com ele, nem nisso atentou, nem a quis poupar a ver e a viver as potenciais consequências dos factos que queria levar a cabo – atingir a mãe dela (e ainda sua esposa), o que bem revela um egoísmo atroz.
E a mãe só não foi atingida porque se desviou, cf. também a al. b), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
Quem assim actua, até acompanhado pela filha que seguia no carro, na direcção da ainda esposa e mãe daquela, sem que da parte desta última houvesse qualquer acção ou provocação anterior ou concomitante, só evidencia, na prática desses factos, uma personalidade especialmente desvaliosa.
Estes factos constituem manifestação de um especial e acentuado “desvalor de atitude” que firma a especial censurabilidade ou perversidade, cf. artigo 145.º, n.º 2, do Código Penal.
O arguido agiu com dolo e conhecia o carácter proibido e punido da sua conduta.
Inexistem quaisquer causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa.
Em conformidade, os factos, vistos na sua globalidade, integram a prática do crime pelo qual foi acusado, o previsto e punido pelo artigo 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 com referência à alínea h), do n.º 2 do artigo 132.º, na forma tentada, artigo 22.º, n.º 1 e 2, al. b) e 23.º, n.º 1, todos do Código Penal, pelo qual irá ser condenado.
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4. Do imputado crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravante da Lei das Armas, previsto e punido pelos artigos 131º, 132.º, n.º 1 e 2, als. b) e j), 22.º, nºs. 1 e 2, al. b) e 23.º, n.º 1, todos do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23/02.
4.1. Tais normas prescrevem, respectivamente, assim:
O artigo 131.º,
«Quem matar outra pessoa é punido com (…)»
O artigo 132.º, nºs. 1 e 2, als. b) e j):
«Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. – n.º 1
É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: – n.º 2
Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau; – n.º 2, al. b);
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; (…)» – n.º 2, al. j).
4.2. Breve análise do tipo fundamental – o homicídio previsto no artigo 131.º do Código Penal.

O bem jurídico protegido é a vida humana, a vida de pessoa nascida.

O objecto da acção é outra pessoa.

A modalidade da acção consiste em matar sem que o tipo descreva o(s) meio(s) de execução da acção (crime de execução livre).

Como crime de resultado de dano (morte), o tipo exige a verificação do nexo causal entre a acção e o resultado.

Finalmente, ante a leitura conjugada do artigo 131.º com os artigos 13.º e 14º, todos do Código Penal, verifica-se que estamos perante um crime doloso.
O tipo qualificado previsto no artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal, pune mais severamente a morte de outra pessoa quando esta for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente.
O n.º 2 do artigo 132.º elenca, de não forma não exaustiva, um conjunto de exemplos que são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade.
A tentativa é convocada pelas singelas circunstâncias de o resultado morte representado e desejado pelo agente não se ter verificado em consequência da assistência de terceiros à vítima, e por ser aplicada à acção, em abstracto, pena de prisão superior a 3 anos, cf. artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 23.º, n.º 1, todos do Código Penal.

4.3. Da relevância jurídico-penal da conduta que se provou.
Resultou provado que no dia 17 de Maio de 2021, pelas 20h20, o arguido dirigiu-se à Rua ..., Urbanização ..., em ..., munido de uma arma de fogo carregada com munições de calibre 6.35mm e esperou escondido atrás de uma palmeira que a ofendida por ali passasse, uma vez que era do seu conhecimento que aquele era o seu caminho habitual de regresso a casa, após o trabalho, no ..., sito na Praia ..., em ....
Mais se provou que quando a ofendida se dirigia para a sua residência, pelas 20h40m, e subia a pé a referida artéria, o arguido saiu repentinamente do local onde permanecia escondido, aproximou-se daquela e disse-lhe “vais ligar para a polícia?” e acto contínuo, o arguido, que se encontrava a cerca de um metro de distância da ofendida BB, apontou a arma de fogo na direcção da sua cabeça e efectuou três disparos de forma consecutiva, atingindo-a no lado direito da face e na zona cervical, abandonando o local de seguida.

Provou-se ainda que a ofendida foi imediatamente auxiliada por GG e outra pessoa, que se encontravam no local no momento em que os factos ocorreram, tenho sido accionados os meios de socorro e efectuado o transporte da ofendida para o Hospital ..., onde deu entrada em estado grave.

Provou-se que ao agir daquela forma, atento o instrumento utilizado (arma de fogo) e a região corporal atingida (cabeça), teve o arguido o propósito de causar a morte da ofendida, resultado este que pretendia alcançar e que apenas não se concretizou devido à rápida assistência médica que lhe foi prestada.
Finalmente, provou-se que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
São dois os exemplos padrão referidos na acusação, o descrito na alínea b) - praticar o facto contra cônjuge - e o descrito na alínea j) – agir com frieza de ânimo, etc. - do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
Ora, dos factos evola:
Que a acção do arguido se dirigiu contra a ainda esposa; que ocorreu à noite; na via pública; que foi antecedida de uma espera e que o arguido para aquele lugar concreto se deslocou em momento anterior com a arma.
Este modus operandi convoca o exemplo padrão «agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados» pois coenvolve necessariamente a premeditação.
Com efeito, o encontro entre o arguido a assistente não foi fortuito, foi o arguido que o procurou;
O «ataque» à assistente não decorreu, por ex., no decurso de uma discussão acalorada entre ambos, por mera casualidade; pelo contrário foi preparado pelo arguido!
Não se pode ignorar a forte persistência de matar, pois o arguido efectuou, não um tiro na direcção da cabeça da assistente, mas três!
Nem tão pouco o carácter desafiador e jocoso revelado pela expressão «Então agora vais chamar a Polícia» que proferiu.
Ademais, numa visão de conjunto sobre a totalidade dos factos, por sobre tudo cronológica, também releva para a especial perversidade ou censurabilidade o «clima» de pressão sobre a assistente (as abordagens no local de trabalho desta e nas imediações da residência), as ameaças, a factualidade relativa à utilização do veículo para atingir a assistente, ou seja, um crescendo de acções desenvolvidas pelo arguido na direcção da sua esposa, como situações que precederam a execução da tentativa de homicídio desta última, cf. al. b), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
Queira-se ou não as acções do arguido dirigiram-se contra a sua esposa. O arguido rompeu esse laço, violou o respeito pela vida do seu cônjuge, actuou contra a pessoa com qual partilhou a vida, com a qual tem duas filhas.
O arguido quis sobrepor a sua vontade aos mais elementares deveres decorrentes da conjugalidade, ultrapassou tais mecanismos inibitórios e revelou desprezo pela pessoa com a qual partilha (ou) a sua vida desde 2008.
Estas condutas do arguido revelam um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis, constituem actos elevadamente censuráveis, de puro egoísmo, sem motivação que se possa compreender.
A intenção do arguido foi sempre a de matar a esposa.
Tudo revela um acentuado desvalor da personalidade do arguido, caracterizador da especial censurabilidade ou perversidade.
O arguido disparou por três vezes na direcção da cabeça da esposa (actos de execução) com o intuito de a matar (crime que decidiu cometer), não tendo a morte sobrevindo por a esposa ter sido socorrida e conduzida ao hospital.
Inexistem quaisquer causas de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa.
Em conformidade, os factos, vistos na sua globalidade, integram a prática do crime pelo qual foi acusado, o previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2 com referência às alíneas b) e j), na forma tentada, artigo 22.º, n.º 1 e 2, al. b) e 23.º, n.º 1, todos do Código Penal.
4.4. Da agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23/02 (na redacção da Lei 50/2019, de 24/07).
A norma em causa diz assim:
«As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
Como resultou da análise efectuada nos pontos 4 a 4.3. imediatamente antecedentes o arguido está comprometido com a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
Provou-se -se que o arguido utilizou uma arma de fogo com munições de calibre 6,35mm e disparou sobre a assistente por três vezes, atingindo-a. A morte não sobreveio em consequência da prestação dos meios de socorro.
Estamos, assim, perante um crime cometido com arma, nos termos e para os efeitos da primeira parte da norma inscrita no n.º 3 do artigo 86.º, da referida lei, e, por aqui, a insinuar-se a aplicabilidade da agravação.
Vejamos, agora, se ocorre ou não o regime de excepção, isto é, aquele que, a verificar-se, impediria a aplicação da agravação.
Tal regime de excepção é composto por duas hipóteses alternativas.
São elas:
(i) Quando o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime;
(ii) A lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.
Pois bem.
Constituir o porte ou uso de arma elemento do tipo de crime significa, se bem interpretamos, que na descrição da respectiva norma de proibição, na definição da sua tipicidade (princípio da legalidade criminal), faça parte, a par de outros, o porte ou uso da arma.
Ora, o tipo base ou matriz, o homicídio simples previsto no artigo 131.º, do Código Penal, não contem na descrição do comportamento proibido qualquer menção ao porte ou uso de arma.
Aliás, esse tipo é de execução livre.
Doutra banda, também já se concluiu supra que a convocação do homicídio qualificado (tentado) teve como sustento os exemplos padrão das alíneas b) e j), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, logo, o concreto segmento típico aplicado não contém qualquer referência a arma.
O segmente previsto na lei (= no homicídio qualificado) para efeito de excepção ou exclusão da agravante seria o previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
Mas esse exemplo padrão não foi aplicado, cf. a este respeito os Acórdãos da RE de 20/12/2011, Relator Carlos Berguete e de 25/05/2021, Relatora Beatriz Marques Borges.
Em síntese: não há fundamento para afastar a agravação prevista no n.º 3 do referido artigo 86.º, quando o uso de arma não é elemento típico do crime de homicídio (simples) e não leva ao preenchimento do crime de homicídio qualificado previsto no artigo 132.º do Código Penal, seja tentado ou consumado.

