RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
Sumário


I- A partir do momento em que foi confirmada a pena de 7 anos de prisão aplicada ao recorrente, a irrecorribilidade assinalada no ac. do TC n.º 186/2013, estende-se a toda a decisão, “abrangendo todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e conduziu à condenação”, o que inclui a questão relativa à perda de bens suscitada no recurso do MP, decidida no mesmo acórdão da Relação.
II- Com efeito, o acórdão da Relação é definitivo quanto às questões apreciadas, o que abrange a relativa à perda da embarcação, colocada no recurso do MP da decisão proferida pela 1ª instância, sobre a qual o arguido teve oportunidade de se defender na resposta àquele recurso.
III- Assim, sobre essa questão relativa à perda de bens, suscitada no recurso do MP da decisão da 1ª instância, já decidida pela Relação, atenta a pena (7 anos de prisão) aplicada ao recorrente, que foi objeto de dupla conforme, não é admissível recurso para o STJ, razão pela qual não pode ser sindicada por este Supremo Tribunal.

Texto Integral




Proc. n.º 356/20.9JAFUN.L1.S1

Recurso

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 356/20.9JAFUN do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., comarca da Madeira, por acórdão de 14.12.2021, o arguido AA foi (no que aqui interessa) condenado pela prática, em autoria e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, (para o qual foi convolado o crime de tráfico de estupefacientes agravado, pelo qual se mostrava acusado, previsto e punido pelos artigos 21º e 24º, als. b) e c), 35º e 36º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), na pena de 7 (sete) anos de prisão.

Quanto ao destino dos objetos apreendidos foi decidido que:

“O produto estupefaciente apreendido (amostra cofre) será declarado perdido a favor do Estado e destruído após o transito da presente decisão (arts. 109º nºs 1 e 2 do Código Penal e 35º nºs 1 e 2 da LDroga).

*

Todos os restantes bens e objectos apreendidos deverão ser restituídos aos seus proprietários, os arguidos, porque não corelacionados com a atividade da traficância, notificando-se em conformidade a entidade a quem foi adjudicada a embarcação.”

II. Inconformado com o acórdão da 1ª instância, recorreu (entre outros) o mesmo arguido AA, assim como o Ministério Público, para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual por decisão de 4.05.2022, decidiu:

a) Negar provimento ao recurso interlocutório;

b) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA;

c) Conceder parcial provimento ao recurso do Ministério Público e revogar o segmento decisório em que não se declara perdido a favor do Estado a embarcação “G...” apreendida nos autos substituindo tal segmento por outro que, ao abrigo do disposto no n º 1 do art. 35.º do DL 15/93, declara perdida tal embarcação a favor do Estado;

d) No mais manter a douta decisão recorrida.

III. Inconformado com esse acórdão do TRL de 4.05.2022, veio o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso do acórdão proferido pela ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 04-05-2022, que decidiu a) negar provimento ao recurso interlocutório; b) negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA; c) conceder parcial provimento ao recurso do Ministério Público e revogar o segmento decisório em que não se declara perdido a favor do Estado a embarcação “G...” apreendida nos autos substituindo tal segmento por outro que, ao abrigo do disposto no n º 1 do art. 35.º do DL 15/93, declara perdida tal embarcação a favor do Estado; d) no mais manter a douta decisão recorrida.

2. Quanto ao recurso interlocutório que o TRL se eximiu de analisar, cumpre tão só referir que o recorrente declarou expressamente interesse na sua subida, aquando da sua apresentação e no próprio recurso da decisão final.

3. Uma coisa é a sua não admissão, porque não, outra coisa é a sua relevância na decisão final. O TRL não quis conhecer.

4. O exemplo invocado pelo TRL não é adaptável ao caso concreto, nem se vislumbra a existência de norma jurídica que exija a repetição/transcrição do recurso interlocutório (apresentado em 18-10-2021) no recurso final (apresentado 13-01-2022) o que até, s.m.o. e com todo o respeito se afigura ad absurdum atenta a autonomia e a oportunidade do recurso interlocutório. A seguir o entendimento plasmado no acórdão ora recorrido, não faz sentido a exigência legal de apresentação de recurso interlocutório antes do recurso da decisão final.

5. Nem se consegue entender qual o, eventual, espírito do legislador em exigir a repetição gratuita de peças processuais, a integração do recurso interlocutório no recurso final.

6. Quando se lê no acórdão recorrido: “Na verdade, e como se alcança das conclusões recursais o arguido põe em causa os pontos 3 e 18 invocando elementos probatórios que nada têm a ver com o objecto dos despachos recorridos.” cumpre referir que, o recurso interlocutório foi apresentado antes da matéria fixada e algumas partes do facto 18 tiveram suporte, precisamente, num relatório social (em portunhol, que consideramos com total falta de isenção e ao arrepio de qualquer Estado de Direito) impugnado atempadamente no recurso interlocutório.

7. Contrariamente, ao entendimento e ao decidido no acórdão recorrido, o recorrente só podia impugnar o relatório social em sede de recurso interlocutório e, em sede de recurso final, impugnar a matéria considerada assente com base no relatório social.

8. Rejeitar o recurso interlocutório por “… manifesta falta de interesse em recorrer …” não pode resultar da leitura do recurso interlocutório nem da leitura do recurso final!

9. Quanto à questão da alteração da matéria de facto, em sede de recurso final, o recorrente, em “A) Pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados:” identificou concretamente o facto 3 e o facto 18 e especificou os concretos pontos de facto, remetendo para os registos quanto ao facto e para o relatório social quanto ao facto 18.

10. O recorrente entende, s.m.o., não se tratar de um preciosismo querer ver fixada a verdade material na decisão final.

11. “Ora, como se salientou, não irá este Tribunal não pode fazer um segundo julgamento.

