USOS LABORAIS
ÓNUS DA PROVA
Sumário


I- Não se consideram retribuição as importâncias devidas a título de subsídio de refeição, salvo quando essas importâncias, na parte excedente dos respetivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou devam considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
II- Cumpria ao A. provar que as importâncias pagas pela ré a título de subsídio de alimentação excediam os montantes normais e que, nessa parte, tinham sido previstas no contrato de trabalho ou que deviam considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
III- Incumprido este ónus de alegação e prova, impõe-se concluir que o subsídio de refeição carece de natureza retributiva, não lhe sendo aplicável, por conseguinte, a regra do pagamento em dinheiro ínsita no art. 276º, nºs 1 e 2, do Código do Trabalho (cfr. ainda o disposto no art. 258.º, nº 4).
IV- Pela mesma razão, a alteração da forma de pagamento deste subsídio, no sentido de passar a ser satisfeito através de cartão pré-pago utilizável em estabelecimentos comerciais aderentes às redes Visa Electron e Multibanco, não pressupõe o consentimento do trabalhador e/ou das estruturas sindicais.

Texto Integral




Proc. n.º 15770/20.1T8LSB.S1
MBM/JG/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.

1. SNTCT – Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações, instaurou ação declarativa, sob a forma de processo comum, para defesa de interesses coletivos, contra CTT – Correios de Portugal, Sociedade Aberta.

2. peticionou:

– O reconhecimento de que o cartão refeição Santander configura um meio de pagamento inválido, enquanto forma de pagamento do benefício social destinado a compensar a refeição dos trabalhadores.
– O pagamento do subsídio de refeição com carácter pecuniário.
– O reconhecimento de que a forma de pagamento através de quantia pecuniária está expressa em IRCT e que só pode ser alterada pela mesma via negocial.
– O reconhecimento de que o comunicado emitido pela ré em maio de 2020 consubstancia uma ordem ilegal.
– O reconhecimento aos trabalhadores da ré do direito de opção pela modalidade pretendida para pagamento do subsídio de refeição – dinheiro ou cartão refeição

3. Na 1.ª instância foi proferida sentença, a julgar improcedente a ação.

4. O A. interpôs recurso de revista per saltum, sustentando, em síntese, nas respetivas conclusões:

- Os IRCT’s aplicáveis às relações laborais entre A. e R. contemplam todos eles o pagamento do subsídio de refeição em dinheiro.

- Em momento anterior à integração da R. no setor privado (em 1979), o subsídio de refeição foi fixado em 70$00 dia, conforme o ACT, cláusula 4.ª, publicado no BTE n.º 12, 1.ª Série de 29 de março de 1979, o mesmo que estabeleceu o limite da massa salarial global em 20%, nos termos do art. 4.º do D.L. n.º 121/78.

- Proibidos de estabelecer aumentos não controlados das retribuições mínimas, os movimentos sindicais passam a fixar valores para subsídio de refeição que na verdade se traduziam num complemento salarial.
- A característica de pagamento em dinheiro que sempre teve o subsídio de refeição manteve-se inalterado ao longo dos anos, sendo claro, já em 1991, que as cláusulas de expressão pecuniária como é o subsídio de almoço, recebem aumentos significativos e são tratados e negociados como um complemento salarial.

- O DL n.º 87/92 transforma a R. em pessoa coletiva de direito privado, mais concretamente em Sociedade Anónima de capitais exclusivamente públicos, mantendo todos os direitos e obrigações de que forem titulares os trabalhadores dos CTT, S.A. (art. 9.º, n.º 1).

- A atribuição do subsídio de refeição encontra-se prevista nas cláusulas 81.ª e 82.ª do AE/CTT em vigor.

- O subsídio de refeição pago em dinheiro, na vertente de “quantia pecuniária” assim determinada pelos sucessivos IRCT’s, resulta também da prática reiterada pela empresa ao longo de quase 50 anos.

