VENDA JUDICIAL
ANULABILIDADE
LEGITIMIDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário


I. Os artigos 838º e 839º do CPCivil consagram um regime especial de anulação da venda executiva que é aplicável, com as devidas adaptações, à venda de bens realizada em processo de inventário, por força do disposto no nº2 do art. 549º do mesmo diploma legal.
II. Apenas o comprador tem legitimidade para pedir a anulação da venda com fundamento nos motivos previstos no art. 838º, nº1 do CPCivil.
III. O comprador em venda judicial de um prédio que foi publicitado como sendo uma parcela de terreno para construção, verificando após a venda que, à data da mesma, já se encontrava implantada no prédio uma construção pode pedir a anulação da venda, nos termos previstos no art. 838º, nº1 do CPCivil.
IV. A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/ indemnizado.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

A MASSA INSOLVENTE DE A. C., contribuinte fiscal n.º ………, legalmente representada por F. D., administrador judicial com domicílio profissional na Praça … Barcelos, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra:
X – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A., pessoa colectiva n.º ........., com sede na Av. …, Centro Comercial …, Braga;
Y - GESTÃO E COMÉRCIO DE PRODUTOS PETROLÍFEROS, LDA, pessoa colectiva n.º ………, com sede no Edifício …, Vila das Aves; e
TRANSPORTES W, S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede no Edifício das …, Vila das Aves.

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Peticionando:
1. A declaração, ao abrigo do disposto nos artigos 247.º e 251.º, ambos do Código Civil, de anulabilidade da venda realizada por meio de negociação particular, no âmbito do processo n.º7632/05.9TBBRG-B, J2, Juízo Local cível, extinto 3.ºJuízo Cível, do Tribunal da Comarca de Braga, formalizada por escritura pública, datada de 30/12/2011, pela qual o encarregado de venda nomeado pelo Tribunal vendeu à Ré X –INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, SA, NIPC ........., pelo preço de 21.000,00 €, o prédio urbano composto de parcela de terreno, com área de 776 m2, sito em ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o número …/19910110 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …;
2. E, em consequência dessa declaração de anulabilidade, ao abrigo do disposto no artigo 289.º do CC, a condenação da R. X – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, SA a restituir-lhe o referido prédio urbano.
3. Que, a condenação de restituição peticionada no ponto anterior, a cargo da Ré X – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, SA, abranja igualmente os frutos gerados com a posse do imóvel, cujo valor não pode nesta fase liquidar e se relega para execução de sentença;
4. Subsidiariamente, no caso de a restituição do imóvel peticionado nos pontos anteriores não ser possível, então que a Ré X – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, SA seja condenada a indemnizar a Autora, por enriquecimento sem causa, correspondente à diferença entre o valor de venda do imóvel, que foi de 21.000,00 €, e o seu real e efetivo valor de mercado que é de 300.000,00 €;
5. A condenação das Rés a TRANSPORTES W, SA e Y - GESTÃO E COMÉRCIO DE PRODUTOS PETROLÍFEROS, LDA a desocuparem e a restituírem-lhe o estabelecimento comercial, posto de abastecimento de combustíveis, instalado no referido prédio.
6. E a pagarem-lhe pela ocupação abusiva e ilícita do prédio e do estabelecimento comercial nele instalado, a quantia mensal de 1.500,00 €, a contar desde a ocupação efetiva, alegadamente em 15/10/2010, até efetiva entrega do mesmo, perfazendo a quantia vencida o valor de 171.000,00 €.

A fundamentar tal pedido, a demandante que resultou da declaração judicial de insolvência de A. C., alegou, em síntese, que:

- Nos autos principais de insolvência a que estes se encontram apensos foi lavrado auto de apreensão dos bens do insolvente onde constam dois prédios urbanos que melhor identifica, descritos na Conservatória do Registo Predial de Braga sob os n.ºs …/20001116 e ../19910110 e inscritos na respectiva matriz predial urbana sob os artigos ...º e ...º;
- Ambos os prédios pertencentes ao insolvente são confinantes entre si, apresentando configuração e áreas semelhantes;
- O insolvente obteve todas as licenças administrativas necessárias para a construção, instalação e funcionamento no prédio urbano descrito sob o n.º …, acima aludido, de um estabelecimento comercial de posto de abastecimento de combustíveis e loja de conveniência que passou a explorar; o prédio confinante, descrito sob o n.º .., passou a servir de mero apoio de serviço ao primeiro;
- Para suportar os custos de construção de tal posto, o insolvente em 4.01.1996, contraiu um empréstimo junto da Caixa … no montante de € 149.639,37 e como garantia foi constituída uma hipoteca voluntária a favor dessa instituição bancária sobre o mesmo prédio, descrito sob o nº ….
- Paralelamente ao procedimento de liquidação do activo da massa insolvente, correu termos um processo de inventário para separação de bens, requerido pelo cônjuge do insolvente, I. M., no qual a mesma relacionou, entre outros, os dois prédios a que nos vimos reportando, sendo que por vicissitudes processuais apenas o prédio descrito sob o n.º .., descrito como parcela de terreno para construção foi considerado bem comum.
- Na conferência de interessados, realizada em 20.06.2008, na falta de acordo quanto à composição dos quinhões, todos os presentes (cônjuges, administradora da insolvência e representantes da comissão de credores) concordaram na venda judicial do referido prédio pelo valor base de € 20.000,00 por propostas em carta fechada. Face à inexistência de propostas, a venda veio a realizar-se por negociação particular em 30.12.2011 pelo preço de € 21.000,00.
- Entretanto, a autora tomou conhecimento de que a sociedade Y - Gestão e Comércio de Produtos Petrolíferos, Lda, se encontrava a ocupar o estabelecimento comercial pertencente à massa insolvente, instalado no prédio urbano descrito sob o n.º …, e instou-a a entregar-lho, o que a mesma se recusou a fazer, com o pretexto de que a sua ocupação era legítima.
- A A. intentou então uma acção de reivindicação, por apenso aos autos principais de insolvência, a que corresponde a letra U, contra a sociedade Y - Gestão e Comércio de Produtos Petrolíferos, Lda, a qual contestou, alegando que explorava o estabelecimento com base num contrato de cessão de exploração celebrado com a sociedade TRANSPORTES W, Lda, que o havia adquirido por contrato de trespasse celebrado com a sociedade Petro ... Unipessoal, Lda, e, ainda, que o mesmo não estava instalado no prédio descrito sob o nº …, mas sim no prédio descrito sob o nº .., alegação a que a A. não atribuiu credibilidade, considerando-a mera negação do direito reivindicado para evitar a peticionada desocupação do estabelecimento. Tal acção veio a terminar por desistência da instância, uma vez as partes encetaram negociações com vista à resolução extrajudicial do diferendo, mas tais negociações não foram bem sucedidas.
- De seguida, a A. intentou uma nova acção, que corre apenso sob a letra W, contra a Y e também contra a X, com vista a convencer a primeira da titularidade do seu direito sob o imóvel reivindicado, na qual o Tribunal ordenou a realização de uma perícia de modo a determinar a efectiva localização do estabelecimento comercial, se no prédio descrito sob o nº ..., se no prédio descrito sob o nº ...
- Tal perícia entregue nos autos em 4.3.2019, revelou contra todos os elementos documentais conhecidos e para surpresa da A. e todos os credores da insolvência que o estabelecimento comercial se encontra instalado no prédio descrito sob o nº .. e não sob o nº ....
- Se fosse do conhecimento da A. que o estabelecimento estava instalado no prédio descrito sob o nº .., não teria aceitado a venda pelo preço base de anunciado de (€20.000,00) teria proposto o preço de € 300.000,00, correspondente à avaliação do prédio descrito sob o nº ... no auto de apreensão.
E concluindo pela existência de erro na formação da sua vontade que foi determinante na aceitação do valor da venda e que a R. X sabia pelo teor do anúncio e dos editais que as condições de venda foram fixadas para o prédio correspondente a uma parcela de terreno para construção, a A. terminou formulando o pedido de anulabilidade da venda ao abrigo dos arts 247º e 251º do Código Civil, com a consequente condenação da R. X na restituição do prédio e respectivos frutos gerados com a posse, a liquidar posteriormente, ou, subsidiariamente, condenação da mesma a pagar-lhe a diferença entre o valor da venda o imóvel (€ 21.000,00) e o valor de mercado do mesmo (€ 300.000,00) a título de enriquecimento sem causa.
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Depois da respectiva citação, mas antes de contestarem, veio a autora, por intermédio do seu mandatário munido de poderes especiais para o efeito, desistir da instância relativamente às rés TRANSPORTES W, S.A e Y - Gestão e Comércio de Produtos Petrolíferos, Lda, desistência essa que foi homologada por sentença proferida a 12.09.2019, pelo que, serão omitidos os factos respeitantes a estas, com excepção dos relevantes para a apreciação da pretensão deduzida contra a R. X.
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A ré X – Investimentos Imobiliários, Lda, foi citada em 30.05.2019 mediante depósito da carta de citação, nos termos previstos 246º, nº4 do CPC.
Em 3.09.2019, veio arguir a nulidade da citação por não lhe terem sido enviados os documentos reportados na petição inicial.
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Por despacho de 16.10.2010, reconheceu-se que não foram remetidos à R. com a carta para citação os documentos mencionados na petição inicial, juntos pela A. em 10.05.2019, mas indeferiu-se a nulidade da citação por não ter sido arguida tempestivamente, no prazo indicado para a contestação, nos termos do art. 191º, nº2 do CPCivil. A R. interpôs recurso de tal despacho que não foi admitido por, nos termos do art. 644º, nº3 do mesmo código, apenas poder ser impugnado no recurso da decisão final, tendo os autos seguido os seus termos, com a notificação das partes para alegações - cf. art. 567º, nº2 CPC.
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A Ré X nas suas alegações invocou a ilegitimidade activa da A., por não estar acompanhada do cônjuge do insolvente, preconizando a absolvição da instância ou, se assim não se entendesse a improcedência da acção, por falta de fundamento legal, sustentando que tratando-se se uma venda a que se aplicam as regras da venda executiva, por remissão do art. 17º do CIRE, nos termos do art. 838º, nº1do CPC, apenas ao comprador caberá pedir, querendo, a anulação da venda e a indemnização a que tem direito, além de a A. se arrogar a qualidade de vendedora que não teve, acrescentando ainda que sempre se discutiu a verdadeira localização das bombas de gasolina e que o facto de a A. ter sido vencida na tese que defendeu não lhe permite pôr em causa uma venda judicial a terceiros passados 10 anos, negando ainda a existência de qualquer enriquecimento sem causa da sua parte, pois a existir alguma responsabilidade será do administrador da insolvência que não actuou no tempo e com a diligência devida.
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Aceitando o convite do Tribunal, a autora veio em 1.02.2021 requerer a intervenção principal provocada de I. M., para intervir na causa como sua associada, alegando, em síntese, que a sua presença “é fundamental para garantir que a sentença a proferir nos autos produza o seu efeito útil normal”, atenta a sua qualidade de cônjuge e interessada no inventário para separação de bens do qual resultou a venda cuja anulabilidade requer” – vd. ref.ª citius n.º 11074136, de 01.02.2021.
Admitida a intervenção por despacho de 09.03.2021, a chamada apresentou articulado em 22.04.2021, no qual requereu a nulidade do despacho que admitiu a desistência da instância em relação às RR. TRANSPORTES W, S.A. e Y- Gestão e Comércio de Produtos Petrolíferos, defendendo que tal ato carecia da sua intervenção, acrescentando ainda que a localização do posto de abastecimento de combustível era controversa e que numa anterior execução instaurada contra o insolvente (proc. 179/98 do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga) já havia sido penhorado e adjudicado à exequente A. M., Lda, o prédio inscrito sob o nº ../910110 da freguesia de ..., Braga, e inscrito na matriz predial urbana sob o art. .., constando no auto de penhora que dele fazia parte integrante o posto de abastecimento de combustíveis, tendo tal venda sido posteriormente anulada em virtude de ter sido omitida a sua citação, nos termos e para os efeitos previstos no art. 825º do CPC, execução essa que foi apensada aos autos de insolvência.
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Por despacho de 27.5.2021, foi indeferida a nulidade arguida pela chamada, com fundamento no trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória e ordenada de novo a notificação prevista no art. 567º, nº2 do CPC., não tendo sido apresentadas novas alegações.
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Em 15.07.2021, foi proferida a sentença final que julgou a ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu a Ré do pedido, condenando a Autora nas custas.
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Inconformada com o decidido, a Autora interpôs o presente recurso, finalizando as suas alegações, com as seguintes conclusões que se transcrevem:

