REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
RESPONSABILIDADE PENAL
SOCIEDADE COMERCIAL COM SEDE NO ESTRANGEIRO
SUCURSAL EM PORTUGAL
Sumário


I - À luz da lei penal, a posição de liderança no caso de sucursal, agência, filial ou delegação cabe à pessoa que nela tem autoridade para exercer o controlo da respectiva actividade (artº 11º, nº 4, do Código Penal).
II - Portanto, o critério de imputação da responsabilidade criminal no caso da sucursal, agência, filial ou delegação afere-se pela conduta, (por acção ou por omissão), do respectivo director, gerente ou administrador à data do facto ilícito.
III - No plano processual, a representação em juízo da sucursal, agência, filial ou delegação é assegurada pela pessoa que na data do acto processual aja como director, gerente ou administrador (artº 26º do C.P.Civil.
IV – Na situação em apreço, tendo os actos ilícitos descritos na acusação pública sido praticados pelo gerente da sucursal em Portugal em seu nome, representação e interesse, com repercussões directas na administração fiscal nacional com quem a mesma tinha obrigações próprias e individuais, tem a arguida capacidade judiciária para ser demandada e, concomitantemente, responder criminalmente pelos actos praticados em seu nome.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 3641/18.6T9VCT, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 1ª Secção de Viana do Castelo, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum, e perante tribunal singular, contra:

“X Carnes, S.L. - Sucursal em Portugal”, titular do NIPC ………, tendo como último gerente F. G., que cessou funções em 14/11/2017 em virtude de ter falecido, e com sede na Avenida da ..., nº …, Viana do Castelo.

Imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos Artºs. 11º, do Código Penal e 7º, nº 1, 103º, nº 1, al. a) e 104º, nº 2, al. a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pela Lei nº 64º-B/2011, de 30 de Dezembro (cfr. fls. 724 Vº / 728).

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2. Tendo os autos sido distribuídos ao Juízo Local Criminal de Viana do Castelo, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em 22/11/2021 o Mmº Juiz a quo proferiu o despacho que consta de fls. 756/757, que ora se transcreve (1):
“O Tribunal é absolutamente competente.
O processo mostra-se correctamente registado e autuado.
Inexistem nulidades processuais, questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da acusação e de que cumpra ou deva conhecer-se.
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Da rejeição da acusação:
O Ministério Público deduziu acusação contra “X Carnes SL – Sucursal em Portugal”, com sede na Av. da ... nº …, Viana do Castelo.

Dispõe o artigo 11º do C.Penal o seguinte:

“1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal.
2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, nos artigos 159º e 160º, nos artigos 163º a 166º sendo a vítima menor, e nos artigos 168º, 169º, 171º a 176º-B, 217º a 222º, 240º, 256º, 258º, 262º a 283º, 285º, 299.º, 335º, 348º, 353º, 363º, 367º, 368º-A e 372º a 376º, quando cometidos:
a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou
b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.
3 - (Revogado.)
4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade.
5 - Para efeitos de responsabilidade criminal consideram-se entidades equiparadas a pessoas colectivas as sociedades civis e as associações de facto.
6 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.
7 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.
8 - A cisão e a fusão não determinam a extinção da responsabilidade criminal da pessoa colectiva ou entidade equiparada, respondendo pela prática do crime:
a) A pessoa colectiva ou entidade equiparada em que a fusão se tiver efectivado; e b) As pessoas colectivas ou entidades equiparadas que resultaram da cisão.
9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes:
a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa;
b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respectivo pagamento; ou
c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.
11 - Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados.”

Conforme se extrai do artigo 13.º do Código das Sociedade Comerciais, a sociedade pode criar sucursais, agências, delegações ou outras formas locais de representação, no território nacional ou no estrangeiro.
Por sucursal deve entender-se o estabelecimento comercial secundário, desprovido de personalidade jurídica, no qual se praticam actos comerciais do género daqueles que constituem a actividade principal da sociedade, sob a direcção do órgão de gestão da própria sociedade (cfr Abílio Neto, Código das Sociedades Comerciais, 4ª ed, pág. 116).