5. Do imputado crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 86.º, n.º 1, al. c) e artigos 2.º, n.º 1, al. az) e 3.º, n.º 4, al. a), todos da Lei 5/2006, de 23/02 (na redacção da Lei 50/2019, de 24/07).
5.1. O artigo 86.º, n.º 1, al. c) prescreve:
«1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias»; (…).

5.2. Breve análise do tipo.

O bem jurídico protegido é a ordem, a segurança e a tranquilidade publicas face aos riscos que derivam da livre (logo, sem qualquer controlo) circulação e detenção de armas proibidas ou, mesmo de armas que não o sejam, quando as mesmas não se encontrem legalizadas (manifestadas e registadas) e o seu possuidor não disponha de título para tanto, munições, engenhos, produtos, etc., que, de per si, são objectivamente perigosas (os) e, por isso mesmo, proibidos. Mediatamente protege-se também a vida, a integridade física e bens patrimoniais de outras pessoas que podem ser afectados pela utilização descontrolada daqueles objectos.

A consumação do ilícito inicia-se com a detenção da arma e das munições e perdura enquanto a detenção que afronta o bem jurídico se mantém por vontade do agente.

Trata-se de crime duradouro ou permanente.

No caso concreto está em causa, ao nível da tipicidade objectiva, desde logo, a modalidade de acção detenção.

Do crime autor pode ser qualquer um e a imputação subjectiva só pode ser efectuada nos quadros do dolo.
3.3. Da relevância jurídico-penal da conduta que se provou.
Não se provou qual a concreta arma de fogo em causa.
Não se provou que tal arma fosse, com as palavras da acusação, «tipo revólver».
O que se apurou foi que a arma de fogo utilizada disparou munições de calibre 6,35mm.
Porém, há varias armas (legais ou ilegais) que podem disparar esse tipo de munições com características diversas umas das outras. E essas características podem ter consequências em sede de determinação do grau de ilicitude e, por aqui, também em sede de determinação da pena concreta.
A acusação não alegou, sequer, a falta de habilitação legal para a detenção da arma, como elemento constitutivo do tipo objectivo do ilícito que imputa! E esta omissão não pode ser suprida pelo Tribunal.
Também não se provou qual o período temporal da detenção da arma de fogo, com excepção do dia em que o arguido a usou para atentar contra a vida da assistente.
A acusação não concretizou esse período da detenção pois que se limitou a alegar que «o arguido deteve a referida arma de fogo desde data não concretamente apurada e até ao dia 17 de Maio de 2021».
Mas não se logrou qualquer delimitação temporal, qualquer concretização da duração da posse pelo arguido da arma e, não o podemos deixar de referir, o facto tal qual como foi alegado é demasiadamente genérico.
Nada se provou a este respeito que não fosse o momento do uso da aludida arma na prática dos factos conexos com o homicídio qualificado tentado.
Só se apurou que o arguido fez uso da arma quando a disparou contra a assistente.
A arma, de características não apuradas, com excepção de disparar munições de 6,35mm, foi o instrumento utilizado para cometer a tentativa de homicídio (cf. supra) e não se provou, sublinhamos uma vez mais, qualquer período de detenção anterior a tais factos, com relevo mínimo, para descortinar ou firmar um sentido autónomo de ilicitude, a par e independente, daquele decorre da comissão do homicídio (tentado).
O que sempre nos remeteria, no limite, para a problemática do concurso.
A este respeito não vemos como, à luz dos factos provados e não provados, se possa configurar (ou distinguir) duas distintas unidades fáctico-normativas para firmar uma situação de concurso efectivo.
Repare-se, pela positiva:
Uma unidade fáctico-normativa seria consubstanciada pela circunstância de o arguido ter a arma na sua posse desde momento temporal anterior devidamente concretizado (X dias e/ou X meses e/ou X anos, etc.), sabendo que o fazia de forma ilegal, por não estar legalmente habilitado a tê-la consigo;
A outra unidade fáctico-normativa seria consubstanciada pela circunstância de o arguido ter utilizado a arma para realizar os disparos na tentativa de matar a assistente.
O que nos permitiria descortinar dois sentidos autónomos de ilicitude e fundar o concurso efectivo.
Porém, não é isto que ocorre na situação sub judice, pois nesta não se sabe (nem a acusação diz) durante quanto tempo o arguido deteve a arma, sabendo fazê-lo de forma ilegal, por não estar legalmente habilitado a ter a referida arma na sua disponibilidade.
Ficcionar um período de duração da detenção ilegal anterior (e fazê-lo com que limites?) será sempre actuar in mala partem, violar ostensivamente as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas sem sede processual penal, nomeadamente, as decorrentes do princípio da presunção de inocência (regras de juízo e de tratamento), do in dubio pro reo, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e não é esse o nosso caminho.
Em conclusão:
Os concretos factos provados e não provados não permitem a imputação da prática do crime de detenção de arma proibida e, no limite, sempre seria de convocar o concurso aparente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio tentado, pois dos factos conclui-se que o homicídio é dominante e a utilização da arma proibida é subsidiária, ou dito doutro modo, dos factos provados resulta que a conduta relativa à arma se esgotou na prática da tentativa de homicídio.
Em conformidade, será o arguido absolvido da prática do imputado crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, de 23/02 (na redacção da Lei 50/2019, de 24/07).
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B) Da escolha e determinação da medida da pena.

1. Dispõe o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

E, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve o Tribunal dar preferência fundamentada à segunda, sempre que ela satisfaça de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, como se dispõe no artigo 70.º, in fine, do Código Penal.

Na situação em apreço, a aludida alternativa só se verifica em relação ao crime de ameaça agravada pois tanto o crime de ofensa à integridade física qualificada, como o crime de homicídio qualificado, ambos tentados, são puníveis com pena de prisão.

Ora, apesar da ausência de antecedentes criminais, certo é que os crimes em apreço foram todos dirigidos pelo arguido contra a mesma pessoa, a assistente, e em intensidade crescente, seja quanto à afectação aos bens jurídicos envolvidos, seja quanto ao modo dessa afectação, o que exaspera as necessidades de prevenção especial e demonstra elevadas necessidades de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos nas normas jurídicas violadas.

Desta sorte, entendemos que apenas a condenação em pena de prisão, pelos factos cometidos, é suscetível de lograr atingir os referidos fins punitivos.

2. Operada a escolha da pena importa passar à determinação concreta.

Lembra-se que na determinação da pena o Tribunal levará em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente as enunciadas no n.º 2 do referido artigo 71.º.

Assim, a culpa funcionará como limite máximo inultrapassável da pena concreta a determinar, fornecendo a prevenção geral positiva o limite mínimo da pena que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada, nos termos do artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

2.1. Concretizaremos, de seguida, os limites definidos na lei, cf. o n.º 1 do artigo 71.º, do Código Penal, ou seja, as molduras penais abstractas convocadas na situação sub judice.

Desta feita:

a) Ao crime de ameaça agravada corresponde, em abstracto, a pena de 1 (um) mês até 2 (dois) anos de prisão, cf. artigos 153.º, n.º 1, 115.º, n.º 1, al. a) e 41.º, n.º 1, todos do Código Penal.
b) Ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, corresponde, em abstracto, a pena de 1 (um) mês até 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cf. artigos 145.º, n.º 1, al. a), 73.º, n.º 1, als. a) e b) e 41.º, n.º 1, todos do Código Penal.
c) Ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas corresponde, em abstracto, a pena de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 22 (vinte e dois) anos, 2 (dois) meses e 19 (dezanove) dias, cf. artigos 132.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02.