- As sucessivas negociações dos AE’s, sem que a R./Recorrente tivesse ousado alterar essa realidade de pagamento em dinheiro, demonstra, ao contrário do que conclui a douta sentença, que as partes estavam cientes da impossibilidade de alterar tal prática, não só pela natureza de complemento retributivo, como por violação do AE, como ainda pela violação do uso enquanto fonte de direito.

- O facto de não constituir retribuição não significa que a forma de pagamento, não prevista no Código do Trabalho, não tenha aqui aplicação por força dos IRCT’s, considerando-se analogicamente e com base nas regras interpretativas o disposto no art. 276.º do C.T.

- O subsídio de refeição poderá ou não ter a natureza de retribuição, conforme decorre do art. 260.º do C.T.; tal possibilidade existe quando por força dos usos, ou na parte que exceda os valores normais, deva ser considerado retribuição.

- Qualquer pessoa colocada na posição de um destinatário interpretativo da norma (anexo V, Clª 81.ª, do AE) lerá: “O subsídio de Refeição, quanto à respetiva forma de pagamento, assume a mesma característica que o subsídio de condução, diuturnidades ou compensação por horário descontinuo#.

- Não violando o referido Anexo V qualquer lei imperativa e prevendo condições mais favoráveis aos trabalhadores, nos termos do art. 3.º do Código de Trabalho, a sua aplicação parece inegável pois integra o contrato de trabalho.

- O pagamento do subsídio de refeição em dinheiro/prestação pecuniária tornou-se uma prestação obrigatória coberta pela imperatividade da norma do art. 129.º, n.º 1, al. h), do Código do Trabalho, na medida em que está vedado à empresa (art. 129.º, n.º 1, al. h) obrigar o trabalhador a adquirir bens ou serviços a ele próprio ou a pessoa por ele indicada;

- Para além da violação do princípio da boa-fé, há aqui claro abuso de direito, nos termos do art. 334.º, do C.C., aplicável às relações de trabalho.

– O subsídio de refeição constitui um direito cujo fim social e económico se vê negado na impossibilidade prática do respetivo uso pela universalidade dos trabalhadores a que se destina.

- Apesar do cartão refeição Santander pretender ter a mesma funcionalidade que o vale de refeição, na verdade não a tem, porquanto é um meio de pagamento altamente limitativo da respetiva funcionalidade.

- Nos termos do art. 550.º e ss., do C.C., as obrigações pecuniárias cumprem-se em moeda.

7. A R. contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade legal do recurso per saltum, em virtude de, alegadamente, o recorrente suscitar diversas questões de facto, e, subsidiariamente, pela improcedência da revista.

8. O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam.

9. No despacho liminar, o relator decidiu a questão prévia aludida em supra n.º 7, nos seguintes termos:
“Nas contra-alegações a Ré veio arguir a inadmissibilidade do recurso per saltum (artigo 678, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil), com fundamento no facto de, nas alegações, o Recorrente/Autor suscitar questões de facto.
(…)
É certo que na última conclusão do recurso, o recorrente alega: “39 – A sentença padece de erro na apreciação de prova (…) e vício de violação da Lei quando é efetuada a interpretação errónea da Lei, aplicando-a à realidade quando não devia ser aplicada ou deixando de a aplicar à realidade a que devia ser aplicada.”

Contudo, da leitura das conclusões de forma alguma resulta que o recorrente tenha visado impugnar a matéria de facto.

Efetivamente, o recorrente não especifica qualquer facto como indevidamente julgado, não indica meios de prova que impusessem decisão distinta, nem indica a decisão que, no entender, deveria ter sido proferida sobre qualquer facto (artigo 640.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

No ponto 13 das conclusões (“13 - A douta sentença, apesar da matéria de facto provada, acaba por concluir na douta fundamentação em sentido absolutamente oposto, havendo contradição entre matéria de facto e fundamentação.”) o recorrente alega existir uma contradição entre a matéria de facto provada e a fundamentação, mas não se está a referir à fundamentação da matéria de facto, mas à fundamentação de direito. Ou seja, o recorrente entende que, face à factualidade assente, a decisão sobre a natureza do subsídio de refeição deveria ter sido a oposta.