A. Vem o presente recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal recorrido, nos termos da qual julgou improcedentes os pedidos formulados pela recorrente nestes autos.
B. Quanto ao pedido principal o tribunal recorrido considerou que estando em causa uma venda judicial, a autora carece de legitimidade para peticionar a anulabilidade da venda do imóvel, pois, nos termos do n.º 1 do artigo 838.º do CPC, só o comprador o poderá fazer, ainda que tal alienação possa acarretar prejuízo à vendedora.
C. Quanto ao pedido subsidiário considerou o tribunal recorrido que estando em causa uma situação de eventual responsabilidade civil da Ré, à autora não lhe é lícito recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa, considerando a natureza subsidiaria deste instituto.
D. Com o devido respeito, o tribunal recorrido fez uma errada interpretação das normas aplicáveis aos factos provados, em especial no que respeita ao regime da anulabilidade da venda executiva consignado no artigo 838.º do CPC, pois ao caso não se aplica tal regime, mas sim as regras gerais sobre a anulabilidade dos negócios jurídicos, motivo pelo qual se recorre.
E. A ser aceite a tese do tribunal recorrido ficariam desamparados um conjunto de outros vícios suscetíveis de influenciar a venda judicial e determinar a sua anulabilidade, de acordo com as regras gerais da invalidade ou ineficácia dos negócios jurídicos, que ao caso também se aplicariam.
F. Ao caso em apreciação nestes autos não se aplica o regime de especial de anulabilidade de venda judicial previsto no artigo 838.º do CPC, mas sim o regime geral de anulabilidade dos negócios jurídicos, desde logo porque não se verificam atos perturbadores da formação da vontade do comprador, mas sim a prática de atos geradores de erro vicio perturbador da formação da vontade do vendedor, provocados por atuação dolosa do insolvente que, intencionalmente e com o intuito de prejudicar terceiros, alterou a natureza substancial dos prédios apreendidos nos autos, um dos quais posteriormente vendido à ré.
G. A atuação do insolvente teve como consequência direta e necessária a desconformidade formal e jurídica dos prédios apreendidos, materializada nos registos públicos e documentos emitidos pelo Estado atinentes aos mesmos, como seja pela conservatória do registo predial, no que respeita à descrição dos prédios, e pela Autoridade Tributária, no que respeita ao cadastro fiscal.
H. A desconformidade material verificada nos prédios não se verificou por atuação, omissão ou descuido da recorrente, enquanto vendedora formal, mas sim por atuação do insolvente e proprietário que, ardilosamente, falseou a realidade substancial dos prédios aprendidos nos autos, mantendo a aparência formal dos mesmos, sem disso ter dado conhecimento aos autos, pois era sua intenção induzir os seus credores e manter em erro a recorrente quanto à verdadeira natureza substancial dos prédios.
I. A desconformidade formal e jurídica dos prédios era do conhecimento da ré compradora, pelo que em causa não está uma anulabilidade fundada em erro vicio de formação de vontade do comprador, mas sim em erro do vendedor fundado em dolo, por atuação do insolvente, com conhecimento da ré compradora que, por isso, também estava de má fé.
J. Resulta provado nos autos foi o executado quem no prédio descrito sob o número ... requereu todas as licenças administrativas e camarárias para a instalação e exploração de um posto de abastecimento combustíveis, que efetivamente foram concedidas, motivo pelo qual as respetivas descrições prediais e cadastros fiscais fizeram refletir a alteração da natureza do prédio em causa, passando a constar nos registos públicos essa natureza urbana e afetação económica, correspondente a um prédio urbano, com várias edificações, destinado à atividade económica de exploração de um posto de combustíveis.
K. O insolvente para além de ter requerido, e obtido, todas as licenças administrativas e camarárias pediu um empréstimo junto do Crédito ... para suportar os custos de construção do posto, o que foi concedido contra a constituição de garantia hipotecária sobre o próprio imóvel, ou seja, o prédio descrito sob o número ....
L. Resulta provado por perícia que o insolvente não levou a construção do posto de combustível no prédio descrito sob o número ..., tal como fazia crer toda a sua anterior atuação junto das autoridades administrativas e camarárias, e também junto da instituição financeira junto da qual se financiou e prestou garantias reais, mas sim no prédio descrito sob o número .., vendido à ré.
M. A atuação do insolvente teve por objetivo enganar terceiros, em particular o Crédito ... que havia emprestado os meios financeiros destinados à construção do posto de combustível.
N. O erro em que incorreu a recorrente somente foi possível pela atuação dolosa do insolvente que, ardilosamente, não deu a conhecer à recorrente, nem aos seus credores, em particular ao Crédito ..., que o posto não se encontrava construído no prédio descrito sob o número ..., mas sim no prédio descrito sob o número ...
O. A ré compradora do imóvel sabia que no prédio objeto de venda se encontrava edificado e instalado um posto de combustível, apesar de formalmente os documentos e registos públicos apenas descreverem a existência de um simples prédio rústico.
P. A ré compradora também sabia que a recorrente estava em erro sob o objeto em venda, pois sabia que esta não sabia que no prédio descrito sob o número .. se encontrava edificado e instalado um posto de combustível.
Q. Considerando a causa do erro em que incorreu a recorrente, imputável a dolo do insolvente, com conhecimento da ré, ao caso não é aplicável o regime previsto no artigo 838.º do CPC, mas sim o regime geral da anulabilidade dos negócios jurídicos, por erro e dolo, previsto nos artigos 247.º e 253.º do Código Civil.
R. Subjacente à posição do tribunal recorrido está o entendimento de que o ato cuja anulabilidade se requer não é um negócio jurídico privado, mas sim uma venda judicial, à qual se aplicaria em exclusivo o regime previsto no CPC.
S. Contudo, a boa doutrina têm entendido que apesar de especificidades próprias decorrentes da intervenção do estado, a venda judicial não deixa de ser um negócio jurídico privado, ao qual se aplica, em primeira linha, o disposto no CPC e, subsidiariamente, o previsto no código civil para o regime da compra e venda.
T. Por isso, estando em causa um negócio jurídico privado, é certo com especificidades próprias da intervenção do estado, e prevendo o artigo 838.º do CPC apenas um regime especial de anulabilidade de venda judicial estribado em erro vício do comprador, a situação descrita nestes autos de erro do vendedor por atuação dolosa do insolvente e proprietário, com conhecimento da ré que, por isso, estava de má fé, não poderia deixar de ter amparo legal, como decidiu o tribunal recorrido.
U. Somente por recurso ao regime geral do erro e dolo, previsto nos artigos 247.º e 252.º do Código Civil, tal situação poderá ser prevenida e reparada, com a consequente determinação da anulabilidade da venda e reingresso do prédio nos autos.
V. Contudo, se assim não se entender, o que não se consente, a venda em causa seria sempre nula, nos termos previstos nos artigos 280.º e 294.º do Código Civil, por ofensa dos bons costumes, nulidade essa invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso pelo tribunal, nos termos previstos no artigo 286.º do CC.
W. Ao conceito de bons costumes vem a associada a ideia de que nos negócios jurídicos cada uma das partes deve assumir uma série de atitudes correspondentes a exigências de ética profissional e privada e, numa perspetiva mais lata e também associado ao conceito de boa fé, que cada uma das partes deve assumir atitudes correspondentes a exigências fundamentais do sistema.
X. O insolvente alterou a realidade substancial dos prédios apreendidos nos autos, requerendo e obtendo licenças administrativas e apoios financeiros para a construção de um posto de combustível num determinado prédio, que afinal levou a cabo noutro de que também era proprietário, sem que para tanto não tenha dado a conhecimento dessa alteração quer aos registos públicos e autoridade tributária, nem aos seus credores, nem à recorrente.
Y. O comportamento do insolvente, de embuste, foi intencional e teve por finalidade enganar terceiros, em especial o credor Crédito ... que financiou a construção do posto e teve como garantia um prédio sobre o qual na verdade nada foi construído e, por isso, destituído de valor comercial, pelo menos o suficiente para garantir o empréstimo concedido.
Z. O embuste do insolvente prolongou-se no tempo também no processo de insolvência e no apenso de separação de bens no qual o prédio foi apreendido e vendido, pois nada disse sobre as divergências existentes nos prédios e os seus verdadeiros valores patrimoniais.
AA. A recorrente não tinha meio de conhecer o erro em que incorria, pois todos os documentos públicos retratavam a existência de um prédio urbano que afinal não tinha a natureza nem a composição neles descrita.
BB. Apesar de a recorrente ter acesso a ambos os prédios, não era possível percecionar o erro, pois são contíguos entre si, pelo que a recorrente fez fé nos documentos públicos que dispunha e obteve nos locais próprios.
CC. A ré compradora sabia da verdadeira natureza dos prédios e que a recorrente estava em erro quanto aos pressupostos da venda, pelo que estava de má fé.
DD. O insolvente atuou com a intenção de prejudicar terceiros, em particular os seus credores, objetivo que também foi conseguido pela ré compradora, pois ao adquirir um imóvel por 21.000,00 € que tem um valor comercial superior a 200.000,00 €, e quer tal apenas se ficou a dever a erro do vendedor por embuste do insolvente e anterior proprietário, não poderia deixar de saber, como efetivamente sabia, que com essa conduta estava também a prejudicar terceiros, ou seja, os credores do insolvente, aliado ao seu próprio enriquecimento.
EE. Não pode deixar de se considerar que a venda do imóvel nos termos descritos nos autos, pelo seu conteúdo e efeitos, é claramente atentatória do sentimento socialmente dominante e das boas práticas deontológicas aceites no comércio em geral,
FF. Pois os negócios jurídicos, normalmente, estabelecem entre as partes direitos e obrigações equilibradas, ponderados segundos juízos de racionalidade económica, o que não se verificou no caso em apreço nestes autos, em que uma das partes, a ré compradora, tem um benefício desajustado perante as obrigações assumidas, em manifesto prejuízo da outra parte.
GG. É manifesto que a venda do imóvel nos termos descritos é escandalosamente ofensivo do sentido ético-jurídico dominante, uma vez que importa uma finalidade totalmente estranha ao processo judicial, que era a de operar a venda do imóvel segundo regras claras e por todos conhecidas, sem causar prejuízo aos credores do insolvente, finalidade que foi conseguida pelo insolvente e pela ré, com recurso a astucia e, por isso, com dolo.
HH. A venda do imóvel revelou-se absolutamente leonina, pois só a ré beneficiou dos efeitos económicos da venda, que não teve a devida correspondência na vendedora, tamanha é a desproporção entre o valor do imóvel vendido e o preço pago.
II. Assim, a venda do imóvel nos termos descritos é ofensiva dos bons costumes e, por isso, nula, nos termos previstos nos artigos 280.º, 281.º e 294.º do CC, vicio esse que é de conhecimento oficioso pelo tribunal e que se invoca, cautelarmente, no caso de se entender que a venda não é anulável nos termos acima alegados.
JJ. Prevenindo a hipótese de tal não ser assim, pois o tribunal recorrido decidiu que apenas o comprador tem legitimidade para arguir a anulabilidade da venda, então parece que a ré terá praticado um ato lícito e insuscetível de ser jurídica e processualmente sancionado.
KK. A ser aceite a tese do tribunal recorrido, segundo a qual a recorrido não pode recorrer ao instituto do enriquecimento sem causa, atenta a sua natureza subsidiária, com a qual a recorrente não concorda, então faltará um dos pressupostos da responsabilidade civil, que é precisamente a ilicitude do ato, pelo que se verifica a impossibilidade de recurso a este instituto de moda a garantir a reparação do prejuízo causado pela ré.
LL. No caso de se entender que o ato de venda não é suscetível de se anulado nos termos previstos no regime geral da anulabilidade dos negócios jurídicos, então deverá a ré, subsidiariamente, ser condenada a indemnizar a recorrente por recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, nos termos peticionados nos autos, devendo a sentença sob recurso ser substituída por outra que condene a ré nestes termos,
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
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A Ré /Recorrida X - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A., apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida, nas quais além reiterar a argumentação vertida nas alegações anteriores à sentença, acrescentou que a A. não suscitou na petição inicial a questão nulidade da venda, ao abrigo do disposto nos arts 280º, 281º, 294º do CCivil, pelo que não pode ser conhecida em sede de recurso, acrescentando ainda que tal nulidade não se verifica, pois a venda não violou qualquer norma imperativa, e que não resultando da factualidade provada a existência de qualquer acordo ilícito ou conluio entre as partes intervenientes na venda que constituísse crime e inquinasse o processo, não tem aplicação a eventual possibilidade de uma eventual invalidade substantiva da venda conduzir à declaração da sua nulidade, apesar de não estar prevista nos arts 838º e 839º do CPC.