Não é a sua função.” (cfr. acórdão TRL ora recorrido).

12. Sobre o recurso do Ministério Publico ..., nem nos pronunciamos.

13. Relativamente ao critério de escolha e determinação da pena, entendemos recorrer porque o arguido se encontra no corredor da morte e não é um marginal nem um traficante, transportou produto estupefaciente no contexto peculiar e pontual que se considerou provado e não foi impugnado e que o Tribunal ... identificou perfeitamente.

14. É, ainda, notória a falta de fundamentação do acórdão recorrido pela falta quase absoluta e desvirtuada de motivação, não permitindo ao recorrente descortinar a ratio da decisão.

15. Quanto ao cobiçado veleiro, leia-se o sumário do acórdão do STJ, proferido pela 3ª Secção, nos autos de recurso n.º 235/14.6JELSB.L1.S1, em 09-11-2016:

16. VII – A verificação da agravação prevista na al. c) do art. 24.º do DL 15/93 não depende de uma análise contabilística de lucros/encargos, irrealizável, pelas características clandestinas da actividade. O carácter avultado da remuneração terá de ser avaliado mediante a ponderação global de diversos factores indiciários, de índole objectiva, que forneçam uma imagem aproximada, com o rigor possível, da compensação auferida ou procurada pelo agente. A qualidade e quantidade dos estupefacientes traficados, o volume de vendas, a duração da actividade, o seu nível de organização e de logística, e ainda o grau de inserção do agente na rede clandestina, são factores que, valorados globalmente, darão uma imagem objectiva e aproximada da remuneração obtida ou tentada. Tendo em conta o tipo(cocaína) e quantidade (167.916,515 g. – peso bruto) da substância estupefaciente importada, o seu valor comercial (€8.046.559,398), bem como o papel desempenhado pelos arguidos, não merece censura a qualificação dos factos como tráfico agravado feita pelas instâncias. VIII – A ilicitude do facto já elevada pela circunstância de nos encontrarmos face a um crime agravado, acentua-se perante o tipo de substância traficada (cocaína) e o facto de os arguidos terem actuado como parte integrante de uma estrutura organizada, tendo ambos desempenhado papel de relevo na importação da cocaína. O arguido R já foi condenado 2 vezes por tráfico, pelo que não deve nem pode ser reduzida a pena de 10 anos de prisão lhe foi imposta. Quanto ao arguido J, uma vez que é primário, tendo em conta ainda a sua idade (68 anos) e enfermidades de que padece, entende-se ser de aplicar a pena de 7 anos e 6 meses de prisão em lugar da pena de 9 anos de prisão que lhe foi imposta pelas instâncias. IX - O STJ tem assumido uma interpretação do n.º 1 do art. 35.º do DL 15/93 fazendo apelo a critérios de causalidade e de necessidade, de acordo com a qual a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou dificilmente o teria sido na forma em que foi cometido, ou seja, para a declaração de perdimento é necessário que o crime não tivesse sido praticado sem o objecto em causa. X - Jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade, princípio que preside a toda a providência sancionatória (acórdãos do TC de 04-04-2000 e de 26-05-1999). Daqui que a perda só possa ser declarada quando se mostre justificada pela natureza e gravidade do crime e não se verifique uma desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito. No caso não se suscitam dúvidas sobre a verificação dos critérios de causalidade adequada e de necessidade, uma vez que o veleiro foi instrumento essencial do crime de tráfico de estupefacientes agravado. XI - O mesmo já não se verifica no que respeita à exigência de proporcionalidade, já que o veleiro é a residência habitual do arguido J há mais de 10 anos, sendo a sua única fonte de rendimentos. Pelo que, há que concluir que o perdimento daquela embarcação, independentemente do seu valor rela (€200.000,00) constitui um prejuízo incalculável para o recorrente J, incompatível com o princípio da proporcionalidade, razão pela qual há que revogar o acórdão impugnado na parte em que, confirmando a decisão de 1.ª instância, declarou o veleiro perdido a favor do Estado.

17. O TRL não cuidou de observar que, os arguidos referidos no acórdão do STJ foram condenados nos termos dos artigos 21º e 24º al. c) do DL 15/93 e o ora recorrente foi condenado nos termos do art.º 21º do DL 15/93 em pena inferior àqueles.

18. O TRL na decisão recorrida, sintomaticamente se abstém de considerar a existência do art.º 109º do Código Penal, referindo-se sempre ao art.º 35º do DL 15/93, não obstante não lhe restarem dúvidas que o veleiro era um instrumento do crime.

19. Veja-se o acórdão do TRP, de 11-10-2000, in www.dgsi.pt, onde se considera que: “Com vista aos normativos dos artigos 109 n.1 e 110 ns. 1 e 2 do Código Penal, são pressupostos da declaração de perda: a existência de um facto anti-juridico; que os objectos sejam produto de um crime (producta sceleris) ou tenham sido utilizados ou estejam destinados à sua comissão (instrumenta sceleris), e que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias, os objectos ofereçam sérios riscos de serem utilizados para a prática de crimes ou ponham em risco a comunidade. Provado que os objectos apreendidos não são objectiva nem subjectivamente perigosos, e cuja propriedade se desconhece, haverá que proferir decisão a determinar a entrega desses bens a quem demonstrar que lhe pertencem, sem prejuízo da declaração de perdimento a favor do Estado, caso não venham a ser reclamados.”

20. Ou seja, o TRL devia ter decidido conforme a norma jurídica 109º do Código Penal e não referir-se tão só à norma jurídica 35º do DL 15/93, invocando jurisprudência ultrapassada quanto à interpretação e aplicação da primeira.

