REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário

– Se da acusação resulta – em função do auto de notícia e do que foi aditado - que o arguido conduziu um veículo, num determinado dia, hora e local, sem ter habilitação legal para o fazer, e que o fez de forma voluntária e consciente, sabendo que tal conduta não lhe era permitida e tendo liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação, então é porque ponderou na conduta referida e que a quis levar a cabo, que é quanto basta para que esteja preenchido o elemento volitivo do dolo.

– De outro modo, quanto ao elemento volitivo, afigura-se-nos que a acusação indica o que efectivamente foi querido pelo agente: efectuar a condução do veículo sem carta de condução, nisso se traduzindo a vontade que presidiu à sua actuação.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No processo n.º112/21.7PTAMD, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento na forma de processo abreviado contra AJ, identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121.º, n.º1, do Código da Estrada.
Por despacho de 29 de Outubro de 2021, a acusação não foi admitida “por ser omissa na descrição de factos essenciais”, sendo determinada “a remessa dos autos aos serviços do M.P. para os fins tidos por convenientes”.

2.O Ministério Público recorreu desse despacho, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1.–No âmbito dos presentes autos, por despacho a Meritíssima Juiz recusou a recepção da acusação, por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, mais concretamente no que se refere aos elementos subjectivos do tipo, nos termos do art.° 311.°, n.° 3 al. b) do Código Processo Penal, concretizando que, não obstante que o Ministério Público ter formulado a culpa, ao enunciar que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, no que concerne ao dolo do tipo, apenas enunciou o elemento intelectual, sendo a acusação omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
2.–Ao invés do alegado pelo Tribunal a quo, o despacho de acusação proferido cumpre, na integra, o disposto no art.° 283.° n.° 3 do Código Processo Penal, uma vez que narra, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
3.–O crime de condução de veículo sem habilitação legal consuma-se a título doloso, sendo que, ao invés do defendido pelo Tribunal a quo, analisado o despacho de acusação recusado resulta, de forma clarividente, que se encontram descritas, de forma sistemática, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, uma vez que ali é descrito, de forma peremptória, que o arguido conduziu um motociclo, num determinado dia, hora e local, bem sabendo que não era titular de carta de condução ou outro título que lhe permitisse a respectiva condução e que o fez de forma voluntária e/ou deliberada, razão pela qual se conclui, forçosamente, que ao actuar da forma descrita, ponderou reflectidamente na conduta suprarreferida, actuando, de acordo com essa pretensão, desejando atingir esse fim, o qual concretizou.
4.–De salientar que, ao enunciar, no despacho de acusação, que o arguido “...efectuou a condução de tal motociclo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública. ...”, que “Sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.” e que, ao actuar da forma descrita, ou seja, ao assumir a condução do motociclo na circunstância de tempo, modo e lugar supramencionados, fê-lo de forma consciente e voluntária, o Ministério Público pretendeu, de forma cristalina, concretizar que aquele assumiu a factualidade que lhe é imputada, ou seja, conduzir um motociclo na via pública, com o intuito concretizado de o efectuar, de forma ponderada e reflectida, ou seja, com todos os elementos subjectivos do tipo legal.
5.–Concomitantemente, no despacho de acusação é, de igual forma, referido que o arguido actuou de forma livre, na medida em podendo actuar de outra forma optou por assumir os factos ora em análise, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida, isto é, com consciência da ilicitude.
6.–Em nosso entendimento, analisado o teor do despacho de acusação, não se consegue perspectivar ou sequer conjectuar que a actuação do arguido, aquando da prática dos factos, não fosse com a intenção concretizada de praticar o ilícito pelo qual veio acusado, sendo incompreensível e inexplicável entendimento ou interpretação diversa, na medida em que, quando alguém expressa que outrem, sabendo que vai incorrer na prática de um ilícito ao actuar de determinada forma, encontrando-se livre e consciente, assume tais comportamentos de forma voluntária/deliberada, de forma transparente pretende expor ou relatar que esse arguido actuou com dolo directo ao assumir determinado comportamento.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir, ao rejeitar a acusação, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 283.°, n.° 3, al. b) e 311, n.°s 2, al. a) e 3 al. b), todos do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser revogado o despacho proferido em 1.ª instância, ora recorrido, e substituído por outro que proceda a exame preliminar e designe data para realização de audiência de discussão e julgamento, por se encontrarem descritos, no despacho de acusação, todos os elementos, subjectivos e objectivos do tipo imputado ao arguido.

3.–Não havendo resposta, subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido do provimento do recurso.