A qualificação do subsídio de refeição como retribuição é matéria de direito e foi assim que foi tratada na sentença. Com efeito, não há nenhum facto provado ou não provado atinente à natureza retributiva (ou não) do subsídio de refeição. Na verdade, a questão foi apreciada na fundamentação de direito da sentença, tendo sido consignado sobre a mesma: “Resulta dos articulados e da factualidade acima apurada que o subsídio de refeição pago pela ré não assume natureza retributiva, nem mesmo o seu pagamento, desde o ano de 1977 (ponto 4.º dos factos provados), consubstanciou um uso no sentido de integrar a retribuição”.

É desta conclusão que o recorrente discorda, designadamente quando refere no ponto 8 das conclusões “De todo o exposto resulta provado, como provado ficou a natureza do Subsídio de Refeição como um complemento salarial de expressão pecuniária, ou seja, pago em dinheiro”. Estando apenas em causa a subsunção dos factos a normas jurídicas, apesar da forma como se expressou, a discordância do recorrente é apenas de direito.

Por outro lado, também das páginas 9 a 12 das alegações não se retira que o recorrente pretenda a reapreciação da matéria de facto. A referência a factos não provados não significa que o recorrente considere que esses factos estejam indevidamente julgados e, muito menos (e só isso seria relevante no âmbito da questão em análise), que peticione a sua reapreciação.

Deste modo, conclui-se que no recurso apenas se suscitam (e apenas serão conhecidas) questões de direito – artigo 678.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, encontrando-se preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso per saltum.”

10. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art.º 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), as questões a decidir[1] consistem: i) em determinar se o acórdão recorrido enferma de contradição entre a fundamentação e a decisão; ii) e em saber se o subsídio de refeição em causa pode ser pago através do cartão (pré-pago) refeição Santander.

E decidindo.
II.

11. Com relevância para a decisão do recurso de revista, a matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:
1. (…)
2. (…)
3. Face aos limites legais, nomeadamente impostos pelo Decreto-lei n.º 121/78, de 2 de junho, o qual fixou medidas relativas às condições de trabalho a estabelecer pelos instrumentos de regulamentação coletiva ou pelos contratos individuais, o autor pugnou a sua ação por tentar fixar valores para o subsídio de refeição, os quais pretendiam traduzir-se num complemento salarial.
4. Desde o ano de 1977 que a ré procede ao pagamento aos seus trabalhadores do subsídio de refeição.
5. No ano de 2013, a ré criou a modalidade do pagamento do subsídio de refeição através de cartão bancário.
6. Aos trabalhadores da ré cabia então a decisão de optar ou não por esta modalidade de pagamento.
7. (…)
8. Em 2019, na primeira reunião de negociações, com o administrador do pessoal, (…), foi sugerida a aceitação do cartão refeição para todos os trabalhadores contra um maior aumento salarial percentual. Tal proposta foi de imediato rejeitada pelo autor.
9. O referido cartão-refeição é emitido pelo Banco Santander Totta, Sa.
10. O cartão-refeição apenas pode ser utilizado nas lojas comerciais que tenham aderido às redes Visa Electron e Multibanco, sem comissões ou custos para os trabalhadores.
11. O cartão refeição não permite a conversão em numerário do respetivo saldo, o qual, caso não seja utilizado, acumula de um mês para o outro mês.
12. Nas zonas rurais do país há menos lojas comerciais em que possa ser usado o cartão refeição.
13. Alguns trabalhadores da ré efetuam compras em pequenas lojas comerciais das freguesias onde residem, tomam refeições em pequenos restaurantes.
14. Algumas de tais lojas comerciais e alguns dos referidos pequenos restaurantes não dispõem de protocolo firmado que permita o uso do referido cartão refeição.
15. Não obstante o acima exposto, o cartão refeição pode ser usado em milhares de estabelecimentos para fazer face ao pagamento de despesas ou aquisição de serviços indiscriminados diferentes de alimentação.
16. O subsídio de refeição ascende a € 9,01 por dia.
17. O assunto do pagamento do subsídio de refeição em cartão pré-pago foi considerado no processo negocial do Acordo de Empresa respeitante à ré, com o objetivo de ser clarificada a sua admissibilidade e no sentido de beneficiar o consenso com as estruturas sindicais.
18. As estruturas sindicais, designadamente o autor, condicionavam a aceitação desta proposta da ré ao aumento do valor do subsídio de refeição e à redistribuição do valor da TSU (taxa social única) que a ré não tivesse que despender considerando o regime especial de tributação aplicável ao valor do subsídio de refeição quando pago em cartão ou equivalente, por confronto com o regime aplicável ao pagamento em dinheiro.
19. A aplicação generalizada aos trabalhadores da ré do cartão refeição erigiu determinadas exceções, ou seja, casos em que o pagamento do subsídio refeição se manteve em dinheiro vivo: as situações em que determinado trabalhador aufere remuneração de valor mais reduzido, situações em que ambos os membros do agregado familiar sejam trabalhadores da ré. (…)
20. O contrato de concessão do serviço público firmado pela ré com o Estado Português esteve em fase de negociações até ao final do ano de 2020.
21. No decurso do ano de 2020, a sociedade ré somou perdas de proveitos.
22. O cartão refeição potencia impacto fiscal e retributivo menor; sendo que o seu utilizador beneficia de uma poupança em sede de IRS com reflexo na liquidação anual de imposto; sendo comparativamente menores e de pouco impacto os efeitos do mesmo cartão refeição em termos de reforma, invalidez ou baixa médica.
23. A informação quanto ao cartão refeição e quanto à sua aplicação generalizada foi anunciada aos trabalhadores da ré.