3. Importa, agora, atentar nos critérios estabelecidos no artigo 71.º e proceder à determinação das penas concretas.

3.1. Fazendo-o considera o Tribunal, em desfavor do arguido:

- O grau de ilicitude a fixar-se, no que concerne ao crime de ameaça, será em um patamar médio/ alto; Sendo, sem dúvida, em um patamar muito elevado, quanto aos outros dois crimes (ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado tentado), atenta a gravidade dos factos e por se tratar da esposa do arguido, pessoa com a qual está casado desde Julho de 2008 (a separação de facto só ocorreu em Agosto de 2020 e os factos findam em Maio de 2021), com a qual tem duas filhas, violando o arguido os mais elementares deveres de respeito e de assistência, sem esquecer quanto ao homicídio tentado, em que utilizou uma arma de fogo, em circunstâncias tais que impediram qualquer possibilidade de a sua esposa se defender;

- O modo de execução dos factos, caracterizado nas situações da ofensa qualificada e do homicídio tentado, por uma evidente supremacia do arguido; além, utilizou uma viatura; aqui, uma arma de fogo; em ambos os casos sem que lhes precedesse qualquer tipo de provocação da assistente, com o arguido a fazer uma “espera” e depois a disparar e à cabeça, não uma, mas três vezes;

- O dolo que foi sempre na modalidade de dolo directo que traduz a forma mais intensa do querer;

- As consequências do facto no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado tentado, com o traumatismo da região cervical e da face, a paralisia da hemiface direita, a necessidade de vir a ser submetida a cirurgia maxilo-facial, o internamento hospitalar, as dores, o sofrimento e a angústia, o abalo psicológico, o estado de saúde da assistente ainda por definir na sua inteireza, as sequelas por determinar;

- Os bens jurídicos afectados, a vida, a integridade física e a liberdade de acção e de decisão, sendo a vida o mais importante direito fundamental;

- As exigências de prevenção geral são elevadas tendo em atenção o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino em um horizonte de relação existencial, cumprindo obstar à banalização ou vulgaridade, a um sentir de impunidade;

- As necessidades de prevenção especial fazem-se sentir com acuidade perante a personalidade do arguido, para que interiorize as consequências dos seus actos, que sempre desvalorizou, e tudo atribuiu à assistente, chegando ao ponto de dizer, quanto à factualidade conexa com a tentativa de homicídio, que não tinha qualquer memória, mas já a tinha para os outros factos cuja prática repudiou, revelando a sua postura profunda incapacidade de auto-crítica;

Em favor do arguido:

- A ausência de antecedentes criminais;

- Estar socialmente inserido, auferindo uma reforma, mantem bom comportamento no estabelecimento prisional e ocupa-se a ter aulas de português.

3.2. Em face de tudo o que foi exposto e devidamente ponderado, entende o Tribunal Colectivo condenar o arguido AA nas seguintes penas parcelares:

- 7 (sete) meses de prisão pelo crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal;

- 1 (um) ano de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal;
- 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02.

4. Do cúmulo jurídico: pena única.

4.1. Dispõe o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal que, quando alguém tenha praticado vários crimes sem que tenha ainda transitado em julgado a condenação por qualquer deles, será condenado numa única pena.

Na determinação desta pena única serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo que o respectivo limite máximo corresponderá à soma das penas concretamente aplicadas e o limite mínimo à mais elevada das penas concretamente aplicadas.

Assim, no que concerne à pena única a moldura do cúmulo será fixada entre 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão (limite mínimo) e 10 (dez) anos e 1 (um) mês de prisão (limite máximo).

4.2. Ora, considerando os factos na sua globalidade e a personalidade do arguido nestes revelada, importa atender que o arguido incorreu na prática de três crimes num curto período temporal, todos contra a mesma pessoa, atingindo bens jurídico pessoais, escalando na gravidade e na violência empregada, afastando-se a hipótese de os factos se reconduzirem a mera pluriocasionalidade antes surgindo umbilicalmente ligados à personalidade do arguido que revela uma tendência para reagir, quando contrariado, com desprezo pelas mais básicas regras de vivência em comunidade.

Por outro lado, importa ter em atenção que o arguido não tem antecedentes criminais e conta, actualmente, com 70 anos de idade.

Logo, tudo visto e ponderado, o Tribunal Colectivo julga adequada a punição do arguido na pena única de 9 (nove) anos de prisão.
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C) Dos pedidos de indemnização civil.

c1. O «C... EPE» deduziu pedido cível contra o arguido, peticionando a condenação do mesmo no pagamento da quantia de 4.085,84 €, acrescida de juros de mora legais, vencidos vincendos, desde a notificação do demandado e até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pelo valor correspondente aos serviços de saúde prestados a BB, em consequência da conduta daquele, quantia que ampliou na sequência da prestação de mais cuidados de saúde, cf. fls. 674 e s., 892 e s. e 1078 e s., totalizando o valor pedido actual em 4.147,84€.

O arguido limitou-se a impugnar o pedido sem nada de concreto alegar.

-

c.1.1. Apreciando.

A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil como prescreve o artigo 129.º do Código Penal.

Assim, sobre a indemnização a terceiros prescreve o artigo 495.º, n.º 1 e 2 do Código Civil:

«1. No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral.

2. Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima».

Na situação em apreço está em causa a lesão corporal e têm direito à indemnização todos os que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima, incluindo estabelecimentos hospitalares.

Pelo pagamento é responsável quem causou a lesão que demandou a assistência ou tratamento hospital.

Em face dos factos dados como provados, é indubitável que foram prestados cuidados de saúde à lesada BB e que os mesmos ascenderam à quantia peticionada, sendo certo que se apurou ter sido o arguido o autor dos factos que provocaram as lesões tratadas pelo estabelecimento hospitalar.

Ante o exposto, por se verificarem os pressupostos legais, importa condenar o arguido/demandado AA, no pagamento da quantia peticionada, acrescida dos respectivos juros de mora, calculados às taxas legais aplicáveis, vencidos e vincendos, desde a data da notificação do pedido civil ao demandado e até ao efectivo e integral pagamento.

d.1.2. Decidindo.
Em conformidade com o exposto condena-se o arguido/demandado AA a pagar ao «C... EPE», a título de indemnização pelo custo da assistência e tratamento hospitalar, a quantia de 4.147,84€ (quatro mil cento e quarenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) nos termos supra definidos.
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c2. BB deduziu pedido cível contra o arguido/demandado, pedindo a condenação do mesmo a pagar-lhe a quantia global de 155.044,00€, sendo 609,41€ a título de danos patrimoniais, 150.000€ a título de danos não patrimoniais e 4.434,59€ a título de perda de rendimentos, acrescido de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento, bem como, de gastos e despesas vindouras, em consequência da conduta daquele.

O arguido limitou-se a impugnar o pedido sem nada de concreto alegar.

-

c.2.1. Apreciando.

c. 2.2.1. A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil como prescreve o artigo 129.º do Código Penal.

Dispõe o artigo 483.º do Código Civil, como princípio geral da responsabilidade por factos ilícitos:

«Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (como regra, em virtude do disposto no n.º 2 do artigo 483º do CC), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Na génese, pois, da responsabilidade emergente de factos ilícitos está uma conduta voluntária do agente lesante, ou seja, um facto dominável ou controlável pela vontade.
Porém, para que, pelos efeitos prejudiciais ou danosos do facto voluntariamente praticado, ao lesante seja imputada a correspondente responsabilidade, necessário se torna que a conduta por ele assumida se traduza numa actuação desconforme com o ordenamento jurídico e, neste sentido, reprovada pelo Direito.
Ora, em face dos factos apurados nos presentes autos verifica-se que a vítima BB sofreu, desde logo, medo e receio, lesões físicas (por ex. a paralisia da hemiface direita), dores, angustias, pesadelos, alterações do sono, depressão; a demandante esteve internada no hospital, ainda estão dois projécteis no inteiro do seu corpo, bem como, teve que suportar despesas, perdeu dias de trabalho, tudo em consequência directa da conduta dolosa do arguido.
Mais, como já se referia na acusação e teve-se como provado, a situação clínica da demandante BB, rectius, o seu estado, ainda não está completamente definido, o período de doença não foi determinado, as sequelas decorrentes da acção arguido (os disparos na cabeça da demandante) também ainda não o estão, mas já se sabe que terá de ser submetida a, pelo menos, uma intervenção cirúrgica.
Sublinha-se, ainda, que não está em causa apenas a conduta derradeira do arguido/demandado concretizada no homicídio tentado, mas também as condutas anteriores que se concretizaram nas ameaças e na ofensa à integridade física qualificada, como condutas igualmente geradoras de inquietação, medo e receio, portanto, atentatórias da paz e do sossego que à demandante (como a qualquer pessoa) é devida.
Assim, é notório que o comportamento do arguido demandado foi (é) civilmente ilícito como aliás, de resto, também resultaria da afirmação da sua relevância criminal (cf. supra) atento o sentido unilateral em que consensualmente é entendido o princípio da unidade da ordem jurídica.
Para além de ilícita, a conduta é culposa, uma vez que sobre a mesma pode legitimamente incidir um juízo de censura e de reprovação, cf. supra.
Para que, pela via da responsabilidade civil por factos ilícitos, sobre o lesante venha a impender a obrigação de indemnizar é necessário que, na sequência da actuação por si desenvolvida, alguém tenha sido concretamente prejudicado, como se apurou ter ocorrido com a demandante BB.
Em sentido jurídico-civil, o dano surge como a supressão de vantagens tuteladas pelo Direito, traduzida na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, de natureza patrimonial e não patrimonial, consoante haja ou não possibilidade de uma correspondente avaliação pecuniária.
Ora, a respeito dos danos patrimoniais, com directa expressão pecuniária, prevê-se, no artigo 562.º do Código Civil, que a reparação do dano importa a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento que obriga a tal reparação.
Mais se prevê que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, podendo o tribunal atender aos danos futuros previsíveis, ex. vi artigo 564.º do Código Civil.
E se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, poderá o tribunal julgar equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, cf. n.º 3 do referido artigo 566.º.
c. 2.2.2. Já em sede de audiência de julgamento a demandante solicitou o arguido fosse ainda «condenado a título de danos patrimoniais a pagar pelas eventuais intervenções cirúrgicas e quaisquer despesas em medicação que futuramente se afigurem necessárias para a reparação do dano causado à assistente».
A tanto opôs-se a defesa aduzindo:
«No que concerne à ampliação do pedido, não me parece que se trate de uma ampliação, mas de uma reformulação do pedido, aliás, de um aditamento ao pedido que poderia ter sido feito dentro do prazo legal, pelo que a defesa se opõe a este tipo de ampliação».
Sem desdouro algum pela posição da defesa o que foi requerido não constitui, materialmente, nem verdadeira ampliação do pedido, nem uma reformulação no sentido de se pretender alterar o pedido inicialmente deduzido.
Já resultava do pedido de indemnização civil, além de outras, a pretensão de ser o arguido condenado nos «gastos e despesas vindouras», cf. artigos 26, 27, 28 do pedido de indemnização civil, razão porque improcede a oposição deduzida pela defesa.
c. 2.2.3. Em face de tudo o exposto, considerando o que resultou provado e, bem ainda, tendo em atenção que a situação relativa estado de saúde da demandante ainda está completamente definida ou fixada, deverá o demandado ser condenado pelos danos patrimoniais, pelos danos não patrimoniais e ainda pelas despesas e outros danos (patrimoniais e não patrimoniais) vindouros que se mostrem ser consequência da conduta do arguido, estes últimos a serem liquidados em execução de sentença, nos termos do artigo 82.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o que desde já se determina.
c. 2.2.3.1. Relativamente aos danos patrimoniais alegados e provados (despesas com deslocações para tratamento, medicamentos e perda de rendimentos) condena-se o demandado a pagar à demandante a quantia global de 5.042,00€ (cinco mil e quarenta e dois euros), artigos 562.º, 563.º, 564.º, n.º 1, primeira parte e 566.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável, contados desde a data da notificação do pedido civil e até efectivo e integral pagamento.
c. 2.2.3.2. Relativamente aos danos não patrimoniais, danos que não atingem bens que integram o património do lesado, estes serão, por natureza, insusceptíveis de avaliação pecuniária, razão pela qual a obrigação de os ressarcir terá mais uma natureza compensatória do que indemnizatória.
Como se sumariou no Ac. STJ de 15.04.2009, Conselheiro Raúl Borges, aresto acessível em www.dgsi.pt, os «danos não patrimoniais são os insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada».
A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais deverá circunscrever-se, nos termos do artigo 496º do Cód. Civil, àqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito, como sucede., manifestamente, na situação em apreço.
O montante da compensação a atribuir por danos não patrimoniais deverá ser fixado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e demais circunstâncias que no caso se justifiquem, cf. artigos 496º, n.º3 e 494º, ambos do Código Civil.
De igual modo deverá ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência e do bom senso.
Segundo o entendimento que vem sendo jurisprudencialmente propugnado, a indemnização por danos não patrimoniais, para corresponder actualizadamente ao comando do artigo 496º do Código Civil e constituir efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa.
Sendo estes os critérios que regerão a determinação do montante indemnizatório, e tendo presente a factualidade provada, tem-se por adequado, proporcional, justo e equitativo fixar o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante em 30.000,00€ (trinta mil euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável, contados desde a data da notificação do pedido civil e até efectivo e integral pagamento».

*

II.1. Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; Ac. STJ de 09-10-2019, Proc. n.º 3145/17.4JAPRT.S1, Relator Cons. Raul Borges e de 11-09-2019, Proc. n.º 96/18.9GELLE.E1.S1, Relator Cons. Raúl Borges).

*

II.2. No caso em apreço, entende o arguido/recorrente que, relativamente ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, não deverá ser aplicada uma pena superior a 1 (um) mês de prisão; quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 273.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal, deverá ser aplicada ao arguido uma pena que não deverá exceder os 2 (dois) meses de prisão e, quanto ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23/02, não deverá ser aplicada uma pena de prisão superior a 5 (cinco) anos. Quanto ao cúmulo jurídico a efetuar, entende que a pena fixada peca por excesso, pelo que deveria ter sido condenado na pena única de 5 anos de prisão, a qual, atendendo ao facto de não possuir antecedentes criminais conjugado com o estado de saúde e idade daquele, deveria ter sido suspensa na sua execução.  

*

II.3. Por sua vez, a assistente BB insurge-se contra o acórdão, alegando que o mesmo padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto, não obstante o Tribunal a quo ter considerado, para além do mais, um elevado grau de ilicitude no que tange à prática pelo arguido AA dos crimes de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada e homicídio qualificado na forma tentada e, bem ainda, serem prementes as necessidades de prevenção especial, não aplicou como deveria a pena única de 10 anos e 1 mês de prisão. Sustenta, ainda que se afigura desproporcional e inadequada a fixação do valor da indemnização pelos danos não patrimoniais em € 30.000,00, pelo que deverá ser o arguido condenado a pagar à recorrente o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais em pelo menos € 150.000,00.

*

II.4. Assim, as questões a analisar neste recurso dizem respeito:

a) Medida das penas parcelares e pena única;

b) Fixação do valor da indemnização pelos danos não patrimoniais.

*

Antes, porém, deverá conhecer-se da questão prévia da inadmissibilidade do recurso da assistente, por falta de interesse em agir, relativamente à parte em que pretende que seja aplicada uma pena de prisão mais elevada ao arguido.

*

II.5. Questão Prévia – Inadmissibilidade do recurso por falta de interesse em agir da assistente BB.

II.5.1. A assistente BB, invocando o vício da contradição insanável (cfr. artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal), o que verdadeiramente pretende ver apreciado, na parte penal, é a medida da pena única aplicada ao arguido, pretendendo que lhe seja aplicada uma pena de prisão mais elevada, sem que, para tanto, alegue qualquer concreto e próprio interesse em agir (cfr. artigo 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal).

Vejamos:

“Dispõe o art. 69.º, do CPP, que:

1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2. Compete em especial aos assistentes:

(. . .)

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça".

Por sua vez o art. 401.°, nº 1, al. b), do CPP, estabelece que:

1 - Têm legitimidade para recorrer:

(...)

b) O arguido e o assistente, das decisões contra eles proferidas.

E O n.º 2 preceitua que:

2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

Por seu turno o Assento n.º 8/99 (publicado no DR n.º 185, Iª série, de 10/8/89), fixou jurisprudência no sentido de que «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».

Sendo o interesse em agir um pressuposto processual distinto e autónomo do da legitimidade, como emerge, do art. 401.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, entendemos que este acórdão uniformizador veio concretizar uma configuração específica - mais exigente - deste pressuposto, quando se trata de conferir ao assistente direito ao recurso para, em caso de condenação, atacar a espécie e medida da pena.

Subjacente a esta tese, está, como se refere no Ac. do STJ de 27/5/2015, proferido no âmbito do Proc. 118/08.1GBAND.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt "a rejeição de alguma forma de instrumentalização do processo penal em função da vindicta privada. A espécie e medida da pena correspondem ao exercício do ius punendi, ao núcleo punitivo próprio do Estado, cuja defesa cabe ao Ministério Público, e não aos particulares. Não pode dizer-se que o assistente seja, de algum modo, afetado, e salvas as situações em que demonstre um concreto interesse em agir, pelas opções do tribunal quanto à espécie e medida da pena. "

Entendemos, assim, que as finalidades da punição, que se refletem na espécie e medida da pena, não visam dar satisfação imediata aos assistentes, enquanto ofendidos pela prática dos crimes e, por isso, não se pode considerar, em regra, que são afetados pela espécie ou medida da pena.