21. O acórdão ora recorrido decidiu, no essencial, contrariar a fundamentação do Supremo Tribunal de Justiça, proferido pela 3ª Secção, em 09-11-2016, nos autos de processo n.º 235/14.6JELSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, que suportou a fundamentação da decisão de primeira instância proferida pelo Tribunal ... e da qual o Ministério Publico recorreu.

22. O Tribunal ... decidiu que: “Todos os restantes bens e objectos apreendidos deverão ser restituídos aos seus proprietários, os arguidos, porque não corelacionados com a atividade da traficância, notificando-se em conformidade a entidade a quem foi adjudicada a embarcação.” Esta conclusão resultou manifestamente da prova documental junta aos autos, da prova produzida nas várias sessões de audiência e julgamento e da fundamentação do acórdão do STJ supra referido.

23. A decisão do Tribunal ..., que muito louvamos pela honestidade e coragem assumida contra a perversidade do sistema, tem pleno suporte na matéria de facto assente, na fundamentação da matéria de facto, exame critico da prova, na escolha e determinação da pena e, no essencial, na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Constitucional invocada, no acórdão de primeira instância que se transcreve.

24. “DA PERDA DOS BENS

25. Dada a sua manifesta relevância e por ser o nosso entendimento, com a devida vénia, passamos a transcrever o que a propósito de uma situação semelhante o STJ decidiu no processo 35/14.6JELSB.L1.S1, da 3ª SECÇÃO e em que foi relator Conselheiro OLIVEIRA MENDES

26. “ (…) De acordo com a redacção originária do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sob a epígrafe de perda de objectos, era o seguinte o texto do n.º 1 do artigo 35º[14]:

27. «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tenham sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos».

28. Por efeito da publicação e entrada em vigor da Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, diploma legal que alterou o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o n.º 1 do artigo 35º passou a ter a seguinte redacção:

29. «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos».

30. Do cotejo dos textos legais transcritos resulta que o regime originário da perda de objectos previsto no Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, tinha por requisito essencial da declaração de perdimento, tal como se verifica na lei substantiva penal (artigo 109º, n.º 1, do Código Penal), a perigosidade do objecto, sendo que por efeito da amputação da parte final daquele dispositivo, a perda de objectos passou a depender, apenas, de um só requisito em alternativa – que os objectos tenham servido, ou estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma ou, tratando-se de produtos da infracção, constituam um seu resultado.

31. A alteração ocorrida tem suscitado algumas questões decorrentes do facto de, prima facie, poder ser entendida como introdutora de um regime de automacidade da perda de objectos, no sentido de que, verificada a mera ligação instrumental do objecto com o facto, impor-se-ia o seu perdimento sem mais, o que, obviamente, colidiria com princípios básicos constitucionais[15], designadamente os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido restrito[16].

32. Certo é que este Supremo Tribunal, face à alteração verificada, tem assumido uma interpretação do n.º 1 do artigo 35º fazendo apelo a critérios de causalidade e de necessidade, de acordo com a qual a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou dificilmente o teria sido na forma em que foi cometido, ou seja, para a declaração de perdimento é necessário que o crime não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante) sem o objecto em causa (instrumento essencial)[17].

33. Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto[18], jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, orientação que sufragamos, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade, princípio que preside a toda a providência sancionatória. Como se refere no já citado acórdão do Tribunal Constitucional de 4 de Abril de 2000:

34. «A exigência de proporcionalidade resulta do facto de (independentemente da mais próxima qualificação do direito de propriedade constitucionalmente protegido) se reconhecer, como se tem feito na jurisprudência deste Tribunal, que a garantia de cada um de não ser privado da propriedade (salvo por razões de utilidade pública, e ainda assim só mediante pagamento de justa indemnização), resultante do artigo 62º (designadamente n.º 2) da Lei Fundamental, tem “natureza análoga” aos direitos, liberdades e garantias (v., recentemente, os Acórdãos n.ºs 329/99 e 517/99, tirados em plenário e publicados no Diário da República, II série, respectivamente de 20 de Julho e 11 de Novembro de 1999). A limitação a tal garantia resultante do facto de os bens serem utilizados como instrumento de um crime deve estar sujeita a uma regra de proporcionalidade».

35. A não ser assim, como se consignou no também já citado acórdão do Tribunal Constitucional de 26 de Maio de 1999:

36. «(…) estar-se-ia a acrescentar à pena do crime uma outra pena, que redundaria na “morte civil, profissional ou política” do cidadão. E a fazê-lo de uma maneira mecânica – ou seja: sem respeito pelas exigências dos princípios da culpa, da necessidade das penas e da jurisdicionalidade. E, com isso, ao mal da pena aplicada, que é inevitável, ia ainda juntar-se, de forma automática um efeito estigmatizante ou infamante que serviria para dificultar a ressocialização do delinquente».

37. Daqui que a perda só possa ser declarada quando se mostre justificada pela natureza e gravidade do crime e não se verifique uma desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito. Dever-se-á ter ainda em consideração que o malefício decorrente da perda, especialmente quando o objecto não puser em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas e não oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos[19], deverá representar uma medida justa e proporcional à gravidade do crime, malefício que, obviamente, deverá ser aquilatado em função do valor do objecto e do prejuízo que do seu perdimento irá resultar para o respectivo dono.

38. No caso vertente dúvidas não se suscitam sobre a verificação dos acabados de referir critérios de causalidade adequada e de necessidade, consabido que o veleiro DD foi instrumento essencial do crime objecto do processo. Porém, o mesmo já não se verifica no que respeita à exigência de proporcionalidade.