12. Considerou-se não provado:
a. Que a utilização do cartão-refeição implique que as lojas comerciais tenham protocolo assinado com o Banco Santander Totta, SA.
b. Que o espeto acima referido na alínea anterior condicione a escolha do local para tomar refeição ou realizar compras por parte dos trabalhadores da ré.
c. Que em certas zonas rurais do país inexistam lojas comerciais aderentes do cartão refeição.
d. Que haja trabalhadores que tenham de percorrer distâncias quilométricas consideráveis para se dirigirem a grandes superfícies comerciais, com vista à utilização do cartão refeição.


III.

a) Se o acórdão recorrido enferma de contradição entre a fundamentação e a decisão:

13. Sustenta o recorrente que a decisão recorrida enferma de contradição entre a fundamentação e a decisão, embora sem minimamente explicitar em que consistiria tal alegada contradição.

Como se sabe, a nulidade prevista no art. 615º, n.º 1, c), CPC, consiste numa contradição intrínseca da decisão, qual seja a de os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, em termos logicamente inequívocos, a uma conclusão oposta ou diferente da adotada.

In casu, não se vislumbra qualquer contradição desta natureza, sendo certo que a nulidade em análise não se confunde, naturalmente, com a (distinta) questão de saber se o acórdão recorrido padecerá de algum erro na aplicação do direito.

Improcede, pois, a arguida nulidade.


b) Se o subsídio de refeição em causa pode ser pago através do cartão (pré-pago) refeição Santander:

14. Nos termos do art. 258.º, do Código do Trabalho[2], epigrafado “princípios gerais sobre a retribuição”: (1) Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho; (2) A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie; (3) Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador; (4) À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.

A retribuição é satisfeita em dinheiro ou, estando acordado, em prestações não pecuniárias, nos termos do artigo 259.º” (art. 276.º, n.º 1), podendo a parte pecuniária da retribuição ser paga por meio de cheque, vale postal ou depósito à ordem do trabalhador (n.º 2 do mesmo artigo).

15. Antes do mais, refira-se ser doutrinária e jurisprudencialmente controvertido que o pagamento do subsídio de refeição através de cartão pré-pago não seja um pagamento “em dinheiro” (no sentido mais lato do conceito).

