ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO
TENTATIVA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário


I - No que respeita à decisão sobre a pena, mormente a sua medida, o STJ tem reafirmado que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. E assim também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
II - Ou seja, o STJ intervém na pena, alterando-a quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção.
III - Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar (Cf. acórdão de 27.10.2021, Processo 24/20.1SFPRT.S1, Relatora Conselheira Ana Brito).
IV - A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).
V- A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.
VI-  Ora, partindo das finalidades e dos princípios já enunciados, verificado o acórdão resulta, de forma consistente, que o tribunal seguiu os passos legais de ponderação, identificando corretamente as exigências de prevenção geral e especial, excluindo a possibilidade de suspensão de execução da pena aplicada  (art. 50.º, do CP), resultando que, atendendo às circunstâncias a que atendeu, é de reconhecer que a pena aplicada não excede o necessário para assegurar as finalidades da punição, mostrando-se proporcionada e contida no limite da culpa.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. No Processo Comum Coletivo n.º 98/18…, do Tribunal Judicial da Comarca ... – Instância Central Criminal – J..., foi proferido acórdão a condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

Foi ainda condenado no pagamento de uma indemnização no valor de € 4.093,20 (quatro mil e noventa e três euros e vinte cêntimos) a BB, sendo € 93,20 a título de danos patrimoniais e € 4.000,00 a título de danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, contabilizados à taxa de 4% desde a notificação para contestar o pedido no que concerne ao juros patrimoniais e desde a data da presente decisão no que respeita aos danos não patrimoniais, até efetivo e integral pagamento, e ao Centro Hospitalar do Algarve, EPE a quantia € 112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa de 4% desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização até efetivo e integral pagamento


2. Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

O Acórdão recorrido, em rigor, não observou os princípios basilares do direito penal vertidos e consagrados no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, princípio da proporcionalidade, princípio da necessidade e princípio da subsidiariedade.

– O Acórdão recorrido baseou a condenação do arguido exclusivamente os antecedentes criminais do arguido e não valorizou, devidamente, a circunstância de, pese embora o seu passado criminal, a pena de prisão colocar em risco a continuidade da sua reinserção social.

– Não foi, em rigor, observada a norma constante do artigo 70º do CP que prevê que o tribunal pode (e deve) dar preferência à aplicação de pena não privativa da liberdade.

– Igualmente, o douto Tribunal a quo não interpretou de forma precisa e rigorosa, a norma constante do artigo 50.º, do Código Penal, ao negar a suspensão da execução da pena, sem sequer, se interessar em assentar o incontornável “juízo de prognose”, favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem ou infirmarem com alguma consistência.

– A fundamentação da decisão que se recorre, como se disse, limitou-se a concluir que, atento o passado criminal do arguido a sujeição do mesmo a uma pena suspensa na sua execução sujeita ao regime de prova não se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que no caso se impõem.

– O recorrente aceita que o tribunal recorrido tenha optado por uma pena de prisão, mas não pode concordar que a mesma não tenha sido suspensa na sua execução sujeita a regime de prova previsto no art. 53º do Código Penal. Pois, se uma das finalidades das penas é a reintegração do arguido na sociedade, a pena que o tribunal recorrido aplicou não se adequa e falha esse desiderato.

– Pelo que não se aceita que o tribunal recorrido não tenha suspendido a execução da pena aplicada, acompanhada de regime de prova estão reunidos os pressupostos.

– E a aplicação desta medida, satisfaz, plenamente, as necessidades de prevenção especial, e mantém o arguido integrado, o que não acontecerá se tiver que cumprir a pena de prisão que lhe foi aplicada.

– Em suma, as normas vertidas nos artigos 18º da CRP, artigos 50º ,58º e 70º do Código Penal foram violadas porquanto pena em que foi o recorrente condenado não é a adequada, nem proporcional, como também não é necessária para salvaguarda dos direitos e interesses protegidos e integração social do recorrente.