39. Vejamos.

40. Vem provado que o arguido BB desde 2005, data em que adquiriu o veleiro DD, nele passou a viver, viajando para diferentes países, sendo que a sua sobrevivência antes de preso era assegurada através de excursões e viagens turísticas que efectuava em países do sudoeste asiático, onde permanecia por longos períodos.

41. Daqui resulta que aquele veleiro é a residência habitual do arguido BB há mais de dez anos, sendo simultaneamente a sua única fonte de rendimentos, o seu exclusivo meio de subsistência. Destarte, há que concluir que o perdimento daquela embarcação, independentemente do seu real valor, qual seja o de € 200.000,00, constitui um prejuízo incalculável para o recorrente BB, incompatível com o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado, princípio que, como já se deixou consignado, preside a toda a providência sancionatória, razão pela qual há que revogar o acórdão impugnado na parte em que, confirmando a decisão de 1ª instância, declarou o veleiro DD perdido a favor do Estado.

42. (…) (15) - Sobre a inconstitucionalidade da automacidade da perda de objectos pronunciou-se o Tribunal Constitucional, entre muitos outros, nos acórdãos n.ºs 327/99, 176/00 e 202/00, proferidos em 99.05.26, 00.03.22 e 00.04.04.

43. [16] - Segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (2007), I, 392/393, o princípio da proporcionalidade ou princípio da proibição de excesso, desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação ou da idoneidade, princípio da necessidade ou da indispensabilidade e princípio da proporcionalidade em sentido restrito.

44. [17] - Cf. entre outros os acórdãos de 99.06.02, 01.02.21, 04.05.19 e 12.02.29, proferidos nos processos n.ºs 281/99, 2814/00, 1118/04 e 999/10.9TALRS.S1.

45. [18] - Cf. o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.03.24, proferido no processo n.º 270/04.

46. [19] - O que no caso vertente se verifica atenta a primariedade e a idade do recorrente e dono da embarcação BB (68 anos), esta última aliada ao tempo de prisão que terá de cumprir para expiação da pena ora imposta.

47. No caso dos autos a embarcação que foi avaliada em quantia que se situa para os peritos dos autos em cerca de 154 mil euros e para a companhia seguradora em 240 mil euros é a residência habitual do arguido AA desde 2016/17, sendo simultaneamente a sua única fonte de rendimentos, o seu exclusivo meio de subsistência pelo que o perdimento daquela embarcação, constitui um prejuízo para o arguido AA que se mostra de todo incompatível com o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado. No que respeita a todos os outros bens aprendidos como já se referiu não foi feita qualquer prova da sua ligação ou proveniência ilícita pelo que deverão também eles ser devolvidos. Em síntese, quer a embarcação quer todos os bens aprendidos incluindo o dinheiro devem ser devolvidos aos arguidos.”

48. O acórdão recorrido, não cuidou de observar, remetendo a sua fundamentação para jurisprudência anterior (com mais de 20 anos) e redutora, na medida em que versa sobre casos de traficantes habituais, donos da droga ou intermediários. Todos os exemplos que o acórdão recorrido exibe são manifestamente distintos do caso do ora recorrente bem como do relatado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que suportou a decisão da primeira instância.

49. O TRL nem cuidou de observar que, o recorrente foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21º do DL15/93 e os ali arguidos, referidos no acórdão do STJ, foram condenados pelos artigos 21º n.º 1 e 24º alínea c) do mesmo diploma, o que para além do mais é manifesta violação do princípio da igualdade.

50. Veja-se a fundamentação do TRL, no acórdão recorrido, para não observar a sábia orientação do Supremo Tribunal de Justiça e declarar a perda a favor do Estado:

51. “Ora, no caso concreto destes autos, não nos restam dúvidas que o veleiro era instrumento do crime. Era instrumento essencial do crime e sem a sua utilização este não se realizaria.

52. Dito isto, o que se contrapõe é o facto de haver sido o arguido a adquirir o veleiro sem demonstração de qualquer acto ou procedimento criminal na sua aquisição mas tal não é relevante pois que a perda não tem de ser, necessariamente, de um bem cuja aquisição foi ilícita. Refere-se que o barco era a casa do arguido e a sua única casa. Contudo, em parte alguma é proibido declara perdida a casa de alguém. Imagine-se uma situação em que uma casa (imóvel) serve de armazém de droga e, simultaneamente, de residência aos seus proprietários e, ao mesmo tempo, era o armazém essencial da operação sem a qual a mesma não podia funcionar. Duvidaríamos em declarar perdido o imóvel ?

53. Ora, aqui a casa – veleiro - era o elemento essencial ao tráfico.

54. A perda do barco obedece ao princípio da adequação: a declaração de perda é o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, ou seja a obstaculização da conduta

-Obedece ao princípio da exigibilidade: as medidas restritivas é necessárias a fim de evitar futuras utilizações criminosas do bem; e - da proporcionalidade: os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situam-se numa «justa medida» não devendo ser as medidas restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins obtidos. Assim é de declarar perdido a favor do Estado o barco. Já o dinheiro apreendido e os demais objectos, como referido no acórdão recorrido não encontra relação com o tráfico.”

55. Com todo o respeito, que é muito e bem devido, não podemos concordar com a estéril fundamentação encontrada pelo acórdão ora recorrido para decidir pela perda do veleiro.

56. O recorrente pretende ver esclarecida a ratio da decisão da perda da embarcação a favor do Estado, contrariamente à orientação do Supremo Tribunal de Justiça e à fundamentação do acórdão da primeira instância.

57. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, o veleiro foi considerado instrumento do crime porque nele se transportou produto estupefaciente. Porém há que observar que, na maioria dos casos os bens e objectos dos correios/transportadores não são declarados perdidos a favor do Estado. Porque são objectos e não têm animus. Porque não estão ao serviço dos traficantes. Porque não foram adquiridos com propósitos ilícitos nem provenientes de rendimentos ilegais. Porque não foram compensações ou contrapartidas. Porque não foram produtos ou vantagens. Porque não tinham qualquer relação com a actividade ilícita. “porque não correlacionados com a atividade de traficância,” cfr. acórdão da primeira instância.

58. E sempre se diga que, se não fosse transportado pelo ora recorrente, seria transportado por outra via, por outras pessoas, por outros meios. O crime de tráfico já estava consumado pelos traficantes, o recorrente só transportou a carga estupefaciente. Por isso, entendemos que, contrariamente ao entendimento do TRL, o veleiro do recorrente não foi um instrumento essencial da prática do crime. Mas, ainda que seja,

59. Entendemos, pois, que o TRL não interpretou convenientemente a norma do art.º 35 do DL 15/93 e nem sequer interpretou a norma do art.º 109º do Código Penal.

60. Veja-se a perspectiva do TRP, acs. De 04-04-2019, (proc. n.º 1487/17.8T9FNC.L1-9), e de 11-04-2019, (proc. n.º 360/17.4IDPRT.P1) em www.dgsi.pt, onde se lê que “é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal visando conseguir a maior reconstituição da situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, sem que o mesmo fique com qualquer benefício decorrente da prática do crime.”

61. No referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça referido, que decidiu revogar o acórdão impugnado na parte em que declarou o veleiro perdido a favor do Estado, os ali arguidos, contrariamente ao ora recorrente, actuaram como parte integrante de uma estrutura organizada, tiveram um papel de relevo na importação da cocaína, um deles tinha antecedentes criminais.

62. O acórdão recorrido não pôde deixar de constatar que o circunstancialismo que envolveu o ora recorrente, em tudo semelhante, foi diferente e até mais atenuado, certamente, por isso viu não foi condenado com a agravação do art.º 24º al. c) do DL 15/93 e viu a sua pena mais reduzida que a dos arguidos no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

63. Também não andou bem o acórdão recorrido em equiparar o veleiro do recorrente com um armazém de droga e residência dos seus proprietários. É rara a jurisprudência que declara perdida a favor do Estado a residência de alguém que pratica a actividade de tráfico de droga. O recorrente não pratica actividade de tráfico de droga.

64. Poderá e deverá acontecer, quando o imóvel, onde o traficante guarda ou vende a droga, o adquiriu com dinheiro proveniente de actividade ilícita. Assim, faz sentido.

65. É claro que, duvidamos que seja declarado perdido a favor do Estado a residência de alguém que, pela primeira vez na sua vida e atento determinado circunstancialismo, guardou, a pedido, droga em sua casa para entregar a outrem.

66. É claro que duvidamos que, o Estado pretenda olvidar-se e violar os princípios gerais do Direito, mormente da dignidade da pessoa humana, da igualdade, direito à habitação, etc. cfr. artigos 1º, 13º, 18º, 26º, 32º e 65º da Constituição da República Portuguesa, e olvidar-se dos fins das penas e a reinserção social do arguido.

67. Declarar perdido o veleiro a favor do Estado, é confiscar a habitação do ora recorrente e confiscar-lhe o seu meio de sobrevivência, fonte de rendimento e trabalho. Ele tinha isso tudo antes de praticar o ilícito. A decisão ora recorrida é para destruir o ser humano, fundamentada em hipotéticos valores que em nada dignificam o Estado de Direito.

68. In JOUE, L68/49, de 15.03.2005, fala-se em instrumentos, assim como no art.º 109º (com a redacção dada pela Lei n.º 30/2017, de 30-05) do Código Penal se fala de perda de instrumentos.

69. Não basta que o objecto tenha sido instrumento ou resultado de um crime; é também necessário que a perda seja, pela natureza dos objectos ou pelas circunstâncias do caso, necessária para garantir a segurança das pessoas, a ordem ou a moral pública, ou para evitar o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

70. A decisão de perda a favor do Estado faz parte das consequências jurídicas do crime, pelo que é decretada ou não consoante a apreciação concreta feita pelo tribunal dos respectivos pressupostos. Tal como a pena principal, as demais consequências do crime não são “automáticas” – dependem dos juízos de facto e de Direito que relacionam os objectos em causa com o crime praticado (instrumento, resultado) ou com o risco de cometimento de novos crimes.

71. Andou mal o acórdão recorrido em não encontrar a «justa medida» desvalorizando a fundamentação do Tribunal Superior, mormente do ac. do STJ de 09-11-2016, proferido pela 3ª Secção, nos autos n.º 235/14.6JELSB.L1.S1.

72. “A Justiça é simultaneamente uma ideia e uma chama de alma. Sirvamo-nos do que ela possui de humano, e não a transformemos nessa terrível paixão abstracta que mutilou tantos homens.”, citando Albert Camus.

73. Cesare Beccaria, em 1764, dizia que “…resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido. (…) O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo.” e “As penas serão tanto mais justas quanto maior for a liberdade que o soberano conserve aos indivíduos  e quanto mais sagrada e mais inviolável for ao mesmo tempo a segurança de todos.” (in Dos Delitos e das Penas, Martins Fontes, 2ª ed., 1996) e «deixa de existir necessidade de prevenção quando o facto, pese embora a sua gravidade, não corre o risco de repetir-se» cfr. salienta Mir Puig in Introducción a las bases de derecho penal, Barcelona, 1976, pág. 98, cit. por Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, CEd. 1995, pág. 369.

74. «Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu.» Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, pág. 428.