E é esta, aliás, a posição, até agora, dominante ao nível da jurisprudência, no STJ (vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos proferidos nos Proc. 1740/10.1JAPRT.P1.S1, 400/12.3JAAVR.S1 e 1960/14.0PAALM.L1.S1, todos eles disponíveis in www.dgsi.pt) e o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2011, de 9 de fevereiro de 2011, proferido no Proc. nº 148/07, tratando de questão diversa, não infirma a jurisprudência fixada naquele acórdão, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio.

Sendo que sobre esta matéria também se pronunciou o Tribunal Constitucional, que, no seu acórdão 205/2001, de 9 de maio de 2001, proferido no processo 372/00, decidiu julgar conformes à Constituição, designadamente ao princípio do Estado de Direito e direito de intervenção do ofendido no processo penal, as normas constantes dos artigos 69.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c), 401.º, n.º 1, alínea b), e  nº 2, todos do CPP, na interpretação fixada pelo Assento n.º 8/99, que restringe a legitimidade do assistente para impugnar a decisão condenatória no que concerne à escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, condicionando-a à prova de específico interesse em agir.

Como se afirma no CPP Comentado de António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2014, p. 1286, no tocante ao segmento da decisão respeitante à espécie e medida da pena, "parece impor-se a conclusão de que o assistente, porque portador de interesses alheios àquelas "ideias e exigências transcendentes" que o Estado visa com a aplicação das penas, carece de legitimidade para atacar a sentença na parte em que esta fixa a espécie e medida da pena por não o afectar e não ser contra ele proferida".

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II.5.2. Nas conclusões da motivação do recurso a assistente, limita-se a alegar, a propósito da existência do vício de contradição entre a fundamentação e a decisão, que não foram ponderados os pressupostos que justificam a aplicação da pena única no limite máximo da moldura do cúmulo, pelo que deveria ser o arguido condenado em 10 anos e 1 mês de prisão, não invocando, porém, um interesse ou vantagem próprios na aplicação de uma pena mais elevada ao arguido AA, ou seja, não invocando qualquer facto de que resulte a existência de um interesse concreto e próprio na escolha e determinação da medida da pena, pelo que carece de legitimidade para recorrer.

Destarte, rejeita-se o recurso nesta parte (na parte criminal) – artigos 401.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal e Assento do STJ de 30 de Outubro de 1997.

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II.6. Quanto à medida da pena.

No caso presente, trata-se de recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., que por acórdão datado de 08/03/2022, condenou o arguido em pena única superior a 5 anos de prisão, visando exclusivamente matéria de direito, pelo que, nos termos dos artigos 427.º e 432.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP, a competência para conhecer o presente recurso pertence ao S.T.J.

Segundo o CPP, é admissível recurso direto para o STJ nos casos em que a pena aplicada seja superior a 5 anos, e o recurso vise exclusivamente matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º [art. 432.º, n.º 1, al. c), com a nova redação da Lei n.º 94/2021 de 21 de dezembro - artigo 11.º - que procede à alteração ao Código de Processo Penal] - o que constitui uma exceção à regra geral de recorribilidade das decisões para a Relação, nos termos do art. 427.º do CPP. Além disto, se o recurso é direto para o STJ e exclusivamente sobre matéria de direito não pode haver recurso prévio, em matéria de direito, para a Relação - art. 432.º, n.º 2, do CPP.

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II.6.1. Da medida das penas parcelares.

II.6.1.1. Como foi acima referido, o arguido AA foi condenado no Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., pela prática de:

- Um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

- Um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;

- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02, na de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 9 (nove) anos de prisão.

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 II.6.1.2. Alega o recorrente, em síntese que, por um lado, o grau de ilicitude no que tange ao crime de ameaça agravada é diminuto e mediano relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada e, por outro lado, relativamente ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, deverá ter-se em conta que o casal já se encontrava separado desde Agosto de 2020; a dependência económica da assistente relativamente àquele; a diferença de idades existente entre o mesmo e a vítima sua companheira (esta última 28 anos mais nova) e os problemas de saúde de que o primeiro padece. Conclui, assim, considerando ainda a ausência de antecedentes criminais, que o mesmo deveria ter sido condenado nas penas parcelares de um mês pelo crime de ameaça agravada; dois meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada e cinco anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, sendo que, em cúmulo jurídico deveria ter sido condenado na pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução.

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II.6.1.3. A determinação da pena comporta duas operações distintas: a determinação da pena aplicável (moldura da pena), por via da averiguação do preenchimento do tipo legal de crime (tipo fundamental) e de circunstâncias modificativas que podem conduzir à punição por um tipo de crime agravado ou privilegiado, e a determinação concreta da pena (medida da pena), em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal).

Em caso de concurso de crimes (artigo 30.º, nº 1, do Código Penal), há ainda que determinar a pena única, a partir da moldura definida pela pena mais grave aplicada aos crimes em concurso e pela soma das penas aplicadas, sem ultrapassar o limite de 25 anos de prisão, tendo em consideração, no seu conjunto, a gravidade dos factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal).

A determinação da medida da pena pelo tribunal da condenação mostra-se fundamentada nos seguintes termos:

«B) Da escolha e determinação da medida da pena.

1. Dispõe o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

E, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve o Tribunal dar preferência fundamentada à segunda, sempre que ela satisfaça de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, como se dispõe no artigo 70.º, in fine, do Código Penal.

Na situação em apreço, a aludida alternativa só se verifica em relação ao crime de ameaça agravada pois tanto o crime de ofensa à integridade física qualificada, como o crime de homicídio qualificado, ambos tentados, são puníveis com pena de prisão.

Ora, apesar da ausência de antecedentes criminais, certo é que os crimes em apreço foram todos dirigidos pelo arguido contra a mesma pessoa, a assistente, e em intensidade crescente, seja quanto à afectação aos bens jurídicos envolvidos, seja quanto ao modo dessa afectação, o que exaspera as necessidades de prevenção especial e demonstra elevadas necessidades de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos nas normas jurídicas violadas.

Desta sorte, entendemos que apenas a condenação em pena de prisão, pelos factos cometidos, é suscetível de lograr atingir os referidos fins punitivos.

2. Operada a escolha da pena importa passar à determinação concreta.

Lembra-se que na determinação da pena o Tribunal levará em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente as enunciadas no n.º 2 do referido artigo 71.º.

Assim, a culpa funcionará como limite máximo inultrapassável da pena concreta a determinar, fornecendo a prevenção geral positiva o limite mínimo da pena que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada, nos termos do artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

2.1. Concretizaremos, de seguida, os limites definidos na lei, cf. o n.º 1 do artigo 71.º, do Código Penal, ou seja, as molduras penais abstractas convocadas na situação sub judice.

Desta feita:

a) Ao crime de ameaça agravada corresponde, em abstracto, a pena de 1 (um) mês até 2 (dois) anos de prisão, cf. artigos 153.º, n.º 1, 115.º, n.º 1, al. a) e 41.º, n.º 1, todos do Código Penal.
b) Ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, corresponde, em abstracto, a pena de 1 (um) mês até 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cf. artigos 145.º, n.º 1, al. a), 73.º, n.º 1, als. a) e b) e 41.º, n.º 1, todos do Código Penal.
c) Ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas corresponde, em abstracto, a pena de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 22 (vinte e dois) anos, 2 (dois) meses e 19 (dezanove) dias, cf. artigos 132.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02.