4.–Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar. Foram colhidos os vistos, após o que os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação

1.–Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, a questão a apreciar e decidir consiste em apurar se a acusação deveria ter sido, como efectivamente foi, rejeitada com base na falta de descrição do elemento volitivo do dolo.

2.–Da decisão recorrida

Diz-se no despacho recorrido:

Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo art. 3.°, n°s 1 e 2 do D.L. n° 2/98, de 03.01 com referência ao art. 121° n° 1 do Código da Estrada.
Nos termos do disposto no artigo 311.°, do CPP, considerando a remissão do art.° 386.° do CPP, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.°2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada (al. a)), considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.°, n.°3, al. b), do CPP).
Relativamente ao estatuído na última alínea do n°3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência actuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, i. e., quando diante do texto da acusação faltem elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8).
Do ponto de vista subjectivo, o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso, podendo o crime de condução perigosa, no que ao tipo subjectivo diz respeito, ser praticado também a título negligente (artigo 291.°, n.°3, do CP). A acusação todavia, imputa o crime nos termos do artigo 291.°, n.°1, do CP, ou seja, a título doloso.
Para que o dolo do tipo se afirme é necessário que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto.
Ou seja, para que se possa afirmar a actuação dolosa necessário se monstra que o “agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”- Figueiredo Dias, Doutrina Geral do Crime, Lições do 3.° ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, pág. 90.- Elemento intelectual do dolo.
Mas o dolo não se basta com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a “verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização” - o elemento volitivo do dolo do tipo, o qual pode assumir a forma de dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual- artigo 14.° do CP.
Por outro lado, um facto ilícito só é punível se culposo, ou seja, se for reprovável porque o agente não “motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando poderia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito (...)
A culpabilidade representa, pois, um juízo de censura do agente por não ter agido em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo, mas significa também o conjunto de pressupostos desse juízo de reprovação jurídica. (...)- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português Parte Geral, III, Verbo, páginas 149 a 150.

Da acusação e no que ao elemento subjectivo diz respeito, nele se incluindo quer o dolo do tipo quer a culpa, consta o seguinte:
“O arguido efectuou a condução de tal motociclo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública.
O arguido agiu consciente e voluntariamente.
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação”
Assim, na acusação apenas se enuncia a culpa (o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei) sendo completamente omisso o elemento subjectivo do tipo, quer quanto ao elemento intelectual, quer quanto ao elemento volitivo).
Ora, como foi decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n°1/2015, in DR, série I, de 27/01/2015, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando- se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso” (sublinhado nosso).
Mais entendeu o STJ que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.° do Código de Processo Penal”. (negrito nosso)
Pelo exposto, por ser omissa na descrição de factos essenciais, que não podem ser completados pelo Tribunal considerando a doutrina do AUJ 1/2015 atrás citado, não se recebe a acusação e ordena-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.
Notifique.
Dê a competente baixa.
           
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3.–Apreciando

De harmonia com o disposto no artigo 311.º, n.º 2, do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
«a)-De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b)-De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º1 do artigo 284.º e do n.º4 do artigo 285.º, respectivamente.»

O n.º3 do mesmo artigo estabelece que a acusação considera-se manifestamente infundada:
a)-Quando não contenha a identificação do arguido;
b)-Quando não contenha a narração dos factos;
c)-Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d)-Se os factos não constituírem crime.

O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido para julgamento em processo abreviado, fazendo a narração dos factos, em parte, por remissão para o auto de notícia, como faculta o artigo 391.º-B, do C.P.P., imputando-lhe a autoria de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121.º, n.º1, do Código da Estrada.

Aos factos descritos no auto de notícia que deu origem ao inquérito, o Ministério Público aditou:
“O arguido efectuou a condução de tal motociclo sem ser titular de carta de condução válida ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública.
O arguido agiu consciente e voluntariamente.
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Cometeu o arguido, AJ, um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo art. 3.°, n.°s 1 e 2 do D. L. n.° 2/98, de 03.01 com referência ao art. 121° n° 1 do Código da Estrada.”

O nosso processo penal tem estrutura acusatória, como impõe a própria Constituição da República Portuguesa (artigo 32.º, n.º5), sendo o objecto do processo fixado pela acusação (ou pela pronúncia, no caso de ter havido instrução).
Os princípios da vinculação temática da acusação, do contraditório e do respeito pelas garantias de defesa do arguido, exigem a delimitação clara do objecto do processo que define as fronteiras da actividade cognitiva e decisória do tribunal.
Por isso, a narração “dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena” [cfr. artigos 283.º, n.º3, al. b), e 285.º, n.º3] abrange, necessariamente, os factos integradores de todos os elementos típicos do crime imputado, quer os objectivos, quer os subjectivos, devendo a acusação obedecer ao princípio da suficiência e clareza,
O artigo 283.º, n.º3, do C.P.P., indica nas suas alíneas os elementos que a acusação deve conter “sob pena de nulidade”. A omissão de algum desses elementos torna a acusação nula, sendo a nulidade sanável uma vez que não consta do elenco do artigo 119.º.
Contudo, algumas das nulidades da acusação são, simultaneamente, motivo de rejeição da acusação, por serem integráveis no conceito de “acusação manifestamente infundada”, de harmonia com o n.º3 do artigo 311.º, que foi aditado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
Por via da sobreposição dos vícios elencados no n.º 3 do artigo 311.º às nulidades sanáveis do artigo 283.º, n.º 3, estas nulidades, na medida da sobreposição, convertem-se em matéria de conhecimento oficioso do tribunal.
Quer isto dizer que o juiz, no momento em que profere o despacho a que se refere o artigo 311.º, conhece oficiosamentede vícios da acusação que, encarados sob a perspectiva das nulidades, não podia, em princípio, conhecer, por estar esse conhecimento dependente de arguição.
Esta a razão por que se fala em nulidades atípicas ou de regime híbrido, que num determinado momento processual podem ser conhecidas oficiosamente e fundamentar a rejeição da acusação.
In casu,a acusação deduzida pelo Ministério Público não foi recebida, o que mais não é do que uma forma de dizer que foi rejeitada, com fundamento na alegada omissão de “factos essenciais”, mais concretamente, a falta de “descrição de factos que configurem o elemento volitivo” do dolo.
O tipo de ilícito cumpre a função de dar a conhecer que determinada espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico, sendo constituído por um tipo objectivo de ilícito e um tipo subjectivo de ilícito,seja sob a forma dolosa, seja sob a forma negligente (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., 2007, págs. 285 e 348).
O dolo, enquanto conhecimento (elemento cognitivo ou intelectual) e vontade (elemento volitivo) de realização do tipo objectivo, é elemento constitutivo do tipo de ilícito; o dolo, como expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever ser jurídico-penal, é ainda elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa (um momento emocional, nas palavras de Figueiredo Dias, que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa – ob. cit., p. 350, § 6).
O dolo do tipo não se basta com aquele conhecimento dos elementos típicos, mas exige ainda que a “prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 366).
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu artigo 14.º, cada uma das formas que pode assumir o elemento volitivo: o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual. O dolo directo é aquele em que o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso (n.º1); o dolo necessário existe quando o agente sabe que em consequência de uma sua conduta realizará um facto que preenche um tipo legal de crime e, ainda assim, não se abstém de a praticar (n.º2); por fim, no dolo eventual, o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, mas não se abstém de a empreender, conformando-se com a produção do resultado (n.º3).
Quanto ao elemento intelectual do dolo, torna-se necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. Com a consequência de que sempre que o agente represente erradamente, ou não represente, um qualquer dos elementos típicos objectivos, o dolo terá de ser afastado.

Pretende-se que o agente, ao actuar, “conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o supedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título, com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo, o dolo terá, desde logo, de ser negado” (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 351).

Assim, ao nível do que a doutrina designa por dolo do tipo, assume-se uma decomposição em dois “momentos” que são o intelectual e o volitivo.
Partindo da concepção bidimensional do dolo, este é ainda a expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença, perante o dever ser jurídico-penal, sendo, nesta perspectiva, um elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa.
É por isso que é defendido que a consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito, mas do tipo de culpa),acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).
Posto isto, é sabido que a questão de como cumprir a necessidade de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, não é tão simples como aparenta ser.
Constantemente encontramos fórmulas do género “o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta”, ou então “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser proibida por lei a sua conduta.”
Porém, a descrição do dolo – pois o tipo de crime concretamente imputado ao arguido é doloso - não exige especificação prática por via do enunciado “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente”, que mais não é do que uma fórmula genérica e abstracta, muito utilizada na prática para a descrição factual do dolo, mas que por si só, como se refere no acórdão da Relação de Évora, de 07/01/2016 (processo 49/15.9PATVR.E1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que venham a ser citados sem diversa indicação), nem consegue esgotar a especificação factual do dolo, nem se mostra imprescindível a essa descrição.
O Código Penal  define o dolo nas três modalidades supra referidas, inexistindo nele uma correspondência com a expressão “sacramental” que a prática consagrou (agiu livre, consciente e voluntariamente), não sendo forçosa a utilização de quaisquer fórmulas tabelares para descrever os elementos subjectivos do crime, nomeadamente o dolo, o que se traduz, afinal, numa atitude de utilização de “jargões” aplicados genericamente a qualquer crime e a quaisquer circunstâncias.