75. Os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição e todos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (vd. artº 12º e 13º C.R.P.).

A todos é garantido o processo equitativo (artº 20º nº4 C.R.P.).

76. Como resulta dos autos e da matéria provada e consolidada, o recorrente tem a sua vida estruturada e estabilizada para conseguir sobreviver, o tempo que lhe resta, com a dignidade que se impõe num Estado de Direito. Assim seja devolvido à liberdade, após o cumprimento da pena, na exacta situação em que se encontrava imediatamente antes da prática da infracção.

77. A pena de prisão consiste na privação da liberdade pelo encarceramento em estabelecimento criminal. No Sistema Penal Português, a pena de prisão é única e simples, pessoal e temporária, sendo a prevenção especial reintegradora do recluso na sociedade o pilar da sua construção conceptual actual. Assim seja restituído à liberdade com os instrumentos que construiu ao longo da sua vida para lhe permitir a sua e integração na sociedade.

78. O recorrente é primário.

79. “Já no século XVIII, Beccaria, no seu celebre livro, denunciou a barbárie dos castigos cruéis então difundidos. Não é o rigor do castigo que pode fazer que o criminoso se detenha na encosta fatal da criminalidade mas sim a certeza de que não tem a mínima possibilidade de escapar à sanção, embora moderada.” In O Poder, Os Juizes e Os Carrascos, J. Imbert e G. Levasseur, Estudios Cor, pág. 368.

80. Preceitos Violados: artigos 40º, 70º, 71º, 72º, 73º e 109º (com a redacção da Lei n.º 30/2017, de 30/05) do Código Penal, art.º 35º do DL 15/93 de 22/01 (com a redacção da Lei n.º 45/96, de 03/09) art.º 97º, n.º 5, 344º, 374º e 379º do CPP e 1º, 2º, 13º, 18º, 26º, 32º e 65º da Lei Fundamental

Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, mormente suportada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido pela 3ª Secção, nos autos de recurso n.º 235/14.6JELSB.L1.S1, em 09-11-2016, que se impõe e contraria a decisão ora recorrida, assim se fazendo destarte a mais sã e correcta Justiça.

IV. O recurso foi admitido, por despacho de 7.06.2022, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

V. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1- A decisão recorrida cumpre os requisitos legalmente exigidos de fundamentação, no que concerne à decisão de perdimento decretada.

2- É adequada, justa e conforme aos critérios definidores dos princípios da adequação, exigibilidade e proporcionalidade.

3- Nenhuma censura suscita o acórdão recorrido que, como tal, deverá ser integralmente mantido.

4- Assim, deverá ser negado provimento ao recurso.

VI. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, a Sr. PGA emitiu parecer sustentando, fundamentadamente, a irrecorribilidade da decisão firmada pelo TRL, pugnando pela rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, al. f), 432.º, n.º 1, b), 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.º 2 do CPP, por o ac. da Relação ter confirmado o acórdão da 1ª instância e, haver dupla conforme, não sendo admissível o recurso para o STJ de todas as questões relacionadas com o crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual o recorrente foi condenado, considerando a pena de 7 anos que lhe foi aplicada (inferior a 8 anos), a tanto não obstando o despacho que o admitiu.

VII. Na Resposta ao Parecer do Sr. PGA o recorrente mantém o sustentado no recurso, reafirmando que o acórdão do TRL lhe vem retirar a sua habitação e o seu meio de sustento, que perante decisões contraditórias como são as da 1ª instância e a da Relação, tem interesse em agir (por o seu direito estar a ser afetado) e tem o direito de recorrer para o STJ (tanto mais que aquela decisão é recorrível), sendo que interpretação diversa está ferida de inconstitucionalidade, a qual desde já deduz, concluindo que deve ser admitido o recurso tal como foi decidido por despacho na Relação de Lisboa.

VIII. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

Factos
IX. Resulta do acórdão da 1ª instância a seguinte decisão sobre a matéria de facto, que foi confirmado pelo Ac. do TRL de 4.05.2022:
Factos Provados

DA ACUSAÇÃO:

1. No dia 25-06-2020, pelas 08.00h, o veleiro G..., de bandeira das ... (...), tripulado pelos arguidos AA e BB atracou no cais 8 do Porto ... (onde já tinha estado entre dia 17 e 24 de Agosto de 2018) transportando a bordo, mais concretamente em duas escotilhas do porão da popa, 300,110 kg de cocaína - cloridrato - (com grau de pureza, 93,3%) que o arguido AA havia carregado nas ... ou ... e pretendia transportar até um local determinado no oceano ao largo de ..., onde seria recolhida com o objectivo de revenda na Europa.

2. Pelo referido transporte, indivíduos que não possível concretamente identificar, entregar-lhe-iam a quantia de 20 000,00€, tenho-lhe já entregue anteriormente ao carregamento, a quantia de 10 000,00€

3. O arguido AA agiu livre, voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento da natureza e características dos produtos estupefacientes em causa e, não obstante saber que a respectiva aquisição, detenção, cedência, transporte e/ou venda lhe era vedada, transportou o produto estupefaciente, com o intuito de o introduzir na Europa.

4. O arguido AA sabia ainda que, atenta a quantidade de cocaína que transportava, a mesma destinava-se a ser distribuída por grande número de pessoas.

5. Bem sabia o arguido AA, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

6. O veleiro G..., era propriedade do arguido AA, que o havia adquirido em 2015, em hasta pública, pela quantia de 30 000,00€ e do qual fez sua residência habitual, após levar a cabo algumas das reparações que a embarcação necessitava.

7. Aquela quantia monetária foi-lhe emprestada por dois seus amigos – CC e DD- (7 000,00€ e 23 126,00€, respectivamente).