Em anotação ao art. 7º do CPC de 1939 ensinava o Professor Alberto dos Reis:
«As sucursais, agências, filiais ou delegações são meros órgãos através dos quais se exerce a actividade da administração principal; são órgãos de administração local, inteiramente subordinados à superintendência da administração central. Não têm personalidade jurídica. Por se abrir uma sucursal ou agência não se modifica nem se restringe a personalidade jurídica da sociedade; unicamente se facilita a sua acção, criando-se condições favoráveis ao exercício da actividade social numa determinada localidade. (…)»”.
Em suma, as sucursais (bem como as agências, delegações ou outras formas locais de representação), não gozam de personalidade jurídica, sendo meros órgãos de administração local dentro da estrutura da sociedade. No caso em concreto, a sucursal consubstancia uma mera representação permanente de uma sociedade de direito espanhol, como bem se extrai da certidão permanente sob a referência electrónica nº ……0, e não poderá ser responsabilizada penalmente pelos actos praticados em representação daquela sociedade por se mostrar destituída de personalidade jurídica. Repita-se, como decorre do douto despacho de acusação a fls. 725 e ss. e da certidão permanente a fls. 729 e ss., resulta que a titular da sucursal “X Carnes, SL - Sucursal em Portugal”, será a sociedade “X Carnes, SL., com sede em Espanha e, segundo nos parece, apenas para efeitos de responsabilidade civil poderia a sua sucursal ser demandada, por força do artigo 7º, do C.P.Civil, uma vez que no caso de a pessoa colectiva ou sociedade ter a sede ou domicílio em país estrangeiro, a lei amplia a esfera de personalidade judiciária das sociedades, a qual passa a abranger por ficção as sucursais, agências, filiais ou delegações estabelecidas em Portugal, e assim é mesmo que a acção proceda de facto praticado pela administração principal, podendo (as sucursais) demandar ou ser demandadas, e desde que a obrigação a que a acção se refira tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal.
No entanto, para efeitos de responsabilidade penal, decorre do artigo 11º do C.Penal [aplicável subsidiariamente por força do artigo 3º, alínea a), do RGIT] que apenas as pessoas colectivas e entidades equiparadas poderão ser sujeitos activos do crime e, como tal, susceptíveis de responsabilidade criminal à luz do nosso ordenamento (cf., desde logo, o art. 11º/2 e 5), o que equivale a dizer que por qualquer acto com relevância penal praticado por uma sucursal, apenas poderá responsabilizar a pessoa colectiva sua titular, justamente porque a sucursal não é uma sociedade, mas apenas uma representação da empresa, a cuja direcção geral se sujeitam por parte da sociedade. Assim sendo, por qualquer acto de auxílio cometido por sucursais, agências ou delegações da empresa, apenas poderá a pessoa colectiva, sua titular, vir a responder criminalmente e conquanto estejam reunidos os restantes pressupostos legais.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o tribunal rejeita a acusação deduzida contra a sucursal “X Carnes, S.L., Sucursal em Portugal”.
Sem custas, por não serem devidas.
(...)”.
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3. Inconformado com tal despacho, dele veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos constantes de fls. 760/768, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição (2)):