Como se diz no acórdão da Relação de Évora, de 27/06/2017 (proc. 171/14.9GDEVR):
“ (…) na ponderação sobre a suficiência dos factos articulados pelo Ministério Público, releva logo a circunstância de que inexiste uma forma única de descrição factual do dolo. Nem o acusador, nem o julgador, se encontram amarrados à utilização de fórmulas únicas ou “sacramentais”, nessa descrição.
Os factos – da acusação e da sentença – são sempre “enunciados linguísticos descritivos de acções” (na expressão de Perfecto Ibanez): da acção executada – factos externos – e da acção projectada na vontade – factos internos.
O Ministério Público é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, desde que descreva plenamente o objecto do processo, desde que esgote factualmente a descrição dos tipos objectivo e subjectivo do crime imputado.
Assim, inexiste uma fórmula única para a descrição factual do dolo, não só porque essa redacção é livre, mas, sobretudo, porque as exigências de concretização factual do dolo dependerão sempre do concreto crime em apreciação.”

Terá de ser factualmente que terá de resultar que o agente representou e quis os factos do tipo objectivo, tendo, por isso, a base factual, que incluir factos susceptíveis de integrar o dolo do tipo.

Em diversos arestos encontramos a seguinte formulação:

“Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).” (citação retirada do acórdão da Relação de Coimbra, de 30/09/2009, no proc. 910/08.7TAVIS.C1, mas que surge repetida, nos mesmos termos, em muitos arestos)

A referência à actuação “livre” significa, na dita jurisprudência, o “afastamento das causas de exclusão da culpa”.
A nosso ver, será mais preciso dizer que a actuação “livre” reporta-se à “liberdade” como pressuposto da culpa (do conceito material de culpa). A actuação é “livre” como determinação do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico (concepção do livre-arbítrio, que é filosoficamente controversa, como se sabe).
O que se afirma, pois, na fórmula “agiu livre”, é a liberdade de decisão do agente, como pressuposto da culpa.
A caracterização da acção como “voluntária” ou “deliberada” refere-se ao elemento volitivo do dolo (dolo do tipo): a vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico.
Todavia, não basta dizer, genericamente, que o agente agiu de forma “voluntária” ou “deliberada”, pois importa dar a conhecer o objecto dessa vontade - que o agente quis todos os factos que objectivamente praticou.
O advérbio “conscientemente”, que na citação supra respeita à “imputabilidade”, entendemos referir-se, antes, ao elemento intelectual do dolo: ao conhecimento (representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito. A actuação é consciente porque o agente representa na sua consciência (psicológica ou intencional) todas as circunstâncias do facto.
A imputabilidade constitui conditio sine qua non da formulação de um juízo de culpa, mas não vislumbramos que seja afirmada pelo emprego da palavra “conscientemente”, nem sequer que tenha de ser referido na acusação, por recurso a uma qualquer fórmula, que o arguido é imputável.
Na acusação em apreço, o Ministério Público remete para o auto de notícia que descreve o acto de condução do veículo no dia, hora e local indicados no auto.
Quando se diz que o arguido agiu conscientee voluntariamente, temos como claro que a consciência e a vontade referem-se, como seu objecto, ao acto de condução do veículo na via pública, sem que fosse titular de título que o habilitasse a conduzir, sabendo que tal conduta era proibida por lei e tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Se da acusação resulta – em função do auto de notícia e do que foi aditado - que o arguido conduziu um veículo, num determinado dia, hora e local, sem ter habilitação legal para o fazer, e que o fez de forma voluntária e consciente, sabendo que tal conduta não lhe era permitida e tendo liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação, então é porque ponderou na conduta referida e que a quis levar a cabo, que é quanto basta para que esteja preenchido o elemento volitivo do dolo.
De outro modo, quanto ao elemento volitivo, afigura-se-nos que a acusação indica o que efectivamente foi querido pelo agente: efectuar a condução do veículo sem carta de condução, nisso se traduzindo a vontade que presidiu à sua actuação.
Que enunciados fácticos a acusação deveria conter e não contém, o despacho recorrido não diz.

Concluindo: o recurso merece provimento.

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III–Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine a normal prossecução dos autos, se não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.


Lisboa, 24/05/2022


(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Jorge Gonçalves)
                              
(Fernando Ventura)