– Não obstante haver o recorrente sido já condenado a sujeição do mesmo a uma pena suspensa na sua execução sujeita ao regime de prova realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição que no caso se impõem e de modo algum a aplicação da pena de prisão surge como ‘indispensável para a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias’

Termos em que, pelas razões de direito assumidas, dando-se provimento ao presente recurso, deverá a pena de prisão aplicada ser substituída por pena suspensa na sua execução acompanhada de regime de prova por ser adequada a promover a reintegração do recorrente na sociedade.


3. O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, concluindo:

1ª Salvo melhor opinião, não assiste razão ao ora recorrente.

2ª Com efeito, em sede de determinação concreta da pena, o aresto em crise considerou as consequências da conduta do arguido e evidenciou as especiais exigências de prevenção geral e especial na determinação concreta da pena.

3ª Com efeito, o aresto em crise foi equilibrado ao considerar os fins das penas, designadamente ao sublinhar a erosão do bem jurídico na comunidade e à ausência de qualquer remorso ou arrependimento do arguido.

4ª Porém, ainda assim, o Tribunal a quo aplicou uma pena desajustada, tal como resulta do recurso interposto pelo Ministério Público, em que se pugna pela aplicação de uma pena não inferior a 6 anos e 6 meses.

5ª Por conseguinte, o aresto em crise não merece a censura reivindicada pelo ora recorrente, designadamente em sede de integração e ressocialização do agente.


Por conseguinte, o recurso interposto não deverá de merecer provimento.

V. Exas. Farão, como sempre, JUSTIÇA!


4. Igualmente informado, recorreu o Magistrado do Ministério Público na primeira instância, concluindo:

1ª Por douto Acórdão proferido em 4 de Novembro de 2021, proferido nos autos referenciados, foi decidido pelo Tribunal Coletivo condenar o arguido AA na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 73º e 131º do Código Penal.

2ª A decisão ora em crise enferma de vício de ponderação na aplicação do comando processual consagrado no artigo 71º do Código Penal, por referência ao art. 40º do mesmo diploma.

3ª O crime de homicídio simples na forma tentada é punido com a pena do crime consumado especialmente atenuada (cf. nº 2 do art. 23º do Código Penal).

4ª Por conseguinte, em função da aplicação da atenuação especial, a moldura penal abstratamente aplicável medeia entre 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão e 6 (seis) dias e 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão (cf. alíneas a) e b) do nº 1 do art. 73º do Código Penal).

5ª Em sede de determinação concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do mesmo ou contra ele (cf. nº 1 do art. 71º do Código Penal).

6ª Com efeito, será por via da culpa que se revela a medida da pena na consideração do ilícito típico, ou seja, considerando o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (cf. alínea a) do nº 2 do art. 71º do Código Penal).

7ª No caso concreto, fazem-se sentir particulares necessidades de prevenção geral, face ao aumento exponencial de episódios recentes e de idêntica natureza na sociedade portuguesa, em particular junto da população mais jovem, sendo igualmente certa a elevada insegurança que tais comportamentos geram na comunidade.

8ª Efetivamente, a conduta sub iudice é extremamente reprovada pela comunidade e pelo legislador, na medida em que está em causa o mais valioso bem jurídico, ou seja, a vida humana.

9ª Ponderando o modo de execução dos factos, constata-se que o arguido utilizou uma faca pontiaguda e, traiçoeiramente, desferiu cinco golpes no corpo do ofendido, designadamente dois no pescoço, outros tantos no tórax e um no ombro, cujas consequências estão indicadas no ponto 7 da matéria de facto dada como provada, determinando 20 dias de doença, sendo 10 para o trabalho em geral.

10ª Em consequência, importa concluir que é intenso o grau de ilicitude dos factos, manifestado pela forma traiçoeira, violência empregue e desprezo pela vida humana alheia que o arguido demonstrou, sendo consideráveis as consequências físicas para a vítima.

11ª Acresce que o arguido agiu com dolo direto, de forma intensa, empregando elevada energia criminosa, só cessando a sua conduta mediante a intervenção de terceiros, manifestando, por esse modo, total desprezo perante a vida da vítima.

12ª O arguido tem um percurso de vida caraterizado pela indiferença perante as regras familiares numa fase inicial e, subsequentemente, perante as regras da convivência social, em que vem empregando cada vez mais violência no seu comportamento social.