“1. Constitui objeto do presente recurso o despacho proferido a fls. 756-757 que rejeitou a acusação pública deduzida contra a arguida “X Carnes, S.L. – Sucursal em Portugal”, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 11º, do Código Penal e 7º, nº 1, 103º, nº 1, alínea a) e 104º, nº 2, alínea a), do RGIT, por entender que a sucursal é um ente desprovido de personalidade jurídica e, nesta medida, não é suscetível de ser responsabilizado criminalmente.
2. A arguida é uma sociedade de representação permanente em Portugal, com sede em Viana do Castelo, sendo portadora do NIPC próprio ........., inscrita com o CAE ...-R3 e, à data dos factos descritos na acusação, atuava por intermédio do seu gerente, F. G., com residência em Ponte de Lima, entretanto falecido – cf. certidão permanente de fls. 729-734.
3. A arguida é sujeito passivo de imposto em Portugal, em sede de IVA e de IRC, estando sujeita, por si só e sem qualquer intervenção da sociedade de direito espanhol que representa, a obrigações fiscais declarativas e contributivas nacionais, nos termos do disposto nos artigos 2º, nº 1, alínea c), 3º, nº 1, alínea c) e 5º, nº 1, alínea b), do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e 4º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, tendo sido na sequência da sua atuação enquanto sujeito passivo de imposto nacional que incorreu na prática do ilícito criminal de natureza fiscal que lhe vem imputado nos autos.
4. Neste sentido, a sucursal configura uma entidade fiscalmente equiparada, motivo pelo qual, ao abrigo do artigo 7º, nº 1, do RGIT, tem capacidade para estar em juízo perante a jurisdição criminal, pelos atos que pratica em território nacional por intermédio do seu gerente quando este atua seu nome, representação e interesse, o que ocorreu no caso dos autos como decorre da factualidade relatada na acusação pública deduzida.
5. Na verdade, a legislação penal portuguesa, prescindiu do requisito da personalidade jurídica do ente coletivo para o poder responsabilizar criminalmente.
6. Em termos mais genéricos, o artigo 11º, nº 2, do Código Penal, nos casos previstos na lei, prevê a responsabilidade criminal das pessoas coletivas e entidades equiparadas, importando realçar dois aspetos:
• No nº 5 da referida norma, define que por entidades equiparadas “as sociedades civis e as associações de facto”, que apesar de terem responsabilidade criminal, são desprovidas de personalidade jurídica.
• No nº 11 da referida norma, permitindo a condenação de pessoas coletivas sem personalidade jurídica estabelece que “Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados”.
7. De forma mais especifica relativamente ao direito penal tributário, o artigo 7º, do RGIT, sob a epigrafe “Responsabilidade das pessoas coletivas e equiparadas” prevê a responsabilidade criminal das pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas. No que respeita a esta norma, cumpre realçar que:
A sucursal configura uma entidade fiscalmente equipada.
• No nº 5 a lei penal tributária, permitindo a condenação de pessoas coletivas sem personalidade jurídica, estabelece que “Se a multa ou coima for aplicada a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por ela o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associado”.
8. A propósito da integração do conceito entidade fiscalmente equiparada, o Prof. Germano do Marques da Silva, esclarece que tal expressão pretende abranger todas as entidades que embora tenham personalidade tributária não têm personalidade jurídica, designadamente as referidas no art. 2º, n.ºs 1, alíneas b), e c) e n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, explicando que tais entidades sem personalidade jurídica respondem pelo pagamento das multas com o seu próprio património (art. 7.º, n.º 5, do RGIT) – cf. Prof. Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Sobre as responsabilidades das sociedades e dos seus administradores conexas com o crime tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa 2000, pp.107-108.
9. No caso dos autos, a sucursal de representação permanente em Portugal de uma sociedade espanhola é sujeito passivo de obrigações tributárias e, nessa medida, configura uma entidade fiscalmente equiparada para efeitos do preenchimento do artigo 7º, nº 1, do RGIT, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 2º, nº 1, alínea c), 3º, nº 1, alínea c) e 5º, nºs. 1 e 2, alínea b), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.
10. Nesta senda, o Prof. Germano Marques da Silva esclarece que, “A personalidade da sociedade não é pressuposto da sua responsabilidade civil extracontratual e, por idêntica razão, não o é da sua responsabilização penal ” – cf. Prof. Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades dos seus Administradores e Representantes, editorial Verbo 2009, p. 217; e Prof. Germano Marques da Silva, A pessoa coletiva como arguida no Processo Penal, in http://carlospintodeabreu.com/public/files/a_pessoa_colectiva_como_arguida_no_processopena l.pdf.