E interpôs recurso que denominou de subordinado, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

1. É absolutamente inequívoco que a citação da Co-Ré para contestar a presente acção não vinha acompanhada de nenhum dos 23 documentos aludidos na P.I.,
2. O que constitui motivo para a nulidade da mesma, conforme se reconhece a douta decisão recorrida;
3. Por outro lado, na citação recebida pela Recorrente, apesar de se referir que o prazo é contínuo, não é feita qualquer referência a que o mesmo não se suspendia nas férias judiciais, por se tratar de um processo urgente, conforme exige o artigo 138.º, n.º 1, segunda parte do CPC;
4. Aliás, nos casos de processos urgentes, na nota de citação, os citandos são sempre expressamente advertidos da natureza do processo e de que os prazos não se suspendem nas férias judiciais;
5. A citação dirigida à Recorrente não tem qualquer advertência quanto ao facto de o prazo se suspender nas férias judicias, isto é, a natureza urgente do processo e esta não tinha que assumir que tal processo tivesse tramitação urgente, até porque na parte final da citação é dito que “as férias judiciais decorrem de 22 de dezembro a 3 de janeiro; de domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de julho a 31 de agosto”.
6. Através da consulta do portal citius, a Recorrente verificou que as anteriores notas de citação que lhe haviam sido dirigidas (e que não recebeu), datadas de 8/05/2019 e 20/05/2019, expressamente referiam que o prazo para contestação da acção apesar de contínuo, suspendia-se durante as férias judiciais;
7. E as citações às outras Co-Rés e Interveniente no processo tinham a mesma informação;
8. Assim, a citação dirigida à Recorrente para além de não conter os 23 documentos que acompanhavam a petição é equívoca quanto ao prazo concedido para contestar a acção,
9. Sendo que a Recorrente não poderia ter concluído, através da mera leitura da nota de citação que o prazo, apesar de ser contínuo, não se suspenderia no decurso das férias judiciais, como é a regra geral do artigo 138.º, n.º 1 do CPC;
10. Outro qualquer entendimento seria atentatório dos mais elementares direitos de defesa da Recorrente, como seja o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º da CRP) e Princípio da igualdade (artigo 13.º) do Constituição da República Portuguesa;
11. Por outro lado, não obstante a presente demanda ter sido intentada como acção a apensar a um processo de insolvência, o Tribunal nunca o tramitou como sendo um processo urgente. 12. E também não foi tratado como urgente por nenhuma das partes,
13. Nem foi praticado nenhum acto processual no decurso das férias judiciais.
14. Todos os outros Réus na acção e a Interveniente foram informados nas notas de citação que o prazo para contestarem a acção (30 dias) se suspendia no decurso das férias judiciais. Por outro lado,
15. Os demais Co-Réus acordaram na prorrogação do prazo para contestarem a acção, tendo tal prorrogação sido aceite pelo Tribunal.
16. Julgar extemporânea a arguição da nulidade com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.º 1 do CIRE, seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas à Recorrente resultantes da tramitação do processo (que em nada teve precedência sobre o serviço ordinário do tribunal);
17. Sendo a citação efectuada na Ré, enquanto pessoa colectiva, não tem a mesma de saber, se o processo que contra si foi instaurado, corre termos com carácter de urgência e o que é que isso na realidade significa, designadamente quanto à contagem dos respectivos prazos.
18. Não é apreensível por um qualquer citando, que uma citação feita em processo declarativo comum, a correr em juízo cível comum, e sem qualquer menção quanto à sua natureza urgente, implique a prática do acto (contestação) no decurso das férias judiciais, quando é certo que na nota de citação é referido que as férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro; de Domingo de ramos a segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 31 de Agosto.
19. Como resulta do n.º 6 do artigo 157.º do CPC, os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso, prejudicar as partes;
20. A Recorrente fundou as suas expectativas numa situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência que decorre da forma como os actos foram praticados nos autos até à presente data, que em nada obedeceram à exigência de “precedência sobre o serviço ordinário do tribunal” associada à qualificação de urgente dada pelo artigo 9.º, n.º1 do CIRE.
21. Seria uma violação inaceitável dos princípios da igualdade, da confiança e do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigos 2.º, 13.º e 20.º da CRP) o entendimento diverso que conduzisse à impossibilidade da Recorrente em ver reconhecida a nulidade da sua citação com repetição da mesma, com a inclusão dos documentos juntos à P.I., essenciais para poder apresentar a sua contestação. Sem prescindir,
22. A Recorrente sempre aproveitaria do prazo de contestação das demais CoRés nos autos, sendo que o prazo destas apenas terminaria a 4 de Setembro de 2019 e a Recorrente arguiu a nulidade da sua citação em 3 de Setembro de 2019, ou seja, de forma tempestiva,
23. O que resulta do disposto no artigo 569.º, n.º 2 do CPC,
24. Ao decidir de forma diversa, a douta decisão recorrida, violou, entre outras as seguintes disposições legais: artigos 9.º e 85.º do CIRE, 138.º, 141.º, 219.º, n.º 3 227.º, 569.º todos do CPC e artigo 3.º, 13.º, e 20.º da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE SE REQUER SEJA CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E SEJA REVOGADA A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, DEVENDO SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONSIDERE VERIFICADA A NULIDADE DA CITAÇÃO DA RECORRENTE SENDO ORDENADA A REPETIÇÃO DA MESMA COM ENTREGA A ESTA DE TODOS OS DOCUMENTOS QUE FORAM JUNTOS COM A PETIÇÃO INICIAL, COM AS RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS E PROCESSUAIS.
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Por despacho de 13.09.2021, foram admitidos no Tribunal recorrido ambos os recursos, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Neste Tribunal foi proferido despacho de indeferimento do recurso subordinado da R. por falta de pressupostos legais, atenta a total improcedência da ação. Porém, nos termos do preceituado no nº3 do art. 193º do CPC, procedendo-se à correção oficiosa do meio processual utilizado pela R., determinou-se a apreciação da questão da nulidade da citação pela mesma suscitada, como ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, ao abrigo do art. 636º do CPC, e não como recurso subordinado, concedendo-se à autora e à interveniente principal I. M., que não se haviam pronunciado do sobre tal questão o prazo de 15 dias para o efeito.
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A A. pronunciou-se no sentido da manutenção da decisão proferida, enquanto a chamada veio dizer que nada tem a opor à nulidade da citação invocada pela R.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Face ao disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente.