8. O arguido AA, antes de 2015 geria um bar/restaurante em ... (no porto antigo daquela cidade), residiu com uma companheira no apartamento desta até e posteriormente, num apartamento arrendado que desocupou após ter ido residir na embarcação G... (2016/17).

9. Após as reparações que efectuou ao veleiro, a entidade seguradora do mesmo, efectuou uma avaliação para determinação do prémio de seguro e do capital segurado, tenho-lhe atribuído o valor de 240 mil euros.

10. Nos autos foi feita avaliação da embarcação de 154 mil euros

11. O arguido AA, passou a obter os rendimentos necessários à sua sobrevivência, exclusivamente, através da realização do serviço de cruzeiros, vulgo “charters” com turistas bem como eventos de moda e de índole naturalista, nas ... e ..., o que levava a efeito usando o veleiro G... (como capitão do mesmo).

12. No exercício dessa actividade, contratou como mecânico da embarcação, o arguido BB, pelo período de um ano e pelo salário de 2 500,00€/mês.

13. Devido à pandemia mundial do Covid 19, o arguido deixou de auferir rendimentos naquela actividade turística, devido ao cancelamento e dificuldade de atracação da embarcação nos diversos portos.

14. O arguido AA, actuou motivado pelas dificuldades económicas sentidas devido ao corte dos seus rendimentos motivado pela situação pandémica.

15. O arguido AA, encontra-se na situação de prisão preventiva, é pessoa bem conceituada no seu meio de origem, considerado pessoa trabalhadora, íntegra. Padece de doença do foro oncológico, com metástases, em fase que lhe determina internamento no Hospital ..., em ...

16. O arguido BB, é mecânico, tem uma companheira com quem tem um filho. De anterior relação tem mais dois filhos.

17. É tido como pessoa cumpridora, trabalhadora, cordata e presente no que tange à educação e sustento dos seus filhos.

DOS RELATÓRIOS SOCIAIS CONSTA:

18. AA, de 60 anos, é natural da ..., mas tem nacionalidade ..., tendo fixado residência na sua infância em .... Segundo referiu, concluiu formação profissional na área da electrotecnia náutica e fez referência a um percurso laboral ligado à constituição de sociedades em restaurantes e à actividade de marinheiro, que passou a ser predominante nos últimos anos.

À data dos factos, era comandante e proprietário de um veleiro designado de “G...”, que habitualmente realizava viagens por diversos países banhados pelo mar Mediterrâneo, bem como travessias intercontinentais para a ... e ....

Segundo AA, prestava, maioritariamente, serviços de transporte turístico e recreativo com a sua embarcação e auferia rendimentos anuais no montante de 70.000.00€ (setenta mil euros), tendo feito alusão a uma situação económica regular, sem dívidas.

O arguido tem como referência a cidade ... em ..., mas mantinha um estilo de vida muito independente, sem morada fixa, em que fazia da embarcação a sua habitação. Está separado há vários anos da mãe dos seus 2 filhos, de 24 e 21 anos, residentes em ..., com os quais continua a manter contactos através de videochamada.

Não é consumidor de drogas, mas mantinha relações de conhecimento e de contacto neste universo. Apresenta-se como um indivíduo ambicioso, disposto a ceder perante contextos de oportunidade desviante e soluções mais imediatistas, como forma de satisfazer seus interesses pessoais.

O arguido descreve não ter antecedentes criminais em ..., tendo sido absolvido da prática de um crime de tráfico de estupefacientes há cerca de 20 anos.

AA encontra-se em situação de prisão preventiva no ... desde 26/06/2020.

Vive a privação da liberdade com aceitação e resignação, mas tem receio de represálias futuras por parte das sociabilidades desviantes com as quais travou conhecimento.

Em meio prisional, mantém uma conduta ajustada, encontrando-se a cumprir as regras instituídas. Participa nalgumas actividades de ocupação, nomeadamente nas artes plásticas e Eco Escolas. Não tem visitas de familiares, mas são realizadas videochamadas como forma de continuar a manter os contactos e os laços.

Face ao tráfico de estupefacientes, compreende o seu recurso perante necessidades de dinheiro, mostrando, assim, uma atitude de tolerância face à quebra dos valores sociais vigentes.

AA, de 60 anos, encontrava-se ligado à actividade de marinheiro, dispondo de uma embarcação própria, com a qual prestava serviços de transporte marítimo, incluindo em viagens intercontinentais. Mantinha um modo de vida muito independente, sem residência fixa, fazendo da embarcação a sua habitação.

Não lhe são conhecidos problemas de dependência de drogas, mas mantinha relações de conhecimento e de contactos neste universo, não se afirmando crítico de modos de vida antinormativos.

Neste sentido, tende a minimizar o tráfico de drogas perante contextos de necessidades de dinheiro.

A ser condenado, as necessidades de intervenção com o arguido situam-se no desenvolvimento da crítica e da censura face à prática do tráfico de estupefacientes e na estimulação da interiorização de valores prósociais.

(…)

DOS CERTIFICADOS DE REGISTO CRIMINAL NACIONAIS E ...:

20. Nada consta.

Factos Não Provados

1. Os arguidos fazem parte de uma “rede” de cariz internacional que se dedica à aquisição de cocaína nas ... e ..., ao seu transporte por via marítima e posterior introdução na Europa para revenda.

2. Com tal venda, os arguidos obtêm um lucro monetário, na medida em que o preço recebido pelos produtos vendidos é consideravelmente superior ao valor despendido com a respectiva aquisição.