11. Tal entendimento é também o seguido por Paulo Pinto de Albuquerque, que se refere expressamente à responsabilidade criminal das sucursais nas anotações ao artigo 11º, do Código Penal e ao artigo 57.º, do Código de Processo Penal, esclarecendo que “(…) o critério de imputação da responsabilidade criminal no caso de sucursal, agencia, filial ou delegação, afere-se pela conduta do respetivo diretor, gerente ou administrador à data do facto ilícito. No plano processual, a representação em juízo da sucursal, agência, filial ou delegação é assegurada pela pessoa que na data do ato processual aja como diretor, gerente ou administrador” - cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª Edição, nota 13, p. 95; e Comentário ao Código de Processo Penal, nota 13, p. 176.
12. Aliás, a responsabilidade penal da sucursal tem vindo a ser tratada sempre de forma afirmativa e unânime pela doutrina e pela jurisprudência, ocorrendo nos Tribunais inúmeras condenações de sucursais pela prática de ilícitos criminais fiscais, sem que a sua legitimidade processual passiva em sede de direito penal tenha sido questionada – cf. a titulo de exemplo, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 16/14.0TAOER.L1-3, de 06/12/2017, disponível em www.dgsi.pt.
13. De outro prisma, no que toca às sucursais, a lei processual civil no artigo 13.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil – reproduzindo o teor do anterior artigo 7.º - firmou expressamente a regra de que as sucursais têm personalidade judiciária, quando a ação proceder de ato ou facto praticado por elas, como ocorreu no caso dos autos.
14. Sendo que, nos casos em que a administração principal tem sede no estrangeiro, como ocorre no caso dos autos, a lei processual civil no nº 2 do artigo 13º, amplia ainda mais a esfera de personalidade judiciária das sucursais, consagrando-a mesmo que a ação proceda de facto praticado pela administração principal as sucursais, agências, filiais ou delegações terão personalidade judiciária, quer para demandar quer para serem demandadas, se a obrigação a que a ação se refere tiver sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal” – neste sentido cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa proferidos no âmbito dos processos n.º 487/08.3TBVFX.L1-1, 318/11.7TNLSB-A.L1-2, em 16/11/2010 e 28/06/2018, respetivamente, ambos disponíveis em www.dsgi.pt.
15. No caso sub judice, na medida que o que está em causa é a circunstância de a arguida, por intermédio do seu gerente, atuando em Portugal, ter contabilizado faturação inverídica na sua contabilidade de forma a diminuir o seu lucro tributável em sede de IRC perante a Administração Fiscal portuguesa, tudo isto sem qualquer intervenção direta ou indireta da sociedade mãe que não tem obrigações fiscais em território nacional, entendemos, salvo melhor opinião, que tem capacidade judiciária para ser demandada e, nesse sentido, responder criminalmente pelos atos praticados em seu nome, representação e interesse.
16. Ao não decidir dessa forma, entendemos que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 11º, nºs. , 5 e 11, do Código Penal, 7º, nºs. 1 e 5, do RGIT, 2º, nº 1, alínea c), 3º, nº 1, alínea c) e 5º, nº 1, alínea b), do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, 11º, nº 2, 13º, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4º, do Código de Processo Penal e 4º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por uma decisão que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público, seguindo-se os demais trâmites legais.
JUSTIÇA!”.
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4. Notificada, nos termos e para efeitos do disposto nos Artºs. 411º, nº 6, e 413º, do C.P.Penal, a arguida não se apresentou a responder.
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5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação emitiu o seu parecer, sufragando a posição do Ministério Público em 1ª instância, e adiantando pertinentes considerações jurídicas acerca da questão suscitada (cfr. fls. 774 / 779 Vº).
5.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (3), não foi apresentada qualquer resposta.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal.
Assim sendo, no caso vertente, a única questão que importa decidir é a de saber se a arguida “X Carnes, S.L. - Sucursal em Portugal” pode ou não ser responsabilizada criminalmente pelos praticados pelo seu gerente em Portugal em seu nome, representação e interesse, nos termos descritos na acusação pública.