Como se refere no Ac. Rel. Coimbra de 03.04.2014, Proc. n.º 601/13.7TTVIS.C1:

«(…)
[D]inheiro não é, apenas, o papel-moeda, podendo sê-lo outros objetos que são utilizados como meio geral de liquidação de dívidas, como por exemplo os metais preciosos ou determinadas mercadorias, os cartões de crédito, os cartões de débito, os cheques, entre outros.

Com efeito, em todos esses meios de liquidação de dívidas estão presentes as três características do dinheiro, a saber: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor.

Aliás, no que concretamente concerne aos cartões de refeição do tipo dos que estão em causa nestes autos, decidiu já o STA [Ac. de 21.04.2010, Proc. 0619/19] que “… os vales ou cartões de refeição são títulos de pagamento de refeições, isto é, são títulos que se destinam a ser utilizados na aquisição e pagamento de refeições ou de outros produtos disponibilizados pelos estabelecimentos (…) aderentes a esse sistema de pagamento. (…) Isto é, os vales ou títulos de refeição são “dinheiro” (…) [e constituem] um mero meio de pagamento para uma despesa potencial que se concretizará com utilização desse meio de pagamento”.

Como assim, o novo sistema de pagamento do subsídio de alimentação implementado pela recorrente, apesar da substituição do papel-moeda pelos cartões de refeição, continuou a ser um sistema de pagamento em dinheiro.

Do mesmo modo, o próprio Banco de Portugal tem vindo a referenciar os cartões refeição como um meio apto à satisfação de obrigações com valor expresso em dinheiro, e não como meio de pagamento em espécie, ao referenciar, a par do pagamento por cheque, das transferências a débito, e dos cartões de crédito, os cartões pré-pagos “… de finalidade limitada, emitidos por empresas para utilização, por exemplo, em cantinas, refeitórios (…)” [Relatório do Departamento de Sistemas de Pagamentos do Banco de Portugal de Janeiro de 2009].

Como assim, a alteração introduzida pela ré no sistema de pagamento do subsídio de refeição nem sequer pode ser encarada como uma verdadeira alteração na forma de pagamento que vinha sendo praticada, registando-se, apenas, uma mudança no meio de pagamento, integrado, no entanto, na mesma forma de cumprimento da obrigação em dinheiro.”

No mesmo sentido, v.g., Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2011, p. 572, e Pedro Ferreira de Sousa e Fábio Nave Moreira, loc. cit., pp. 221 e ss.

Posto isto.

16. Expressamente consagra a lei que não se consideram retribuição as importâncias devidas a título de subsídio de refeição, salvo quando essas importâncias, na parte excedente dos respetivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou devam considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador [cfr. art. 260.º, n.º 1, a), e n.º 2].

Compreende-se que assim seja, uma vez que o subsídio de refeição se destina “a fazer face a despesas concretas que o trabalhador presumivelmente tem que efetuar para executar o contrato, para “ir trabalhar”, não constituindo um ganho acrescido para o trabalhador, uma mais valia resultante da sua prestação laboral” (Ac. desta Secção Social de 17.01.2007, Proc. n.º 2188/06), ou seja, agora nas palavras de Pedro Romano Martinez e outros, Código do Trabalho Anotado, 9ª edição, p. 592, “o subsídio de refeição (…) traduz a assunção pelo empregador das despesas com a alimentação em que o trabalhador incorre por causa da prestação de trabalho”, pelo que só “se (…) o seu valor for tal que exceda largamente o gasto que pretende compensar (…) será já considerado retribuição”.