Assim, as questões a decidir são:
1ª- Saber se a venda judicial realizada por meio de negociação particular e formalizada por escritura pública datada de 30.12.2011 é anulável com fundamento em erro sobre o objecto por parte da A. ou nula por violação dos arts 280º, 281º e 294º do C.Civil.
2ª- Em caso de resposta negativa, apreciar o pedido subsidiário formulado com base no enriquecimento sem causa.
3ª - Procedendo algum dos pedidos da A., a apurar da tempestividade da arguição da nulidade da citação suscitada pela R., admitida ao abrigo do disposto no art. 636º, nº2 do CPCivil.

III- FUNDAMENTAÇÃO

A- DE FACTO

A 1ª Instância deu como provada com base na confissão ficta resultante da ausência de contestação e nos documentos mencionados na petição inicial, juntos em 10.5.2019, a seguinte factualidade:

1. A autora, massa insolvente, resultou da declaração judicial de insolvência de A. C., nos autos de insolvência a que estes autos se encontram apensos;
2. O insolvente dedicava-se ao comércio a retalho de combustíveis e lubrificantes automóveis, o que fazia por meio de estabelecimento comercial próprio, sedeado em prédio urbano também próprio;
3. Como consequência da declaração de insolvência, foram apreendidos todos os bens e direitos pertencentes ao insolvente, tendo, para tanto, o senhor administrador de insolvência elaborado o respectivo auto de apreensão de bens;
4. Do auto de apreensão de bens faz parte o prédio urbano composto de edifício destinado a posto de abastecimento de combustíveis líquidos “estação de serviço” e logradouro, sito no Lugar de ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga;
5. O prédio em causa é composto por quatro bombas com área de 30 m2, duas casas de banho com área de 15 m2, uma dependência destinada a escritório com área de 8 m2, uma dependência destinada a “café-bar” com área de 30 m2, e logradouro com área de 757 m2;
6. E encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga, sob o número .../20001116, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ….º;
7. Do mesmo auto de apreensão de bens fazia igualmente parte o prédio urbano composto de parcela de terreno, com área de 776 m2, sito no Lugar de ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga, sob o número ../19910110, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...º;
8. Ambos os prédios, para além de se situarem no mesmo, lugar, freguesia e concelho, são confinantes, apresentando configuração e áreas semelhantes, tendo ambos sido igualmente adquiridos pelo insolvente à extinta Junta Autónoma das Estradas;
9. Foi neste prédio que o insolvente exerceu a sua actividade económica através do posto de venda de combustíveis fósseis que constitui com esse fim;
10. O insolvente, para o exercício desta actividade comercial, requereu junto da Câmara Municipal de … a abertura de um processo de licenciamento de um posto de combustíveis a instalar no prédio urbano acima descrito sob o nº ..., pedido esse posteriormente complementado por pedido de rectificação em relação aos limites do terreno previsto para o posto, na parte que diz respeito ao afastamento em relação à plataforma da E.N., assinado pelo próprio e datado de 28.03.1995;
11. Tais pedidos foram favoravelmente despachados por aquela autarquia, em 24.04.1995, tendo dado origem ao alvará de licença de construção n.º 2771/96, datado de 31.12.1996, emitido pela Câmara Municipal de … a favor do insolvente;
12. Foi, ainda, ao insolvente concedida pela Direcção de Estradas do Distrito de Braga, licença para a construção de um posto simples de abastecimento de combustíveis no referido local;
13. Finalmente, foi ao insolvente concedida pelo Ministério da Economia e da Inovação licença para, também naquele prédio, explorar uma instalação de armazenagem de combustíveis constituída por posto de abastecimento para venda ao público, mediante alvará n.º 2984/P, datado de 04.12.2005, correspondente ao Processo de Licenciamento n.ºD-20143/P;
14. De modo que foi o insolvente quem, junto das respectivas instituições públicas estaduais e autárquicas, obteve todas as licenças administrativas necessárias para a construção, instalação e funcionamento no referido prédio, de um estabelecimento comercial de posto de abastecimentos de combustíveis e loja de conveniência;
15. E, assim, foi o insolvente quem, no referido prédio e na posse destas licenças, procedeu à construção e instalação de todos os equipamentos e mecanismos afectos a posto de abastecimento de combustíveis em viaturas automóveis;
16. Tendo constituído, assim, um estabelecimento comercial de venda de combustíveis com loja de conveniência, sendo que o prédio confinante passou a servir de mero apoio de serviço ao primeiro, no qual foi licenciada a construção do posto;
17. Foi o insolvente quem suportou todos os custos com a obtenção das licenças administrativas necessárias à constituição e exploração do posto de abastecimento, bem como todos os custos com a concepção e construção do edificado e todas as suas dependências, de todos os equipamentos e mecanismos nele instalados;
18. Era o insolvente quem procedia à sua conservação e manutenção, à sua própria custa;
19. E, assim, foi o insolvente quem explorou, por sua conta, o estabelecimento de venda de combustíveis e loja de conveniência, fazendo seus os proveitos e suportando os respectivos encargos;
20. Foi o Insolvente que geriu este estabelecimento de venda de combustíveis, admitia e despedia trabalhadores, pagava os respectivos salários e contribuições sociais, contactava fornecedores e fazia as respectivas encomendas, quem pagava e vendia os respectivos produtos a terceiros, de quem recebia o preço e dava quitação, fazendo seus os respetivos ganhos;
21. Para suportar os custos de construção deste posto, o insolvente, em 04.01.1996, contraiu um financiamento junto da Caixa ..., no montante de €149.639,37, tendo, para esse efeito, constituído hipoteca voluntária a favor dessa instituição bancária, mediante escritura pública levada a registo pela Ap… de 04.01.1996, apresentada na Conservatória do Registo Predial de Braga;
22. Nessa ocasião, o insolvente atribuiu ao prédio o valor de 47.000.00$00 (quarenta e sete milhões escudos), atenta a viabilidade económica então licenciada;
23. E, assim, foi o insolvente quem procedeu à restituição parcial do capital mutuado pela referida instituição financeira, permanecendo em dívida a quantia de €66.924,56, acrescido de juros e outras despesas;
24. Foi também o insolvente quem assegurou o pagamento dos impostos próprios de ambos os prédios e os resultantes do exercício da sua actividade comercial naquele posto de abastecimento de combustíveis e da loja de conveniência;
25. E, por si e por terceiros em sua representação, sempre entrou e saiu destes prédios e do estabelecimento a qualquer hora do dia ou da noite, utilizando as suas próprias chaves, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercer um direito próprio e de que não ofendia direitos de terceiros;
26. A autora, enquanto representante legal do insolvente, detinha a posse de ambos os prédios e do estabelecimento à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e sem ofender o direito de terceiros;
27. E ininterruptamente exercida não só pela autora desde que chegou à sua posse, mas também pelos seus ante possuidores, há mais de 50 anos;
28. O insolvente, e assim também a autora, sempre foi e continua a ser reconhecido pelos vizinhos e confinantes, por clientes, fornecedores e pela generalidade das pessoas como dono, com exclusão de outrem;
29. Bem como de todas as benfeitorias neles existentes, incluindo, por isso, o estabelecimento comercial nele instalado;
30. A autora tomou conhecimento de que a sociedade Ré Y se encontrava a ocupar, e ainda se encontra, o estabelecimento comercial pertencente à massa insolvente, instalado no prédio urbano descrito sob o número ..., recusando-se a abandonar o mesmo sob o pretexto de que se encontrava legitimada para tal;
31. Perante a recusa da Y na desocupação, a autora deduziu acção de reivindicação contra aquela, com vista à entrega coerciva do referido prédio e estabelecimento comercial;
32. Nesse processo, alegou a sociedade Y que o estabelecimento reivindicado pela autora foi adquirido pela sociedade TRANSPORTES W, mediante contrato de trespasse celebrado com a sociedade “Petro ... – Comércio de Combustíveis, unipessoal, Lda”;
33. Que, por sua vez, na alegada qualidade de proprietária do estabelecimento celebrou um contrato de cessão de exploração do mesmo com a sociedade Y;
34. Acrescentou ainda a Y em sua defesa que, para além de ser legítima a sua ocupação, faltaria, ao invés, legitimidade para a autora reivindicar o estabelecimento em causa, uma vez que o mesmo não se encontrava sedeado no prédio reivindicado descrito sob o número ..., mas sim no prédio descrito sob o número ..;
35. O tal prédio confinante e que servia de simples apoio logístico ao prédio onde se encontrava instalado o estabelecimento;
36. O processo em causa veio a findar por desistência da instância da autora, uma vez que haviam sido encetadas negociações entre as partes com vista à resolução extrajudicial do diferendo, negociações essas que, no entanto, não foram concluídas com sucesso;
37. A autora deduziu nova acção de reivindicação, desta feita não só contra a sociedade Y, mas também contra a Ré X, com vista a convencer a primeira da titularidade do seu direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, processo esse que corre termos por apenso aos autos principais, sob a letra “W”;
38. No âmbito desse processo e para cabal esclarecimento das partes, o Tribunal ordenou a realização de uma peritagem de modo a determinar a efectiva localização do estabelecimento comercial, se no prédio descrito sob o número ... ou no prédio descrito no artigo ..;
39. Peritagem que então foi ordenada pelo Tribunal e entregue nos autos em 04.03.2019;
40. Para surpresa da autora e contra todos os elementos documentais conhecidos, a peritagem revelou que o estabelecimento comercial afinal se encontrava instalado no prédio descrito sob o número .. e não prédio descrito sob o número ..., como a autora e todos os demais credores da insolvência pensavam que era, suportados em elementos documentais de natureza pública;
41. Na verdade, resulta da descrição predial disponibilizada pela conservatória do registo predial que o prédio com o número ... é composto de edifício destinado a posto de abastecimento de combustíveis líquidos “estação de serviço” e logradouro, sito no Lugar de ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga;
42. E o prédio descrito sob o número .., composto de parcela de terreno, com área de 776 m2, também sito no Lugar de ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga;
43. Do mesmo modo, por consulta aos elementos cadastrais disponibilizados pela Autoridade Tributária também resulta que o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo …, a que corresponde o prédio descrito sob o número ..., é composto de prédio urbano destinado a um posto de abastecimento de combustíveis líquidos – Estação de Serviço -, composto por quatro bombas, casa de banho, uma dependência destinada a escritório e uma dependência destinada a “café-bar”, com área coberta de 83 m2 e logradouro de 752 m2, sito no Lugar de ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga;
44. E que o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo …, a que corresponde o prédio descrito sob o número .., é composto de parcela de terreno para construção urbana, com a área de 776 m2, sito no Lugar de ..., na margem direita da E.N. 14, da freguesia de ..., concelho de Braga;
45. Acresce ainda que, foi sobre o prédio descrito sob o número ... que o insolvente requereu e lhe foram concedidas todas as licenças administrativas e camarárias para a instalação do posto de combustível, bem como executados todos o projectos de especialidade construtiva, redes de água e saneamento e electricidade, e ademais acessibilidades rodoviárias;
46. E emitidas as licenças administrativas pelos Ministérios dos Transportes e da Economia para a instalação e exploração económica do posto de combustível;
47. Finalmente, foi também sobre prédio descrito sob o número ... que o insolvente contraiu um financiamento hipotecário para custear a construção do posto de combustível, ao qual o próprio insolvente atribuiu o valor comercial de 47.000 contos, na moeda antiga;
48. Em função dos elementos conhecidos, acima descritos, o referido estabelecimento comercial foi apreendido a favor da massa insolvente integrado no prédio descrito sob o número ..., tendo desencadeado a reacção da autora em defesa do seu património, através da referida acção de reivindicação;
49. Facto que agora o relatório judicial vem contrariar, esclarecendo que afinal o estabelecimento se encontra edificado no prédio descrito sob o número .., o que a autora desconhecia e de que só tomou efectivo conhecimento com o relatório de peritagem;
50. Paralelamente ao procedimento de liquidação do activo da massa insolvente, correu termos acção de inventário para separação de bens, requerida pelo cônjuge do Insolvente, I. M., na sequência de processo executivo previamente instaurado contra aquele, tendo posteriormente sido apensado aos autos principais sob a letra “B”;
51. Nesses autos o cônjuge do insolvente, atento o regime de bens pelo qual contraíram matrimónio, que foi o do regime de comunhão de bens adquiridos, relacionou todos os bens alegadamente comuns, entre os quais os acima referidos prédios urbanos descritos sob os números ... e ..;
52. Perante a inércia da cabeça-de-casal em juntar aos autos elementos referentes à inscrição e descrição prediais de modo a demonstrar que os bens imóveis relacionados eram bens comuns do casal, o Tribunal, por despacho datado de 15.01.2008, ordenou a eliminação da relação de bens de todas as verbas, com excepção da n.º 12, que assim passaram a ser consideradas como bens próprios do Insolvente e, assim, também objecto de liquidação no âmbito da insolvência pessoal do cônjuge insolvente;
53. A verba n.º 12 da relação de bens correspondia precisamente ao prédio urbano descrito sob o número ..;
54. Tendo o prédio urbano descrito sob o número ..., relacionado sob a verba n.º 13, passado a integrar a massa insolvente como bens próprios do insolvente;
55. Na conferência de interessados que se lhe seguiu, perante a ausência de interesse das partes em licitar a única verba em partilha, ambas requereram a sua venda judicial, mediante propostas em carta fechada, pelo preço de €20.000,00, o que foi ordenado pelo Tribunal;
56. As partes assim acordaram no convencimento de que a verba n.º 12, referente ao prédio descrito sob o número ..., correspondia a uma mera parcela de terreno e, por isso, com reduzido valor comercial;
57. Não suspeitando, assim, que tal verba corresponderia ao estabelecimento comercial do Insolvente, o posto de combustível onde exerceu a sua actividade comercial, o qual havia sido avaliado no processo de insolvência em €300.000,00;
58. Para efeito da venda judicial ordenada, o Tribunal elaborou o respectivo anúncio de venda, no qual consta a descrição do prédio a vender, apenas composto de parcela de terreno com a área de 776 m2, localizado no Lugar de ..., freguesia de …, concelho de Braga, e o preço de venda mínimo, ou seja, 70% de 20.000,00 €;
59. Perante a ausência de propostas, o Tribunal ordenou a venda da verba n.º 12 por negociação particular, com encarregado de venda nomeado para esse efeito;
60. Em 10.12.2008, o encarregado de venda nomeado pelo Tribunal juntou aos autos um pedido de prorrogação de prazo que lhe foi concedido para proceder à venda do bem, tendo, em 06.01.2009, junto aos autos uma proposta de compra da verba anunciada, pela quantia de €20.000,00, proposta essa que veio a ser rejeitada, tendo o encarregado de venda sido instado pelo Tribunal para obter uma melhor proposta;
61. Em 05.02.2009, o encarregado de venda requereu novamente a prorrogação do prazo para proceder à venda do bem;
62. Em 17.02.2009, o encarregado de venda juntou aos autos uma proposta de compra da verba n.º 12, pelo valor de €21.000,00, proposta essa apresentada pela ré X, e que veio a ser aceite pelo Tribunal, por não ter merecido oposição dos interessados;
63. E assim, por escritura pública datada de 30.12.2011, outorgada pela notária Dr.ª M. M., com cartório na cidade de Braga, a ré X comprou, pelo preço de €21.000,00 a acima referida parcela de terreno, descrita na conservatória do registo predial sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo .., registado a seu favor esta aquisição na conservatória do registo predial pela AP.1203, de 31.08.2012;
64. Se fosse do conhecimento das partes que a verba n.º12 continha o estabelecimento, o preço de venda não seria o anunciado, mas sim o resultante da avaliação a essa verba, que foi de €300.000,00;
65. Por outro lado, a ré X sabia que o erro em que a autora incorria foi essencial na determinação da sua vontade, conhecimento esse que adveio do teor do anúncio e das condições de venda do imóvel; 66. A ré X sabia, ou pelo menos tinha a obrigação de saber, que a verba que adquiriu à autora não correspondia à verba anunciada, que tal divergência entre o anunciado e o efectivamente vendido não poderia deixar de resultar de erro da vendedora e que esse erro foi essencial na viciação da vontade da autora em vender o imóvel em causa nas condições em que o fez.