Vejamos.
Como emerge do despacho recorrido, o Mmº Juiz a quo entendeu não admitir a acusação deduzida pelo Ministério Público contra a arguida, sustentando, em síntese, que sendo esta uma sucursal, a mesma está desprovida de personalidade jurídica, sendo mero órgão de administração local dentro da estrutura da sociedade, ou seja, da “X Carnes, SL.”, com sede em Espanha.
Adiantando, ademais, que apenas para efeitos de responsabilidade civil poderia a sucursal (ora arguida) ser demandada, por força do Artº 7º, do C.P.Civil, uma vez que no caso de a pessoa colectiva ou sociedade ter a sede ou domicílio em país estrangeiro, a lei amplia a esfera de personalidade judiciária das sociedades, a qual passa a abranger por ficção as sucursais, agências, filiais ou delegações estabelecidas em Portugal, e assim é mesmo que a acção proceda de facto praticado pela administração principal, podendo (as sucursais) demandar ou ser demandadas, e desde que a obrigação a que a acção se refira tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal.
E que, para efeitos de responsabilidade penal, decorre do Artº 11º do Código Penal [aplicável subsidiariamente por força do artigo 3.º, alínea a), do RGIT] que apenas as pessoas colectivas e entidades equiparadas poderão ser sujeitos activos do crime e, como tal, susceptíveis de responsabilidade criminal à luz do nosso ordenamento, o que significa que, por qualquer acto com relevância penal praticado por uma sucursal, apenas poderá responsabilizar a pessoa colectiva sua titular, justamente porque a sucursal não é uma sociedade, mas apenas uma representação da empresa, a cuja direcção geral se sujeitam por parte da sociedade, pelo que, por qualquer acto de auxílio cometido por sucursais, agências ou delegações da empresa, apenas poderá a pessoa colectiva, sua titular, vir a responder criminalmente e conquanto estejam reunidos os restantes pressupostos legais.
Defendendo o Ministério Público, ora recorrente, pelo contrário, que a arguida pode e deve ser penalmente responsabilizada pelos actos praticados pelo seu gerente em Portugal em seu nome, representação e interesse, conforme descreve na acusação.
Ora, adiantando a nossa posição, cremos que lhe assiste razão.
Na verdade, como resulta dos autos, mais concretamente da certidão permanente que consta de fls. 729/734, a arguida “X Carnes, S.L. - Sucursal em Portugal”, é uma sociedade de representação permanente em Portugal, com sede na Avenida da ..., nº .., em Viana do Castelo, sendo portadora do NIPC próprio ........., inscrita em Portugal com o CAE ...-R3 e, à data dos factos descritos na acusação, exercia a sua actividade (representando a sociedade em todos os actos e contratos em Portugal) por intermédio do seu gerente, F. G., com residência em Ponte de Lima, entretanto falecido.
Mais nos revelam os autos que a arguida “X Carnes, S.L. - Sucursal em Portugal” é sujeito passivo de imposto em Portugal, em sede de IVA e de IRC, estando adstrita, por si só e sem qualquer intervenção da sociedade de direito espanhol que representa, a obrigações fiscais declarativas e contributivas nacionais, nos termos do disposto nos Artºs. 2º, nº 1, al. c), 3º, nº 1, al. c) e 5º, nº 1, al. b), do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, tendo sido, aliás, no decurso da sua actuação enquanto sujeito passivo de tributação perante a Administração Fiscal nacional que praticou os factos que lhe vêm imputados nos autos.
Ora, como bem assinala o recorrente, há que recordar “(...) o disposto no artigo 4.º, n.ºs 1, do Código das Sociedades Comerciais, que, de forma a evitar um vazio jurídico para as sociedades estrangeiras com representação em Portugal visando responsabilizá-las individualmente pelos seus atos, estabeleceu a regra de que “A sociedade que não tenha a sede efectiva em Portugal, mas deseje exercer aqui a sua actividade por mais de um ano, deve instituir uma representação permanente e cumprir o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial”, passando assim a estar sujeita a obrigações fiscais nacionais nos termos do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e a configurar uma “entidade fiscalmente equiparada” – cf. artigo 7.º, n.º 1, do RGIT.
Daí que a sucursal arguida nos autos tenha obrigações fiscais próprias, cabendo aos
seus representantes em Portugal – in casu, o seu gerente – zelar pelo seu cumprimento.”.
Pelo que, nessa medida, “(...) tem capacidade para estar em juízo, quer no âmbito da jurisdição cível, quer no âmbito da jurisdição criminal, pelos atos que pratica em território nacional por intermédio do seu gerente quando este atua seu nome, representação e no seu interesse, conforme ocorreu no caso dos autos como decorre da factualidade relatada na acusação pública deduzida.”, sendo certo que “(...) pouco ou nenhum sentido faria ter que se responsabilizar criminalmente a sociedade de direito espanhol por infrações fiscais praticadas pela sua sucursal de representação permanente em Portugal, por intermédio do gerente desta que agiu em seu nome e representação, sem qualquer intervenção da sociedade mãe/ dominante.”.
Ademais, também entendemos que, a nossa lei penal, ao consagrar a responsabilidade penal das pessoas colectivas e entidades equiparadas, prescindiu do requisito da personalidade jurídica do ente colectivo.
Efectivamente, a responsabilidade criminal das pessoas colectivas está prevista em termos genéricos no Código Penal e, em termos mais específicos, no RGIT e em várias leis avulsas, afigurando-se-nos que, nas várias formulações legais existentes, a responsabilidade criminal da pessoa colectiva está tipificada de forma ampla, de molde a punir criminalmente os actos praticados em nome, representação e no interesse de uma pessoa colectiva ou entidade equiparada ou, no caso dos ilícitos de índole fiscal, as “entidades fiscalmente equiparadas”.
Com efeito, atente-se, desde logo, no que se prescreve no Artº 11º, nº 2, do Código Penal, segundo o qual são susceptíveis de responsabilidade criminal “As pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de outras pessoas colectivas públicas e de organizações internacionais de direito publico”.
Devendo notar-se, como assertivamente refere o recorrente, que “(...) a lei não exceciona as entidades desprovidas de personalidade jurídica.”. E que, pelo “(...) contrário, no nº 5 da referida norma, define-se que, por entidades equiparadas deve entender-se “as sociedades civis e as associações de facto”, que apesar de terem responsabilidade criminal, são desprovidas de personalidade jurídica.
E cumprindo realçar a norma constante do Artº 11º, nº 11, do Código Penal, que permitindo a condenação de pessoas colectivas sem personalidade jurídica, estabelece que “Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados”.
Tudo a inculcar, pois, a ideia de que lei penal prescinde da personalidade jurídica dos entes colectivos para os responsabilizar criminalmente.