Na mesma perspetiva, decidiram ainda, v.g., os Acs. desta Secção Social de 27.11.2018, Proc. n.º 12766/17.4T8LSB.L1.S1 (“O subsídio de refeição tem natureza de benefício social e destina-se a compensar os trabalhadores das despesas com a refeição principal do dia em que prestam serviço efetivo, tomada fora da residência habitual”), de 22.02.2017, Proc. n.º 2236/15.0T8AVR.P1.S1, e de 21.03.2019, Proc. n.º 721/17.9T8PNF.P1.S1. E, identicamente, os Ac. da Rel. Lisboa de 14.06.20213, Proc. n.º 196/12.9TTBRR.2.L1-4 (“O subsídio de alimentação, embora assuma, na maioria dos casos, natureza regular e periódica, só é considerado retribuição na parte que exceda os montantes normalmente pagos a esse título, sendo mister para o efeito, por isso, que o trabalhador alegue e prove que o subsídio excedia os valores que normalmente eram pagos a esse título”), da Rel. Guimarães de 15.03.2016, Proc. n.º 470/15.2T8VNF.G1, e o já citado da Rel. Coimbra, de 03.04.2014.

17. Enquanto elementos constitutivos do direito que se arroga, cabia ao A. alegar e provar factos que permitissem concluir pela natureza retributiva do subsídio de refeição (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil), o que in casu não logrou fazer.

Concretamente, como se referiu, cumpria-lhe provar que as importâncias pagas pela ré a título de subsídio de alimentação excediam os montantes normais e que, na parte excedente de tais parâmetros de normalidade, tinham sido previstas no contrato de trabalho ou que deviam considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Incumprido o ónus de alegação e prova que sobre o A. impendia, impõe-se concluir, nos termos do citado art. 260º, nº 1, a), e nº 2, que o subsídio de refeição ora em discussão não reveste natureza retributiva, não lhe sendo aplicável, por conseguinte, a regra do pagamento em dinheiro ínsita no art. 276º, nºs 1 e 2 (cfr. ainda o disposto no art. 258.º, nº 4).

Pela mesma razão, a alteração da forma de pagamento deste subsídio, no sentido de passar a ser satisfeito através de cartão pré-pago utilizável em estabelecimentos comerciais aderentes às redes Visa Electron e Multibanco, não pressupõe o consentimento do trabalhador e/ou das estruturas sindicais.

18. Em contrário, alega o A. que o atual Acordo de Empresa inclui o subsídio de refeição nas “cláusulas de expressão pecuniária”, mas não se vê que daqui possa extrair-se qualquer argumentação no sentido pretendido.

Na verdade, sendo indiscutível a natureza pecuniária desta prestação, daí não decorre a sua natureza retributiva, nem, consequentemente, que deva ser paga em dinheiro (citado art. 276º, nº 1).

Também chama à colação, nomeadamente, as cláusulas 81º e 82º do mesmo Acordo de Empresa[3], as quais, no entanto, se revelam manifestamente inócuas, do ponto de vista da matéria controvertida nos autos.
19. Noutro plano, sustenta o A. que se verifica um “uso de décadas de existência de um subsídio de refeição pago em dinheiro juntamente com o vencimento”, pelo que “também pelo uso o subsídio de refeição assume um carácter retributivo e expressão pecuniária”.

Contudo, tendo a ré criado no já recuado ano de 2013 a modalidade do pagamento do subsídio de refeição através de cartão bancário (facto provado n.º 5), não se vê que possa afirmar-se que o respetivo pagamento em dinheiro correspondesse a uma prática constante, uniforme e pacífica,  merecedora da tutela da confiança dos trabalhadores na sua continuidade e suscetível de impor concluir no sentido da existência de uma regra nesse sentido, isto apesar de aos trabalhadores da ré caber então a decisão de optar ou não por esta modalidade de pagamento (facto provado n.º 6).

Vale por dizer que o A. não demonstrou a existência de um uso relevante nesta matéria.

20. Por fim, refira-se não se vislumbrar que da disponibilização do “cartão de refeição Santander” aos trabalhadores da R. advenha qualquer prejuízo relevante, uma vez que o mesmo pode ser utilizado nas lojas comerciais aderentes às redes Visa Electron e Multibanco, que se encontram universalmente generalizadas, nacional e internacionalmente, pelo que – e sendo ainda certo que o subsídio de refeição se destina a custear as refeições dos trabalhadores e não quaisquer outras despesas – se encontra salvaguardada a satisfação do fim social ou económico do “direito ao subsídio de refeição”.