13ª O arguido não revela qualquer investimento e/ou interesse na prossecução de uma integração profissional estável, vivendo a expensas de familiares.

14ª Assim, fazem-se sentir particulares exigências de prevenção especial.

15ª Em consequência, sopesando as finalidades de prevenção geral e de prevenção especial, conclui-se que o arguido deverá ser condenado a uma pena não inferior a 6 (seis) anos e 3 (três) meses.


Assim, deverá essa decisão judicial ser revogada e substituída por outra que condene o arguido AA a uma pena não inferior a 6 (seis) anos e 3 (três) meses de prisão.

V. Exas. Farão, como sempre, JUSTIÇA!


5. No Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer no sentido da improcedência dos recursos, concluindo que “Nessa avaliação, estamos convictos de que a pena de 5 anos e 3 meses de prisão fixada pelo tribunal colectivo (que não admite a suspensão da execução – cf. o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal), numa moldura penal que tem como limite mínimo 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão e como limite máximo 10 anos e 8 meses de prisão, respeita o limite inultrapassável da culpa e responde equilibradamente às exigências de prevenção que se fazem sentir, de modo algum se podendo considerar demasiado indulgente (como sustenta o MP na 1.ª instância) ou desproporcionada (como advoga o arguido)

Termos em que se emite parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos”.


6. Não houve resposta ao parecer e, não tendo sido requerida audiência, teve lugar a conferência.


II. Fundamentação

1. O acórdão recorrido, na parte que interessa ao recurso, tem o seguinte teor:

1. Factos Provados

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com pertinência para a decisão da mesma:

1. No dia 24 de março de 2018, a hora não concretamente apurada, mas próxima das 00h30, no interior do estabelecimento comercial denominado “Bar ... – ...”, sito na Rua ..., em ..., o arguido dirigiu-se ao ofendido BB e após uma breve troca de palavras entre ambos, desferiu-lhe um murro de mão fechada, atingindo-o de raspão no rosto, na zona do nariz.

2. Seguidamente o arguido e BB envolveram-se numa contenda física, no decurso da qual, ambos desferiram socos e empurrões um no outro, tendo BB colocado a cabeça do arguido por baixo do seu braço esquerdo imobilizando-o.

3. Depois de separados por terceiros, mas ainda no interior do estabelecimento, o arguido disse para BB a seguinte expressão “lá fora estás fodido”.

4. Alguns minutos depois, quando BB se encontrava já no exterior do referido estabelecimento, o arguido aproximou-se dele e envolveram-se novamente numa contenda física, no decurso da qual o arguido, com uma faca, de características não concretamente apuradas, mas pontiaguda, desferiu cinco golpes no corpo do ofendido BB, designadamente, dois no pescoço, dois no tórax e um no ombro esquerdo.

5. Em virtude desses golpes BB sentiu uma dor aguda, mas conseguiu libertar-se e fugiu do local.

6. O ofendido foi transportado de ambulância para o Hospital ..., onde veio a receber tratamento hospitalar.

7. Como consequência necessária e direta deste evento o ofendido sofreu as seguintes lesões e sequelas:

- pescoço: cicatriz na face latero-posterior direito do pescoço, com 50mm de extensão e 3 mm de espessura e cicatriz na região interescapular, com 17mm de extensão e 3 mm de espessura;

- tórax: cicatriz na região subescapular direita, com 17mm de extensão e 3mm de espessura e cicatriz na transição dorso-lombar, com 2,3 mm de extensão e 3 mm de espessura;

- membro superior esquerdo: ferida na face lateral da região terminal do deltóide.

8. As lesões sofridas determinaram para o ofendido um período de doença de 20 dias, dos quais 10 com afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.

9. Nas circunstâncias descritas no ponto 1 o arguido agiu com o propósito de atingir o corpo de BB, o que conseguiu, contra a vontade deste.

10. Nas circunstâncias descritas no ponto 4 o arguido agiu com o propósito de causar a morte de BB, resultado que previu e quis realizar e que apenas não se verificou por motivos alheios à sua vontade.

11. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

(…)

15. Em consequência da conduta do arguido, e devido às lesões provocadas, BB sentiu dores, que o impossibilitavam de ficar de pé mais de cinco minutos.

16. Em virtude do sucedido, BB teve medo, ficou ansioso e teve pesadelos e perturbações do sono, que às vezes ainda persistem.

17. Em virtude do sucedido, BB ficou cerca de um mês sem sair de casa, teve e por vezes ainda tem fortes dores de cabeça.

18. BB deixou de frequentar as aulas no ano letivo em curso.

19. Em virtude do sucedido ficou com cicatrizes no pescoço, nas costas e no braço, sendo que antes do sucedido gozava de boa saúde e não tinha qualquer defeito físico.

20. O demandante BB exerce a atividade de “…” profissional e aufere mensalmente cerca de € 1000,00.

21. Vive com um amigo e paga € 350,00 de renda de casa.

Condições pessoais e antecedentes criminais

22. AA, com 25 anos de idade, não detém, atualmente, enquadramento habitacional, desde o mês de setembro de 2020, pernoitando na rua e/ou em casas de amigos, na sequência da expulsão do agregado familiar pela mãe; contudo, pese embora se encontre na situação de “sem abrigo”, continua a beneficiar do suporte da avó materna, onde faz a sua higiene e tem alimentação assegurada.

23. O reiterado incumprimento das normas familiares, nomeadamente, no concernente ao horário de entrada no habitat familiar, fixado pela mãe, aliado à postura de inércia no concernente à procura de colocação laboral e interação com grupos de pares afetos ao consumo de sustâncias psicoativas e outras práticas desajustadas, gerava um contexto de permanente conflituosidade, determinante da expulsão da habitação.

24. Foi sinalizado um período de permanência em ..., de janeiro de 2020 até junho do mesmo ano, alegadamente, por motivos de ordem laboral.

25. Em termos laborais, encontra-se, presentemente, inativo, em face da dificuldade na obtenção de colocação laboral, tendo sido referidos o anterior desempenho de atividades na apanha de laranja, empregado de mesa, servente de pedreiro, repositor, em moldes irregulares.

26. À data dos factos subjacentes à factualidade que lhe é imputada, residia com a mãe e irmã, presentemente, com ... anos de idade, num apartamento de tipologia ..., arrendado, avaliado como provido de condições adequadas de habitabilidade, encontrando-se, então, laboralmente ativo, como servente de pedreiro, sem contrato de trabalho.

27. AA iniciou o consumo de haxixe aos 15 anos de idade, em moldes individuais e grupal, tendo referido o abandono do consumo pelos 21 anos, o que veio a ser contrariado pela mãe, que refere a utilização de drogas mais “duras”, aliado ao consumo abusivo de álcool, o que se reflete nefastamente no seu comportamento, tornando-se violento verbalmente.

28. Nessa decorrência, face à alteração do comportamento do arguido, num quadro de crescente desorganização, a mãe considera que o mesmo deveria ser alvo de acompanhamento terapêutico, não revelando, todavia, disponibilidade para o acolher novamente no seu agregado,

29. O arguido protagonizou uma relação de namoro, de que resultou o nascimento de um filho, atualmente, com 5 anos de idade, que se encontra sob a responsabilidade educativa da mãe, tendo a relação culminado em rutura.

30. O arguido compreende e aceita a intervenção do sistema da justiça penal.

31. Por sentença de 6 de agosto de 2013, transitada em julgado a 30 de setembro de 2013, proferida no âmbito do processo sumário n.º 366/13…, do extinto Tribunal ..., foi o arguido AA condenado pela prática em 6 de agosto de 2013, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 5,00, substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade, e já declarada extinta pelo cumprimento.

32. Por sentença de 26 de maio de 2015, transitada em julgado a 26 de junho de 2015, proferida no âmbito do processo comum  singular n.º 332/13...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica do Tribunal ..., foi o arguido condenado pela prática em  31 de outubro de 2013, de um crime de roubo e, pela prática em 1 de novembro de 2013, de um crime de  roubo, na forma tentada, na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova, pena já declarada extinta.