Por outro lado, e com acrescida relevância, há que trazer à colação o Artº 7º, do RGIT, que sob a epigrafe “Responsabilidade das pessoas colectivas e equiparadas” contempla uma redacção ainda mais ampla do que a que consta do Código Penal, estabelecendo que:

“1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.
(…)
5 - Se a multa ou coima for aplicada a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por ela o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associado”.
Ora, da leitura e da concatenação de tais normas jurídicas extrai-se que, ainda que se entenda que a sucursal de uma sociedade espanhola com representação permanente em Portugal, como é o caso da arguida, configura uma entidade desprovida de personalidade jurídica, a mesma é susceptível de responsabilidade criminal.
Neste sentido pronuncia-se, também, a doutrina mais avalizada, aliás referida pelo recorrente no seu recurso, como é o caso dos Profs. Germano Marques da Silva e Paulo Pinto de Albuquerque.
Com efeito, a este propósito, expende o Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, 2ª Edição revista e ampliada, Universidade Católica Editora, Fevereiro de 2018, no capítulo referente à “Responsabilidade Penal Tributária”, a “Responsabilidade das pessoas coletivas”, a págs. 84/85:
“II. O art. 7º, nº 1, refere as «entidades fiscalmente equiparadas» às pessoas colectivas e às sociedades.
O art. 7º do RGIT não se refere às meras associações de facto, como o faz o art. 3º do Decreto-Lei nº 28/84, e o art. 11º, nºs. 2 e 5, do Código Penal, substituindo o conceito pelo de fiscalmente equiparada às sociedades e pessoas coletivas. Os diversos diplomas fiscais referem-se a estas entidades equiparadas para as submeter a idênticos regimes fiscais. Os antecedentes legislativos do art. 7º do RGIT encontram-se nos arts. 7º do RJIFA e do RJIFNA.
A personalidade jurídica tributária coincide, em princípio, com a personalidade jurídica em geral. No entanto há entidades que têm personalidade tributária, mas não têm personalidade jurídica comum (...), que são as referidas no art. 2.º, n.ºs 1, alíneas b), e c) e n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas. Estas disposições do CIRC contêm uma fórmula ampla com potencialidade para abranger qualquer entidade que seja titular de rendimentos.
Cabem neste conceito todas as organizações de facto ou de direito e os patrimónios autónomos que podem ser sujeitos passivos das relações tributárias, por estarem vinculadas ao cumprimento de uma prestação tributária, a qualquer título (contribuinte directo, substituto ou responsável), designadamente as sociedades civis não constituídas sob a forma comercial, antes do registo, as mesmas bem como outras pessoas colectivas após a declaração da sua invalidade, as associações sem personalidade jurídica, as comissões especiais e os patrimónios autónomos”.
Logo concluindo que também estas entidades sem personalidade jurídica, “(...) respondem pelo pagamento das multas com o seu próprio património (art. 7º, nº 5, do RGIT)”.
Ao passo que o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, admitindo a responsabilidade criminal das sucursais em anotação ao Artº 11º, do Código Penal, in “Comentário do Código Penal - à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 137, esclarece:
“A posição de liderança no caso de sucursal, agência, filial ou delegação cabe à pessoa que nela tem autoridade para exercer o controlo da respectiva actividade. Portanto, o critério de imputação da responsabilidade criminal no caso da sucursal, agência, filial ou delegação afere-se pela conduta (por acção ou por omissão) do respectivo director, gerente ou administrador à data do facto ilícito (...)”.
Tese que reitera no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, quando, em anotação ao Artº 57º, a pág. 178 afirma:
“À luz da lei penal nova, a posição de liderança no caso de sucursal, agência, filial ou delegação cabe à pessoa que nela tem autoridade para exercer o controlo da respectiva actividade (artigo 11º, nº 4, do CP). Portanto, o critério de imputação da responsabilidade criminal no caso da sucursal, agência, filial ou delegação afere-se pela conduta (por acção ou por omissão) do respectivo director, gerente ou administrador à data do facto ilícito. No plano processual, a representação em juízo da sucursal, agência, filial ou delegação é assegurada pela pessoa que na data do acto processual aja como director, gerente ou administrador (artigo 22º do CPP)”.
Igualmente temos de concordar com o recorrente quando afirma, noutra perspectiva, “(...) que a lei processual no seu artigo 4.º manda aplicar subsidiariamente as normas da lei processual civil” e que, (...) dessa forma, recorrendo a tais normas, é evidente que as sucursais têm capacidade judiciária nas jurisdições cível e criminal (...).
Pois que, de acordo com o Artº 11º, nº 2, do C.P.Civil, a regra é a de que “Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.”
Prescrevendo o Artº 5º, do Código das Sociedades Comerciais, que “As sociedades gozam de personalidade jurídica (…)”.