Com efeito, embora “nas zonas rurais do país haja menos lojas comerciais em que possa ser usado o cartão refeição” (facto provado n.º 12), o mesmo “pode ser usado em milhares de estabelecimentos para fazer face ao pagamento de despesas ou aquisição de serviços indiscriminados diferentes de alimentação” (facto provado n.º 15), sendo ainda certo que não se provou (cfr. supra nº 12): que isso condicione a escolha do local para tomar refeição ou realizar compras por parte dos trabalhadores da ré; que em certas zonas rurais do país inexistam lojas comerciais aderentes do cartão refeição; que haja trabalhadores que tenham de percorrer distâncias quilométricas consideráveis para se dirigirem a grandes superfícies comerciais, com vista à utilização do cartão refeição.

Também não se vê que esteja em causa uma medida arbitrária, desligada de motivações e critérios gestionários por banda da R., como sugere o A. , sendo ainda certo que “o assunto do pagamento do subsídio de refeição em cartão pré-pago foi considerado no processo negocial do Acordo de Empresa respeitante à ré, com o objetivo de ser clarificada a sua admissibilidade e no sentido de beneficiar o consenso com as estruturas sindicais” (facto provado n.º 17), pelo que não pode afirmar-se que a decisão em causa foi objeto de negociação com os sindicatos signatários do AE/ CTT em vigor.

Termos em que, não resultando dos factos provados qualquer patologia no exercício pela R. dos direitos inerentes ao seu “poder organizativo”[4], igualmente improcedem as alegações de abuso de direito e violação da boa-fé contratual por parte do recorrente, em face do disposto nos arts. 334º e 762º, nº 2, do Código Civil, e do art. 126º, nº 1, do Código do Trabalho.
IV.

21. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 14 de julho de 2022


Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto



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[1] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.
[2] Como todas as demais disposições legais citadas sem menção em contrário.
[3] Com o seguinte teor:
Cláusula 81.ª - Subsídio de refeição:
1- A empresa concede um subsídio para uma refeição principal diária aos trabalhadores relativamente aos dias em que tenham prestado trabalho normal durante, pelo menos, quatro horas, no montante previsto no número 4 do anexo V.
2- Nos casos em que a duração do trabalho normal seja inferior a 5 horas, o montante do subsídio será proporcional ao número de horas de trabalho prestado relativamente ao período normal de trabalho de 8 horas.
3- Não são abrangidos pelo disposto nos números anteriores: a) Os trabalhadores quando beneficiem de ajudas de custo, fornecimento ou pagamento de refeição pela empresa; b) Pessoas em serviço nos CTT pertencentes a outros organismos ou empresas, com remuneração a cargo destes; c) Os trabalhadores que se encontrem em situação de ausência de qualquer natureza, designadamente faltas justificadas ou injustificadas, férias, licenças, ou outros impedimentos, salvo ausências por motivo de acidente em serviço.
4- A dispensa do serviço para o exercício de atividades sindicais que confira direito a remuneração, não se deduz ao cômputo do trabalho diário e, consequentemente, não afeta a perceção do subsídio de refeição.
Cláusula 82.ª - Subsídio especial de refeição:
1- Será atribuído aos trabalhadores, nos casos de prestação de trabalho suplementar, quando essa prestação de trabalho ultrapasse as duas horas consecutivas e atinja o período normal de almoço (das 12 às 14 horas) ou do jantar (das 19 às 21 horas), um subsídio especial para refeição de montante igual ao subsídio de refeição que se pratica na empresa.
2- O subsídio especial de refeição não é acumulável com subsídio ou abono que respeite à mesma refeição.
[4] Discutindo a Doutrina se o denominado “poder organizativo” tem autonomia ou se reconduz, no fundo, ao poder diretivo do empregador – cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, Coimbra, 2012, pp. 610 – 612.