33. Por sentença de 29 de outubro de 2015, transitada em julgado a 26 de novembro de 2015, proferida no âmbito do processo sumaríssimo n.º 325/14…, do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica do Tribunal ..., foi o arguido condenado pela prática em 1 de novembro de 2014, de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 5,00, pena já declarada extinta, pelo pagamento.

34. Por sentença de 29 de janeiro de 2016, transitado em julgado a 3 de março de 2016, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 278/13…, do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica do Tribunal ..., foi o arguido condenado pela prática em 16 de setembro de 2013, de um crime de furto qualificado, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, subordinada a regime de prova, e já declarada extinta.

35. Por sentença de 28 de junho de 2021, transitada em julgado a 30 de setembro de 2021, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 317/20…, do do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica do Tribunal ..., foi o arguido condenado pela prática em 27 de agosto de 2020, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

(…)

5. Da determinação da medida concreta da pena

Subsumida a qualificação jurídica dos factos, cumpre, agora, determinar a medida concreta da pena aplicável.

Ao crime de homicídio simples, na forma tentada, corresponde uma pena de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão, de acordo com o disposto nos artigos 131.º, 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, al.a) e b), todos do Código Penal.

De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, a aplicação das penas e medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a medida da pena ultrapassar a medida da culpa. 

A fixação da medida concreta da pena far-se-á nos termos equacionados nos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, ambos do Código Penal, ou seja, à culpa cabe a função de determinar o limite máximo da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e cujo limite mínimo se encontra nas exigências de defesa do ordenamento jurídico; à prevenção especial, cabe a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

Por outro lado, deverão ser consideradas, ainda, todas as circunstâncias gerais que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente, designadamente, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo e a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica. 

Assim, na determinação da medida da pena cumpre ponderar as seguintes circunstâncias:

- a intensidade do dolo e da culpa, que é elevada, pois o primeiro existiu na modalidade de dolo direto e, quanto à culpa, o arguido agiu demonstrando total insensibilidade e desprezo perante o valor da vida humana;

- o modo de execução do facto, designadamente que foi do arguido a iniciativa da contenda entre ambos, que os factos ocorreram quando o ofendido já se encontrava no exterior do estabelecimento, dando a contenda por terminada; as zonas atingidas – sendo o pescoço e tórax zonas de especial perigosidade - e a persistência com que foram atingidas, a utilização de uma faca e a ameaça prévia à execução dos factos:

- o contexto que envolveu o sucedido, designadamente que o arguido e o ofendido se encontravam no mesmo grupo de amigos, a jogar às cartas e tudo decorre de uma troca de palavras entre ambos, sendo que o ofendido teve uma postura reativa às agressões do arguido, e chegou mesmo a imobilizá-lo,

- a gravidade das lesões provocadas e as sequelas de cariz permanente de que o ofendido padecerá, designadamente as cicatrizes nos locais atingidos, e que provocam um dano de ordem estética, sendo a do pescoço a mais visível;

- a circunstância de, no caso concreto, serem bastante elevadas as exigências de prevenção geral, desde logo face ao cada vez maior número de episódios de violência associados à utilização de facas e que terminam com resultados graves como foi o caso, sendo premente que a generalidade das pessoas perceba que não pode resolver os seus diferendos desta forma;

- são igualmente elevadas as exigências de prevenção especial na medida em que o arguido já tem antecedentes criminais por crimes de ofensa à integridade física e por crimes de roubo, não assumiu a prática dos factos, não revelou arrependimento, pelo que se mostra necessário que o arguido se consciencialize e interiorize a gravidade dos factos praticados, com isso adequando o seu comportamento futuro às normas da vida em sociedade e ao respeito devido aos direitos, nomeadamente à vida e à integridade física, das outras pessoas, o que se impõe face à personalidade desconforme que revela dada a forma como atuou e a intensidade na execução dos factos; ao que acresce a ausência de inserção social e familiar do arguido, o que se constitui como fator de risco de comportamentos futuros semelhantes.

Pelo exposto, julga-se adequada ao caso concreto e às finalidades da punição, condenar o arguido na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.


2. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, as questões a apreciar circunscrevem-se à medida da pena nos seguintes termos:

2.1 O arguido alega que a pena em que foi condenado viola o princípio da proporcionalidade instituído no artigo 18.º da Constituição, põe em causa «a continuidade da sua reinserção social» e defende que a mesma deve ser «substituída por pena suspensa na sua execução acompanhada de regime de prova».

2.2 O Ministério Público pugna pela condenação do arguido numa pena «não inferior» a 6 anos e 3 meses de prisão alegando que o acórdão «enferma de vício de ponderação na aplicação do comando processual consagrado no artigo 71.º do Código Penal, por referência ao artigo 40.º do mesmo diploma».


Vejamos:

1. A determinação da medida concreta da pena baliza-se pelos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.


2. Dispõe o artigo 40.º, n.ºs 1 e 2:

1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

(…).

3. Por seu turno, dispõe o artigo 71.º, n.º 1 do citado diploma, que:

1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

(…).

4. Como aludido também pelo Senhor Procurador Geral Adjunto, o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal enumera diversos exemplos de circunstâncias que, desde que não façam parte do tipo de crime, concorrem « quer para a determinação da medida concreta proporcionalmente compatível com a prevenção geral (que depende da natureza e do grau de ilicitude do facto face ao maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), quer para identificar as exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), fornecendo ainda indicações exógenas objectivas para a apreciação e definição da culpa do agente »[1]


5. Culpa e prevenção, geral (protecção de bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade), constituem, assim, os critérios gerais a que o julga­dor deve atender na fixação da medida concreta da pena.

6. Acresce que, no que respeita à decisão sobre a pena, mormente a sua medida, o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. E assim também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.

7. Ou seja, o STJ intervém na pena, alterando-a quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção.

8. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.[2]

9. A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada[3]

10. No pensamento de Figueiredo Dias[4], acompanhado por Anabela Rodrigues[5], a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.

11. “Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais[6]

12. A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.

13. Culpa entendida como “censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter atuado contra o dever quando podia ter agido «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever”[7], devendo o agente ser censurado pela personalidade revelada no facto, pelos aspetos desvaliosos da sua personalidade contrários ao direito e revelados nos factos.

14. Ora, partindo das finalidades e dos princípios enunciados, olhando o acórdão, constata-se que o tribunal seguiu os passos legais de ponderação, identificando corretamente as exigências de prevenção geral e especial. E, atendendo às circunstâncias a que o tribunal atendeu, é de reconhecer que a pena aplicada não excede o necessário para assegurar as finalidades da punição, mostrando-se proporcionada e contida no limite da culpa.

15. Efetivamente, retornando a argumentação dos recursos e a respetiva contra-argumentação do contraditório, como bem destaca o Senhor Procurador Geral Adjunto, o que secundamos, sobressaí o grau de ilicitude do facto, avaliado pelo seu modo de execução, havendo que destacar que o arguido utilizou uma faca pontiaguda, de características não apuradas, com a qual desferiu cinco golpes no ofendido, atingindo-o no pescoço, tórax e ombro esquerdo, bem como a gravidade das suas consequências, tendo o ofendido sofrido lesões que determinaram um período de doença de 20 dias, dos quais 10 com afetação da capacidade de trabalho geral, tendo ficado com cicatrizes na face latero-posterior direito do pescoço, com 50 mm de extensão e 3 mm de espessura, na região interescapular, com 17 mm de extensão e 3 mm de espessura, na região subescapular direita, com 17 mm de extensão e 3 mm de espessura, na transição dorso-lombar, com 2,3 mm de extensão e 3 mm de espessura, e na face lateral da região terminal do deltóide.

16. Sobressaí igualmente o dolo direto e persistente, consubstanciado ainda na circunstância de ter sido o arguido a iniciar a contenda com o ofendido, retomando o confronto físico com utilização de uma faca, minutos após terem sido separados.

17. Também a ponderar, relevando negativamente, a conduta do arguido anterior aos factos com o registo de antecedentes criminais pela prática de crimes de ofensa à integridade física, ocorridos em 6 de agosto de 2013 e a 1 de novembro de 2014; de roubo consumado ocorrido a 31 de outubro de 2013; por roubo na forma tentada, ocorrido a 1 de novembro de 2013; por furto qualificado, ocorrido a 16 de setembro de 2013 e por consumo de estupefacientes, praticado a 27 de agosto de 2020.