B- DE DIREITO

Face ao teor das alegações da A. importa desde já fazer algumas precisões sobre o âmbito do recurso.
Os recursos são, por definição, o meio processual para obter a reapreciação de uma decisão e não para lograr a decisão de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. Com efeito, é jurisprudência uniforme que em sede de recurso não podem ser apreciadas questões que não foram abordadas nos articulados, nem decididas na sentença recorrida, pois tal desvirtuaria a finalidade dos recursos, violaria o princípio da preclusão e conduziria à supressão de um ou mais graus de jurisdição, prejudicando, assim, a parte que ficasse vencida. A excepção a esta regra são apenas as questões do conhecimento oficioso que o Tribunal superior tem obrigação de conhecer mesmo perante o silêncio das partes – A este propósito vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 08-10-2020, Proc. 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, relatado por Ilídio Sacarrão Martins, e da RG de 08-11-2018; Proc. 212/16.5T8PTL.G1, relatado por Afonso Cabral de Andrade, ambos in www.dgsi.pt.
Ora, da leitura da petição inicial decorre que a A. pediu a declaração de anulabilidade da venda do imóvel pertencente ao património comum do insolvente e seu cônjuge, com fundamento em erro sobre o objecto, isto é, sobre as características do imóvel vendido, invocando os arts 247º e 251º do C.Civil.
E nas alegações de recurso a A. vem invocar um novo fundamento para o pedido de anulabilidade da venda, a atuação dolosa do insolvente / proprietário, com conhecimento da ré X, que teria agindo de má-fé, pugnando pela aplicação do regime dos arts 247.º e 253.º do Código Civil. Ou seja, na petição invocou como causa de pedir o erro simples e em sede de alegações faz apelo ao erro qualificado por dolo. Ora, tal alteração consubstancia uma modificação na causa de pedir e uma questão nova não colocada ao tribunal recorrido, estando pelas razões acima referidas vedado a este Tribunal o conhecimento da mesma, pelo que apenas se apreciará se a venda pode ser anulada com fundamento no erro sobre o objecto por parte da A. e não com base no dolo.
Já quanto à invocada nulidade da venda por violação dos arts 280º, 281º e 294º do CCivil, sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado e do conhecimento oficioso do tribunal, não obstante também se tratar de uma questão nova, não suscitada no tribunal recorrido, apreciar-se-á. A propósito da questão do objecto do processo e do âmbito da actuação das partes e do tribunal, especialmente quando está em causa a anulação de um negócio jurídico, veja-se igualmente o Ac. do STJ de 18-01-2018, Proc. nº 1005/12.4TBPVZ.P1.S1., relatado por Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt, no qual se defende que numa acção cujo objecto seja integrado exclusivamente pela declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação, o tribunal não pode declarar a anulação do mesmo com fundamento na falta de consentimento dos outros filhos dos vendedores, uma vez que a arguição das anulabilidades, para além de depender da iniciativa do interessado, está sujeita a um prazo de caducidade que não é do conhecimento oficioso (art. 287ºdo CC).