3. Importa, agora, atentar nos critérios estabelecidos no artigo 71.º e proceder à determinação das penas concretas.

3.1. Fazendo-o considera o Tribunal, em desfavor do arguido:

- O grau de ilicitude a fixar-se, no que concerne ao crime de ameaça, será em um patamar médio/alto; Sendo, sem dúvida, em um patamar muito elevado, quanto aos outros dois crimes (ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado tentado), atenta a gravidade dos factos e por se tratar da esposa do arguido, pessoa com a qual está casado desde Julho de 2008 (a separação de facto só ocorreu em Agosto de 2020 e os factos findam em Maio de 2021), com a qual tem duas filhas, violando o arguido os mais elementares deveres de respeito e de assistência, sem esquecer quanto ao homicídio tentado, em que utilizou uma arma de fogo, em circunstâncias tais que impediram qualquer possibilidade de a sua esposa se defender;

- O modo de execução dos factos, caracterizado nas situações da ofensa qualificada e do homicídio tentado, por uma evidente supremacia do arguido; além, utilizou uma viatura; aqui, uma arma de fogo; em ambos os casos sem que lhes precedesse qualquer tipo de provocação da assistente, com o arguido a fazer uma “espera” e depois a disparar e à cabeça, não uma, mas três vezes;

- O dolo que foi sempre na modalidade de dolo directo que traduz a forma mais intensa do querer;

- As consequências do facto no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado tentado, com o traumatismo da região cervical e da face, a paralisia da hemiface direita, a necessidade de vir a ser submetida a cirurgia maxilo-facial, o internamento hospitalar, as dores, o sofrimento e a angústia, o abalo psicológico, o estado de saúde da assistente ainda por definir na sua inteireza, as sequelas por determinar;

- Os bens jurídicos afectados, a vida, a integridade física e a liberdade de acção e de decisão, sendo a vida o mais importante direito fundamental;

- As exigências de prevenção geral são elevadas tendo em atenção o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino em um horizonte de relação existencial, cumprindo obstar à banalização ou vulgaridade, a um sentir de impunidade;

- As necessidades de prevenção especial fazem-se sentir com acuidade perante a personalidade do arguido, para que interiorize as consequências dos seus actos, que sempre desvalorizou, e tudo atribuiu à assistente, chegando ao ponto de dizer, quanto à factualidade conexa com a tentativa de homicídio, que não tinha qualquer memória, mas já a tinha para os outros factos cuja prática repudiou, revelando a sua postura profunda incapacidade de auto-crítica;

Em favor do arguido:

- A ausência de antecedentes criminais;

- Estar socialmente inserido, auferindo uma reforma, mantem bom comportamento no estabelecimento prisional e ocupa-se a ter aulas de português.

3.2. Em face de tudo o que foi exposto e devidamente ponderado, entende o Tribunal Colectivo condenar o arguido AA nas seguintes penas parcelares:

- 7 (sete) meses de prisão pelo crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal;

- 1 (um) ano de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal;
- 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02».

*

II.6.1.4. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

A finalidade útil da pena assume-se numa função basicamente preventiva que se desdobra orientada para a comunidade – prevenção geral – e para o indivíduo – prevenção especial.      “ (…) só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.” [2].

Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito.

A prevenção geral não se reconduz somente ao efeito dissuasor que o anúncio da aplicação de uma pena exercerá sobre o potencial infractor no que se designa como prevenção geral negativa. Contém em si e principalmente uma mensagem de reafirmação e de consolidação da validade da lei penal como meio de «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica»[3], na faceta de prevenção geral positiva sendo então, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens que assumem expressão e valor superlativo, como a vida, que essa expectativa da comunidade na validade de tais normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão.

Já a vertente da prevenção especial reconduz-se ao objectivo de evitar a recidiva mediante a ressocialização ou reinserção social sem embargo de se lhe adicionar também, numa deriva mais securitária, o objectivo de intimidação individual e de inocuização.

E se é a prevenção geral positiva que fornece uma “moldura de prevenção” não pode escamotear-se – como bem se salienta no acórdão deste Supremo Tribunal de 30/05/2019, proc. 21/17.4JAFUN.L1.S1, 5ª Secção, relator: Nuno Gomes da Silva – «haver “dentro” dessa moldura de prevenção um efeito de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação que embora não constitua «por si mesma uma finalidade autónoma da pena pode surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos).

É ainda dentro da dita “moldura de prevenção” que «devem actuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena.

É este, no essencial, o programa político-criminal que está vertido no art. 40º, nº 1 do C. Penal onde se determina que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade conferindo a essa pena a natureza preventiva geral e especial».

Na determinação da medida da pena foram levados em conta os seguintes factores relevantes (artigo 71.º do Código Penal):

- Quanto ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, resultou provado que o arguido no período compreendido entre o dia 20 de Agosto de 2020 e o início de Abril de 2021, pelo menos por uma vez, se dirigiu à ofendida dizendo “é melhor ires para o ... senão acabo contigo”, “dou-te um tiro na tua cara” e provou-se igualmente que ao proferir tais palavras, o arguido agiu com o propósito concretizado de causar medo e inquietação à ofendida, bem como de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu, pois esta acreditou que aquele tivesse intenção de concretizar o mal anunciado; provou-se, ainda, que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Ao crime de ameaça agravada corresponde, em abstracto, a pena de 1 (um) mês até 2 (dois) anos de prisão ou pena de multa até 240 dias, cf. artigos 153.º, n.º 1, 115.º, n.º 1, al. a) e 41.º, n.º 1, todos do Código Penal.

Prevendo em alternativa, pena de multa e pena de prisão, entendeu, e bem, o tribunal recorrido que, apesar da ausência de antecedentes criminais, atendendo a que os crimes foram todos dirigidos pelo arguido contra a mesma pessoa, a assistente, e em intensidade crescente, seja quanto à afectação aos bens jurídicos envolvidos, seja quanto ao modo dessa afectação, o que eleva as necessidades de prevenção especial e demonstra sérias necessidades de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos nas normas jurídicas violadas, não aplicar a pena de multa, por não se mostrar ser suficiente e adequada para satisfazer as finalidades da punição. Assim, por força do disposto nos arts. 41.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, a pena de prisão terá como limite mínimo 1 mês e como limite máximo 2 anos.

Sendo elevadas as necessidades de prevenção geral, deverá, contudo, a pena a aplicar concretamente resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais esta será o limite necessário à reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe apenas e tão-só o mal necessário. Assim, o limite aconselhado pela culpa e pela prevenção geral deve ser temperado pela prevenção especial, atendendo à idade (com 69 anos de idade à data dos factos) e à ausência de antecedentes criminais.

Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 2, do Código, temos, em síntese, a ilicitude dos factos, situada num patamar médio/alto; o dolo, que é directo; as necessidades de prevenção especial, que se fazem sentir com acuidade perante a personalidade do arguido, para que interiorize as consequências dos seus actos, que sempre desvalorizou, apresentando, por mais de uma vez, um discurso pautado pela auto-comiseração.

A favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais e estar socialmente inserido, auferindo uma reforma, mantem bom comportamento no estabelecimento prisional e ocupa-se a ter aulas de português.

- Quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. h), ambos do Código Penal, ao mesmo corresponde, em abstracto, a pena de 1 (um) mês até 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão [cf. artigos 145.º, n.º 1, al. a), 73.º, n.º 1, als. a) e b) e 41.º, n.º 1, todos do Código Penal].

Resultou provado que em dia não concretamente apurado do início do mês de Abril de 2021, na Rotunda ..., em ..., o arguido, que seguia ao volante da sua viatura de matrícula ... ..-..2VB – juntamente com a sua filha FF, que seguia no lugar do passageiro – ao ver a ofendida, que seguia apeada no passeio, conduziu a viatura na sua direcção, galgando o passeio, com o propósito de a atingir, tanto só não aconteceu porque BB se desviou de imediato, evitando assim o embate da viatura no seu corpo. Mais se provou que o arguido agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde da ofendida, mediante a utilização da viatura automóvel acima identificada, apesar de saber que o automóvel é um meio particularmente perigoso para lesar a integridade física de outrem, o que não conseguiu porque a BB se desviou e provou-se também que agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Havendo que acautelar as necessidades de prevenção geral, por o crime em causa apresentar uma clara repercussão e alarme social, pondo em causa a tranquilidade e segurança variadíssimas vezes no circulo restrito familiar, também aqui, a pena a aplicar concretamente há-de resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais esta será o limite necessário à reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe apenas e tão-só o mal necessário.

O grau de ilicitude dos factos apresenta-se de grau muito elevado, atenta a gravidade dos factos e por se tratar da esposa do arguido, pessoa com a qual está casado desde Julho de 2008 (a separação de facto só ocorreu em Agosto de 2020 e os factos findam em Maio de 2021), com a qual tem duas filhas, violando o arguido os mais elementares deveres de respeito e de assistência. O arguido, apesar de a filha menor seguir com ele, nem nisso atentou, nem a quis poupar a ver e a viver as potenciais consequências dos factos que queria levar a cabo – atingir a mãe dela (e ainda sua esposa), o que bem revela um egoísmo atroz. E a mãe só não foi atingida porque se desviou, cf. também a al. b), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

Como bem salienta a decisão recorrida, quem assim actua, até acompanhado pela filha que seguia no carro, na direcção da ainda esposa e mãe daquela, sem que da parte desta última houvesse qualquer acção ou provocação anterior ou concomitante, só evidencia, na prática desses factos, uma personalidade especialmente desvaliosa. Estes factos constituem manifestação de um especial e acentuado “desvalor de atitude” que firma a especial censurabilidade ou perversidade, cf. artigo 145.º, n.º 2, do Código Penal.