18. Resulta, assim, que arguido sofreu várias condenações, duas delas pela prática de crimes de idêntica natureza, circunstancialismo que revela, da sua parte, efetivo desaproveitamento das medidas punitivas não privativas de liberdade anteriormente experimentadas, traduzindo, igualmente, ineficácia de todas as outras penas aplicadas na prevenção da recidiva.

19. Quanto à situação pessoal e económica, sobressaí a circunstância do arguido pernoitar na rua ou em casa de amigos em virtude de ter sido expulso da casa materna, estar desempregado e não procurar trabalho, ser consumidor de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, ter um filho de 5 anos de idade que se encontra sob a responsabilidade educativa da mãe, cuja relação com o arguido se encontra terminada.

20. Neste contexto, como bem continua a salientar o Senhor Procurador Geral Adjunto, (…) afigura-se que a medida da culpa, considerando o grau de ilicitude e o dolo, apresenta uma dimensão média/elevada e que as exigências de prevenção geral, em atenção ao bem jurídico acometido (a vida humana), e de prevenção especial, face à descrita situação pessoal e aos antecedentes criminais do arguido (os quais, em todo o caso, à parte o crime de consumo de estupefacientes, remontam aos anos de 2013 e 2014), são acentuadas.

21. Ora, partindo das finalidades e dos princípios já enunciados, verificado o acórdão resulta, de forma consistente, que o tribunal seguiu os passos legais de ponderação, identificando corretamente as exigências de prevenção geral e especial, excluindo a possibilidade de suspensão de execução da pena aplicada    ( artigo 50º do CP), resultando que, atendendo às circunstâncias a que atendeu, é de reconhecer que a pena aplicada não excede o necessário para assegurar as finalidades da punição, mostrando-se proporcionada e contida no limite da culpa.

22. Com efeito, considerada a moldura penal que cabe ao caso  sub judice, que tem como limite mínimo 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão e como limite máximo 10 anos e 8 meses de prisão, a pena fixada respeita o limite inultrapassável da culpa e responde equilibradamente às exigências de prevenção que se fazem sentir, não resultando, assim, ser uma pena demasiado indulgente, como classificada pelo Ministério Público na primeira instância, ou desproporcionada e violadora do artigo 18º da CRP como defende o arguido.

23. Tudo ponderado e como se adiantou, visando-se sempre encontrar uma pena ressocializadora e não segregadora, considera-se que as finalidades preventivas, quer gerais, quer especiais, resultam suficientemente asseguradas com a pena de prisão imposta pela primeira instância.

24. Conclui-se, portanto, que o acórdão recorrido respeitou as exigências formais de fundamentação em matéria de pena, as exigências relativas à factualidade, selecionou e discorreu sobre todos os factos que efetivamente relevam para a determinação da sanção, bem como sobre as exigências de direito, enunciou corretamente o quadro legal aplicável e, por fim, chegou à pena de cinco anos e três meses de prisão, pena que se mostra proporcional, necessária e adequada às concretas exigências de prevenção geral e especial, contendo-se no limite da culpa.

25. E, em conformidade, atenta a medida da pena aplicada e confirmada, está legalmente excluída a suspensão da respetiva execução, não se verificando o pressuposto formal consistente em não ser superior a 5 anos de prisão (artigo 50º do CP).


III. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedentes os recursos, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido recorrente, que se fixam em 6 UC (artigos 513º nº 1 e 514º nº 1 do CPP e 8º nº 9 e Tabela III RCJ)


Lisboa, 18.05.2022


Maria Helena Fazenda (Relatora)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Seção)

_____

[1] acórdão do STJ de 18 de Junho de 2009, processo 1246/08.9PASNT.L1, www.dgsi.pt
[2] Cf. acórdão de 27.10.2021, Processo 24/20.1SFPRT.S1, relatora Conselheira Ana Brito.
[3] Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197
[4] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005
[5] A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995
[6] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81
[7] Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244