E estabelecendo o Artº 13º, do C.P.Civil, que:
“1 - As sucursais, agências, filiais, delegações ou representações podem demandar ou ser demandadas quando a acção proceda de facto por elas praticado.
2 - Se a administração principal tiver a sede ou o domicílio em país estrangeiro, as sucursais, agências, filiais, delegações ou representações estabelecidas em Portugal podem demandar e ser demandadas, ainda que a acção derive de facto praticado por aquela, quando a obrigação tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal.”.
Consequentemente, e independentemente da questão de saber se as sucursais têm ou não personalidade jurídica, a lei processual civil firmou expressamente a regra de que têm personalidade judiciária, quando a acção proceder de acto ou facto praticado por elas.
Ora, é isso que precisamente ocorre na situação em apreço.
Pois, como inelutavelmente decorre da matéria de facto descrita na acusação pública, o que está causa é a circunstância de, alegadamente, a arguida “X Carnes, S.L. - Sucursal em Portugal”, por intermédio do então seu gerente, actuando em Portugal, lançar na contabilidade da sociedade facturas inverídicas, que não tiveram subjacente quaisquer transacções efectivamente realizadas, o que foi feito de molde a diminuir o seu lucro tributável em sede de IRC perante a Administração Fiscal Portuguesa, dessa forma obtendo um benefício patrimonial não devido no valor global de € 39.348,53.
Pelo que, tendo os actos ilícitos descritos na acusação pública sido praticados pelo gerente da sucursal em Portugal em seu nome, representação e interesse, com repercussões directas na administração fiscal nacional com quem a mesma tinha obrigações próprias e individuais, tem a arguida capacidade judiciária para ser demandada e, concomitantemente, responder criminalmente pelos actos praticados em seu nome.
Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, deverá proceder o presente recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que receba a acusação pública e designe dia para a realização da audiência de discussão e julgamento, seguindo-se os demais trâmites legais.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação pública e designe dia para a realização da audiência de discussão e julgamento, seguindo-se os demais trâmites legais.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 13 de Julho de 2022

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)
Fernando Chaves (Juiz Desembargador Presidente da Secção)



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