O dolo é directo.

A favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais e estar socialmente inserido, auferindo uma reforma, mantem bom comportamento no estabelecimento prisional e ocupa-se a ter aulas de português.

- Quanto ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas corresponde, em abstracto, a pena de 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias a 22 (vinte e dois) anos, 2 (dois) meses e 19 (dezanove) dias [cf. artigos 132.º, n.º 1, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02].

Resultou provado que no dia 17 de Maio de 2021, pelas 20h20, o arguido dirigiu-se à Rua ..., Urbanização ..., em ..., munido de uma arma de fogo carregada com munições de calibre 6.35mm e esperou escondido atrás de uma palmeira que a ofendida por ali passasse, uma vez que era do seu conhecimento que aquele era o seu caminho habitual de regresso a casa, após o trabalho, no ..., sito na Praia ..., em .... Mais se provou que quando a ofendida se dirigia para a sua residência, pelas 20h40m, e subia a pé a referida artéria, o arguido saiu repentinamente do local onde permanecia escondido, aproximou-se daquela e disse-lhe “vais ligar para a polícia?” e acto contínuo, o arguido, que se encontrava a cerca de um metro de distância da ofendida BB, apontou a arma de fogo na direcção da sua cabeça e efectuou três disparos de forma consecutiva, atingindo-a no lado direito da face e na zona cervical, abandonando o local de seguida. Provou-se ainda que a ofendida foi imediatamente auxiliada por GG e outra pessoa, que se encontravam no local no momento em que os factos ocorreram, tenho sido accionados os meios de socorro e efectuado o transporte da ofendida para o Hospital ..., onde deu entrada em estado grave. Provou-se que ao agir daquela forma, atento o instrumento utilizado (arma de fogo) e a região corporal atingida (cabeça), teve o arguido o propósito de causar a morte da ofendida, resultado este que pretendia alcançar e que apenas não se concretizou devido à rápida assistência médica que lhe foi prestada. Finalmente, provou-se que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 2, do Código, temos, em síntese:

- O grau de ilicitude que se situa num patamar muito elevado, atenta a gravidade dos factos e por se tratar da esposa do arguido, violando os mais elementares deveres de respeito e de assistência, sem esquecer que utilizou uma arma de fogo, em circunstâncias tais que impediram qualquer possibilidade de a sua esposa se defender;

- O modo de execução dos factos, por uma evidente supremacia do arguido, utilizando uma arma de fogo sem que precedesse qualquer tipo de provocação da assistente, com o arguido a fazer uma “espera” e depois a disparar e à cabeça, não uma, mas três vezes. Como bem salienta a decisão recorrida, este modus operandi convoca o exemplo padrão «agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados» pois coenvolve necessariamente a premeditação. Com efeito, o encontro entre o arguido a assistente não foi fortuito, foi o arguido que o procurou; o «ataque» à assistente não decorreu, por ex., no decurso de uma discussão acalorada entre ambos, por mera casualidade; pelo contrário foi preparado pelo arguido! Não se pode ignorar a forte persistência de matar, pois o arguido efectuou, não um tiro na direcção da cabeça da assistente, mas três! Nem tão pouco o carácter desafiador e jocoso revelado pela expressão «Então agora vais chamar a Polícia» que proferiu. Ademais, numa visão de conjunto sobre a totalidade dos factos, por sobre tudo cronológica, também releva para a especial perversidade ou censurabilidade o «clima» de pressão sobre a assistente (as abordagens no local de trabalho desta e nas imediações da residência), as ameaças, a factualidade relativa à utilização do veículo para atingir a assistente, ou seja, um crescendo de acções desenvolvidas pelo arguido na direcção da sua esposa, como situações que precederam a execução da tentativa de homicídio desta última, cf. al. b), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. O arguido disparou por três vezes na direcção da cabeça da esposa (actos de execução) com o intuito de a matar (crime que decidiu cometer), não tendo a morte sobrevindo por a esposa ter sido socorrida e conduzida ao hospital.

- O dolo que foi sempre na modalidade de dolo directo que traduz a forma mais intensa do querer;

- As consequências do facto no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado tentado, com o traumatismo da região cervical e da face, a paralisia da hemiface direita, a necessidade de vir a ser submetida a cirurgia maxilo-facial, o internamento hospitalar, as dores, o sofrimento e a angústia, o abalo psicológico, o estado de saúde da assistente ainda por definir na sua inteireza, as sequelas por determinar;

- As exigências de prevenção geral que são elevadas tendo em atenção o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino em um horizonte de relação existencial, cumprindo obstar à banalização ou vulgaridade, a um sentir de impunidade;

- As necessidades de prevenção especial, que se fazem sentir com acuidade perante a personalidade do arguido, que revela um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis, e constituem actos elevadamente censuráveis, de puro egoísmo, sem motivação que se possa compreender, que traduzem um acentuado desvalor da personalidade do arguido, caracterizador da especial censurabilidade ou perversidade, desvalorizando as consequências dos seus actos, tudo atribuindo à assistente, chegando ao ponto de dizer, quanto à factualidade conexa com a tentativa de homicídio, que não tinha qualquer memória, mas já a tinha para os outros factos cuja prática repudiou, revelando a sua postura profunda incapacidade de auto-crítica.

A favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais e estar socialmente inserido, auferindo uma reforma, mantem bom comportamento no estabelecimento prisional e ocupa-se a ter aulas de português.

*

II.6.1.5. Tendo em consideração todos estes parâmetros, bem como a moldura penal abstrata de cada um dos crimes, o que se constata é que as penas singulares foram fixadas no patamar mínimo permitido pela culpa, nomeadamente a pena concreta fixada de 7 (sete) meses de prisão pelo crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal; 1 (um) ano de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, al. a) e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal; 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com a agravação da lei das armas, previsto e punido pelos artigos 132.º, n.º 1 e 2, 73.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei da Lei 5/2006, de 23/02, que se situam todas elas muito abaixo do respectivo limite abstracto médio, mostrando-se justas, corretas e adequadamente fixadas, pois a sua redução, além de não ser justificada ao nível da prevenção especial mormente por qualquer circunstância com destaque ao nível da condição social do recorrente ou outra que pudesse ser tida como factor atenuativo, criaria relativamente a factos semelhantes uma aberrante ideia de impunidade.  

Pelo que se conclui pela improcedência da pretendida redução do quantum das penas parcelares aplicadas.

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II.6.2. Quanto à apreciação da condenação numa pena única:

II.6.2.1. É entendimento do recorrente que pena fixada peca por excesso, mostrando-se mais adequada a pena única de 5 (cinco) anos de prisão e, de harmonia com o artigo 50.º n 1 do Código Penal há que ponderar a suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais, a acrescer o estado de saúde e a sua idade, as suas condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias em que o praticou, deverá pena de prisão aplicada neste crime ser suspensa na execução, a qual deverá ser subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, tal como é previsto pelos artigos 50.º, n.º 2, 53.º, n.1 e 2 e 54.º do C.P., de forma a assegurar melhor a ressocialização, reeducação e reintegração do arguido na sociedade.

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II.6.2.2. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo nesta considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1).

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo, contudo, ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas (n.º 2, artigo 77.º Código Penal).

No presente caso, o limite máximo da pena unitária a aplicar é de 10 (dez) anos e 1 (um) mês de prisão (que resulta da soma das penas concretamente aplicadas, respectivamente de 7 meses de prisão, de 1 ano de prisão e de 8 anos e 6 meses de prisão), e o limite mínimo é de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão (a mais elevada das penas parcelares).

Estabelecida a moldura penal do concurso a medida da pena única deverá ser encontrada em função das exigências gerais de culpa e prevenção, tendo em especial consideração os factos no seu conjunto e a personalidade do agente – Cfr., J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421, p. 290 a 292).

Conforme ensina o citado Professor, “Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) ”.

Na concretização da regra estabelecida no nº 1 in fine, do artigo 77.º do Código Penal, de acordo com o qual na medida da pena - no que à punição do concurso concerne - são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial «na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares»[4], o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa.

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II.6.2.3. Deverá ser considerado o conjunto factual na sua globalidade (de modo a descortinar as possíveis conexões entre eles), bem como a personalidade do arguido, a fim de se avaliar criticamente a pena única que lhe foi atribuída.

Será no âmbito daquela moldura penal e de acordo com a personalidade do agente, procedendo a uma análise global dos factos e tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial, que deverá ser determinada a pena única conjunta a aplicar ao arguido.

Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade.
Analisando a decisão sob recurso no que respeita à justificação dada para a referida pena única aplicada ao arguido/recorrente, verificamos que o arguido incorreu na prática de três crimes num curto período temporal, todos contra a mesma pessoa, atingindo bens jurídico pessoais, escalando na gravidade e na violência empregada, afastando-se a hipótese de os factos se reconduzirem a mera pluriocasionalidade antes surgindo umbilicalmente ligados à personalidade do arguido que revela uma tendência para reagir, quando contrariado, com desprezo pelas mais básicas regras de vivência em comunidade.
Com efeito, o recorrente revela uma personalidade com propensão para a prática de crimes contra a família, à qual não repugna o uso da violência para levar a cabo os seus intentos.

Como bem salienta a decisão recorrida, “(…) numa visão de conjunto sobre a totalidade dos factos, por sobre tudo cronológica, também releva para a especial perversidade ou censurabilidade o «clima» de pressão sobre a assistente (as abordagens no local de trabalho desta e nas imediações da residência), as ameaças, a factualidade relativa à utilização do veículo para atingir a assistente, ou seja, um crescendo de acções desenvolvidas pelo arguido na direcção da sua esposa, como situações que precederam a execução da tentativa de homicídio desta última, cf. al. b), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

Queira-se ou não as acções do arguido dirigiram-se contra a sua esposa. O arguido rompeu esse laço, violou o respeito pela vida do seu cônjuge, actuou contra a pessoa com qual partilhou a vida, com a qual tem duas filhas.

O arguido quis sobrepor a sua vontade aos mais elementares deveres decorrentes da conjugalidade, ultrapassou tais mecanismos inibitórios e revelou desprezo pela pessoa com a qual partilha (ou) a sua vida desde 2008.

Estas condutas do arguido revelam um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis, constituem actos elevadamente censuráveis, de puro egoísmo, sem motivação que se possa compreender.

A intenção do arguido foi sempre a de matar a esposa.

Tudo revela um acentuado desvalor da personalidade do arguido, caracterizador da especial censurabilidade ou perversidade.

O arguido disparou por três vezes na direcção da cabeça da esposa (actos de execução) com o intuito de a matar (crime que decidiu cometer), não tendo a morte sobrevindo por a esposa ter sido socorrida e conduzida ao hospital”.
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II.6.2.4. Assim, tudo ponderado, tendo presente a gravidade dos crimes, no que tange ao concreto contexto em que os factos foram praticados, que fornecem a imagem global de uma atitude significativamente desconforme ao direito, a demonstrar a clara incapacidade do arguido em interiorizar a ilicitude da sua conduta, demonstrada pela falta de arrependimento, tudo atribuindo à assistente, chegando ao ponto de dizer, como supra se salientou, quanto à factualidade conexa com a tentativa de homicídio, que não tinha qualquer memória, mas já a tinha para os outros factos cuja prática repudiou, revelando a sua postura profunda incapacidade de auto-crítica, e tendo ainda presente a moldura penal abstracta a considerar para a fixação da pena única, a qual se baliza entre os 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, correspondente à mais elevada das penas parcelares aplicadas, e os 10 (dez) anos e 1 (um) meses de prisão, consideramos perfeitamente adequada, ajustada e equilibrada a pena única de 9 (nove) anos de prisão, que o tribunal a quo tinha fixado, que assim será mantida.

Fixada em 9 (nove) anos de prisão a pena concreta do concurso, nos termos expostos, excluída se mostra a aplicabilidade de pena de substituição, designadamente a suspensão da sua execução, nos termos do art. 50º nº 1 do C.P

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II.7. Quanto à indemnização civil.

II.7.1. O arguido discorda do montante arbitrado pelo tribunal a quo a título de indemnização por danos não patrimoniais € 30.000,00 (trinta mil euros), e decorrentes das dores, medos, pesadelos e abalo psicológico da ofendida, que se projetaram negativamente no seu quotidiano, conforme factos 28 e 30 dos factos dados como provados, sem nada de concreto alegar, limitando-se a referir que o mesmo é manifestamente exagerado, devendo ser fixado até ao limite máximo de € 5000,00.

Por seu lado, a assistente BB, alega a desproporcionalidade na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais. Para tanto, alega que diante da natureza e intensidade do dano, do grau de culpa, da situação económica da lesada e do responsável, afigura-se desproporcional e inadequada a fixação do valor da indemnização pelos danos não patrimoniais em € 30.000,00, devendo ser o arguido condenado a pagar à recorrente o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais em pelo menos € 150.000,00.

Vejamos:
A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. – art.º 129.º do Código Penal.

Embora deduzida em processo penal, de harmonia com o princípio da adesão (art.ºs 71.º e segs do CPP), subordina-se, porém, na dimensão quantitativa e respectivos pressupostos, à lei civil.
Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação - art.º 483º nº 1 do Código Civil.

Como se sabe, a indemnização deve ter carácter geral e actual, abarcar todos os danos, patrimoniais, e não patrimoniais, mas quanto a estes apenas os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e, quanto àqueles, incluem-se os presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (artigos 562.º, a 564.º e 569.º do C.C.)

A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja essencialmente onerosa para o devedor – art.º 566.º n.ºs 1 e 2 do C.C.

Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

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II.7.2. De harmonia com o artigo 496.º do Código Civil:

1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

 2. (...)

 3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º (…)

 O art.º 494.º alude ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso justificativas.

A indemnização por danos não patrimoniais tem por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados pelo lesado.

Como ensina Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, l. °-571, “Danos não patrimoniais – são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compen­sados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”.          

E nos termos do preceituado no n.ºs 1 e 3 do art.º 496.º do Código Civil, “são indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que “pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”.

Na indemnização pelo dano não patrimonial o "pretium doloris" deve ser fixado, por recurso a critérios de equidade, de modo a proporcionar ao lesado momentos de prazer que, de algum modo, contribuam para atenuar a dor sofrida. (assim, Ac. deste Supremo, de 7-11-2006 in proc. 3349/06, 1ª secção).

Ainda seguindo, de perto, a lição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 501, para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de dano:

O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”.

Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.

Sendo certo que, essa indemnização por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do art.º 496.º do Código Civil e, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”.(cfr. Acórdão do S.T.J. de 11 de Setembro de 1994 in Col. Jur. Acs do S.T.J. ano II tomo III -1994 p. 92).

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II.7.3. No caso em apreço, relevam para a ponderação da compensação pecuniária pelo dano não patrimonial, devida à assistente, a censurável actuação do arguido demandado, ficando demonstrado que a vítima BB sofreu, desde logo, medo e receio, lesões físicas (por ex. a paralisia da hemiface direita), dores, angustias, pesadelos, alterações do sono, depressão; a demandante esteve internada no hospital, ainda estão dois projécteis no inteiro do seu corpo, bem como, teve que suportar despesas, perdeu dias de trabalho, tudo em consequência directa da conduta dolosa do arguido.

E, como bem salienta a decisão recorrida, a situação clínica da demandante BB, ainda não está completamente definida, o período de doença não foi determinado, as sequelas decorrentes da acção do arguido (os disparos na cabeça da demandante) também ainda não o estão, mas já se sabe que terá de ser submetida a, pelo menos, uma intervenção cirúrgica, sublinhando, ainda, que não está em causa apenas a conduta derradeira do arguido/demandado concretizada no homicídio tentado, mas também as condutas anteriores que se concretizaram nas ameaças e na ofensa à integridade física qualificada, como condutas igualmente geradoras de inquietação, medo e receio, portanto, atentatórias da paz e do sossego que à demandante (como a qualquer pessoa) é devida.

Ora, tendo presente o quadro fáctico descrito e os danos não patrimoniais sofridos pela demandante em consequência dos factos praticados pelo arguido, tudo aponta para que se tenha como adequado, proporcional, justo e equitativo, o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante em 30.000,00€ (trinta mil euros), fixado na decisão recorrida, improcedendo também nesta parte, o recurso do arguido AA, e improcedendo, também, o recurso da demandante BB revelando-se exagerado o montante peticionado.

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III. DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, desta forma confirmando inteiramente o acórdão recorrido.

b) Não tomar conhecimento do recurso da assistente BB, por inadmissibilidade legal, na parte criminal – artigos 401.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal e Assento do STJ de 30 de Outubro de 1997.

c) Negar provimento ao recurso interposto pela demandante BB, mantendo-se o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante em 30.000,00€ (trinta mil euros).

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Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.

Lisboa, 14 de Julho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro (Presidente)

 

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([1]) Cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 18/10/1991, publicado no DR, I Série, de 08/02/1992.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Noticias, 1993, p.72.
[3] Cfr Figueiredo Dias, ob. cit. pag. 51.
[4] Cf. Ac. STJ de 05.07.2012, Proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1.