3. O arguido BB agiu livre, voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento da natureza e características dos produtos estupefacientes em causa e, não obstante saber que a respectiva aquisição, detenção, cedência, transporte e/ou venda lhe era vedada, adquiriu e transportou o produto estupefaciente, com o intuito de o introduzir na Europa e vendê-lo e distribuir a terceiros, visando obter um “diferencial” entre o preço de aquisição e o preço de venda com avultada expressão económica para si.

4. O arguido BB sabia ainda que, atenta a quantidade de cocaína que transportava, a mesma destinava-se a ser distribuída por grande número de pessoas.

5. Bem sabia o arguido BB que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

6. O arguido AA transportou o produto estupefaciente, com o intuito de o vendê-lo e distribuir a terceiros, visando obter um “diferencial” entre o preço de aquisição e o preço de venda com avultada expressão económica para si.

7. Todos os objectos e quantias em dinheiro apreendidos nos autos foram adquiridos com quantias resultantes, foram utilizados ou estão directamente relacionadas com a actividade ilícita supra descrita.

Direito

X. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os  poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP.

Analisadas as conclusões do recurso apresentado pelo arguido AA para o STJ, verifica-se que coloca a questão de saber se deve ser revogado o acórdão da Relação de Lisboa no que respeita ao perdimento da embarcação apreendida.

Porém, a decisão do TRL de perdimento da embarcação apreendida, resultou da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da 1ª instância, que havia ordenado a restituição da mesma embarcação ao arguido AA, sendo certo que na mesma decisão foi negado provimento ao recurso do mesmo arguido AA que foi condenado na pena de 7 anos de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21.º, do DL 15/93, de 22.01.

Note-se que, na decisão sob recurso fez-se constar que, “No caso concreto, analisadas as conclusões recursais as questões a decidir são:

a) A questão do recurso interlocutório, mormente a relevância do mesmo na decisão final.

b) A alteração da matéria de facto, designadamente dos pontos 3. e 18 (recurso do arguido AA);

c) A existência de erro notório na apreciação da prova (recurso do MP).

d) A questão da medida da pena (recurso do arguido AA);

e) A questão da perda e bens (recurso do MP).”

Pois bem.

Compulsado o teor do acórdão do Tribunal da Relação de 4.05.2022 impugnado verifica-se que o mesmo analisou e decidiu, as questões acima referidas colocadas pelo recorrente, tendo sido negado provimento ao seu recurso do acórdão da 1ª instância, bem como ao recurso interlocutório e, bem assim, analisou as questões colocadas no recurso do Ministério Público, o qual foi julgado procedente quanto à declaração de perdimento da embarcação apreendida.

Portanto, resulta do acórdão do TRL sob recurso que existe dupla conforme, isto é, houve um duplo juízo condenatório quanto às questões de facto e de direito colocadas nos recursos, sendo certo que foi confirmada pela Relação a pena imposta ao recorrente de 7 anos de prisão.

A existência de dupla conforme, significa (como sucede neste caso) que a decisão da Relação confirma o acórdão da 1ª instância, não tendo alterado a situação do condenado.

Esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

Isto significa, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), não podendo ser novamente objeto de recurso para o STJ a matéria relacionada com a perda de bens do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual o recorrente foi condenado em pena inferior a 8 anos de prisão.

Aliás, decidiu-se no Ac. do TC (plenário) n.º 186/2013[1], “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.”

Assim, como bem refere a Srª. PGA, junto deste STJ, tem de se concluir que é “Irrecorrível a decisão firmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 4/05/2022, que confirmou a decisão da primeira instância e fixou uma pena de 7 anos de prisão ao arguido/recorrente, nos termos previstos no art. 400º nº1 al. f) do CPP. E sobre o seu alcance, verifica-se que, a irrecorribilidade estende-se a toda a decisão, abrangendo todas as questões relativas à actividade decisória que subjaz e conduziu à condenação, sejam de constitucionalidade, substantivas ou processuais, decididas pelo acórdão da Relação.”

A partir do momento em que foi confirmada a pena de 7 anos de prisão aplicada ao recorrente, a irrecorribilidade assinalada no ac. do TC n.º 186/2013, estende-se a toda a decisão, “abrangendo todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e conduziu à condenação”, o que inclui a questão relativa à perda de bens suscitada no recurso do MP, decidida no mesmo acórdão da Relação.

Portanto, não pode o recorrente pretender uma terceira apreciação das questões colocadas, nos casos em que há limitações legais, não sendo esta interpretação inconstitucional, uma vez que se traduz antes numa opção do legislador (desde a reforma introduzida pela Lei 48/2007, de 29.08).

Com efeito, o acórdão da Relação de Lisboa é definitivo quanto às questões apreciadas, o que abrange a relativa à perda da embarcação, colocada no recurso do MP da decisão proferida pela 1ª instância, sobre as quais o arguido teve oportunidade de se defender na resposta àquele recurso.

Assim, sobre essa questão relativa à perda de bens, suscitada no recurso do MP da decisão da 1ª instância, já decidida pela Relação, atenta a pena (7 anos de prisão) aplicada ao recorrente, que foi objeto de dupla conforme, não é admissível recurso para o STJ, razão pela qual não pode ser sindicada por este Supremo Tribunal.

A admissão do recurso pela Relação não vincula este tribunal (art. 414.º, n.º 3, do CPP).

Em conclusão: é de rejeitar o recurso do arguido, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais invocados pelo recorrente.

*

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso interposto por AA, por inadmissibilidade legal (face ao disposto nos arts. 399º, 400º, n.º 1, al. f), 432º, n.º 1, al. b), 420º, n.º 1, al. b), e 414º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.

*

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 14.07.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo

Eduardo Almeida Lourenço

_____________________________________________________


[1] Ver Ac. TC (Plenário) n.º186/2013, acessível no site do Tribunal Constitucional.