A sentença decidiu pela falta de legitimidade substantiva da A. para formular o pedido de anulabilidade da venda com fundamento em erro sobre o objetco, considerando que não estando em causa um negócio privado celebrado entre o insolvente, o seu cônjuge e a R. X, mas antes uma venda judicial efectuada por negociação particular no âmbito do processo de inventário para separação de meações que correu por apenso ao processo de insolvência, a tal venda devem ser aplicadas as regras previstas no Código de Processo Civil para a venda de bens em processo executivo, designadamente o art. 838º, nº1, que preceitua: «Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil».
E deste normativo retirou as seguintes ilações: “À luz da norma acabada de transcrever, uma primeira conclusão se alcança: a legitimidade para pedir a anulação da venda com fundamento em erro sobre a coisa vendida ou qualidades dela, por falta de conformidade com o anunciado, é exclusiva do comprador.
Com efeito, resulta cristalino que só o comprador tem legitimidade para pedir a anulação da venda com fundamento em erro sobre o objecto transmitido ou sobre as qualidades do mesmo por falta de conformidade com o que foi anunciado. Ora, a aqui autora – e a interveniente principal – não intervieram no negócio posto em crise. Na verdade, esse negócio foi outorgado entre o encarregado da venda – devidamente mandatado pelo Tribunal para o efeito – e a aqui ré, esta última na qualidade de compradora. Isto não significa que só o comprador possa ser prejudicado por eventual discrepância entre as qualidades do bem vendido e o que foi anunciado. Significa, tão-só, que só o comprador pode pedir a anulação da venda com fundamento no erro do comprador sobre o bem transmitido – neste sentido, vd. o Ac. do STA de 12.07.2017, processo n.º 010/17, disponível em www.dgsi.pt.”.
A A. insurge-se contra o decidido, defendendo, em síntese, que o tribunal recorrido fez uma errada interpretação das normas aplicáveis aos factos provados, em especial no que respeita ao regime da anulabilidade da venda executiva consignado no artigo 838.º do CPC, pois ao caso não se aplica tal regime, mas sim as regras gerais sobre a anulabilidade dos negócios jurídicos e que a ser aceite a tese do tribunal recorrido ficariam desamparados um conjunto de outros vícios suscetíveis de influenciar a venda judicial e determinar a sua anulabilidade de acordo com as regras gerais da invalidade ou ineficácia dos negócios jurídicos, que também se aplicam. Acrescenta ainda que, a boa doutrina tem entendido, apesar das especificidades próprias decorrentes da intervenção do Estado, a venda judicial não deixa de ser um negócio jurídico privado, ao qual se aplica, em primeira linha, o disposto no CPC e, subsidiariamente, o previsto no código civil para o regime da compra e venda.

Assim, ante as posições das partes, importa saber quais as normas aplicáveis à venda do imóvel em apreço que foi realizada em 2011 num processo de inventário para separação de meações iniciado por apenso a uma acção executiva e que, em consequência da declaração de insolvência do executado passou a correr por apenso aos autos de insolvência.

Tal inventário regia-se pelo art. 1406º do CPC então em vigor (correspondente ao art.1135º do código actual) que preceituava:

1- Requerendo-se a separação de bens nos termos do art. 825º, ou tendo de proceder-se à separação por virtude da falência de um dos cônjuges, aplicar-se-á o art. 1404º, com as seguintes alterações:

a) O exequente, no caso do art. 825º, ou qualquer credor, no caso de falência, tem o direito de promover o andamento do inventário;
b) Não podem ser aprovadas dívidas que não sejam devidamente documentadas;
c) O cônjuge do executado ou falido tem o direito de escolher os bens com que há-de ser formada a sua meação; se usar desse direito, são notificados da escolha os credores que podem reclamar contra ela, fundamentando a queixa.
2- Se julgar atendível a reclamação, o juiz ordena a avaliação dos bens que lhe pareçam mal avaliados.
3- Quando a avaliação modifique o valor dos bens escolhidos pelo cônjuge do executado ou falido, este pode declarar que desiste da escolha; nesse caso, ou não tendo ele usado do direito de escolha, as meações são adjudicadas por meio de sorteio.

Como se vê, este preceito legal conferia (e o actual continua a conferir) ao exequente ou aos credores da massa insolvente o direito de intervenção no inventário por forma a evitar que a meação do executado/ insolvente fosse integrada por bens de valor inferior aos bens escolhidos pelo seu cônjuge para comporem a respectiva meação, podendo os credores reclamar da escolha dos bens feita por este o juiz determinar uma avaliação dos bens.
Na verdade, revertendo os bens da meação do executado/ insolvente para os credores, estes são os principais interessados numa partilha célere e igualitária dos bens comuns do casal e para tal a lei permite-lhes intervir no respectivo inventário.
E havendo lugar à venda de bens num processo especial, como é o inventário, dizia o nº 2 do art. 463º do CPC então vigente (que corresponde ao art. 549ºdo Código actual) que a mesma devia ser feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no nº1 do artigo 864º, observando-se quanto à verificação dos créditos as disposições dos arts. 865º e segs, com as necessárias adaptações.
Mercê desta remissão, não restam dúvidas de que a venda em apreço devia ser realizada, como foi, pelas formas previstas no processo de execução e, como tal, aplicam-se-lhe também as normas respeitantes à invalidade da venda então previstas nos arts 908º e 909º (que correspondem com ligeiras alterações aos actuais arts 838º e 839º), com as devidas adaptações, pois inexiste um processo executivo e algumas das causas de anulação aí previstas estão directamente relacionadas com as vicissitudes deste.
Ora, aplicando-se estes preceitos legais, outra questão se levanta, qual seja, a de saber se a enumeração das causas de anulação da venda executiva constante de tais normativos é taxativa.
A questão é antiga. Face à redacção do nº1 do art. 909º que era idêntica à do nº 1 do actual art. 839º/1, onde se lê: “Além do caso previsto no artigo anterior, a venda só fica sem efeito:”, já Alberto dos Reis, in Processo de Execução, Vol.2, Almedina,1985, p.468, ensinava que a enumeração feita no art.909º tinha carácter taxativo, como mostra claramente o advérbio “só”. Porém, acrescentava como devia entender-se tal asserção. E debruçando-se sobre algumas situações processuais que podem ocorrer na tramitação do processo e não estavam previstas, por exemplo, a realização da venda após o pagamento da quantia exequenda por falta de comunicação ao tribunal deprecado do despacho de sustação da execução ou a revogação ou sede de recurso do despacho que havia indeferido o pedido de adiamento da arrematação, concluía a pág 473 que, ao lado das causas específicas de ineficácia da venda, mencionadas nos artigos 908º e 909º, tinham que admitir-se as causas gerais impostas pela disciplina do processo executivo, ou seja, situações em que a aplicação do mecanismo do processo de execução conduzisse necessariamente à anulação da venda. Por outro lado, defendia que o carácter taxativo da enumeração legal impedia que se aditassem novas causas de anulação da venda à enumeração legal, mas não impedia a interpretação extensiva das situações previstas nas diversas alíneas. Algumas das situações pelo mesmo equacionadas, como a procedência dos embargos à execução após a realização da venda já constam do elenco legal, mas o princípio de que as várias alíneas do actual art. 839º do CPC admitem interpretação extensiva, abrangendo as situações que não cabem na letra, mas cabem no espírito da lei, mantém-se.
Eurico Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3ª Ed. Almedina,1992, págs 588 e 589, defendia que a enumeração constante dos arts 908º e 909º do CPC tem carácter taxativo, acrescentando que a venda ficava igualmente sem efeito quando tal resultasse de outras disposições do CPC e que a taxatividade dos artigos 908º e 909º não obsta a que a venda fique sem efeito nos casos em que a lei substantiva determina a sua nulidade.
Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 1ª ed., pp. 966 a 977, tratando a invalidade da venda executiva de forma detalhada, ensina que o acto da venda judicial pode ser impugnado por invalidade material, invalidade processual e ineficácia superveniente, consoante tenha lugar um vício de violação de normas materiais ou processuais ou tenha lugar uma ausência de efeitos sem violação normativa.
E explicitando o seu entendimento escreve: “Para tal, prima facie, devem ser chamados à colação os arts 908º a 911º (838ºa 841ºnCPC.). Mas tratando estes preceitos legais apenas de uma parte de tais invalidades, fora do seu âmbito valem os fundamentos e os regimes gerais do Código Civil, por o comprador executivo merecer tanta protecção como se fora negocial.
Todavia, importa considerar que o regime processual civil de invalidades tem uma capacidade expansiva maior do que decorre do seu teor literal e que os regimes gerais civis não podem ser aplicados, sem consideração dos princípios públicos do processo civil e da venda executiva. É que se é certo que as normas de direito privado podem ser aplicadas seja atento o seu carácter subsidiário para os actos jurídicos de que o processo é composto, seja aos efeitos patrimoniais privados da venda executiva, porém, não estamos perante um contrato, mas perante uma transmissão executiva. Esta não pode ser sujeita à instabilidade (limitada é certo) que o regime da declaração negocial acarreta. Na realidade, o regime civil comporta aspectos que supõem uma igualdade entre os interesses das partes algo postergada na venda executiva por um favor creditoris compensado pelo baixo valor de aquisição dos bens.”
E concretizando continua: “Deste modo, diríamos que há invalidades materiais absolutas que na ausência de norma processual especial não podem deixar de ser regidas pelo Código Civil. A falta de personalidade ou de capacidade jurídicas - do terceiro, não da parte, pois para esta valem as regras processuais - a venda de coisa alheia, a impossibilidade física ou legal, a contrariedade ou inadmissibilidade legal, a contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes, pois, correspondendo a valores que são condições de existência do próprio tráfego jurídico privado não podem, por isso, ser postergados.
Ao contrário, o erro e o vício na formação da vontade e divergência entre a vontade real e a vontade declarada merecem uma cuidadosa ponderação de interesses entre a execução e o terceiro.
No plano abstrato, o erro na formação da vontade do adquirente do bem na ação executiva pode decorrer de coação moral, conforme o art. 255º do CC, erro sobre os motivos, regulado pelo art. ...º CC, e erro sobre o objeto tratado nos arts 247º a 251º do CC.
Ora, podem configurar-se actos de venda praticados por coação moral sobre o terceiro, sujeitos às regras gerais. A relevância da vontade concreta do adquirente no acto impõe a sua consideração. Mas já é mais duvidoso que se possam relevar no processo os motivos- económicos, pessoais- da aquisição por terceiro. Se o agente de execução sabia que o terceiro só compraria um livro antigo por pensar ser exemplar único, não parece que a ulterior descoberta de mais exemplares possa autorizar uma anulação. Para uma e outros valem aqueles regimes civis gerais, embora nos pareça que somente a coação moral tenha real relevância.” (…)
E analisando os diversos “vícios” que podem afectar a declaração de vontade do comprador, a fls 970, especificamente quanto ao erro sobre o objecto, defende que é somente no nº 1 do art. 908º = art. 838º, nº1 nCPC que se devem procurar os requisitos e efeitos de tal erro e não no Código Civil, afirmando que “ tanto no caso de ónus oculto, como de desconformidade objectiva, o erro sobre o objecto vendido não apresenta, nomeadamente, o requisito geral subjetivo ( cf. art. 247º CC e , ainda, o art. 251º do CC) da cognoscibilidade para o declarante – agente de execução – da essencialidade para o declaratário – adquirente – do elemento sobre que incidiu o erro em questão por parte do declaratário. Isto porque o interesse do adquirente prevalece sobre o interesse do exequente ou do credor reclamante.”
Termina mencionando diversas posições quanto à natureza jurídica da venda executiva, salientando que não é um contrato, pois este supõe um acordo de vontades entre vendedor e comprador, o que não existe na venda executiva, pois nesta há do lado do transmissário uma vontade de adquirir, mas nenhuma vontade pode ser imputada ao executado para quem a venda é um acto forçado, não sendo o tribunal um representante deste, o que explica que não se achem questões de vícios de vontade do executado. E conclui que a venda executiva é um acto de direito público de transmissão onerosa de direitos privados em ordem ao pagamento da obrigação exequenda. (os sublinhados são nossos)
J. de Castro Mendes/ M. Teixeira de Sousa, in Manual de Processo Civil, AAFDL Editora, 2022, Vol. II, pp. 947 e 949, tratando da invalidade da venda referem que o regime da invalidade da venda se desdobra pelos art. 838 º e 839º nº1 e 3, reportando-se o 838º à invalidade da venda na perspectiva do adquirente do bem vendido e o art. 839º, nºs 1 e 3 à invalidade da venda na óptica do executado. E a seguir fazem a análise com base nas categorias de invalidade substancial e formal, considerando que a invalidade substancial respeita aos aspectos relacionados com a vontade de adquirir o bem ou com a titularidade deste e a invalidade formal decorre de fundamentos processuais.
A propósito da invalidade substancial da venda executiva, entendem que a formação da vontade do adquirente na venda executiva pode ser afectada: por coacção moral (art. 255º do CC) ou por erro na declaração (art. 247º), sobre os motivos (art. ...º, nº1 CC) ou sobre o objecto (art. 251º CC). E que apesar da falta de qualquer previsão específica no CPC as situações de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, quer por falta de consciência da declaração ou de coacção física (art. 246º CC), quer de erro na declaração (art. 247º do CC) estas também podem justificar a invalidade da venda, admitindo assim a aplicação subsidiária do C.Civil. E relativamente ao erro sobre o objecto dizem que o art. 838º do CPC (anterior 908º) contém um regime especial não só perante o regime geral do erro sobre o objecto (art. 251º do CC) mas também perante a regulamentação, já em si especial, do erro na venda de coisas oneradas (art. 905º a 912º do CC), aplicando-se, em primeiro lugar as regras previstas no art.838º, depois as regras relativas à venda de coisas oneradas e, finalmente, o regime geral sobre o erro do art. 251º do CCivil.
José Lebre de Freitas, in A Acção Exectiva, Coimbra Editora, 6ª Ed., 2014, pp. 395 a 401, começa por referir que a venda executiva é anulável quando ocorra algum dos fundamentos indicados nos arts 838 e 839º do CPC. E faz a análise de tais fundamentos com base na distinção entre os que visam a tutela do comprador e a tutela de outros interessados, escrevendo: “Os dois primeiros fundamentos (existência de ónus ou limitação não considerados e erro sobre a coisa transmitida) constantes do art.838º, visam a tutela do comprador e por isso estão na sua inteira disponibilidade. Integram situações de erro acerca do objecto jurídico (ónus ou limitação) ou material (identidade ou qualidade da coisa transmitida) da venda, mas têm a caracterizá-los, quando comparado o seu regime com o regime geral da anulação do negócio por erro (arts 247º e 251º do CC.) a dispensa dos requisitos de que a lei a faz depender, designadamente a essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário; basta por isso que o ónus ou limitação não tenha sido tomado em consideração ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido divirjam das que tiverem sido anunciadas.(…) Não só por erro a venda executiva pode ser anulada a requerimento do comprador. Este pode fazer valer contra ela os restantes fundamentos da anulação do negócio jurídico (incapacidade, dolo coação) O preceito do art. 838º tem a justificá-lo o especial regime do erro, mas, considerado o interesse do comparador tão merecedor de tutela como o comprador na compra e venda privada, não visa impedir a anulação no caso de ocorrer outro fundamento de acordo com a lei geral. No entanto, esses outros fundamentos são de muito difícil verificação na venda executiva.
Os restantes fundamentos constantes do art 839º, não visam já tutelar o comprador, mas sim o executado (alíneas a) e b)), o terceiro proprietário (alínea d)) ou uma das partes no processo alínea c).”
E fazendo uma breve análise de cada um destes fundamentos, quanto ao fundamento da al.c) que respeita à anulação do ato da venda nos termos do art. 195º refere que pode ocorrer, quer por nulidade da própria venda (nº1), quer por nulidade de ato anterior de que dependa absolutamente (nº2).
A finalizar discorre sobre a natureza da venda executiva, referindo que a questão é discutível, não só pela intervenção que o tribunal tem na sua realização para a qual não conta, ou só conta em pequena medida, a vontade do proprietário do bem vendido, mas também considerando as particularidades do seu regime que a afastam do regime da compra e venda comum. Designadamente, a regra da caducidade do art. 824º, nº2 do CC, que tem como consequência a aquisição pelo comprador de mais do que aquilo que o proprietário lhe podia transmitir, a anulação do acto tem um regime distinto do de direito civil e distintos são também o regime do pagamento do preço e as sanções decorrentes, nos termos do art. 825º, da sua inobservância. Concluindo que a sujeição da venda executiva, para além destas disposições especiais, ao regime geral da compra e venda leva a caracterizá-la como um contrato especial de compra e venda com características de acto de direito público.
Nas palavras de Alberto dos Reis, a venda executiva é uma “providência de expropriação que priva o executado, contra a sua vontade, do direito de propriedade sobre os bens transmitindo-os ao adquirente”.

Feita esta resenha das posições doutrinárias relativas à venda executiva, não obstante ligeiras diferenças, todos os autores convergem no seguinte:

a) - Os artigos 838º e 839 do CPC (arts 908º e 909º do CPCA) consagram um regime especial de anulação da venda executiva.
b) - O art. 838º estabelece um regime específico de anulação para o comprador, que afasta o regime geral do Código Civil quanto aos aspectos especialmente regulados, aplicando-se subsidiariamente em relação ao mesmo o regime geral do C.Civil, nomeadamente quanto aos vícios da vontade, porquanto da parte do comprador existe uma declaração negocial.
c) - O art. 839º estabelece os demais fundamentos de anulação da venda que visam tutelar os interesses dos outros interessados. As alíneas a), b) e c) garantem a salvaguarda dos direitos das partes no processo executivo (executado, exequente, credores) e a alínea d) tutela o direito de propriedade de terceiro que por algum motivo veja um bem indevidamente penhorado e vendido.
d) - Fora destes casos a venda executiva só pode ser anulada se verificado algum fundamento de nulidade absoluta face à lei substantiva.

Ora, a venda aqui em apreço não foi efectuada num processo executivo, mas, com já dissemos, por força do art. 463º do CPC então vigente, e não do art. 17º do CIRE porque a venda não foi realizada no processo de insolvência, seguiu as regras estabelecidas no processo de execução. Primeiramente tentou-se a sua realização mediante propostas em carta fechada e, face à ausência de propostas, foi efectuada por negociação particular, por isso, aplica-se-lhe igualmente o disposto no CPC no que respeita às causas de invalidade, com as devidas adaptações, tendo-se em consideração, nomeadamente, os direitos processuais conferidos aos credores no art. 1406º.
Por conseguinte, se o administrador da massa insolvente e a comissão de credores não tivesse sido chamados ao processo de inventário e não lhes tivesse sido dada a oportunidade de se pronunciarem sobre o valor base de venda do imóvel, visto que os cônjuges não licitaram e o processo prosseguiu com a venda daquele que era o único bem a partilhar, tal podia ser fundamento de anulação da venda porque havia sido omitida uma formalidade exigida por lei, aplicando-se por interpretação extensiva, a al. c) do nº1 do art. 909º. Mas tal não sucedeu, os direitos legalmente conferidos aos credores no processo de inventário foram respeitados, tendo a então administradora judicial da A. e os representantes da comissão de credores estado presentes na conferência de interessados e dado a sua anuência à venda do imóvel pelo valor base de € 20.000,00.
Sobre a necessidade da intervenção dos credores no inventário para separação de meações, veja-se a este propósito o Ac. do STJ de 22-01-2008, proc. 07A4033, relatado por Garcia Calejo, in www.dgsi.pt que num inventário para separação de meações anulou a sentença homologatória da transacção celebrada na conferência de interessados pelos cônjuges porque foi realizada sem a intervenção dos credores/exequentes.
Porém, no presente caso, as regras processuais foram observadas. E não existe arrimo legal para a A., pedir a anulabilidade da venda com fundamento no regime geral do erro sobre as qualidades do imóvel objecto de venda previsto no art. 251º do C.Civil.
Os referidos autores, com pequenas diferenças entre si, preconizam a aplicabilidade do regime geral do Código Civil quanto à anulabilidade dos negócios jurídicos, nomeadamente na parte relativa aos vícios da vontade, mas apenas em relação ao comprador na venda executiva, pois este emite uma declaração de vontade e merece em princípio tanta protecção como se a venda fosse negocial. Já não defendem tal aplicação em relação aos intervenientes no processo (exequente, executado e credores) porquanto estes não emitem no acto da venda qualquer declaração negocial, pois o vendedor é o Estado, por meio do Tribunal. E para a tutela dos direitos dos intervenientes no processo o legislador estabeleceu as causas de anulação previstas no art. 909º, nº1, alíneas a), b) e c).
O legislador com este regime especial de anulação da venda judicial visou torná-la não impugnável e definitiva num prazo razoável e, por isso, estabeleceu procedimentos destinados a apreciar os pedidos de anulação no próprio processo executivo, fixando um prazo curto aos interessados (cfr. arts 838º/ nº2 e3 e art. 839º, nº3 do CPC). E mesmo no regime da reivindicação por terceiro do bem vendido, previsto nos arts 840º e 841º do CPC, aquele desiderato está patente.
Em conclusão, sendo as causas de anulação da venda executiva/ judicial as taxativamente previstas nos arts 908º e 909º e sendo tal regime aplicável à venda judicial em apreço, não assiste à A. legitimidade para pedir a anulação da venda realizada com fundamento no regime geral do erro sobre o objecto, como bem se decidiu na sentença recorrida.

- Nulidade da venda por violação nos arts 280º, 281º e 294º do C.Civil
A A. invocou a nulidade da venda com base nestes normativos, aduzindo, em suma, que a mesma é ofensiva do sentido ético dominante e dos bons costumes, pois o insolvente atuou com o intuito de prejudicar terceiros, em particular os seus credores, sendo a venda do imóvel realizada claramente atentatória das boas práticas deontológicas aceites no comércio em geral.

Vejamos o teor dos preceitos legais invocados:

Art. 280º Requisitos do objecto negocial
1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.

Art. 281º - Fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes
Se apenas o fim do negócio for contrario à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes.
Art. 294º - Os negócios celebrados contra a lei
Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.
Estes normativos reportam-se aos requisitos gerais dos negócios jurídicos e respectivas prestações.
É evidente que o objecto da venda em apreço é física e legalmente possível e determinado. E não vemos que o seu objecto ou fim sejam contrários à lei ou à ordem pública ou contrariem qualquer disposição legal de natureza imperativa.
Como bons costumes entende-se o conjunto de regras morais e de conduta social genericamente reconhecidas numa sociedade em dado momento, ou seja, a moral social dominante. E são ofensivos dos bons costumes os comportamentos que ferem esse conjunto de regras aceite pela generalidade das pessoas.
A venda em apreço foi realizada no âmbito de um processo judicial e o que se verificou foi uma incorrecta identificação do imóvel no inventário para separação de meações requerido pela mulher do ora insolvente, interveniente principal nestes autos, como associada da A., tendo sido esta que apresentou a relação dos bens comuns do casal e os identificou, sendo que o prédio em questão, correspondente à verba nº12, foi descrito nos editais e nos anúncios tal como foi identificado na relação de bens. Assim, a actuação do ora insolvente terá sido a causa remota da errada identificação do imóvel vendido que radica na desconformidade entre a realidade física do mesmo e respectivos documentos (certidão matricial e descrição predial) mas não foi a única. E as condições da venda foram fixadas pelo Tribunal, com a concordância de todos os interessados. Como assim, não estando em causa um negócio jurídico privado, em nosso entender, não se pode falar de violação das boas práticas deontológicas aceites no comércio em geral e não se vislumbra a ofensa de qualquer regra moral reconhecida pela generalidade das pessoas, por isso, concluímos que venda efectuada não enferma de nulidade.

Aqui chegados, importa apreciar o pedido alicerçado no enriquecimento sem causa.

A título subsidiário, a autora invoca o instituto do enriquecimento sem causa, peticionando que, caso a restituição do imóvel não seja possível, “então que a Ré X – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, SA seja condenada a indemnizar a Autora, por enriquecimento sem causa, correspondente à diferença entre o valor de venda do imóvel, que foi de € 21.000,00 e o seu real e efetivo valor de mercado, que é de € 300.000,00”.

Preceitua o art. 473º do C.Civil :

1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou que for indevidamente recebido sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

Luís Manuel Teles de Menezes leitão, in Direito das Obrigações, 16ª Edição, Almedina, pág, 407 /408, escreve que este normativo legal consagra uma cláusula geral que permite o exercício da acção de enriquecimento sempre que se verifiquem os seguintes pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa:

a) existência de um enriquecimento;
b) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
c) ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

E acrescenta que estes pressupostos são tão amplos e genéricos que seria possível efectuar uma aplicação indiscriminada desta cláusula geral que poria em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo e, por isso, o legislador teve necessidade de consagrar expressamente a denominada subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, determinando no art. 474º que “não há lugar à restituição por enriquecimento sem causa, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Volvendo-nos para o caso em análise o primeiro dos requisitos a verificar em ordem a aferirmos da aplicação deste instituto é apurar se ocorreu um enriquecimento da R.
Como vimos, a A. sustenta que houve um enriquecimento da R., porquanto esta adquiriu pelo preço de € 21.000,00 o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga, sob o nº ../19910110 da freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. ..º, como sendo uma parcela de terreno, quando a perícia veio revelar que aí se encontra implantado o edifício destinado a posto de abastecimento de combustíveis líquidos (estação de serviço), avaliado em € 300.000,00, edifício esse que consta na descrição predial do imóvel confinante com o nº..., inscrito na matriz sob o art. …º, que também pertencia ao ora insolvente - cfr. nº 40 a 44 dos factos provados.
E em toda a sua linha argumentativa a A. tem como assente que a R. mercê da compra judicial efectuada adquiriu tal estabelecimento comercial, daí o seu alegado enriquecimento, com prejuízo para os credores.
Ora, como resulta do nº 63 dos factos provados, em cumprimento do despacho que no referido processo de inventário ordenou a venda judicial por negociação particular da verba nº12, em 30.12.2011, foi outorgada escritura pública no Cartório da Dr.ª M. M., em Braga, mediante a qual a ré X comprou, pelo preço de € 21.000,00 a parcela de terreno, descrita na conservatória do registo predial sob o número ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, aquisição que registou a seu favor pela AP.1203, de 31.08.2012;
Como se vê, A R. apenas adquiriu a parcela de terreno e não as instalações do estabelecimento comercial de abastecimento de combustíveis líquidos (estação de serviço) que segundo a perícia aí se encontram implantadas.
Assim sendo, em nosso entender, a A. labora em erro ao concluir que mercê da aquisição da parcela de terreno a R. X adquiriu também o estabelecimento comercial nela implantado, não pagando o preço correspondente, obtendo assim um enriquecimento sem causa justificativa.
Na verdade, face ao teor da escritura pública a R. comprou somente uma parcela de terreno destinada à construção com a área de 776 m2, tal título não lhe atribui o direito de propriedade sobre as construções onde funciona o estabelecimento comercial.
Perante o resultado da perícia, verifica-se que ocorreu uma incorrecta identificação do imóvel no anúncio de publicitação da venda (cfr. art. 58 dos factos provados) originada pela desconformidade entre a realidade física do prédio e os respectivos documentos (certidão matricial e descrição predial) e tal situação conferia à R. compradora o direito a pedir a anulação da venda e a uma indemnização, nos termos previstos no art. 838º, nºs 1, 2 e 3 do CPC.
Porém, não tendo a R. requerido a anulação da venda (o prazo para o efeito é o prazo de um ano previsto no art. 287º, nº1 do C.Civil) é a proprietária do terreno correspondente ao prédio adquirido mas não das construções nela implantadas destinadas a estabelecimento comercial de posto de venda de combustíveis líquidos. Como resulta dos factos provados (cfr. nºs 15 a 21) tais instalações foram construídas pelo ora insolvente que aí explorou o estabelecimento comercial e não tendo sido objecto da venda continuaram a pertencer a este e, eventualmente, à sua mulher em virtude do regime de bens do casamento.
Em suma, ante o exposto, é forçoso concluir que a R. X, S.A., ao invés do sustentado pela A., não é proprietária do estabelecimento comercial implantado no prédio que adquiriu na venda judicial e, por isso, não beneficiou de qualquer enriquecimento, falecendo desde logo o primeiro dos requisitos necessários para a existência da obrigação de restituir/ indemnizar ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa enriquecimento sem causa.
Destarte, improcede também o pedido subsidiário formulado pela A., impondo-se a confirmação da sentença recorrida.
Apenas mais uma nota final para mencionarmos que improcedendo totalmente a apelação da A., fica prejudicado o conhecimento da questão da tempestividade da arguição da nulidade da citação suscitada pela R. como recurso subordinado, que se admitiu ao abrigo do nº2 do art. 636º, nº2 do C.P.Civil.
Sobre esta problemática veja-se com interesse o Ac. do STJ de 26-05-2015, proc. 169/13.4TCGMR.G2.S1, relatado por João Camilo, in www. dgsi.pt., no qual se decidiu que, face ao disposto nos arts 608º, nº2 e 615º, nº1, al.d) do CPC, não podia ser conhecida a questão da improcedência da excepção do caso julgado que fora objecto de ampliação do recurso por parte da R./ recorrida, tendo improcedido os fundamentos da apelação da A., situação análoga à da nulidade da citação nestes autos.
*
IV. DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes desta 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães acordam em julgar improcedente a apelação da A., confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela A. (art. 527º, nº1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 13 de Julho de 2022.

Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto: Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte