I - Se, na sequência duma notificação para penhora de créditos, o devedor declara que o crédito existe e se, chegado o momento do seu vencimento, deposita a quantia em dívida, tal significa que está a depositar uma quantia que pertence ao executado, pelo que, se e quando tal quantia (ou parte dela) tiver que ser devolvida por não ser necessária para pagar a quantia exequenda, tem que ser devolvida a quem pertence: ao executado (que é/era o seu credor) e não ao devedor ou a um terceiro/cessionário (em cessão notificada ao devedor após este ter efetuado o depósito).
II - Assim, declarada a insolvência do executado, sem que a quantia desnecessária para pagar a quantia exequenda lhe tenha sido devolvida, é a mesma um bem integrante da respetiva massa insolvente (e não um bem que pertença ao terceiro/cessionário).
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II –Fundamentação de Facto
1. - O Autor é um agrupamento complementar de empresas, constituído para levar a cabo a execução da empreitada denominada por “Conclusão de Eletrificação e RIV do Troço Caíde-Marco, da Linha do Douro”.
2. - A Insolvente é uma das empresas agrupadas e constituintes do referido ACE.
3. As mesmas empresas que constituíram o tal ACE haviam constituído, anteriormente, um Consórcio Externo.
4. - Consórcio Externo, constituído pelas Sociedades Comerciais, Opway Engenharia, SA, Domingos da Silva Teixeira, SA., DTE, SA, Alstom, Transporte, SA e pela sociedade insolvente que, na qualidade de Empreiteiro Geral da empreitada denominada por “Conclusão de Eletrificação e RIV do Troço ..., da ...”, celebrou com o ACE autor um contrato de subempreitada para a execução destes mesmos trabalhos.
5. - Foi Dono de Obra da Empreitada Geral a Infraestruturas de Portugal, SA.
6. - Para pagamento dos créditos resultantes da faturação emitida pelo autor ao Consórcio empreiteiro, este consórcio, em 07 de novembro de 2018, remeteu uma comunicação ao Dono de Obra da Empreitada Geral, a Infraestruturas de Portugal, SA., comunicando-lhe que, em virtude de um contrato de cessão de créditos celebrado, os pagamentos futuros a efetuar pelo Dono de Obra às empresas integrantes do Consórcio por conta das faturas por estas emitidas e a emitir, deveriam ser diretamente efetuadas para a conta bancária do ACE, aqui autor.
7. - Comunicação que o Consórcio empreiteiro reiterou junto do Dono de Obra através da comunicação de 27 de novembro de 2018.
8. - A Infraestruturas de Portugal, SA. aceitou a cessão dos créditos cedidos pelo Consórcio empreiteiro ao ACE e, a partir de novembro de 2018, começou a pagar os créditos decorrentes das faturas emitidas pelo Consórcio diretamente para a conta do ACE/A..
9. A Infraestruturas de Portugal, SA., antes da comunicação cessão de créditos efetuada pelo Consórcio Empreiteiro, recebeu várias notificações provenientes de diversos processos executivos, para penhora de créditos que eventualmente detivesse relativamente à Insolvente e relativamente à sociedade comercial Opway, SA
10. - No seguimento destas comunicações, a Infraestruturas de Portugal, SA., procedeu ao depósito para as contas de diversos agentes de execução, de créditos detidos pela Insolvente e pela Opway, SA., no montante €401.608,59.
11. - Após os depósitos destas quantias, a Infraestruturas de Portugal, SA., foi informada pela Insolvente e pela Opway, SA que estas, antes de o IP efetuar depósitos, já haviam efetuado o pagamento dos montantes em dívida aos exequentes.
12. - Pelo que se constatou que a Infraestruturas de Portugal, SA havia depositado quantias em contas bancárias de agentes de execução que já não se mostravam devidas aos exequentes.
13. Neste seguimento, a Infraestruturas de Portugal, SA., bem como a própria Insolvente e a Opway, SA, diligenciaram junto dos agentes de execução pela devolução à Infraestruturas de Portugal, das quantias que havia indevidamente depositado.
14. E foi obtida a devolução de parte da quantia depositada no processo executivo n.º 3012/17.... e a integralidade da quantia depositada no processo executivo n.º 9576/18…, no valor de € 150.000,00 e de € 70.000,00, respetivamente.
15. - Tudo conforme carta que a Infraestruturas de Portugal SA remeteu ao Senhor Administrador de Insolvência.
16. O montante de € 150.000,00, depositado na conta do Agente de Execução à ordem do processo executivo n.º 3012/17…, foi arrestado no âmbito do Procedimento Cautelar de Arresto que, sob o n.º 6675/19...., corria termos no Juízo de Trabalho ..., J..., em que era Requerente AA e Requerida a sociedade aqui insolvente.
17. E, posteriormente, foi o mesmo depositado à ordem deste mesmo Procedimento Cautelar de Arresto.
18. Oarresto decretado no processo n.º 6675/19…, foi-o em data posterior à data da comunicação à Infraestruturas de Portugal, SA, da cessão de créditos presentes e futuros operada entre o Consórcio Empreiteiro e o ACE autor.
19. O Senhor Administrador de Insolvência apreendeu para a massa insolvente da Promorail, SA., a referida quantia de € 150.000,00 arrestada no processo executivo n.º 3012/17.... por ordem do processo n.º 6675/19…, fazendo-a inscrever como verba 16 do Auto de Apreensão de Bens.
20. - Por ofício de 18-12-2019, o Senhor Juiz de Direito titular do Procedimento Cautelar Comum n.º 6675/19…, pendente no Juízo de Trabalho ..., J..., Processo 6/19...., solicitou aos autos principais da Insolvência que informasse se havia interesse da apensação daquele processo ao processo e insolvência, mais informando que naquele processo cautelar se encontrava arrestada a referida quantia de €150.000,00.
21. - Notificado o Sr. Administrador de Insolvência para informar, requerer e diligenciar o que tiver por conveniente, relativamente à informação requerida e prestada pelo Senhor Juiz de Direito titular do Procedimento Cautelar Comum n.º 6675/19…, pendente no Juízo de Trabalho ..., J.…, veio o Sr. AI a informar os autos que:
1º- A massa insolvente considera que interessa a remessa daqueles autos (processo 6675/19…) para apensação aos aqui autos de insolvência.
2º- A quantia arrestada naqueles autos no montante de 150.000,00 euros deve ser transferida para a conta da massa insolvente com o IBAN que se junta.
3º- Os órgãos da Insolvência dos presentes autos estabelecerão o destino final a dar àquela mesma quantia.
4º- Considerando o exposto, muito respeitosamente se requer ao Senhor Juiz se digne ordenar o que tiver por conveniente.
22. - Neste seguimento, por Despacho de 03-03-2020, veio o Senhor Juiz titular do processo de Insolvência ordenar a remessa do Processo n.º 6675/19.... para apensação aos autos de insolvência e ordenar que a quantia ali arrestada, no montante de €150.000,00, fosse de imediato transferida para a conta da Massa Insolvente com o IBAN fornecido pelo Senhor AI.
23. – A cedência de créditos da Insolvente (e das restantes empresas que constituíam o consórcio empreiteiro referido em 3) para o ACE autor (subempreiteiro) ocorreu em 05 de setembro de 2018 e foi comunicada ao Dono de Obra (a Infraestruturas de Portugal, SA) em 07 de novembro de 2018.
24. - E a ordem judicial de arresto do crédito de € 150.000,00 foi ordenada no ano de 2019.
25 - O A. reclamou, em 29/04/2019, no processo de insolvência o crédito de € 150.000,00 sobre a insolvência, o qual foi reconhecido como crédito comum na lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência.
26 - No dia 24-09-2020, foi homologado o plano de recuperação da sociedade insolvente.
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III – Fundamentação de Direito
Estamos – é bom tê-lo presente – no apenso previsto no Capítulo II do Título IV do CIRE (a que se referem os arts. 141.º a 145.º do CIRE, assim como, quanto à sua verificação ulterior, como é o caso, o art. 146.º do CIRE), designado por “Restituição e Separação de Bens”.
Efetivamente, a nossa lei, além da reclamação de créditos (arts. 128.º a 140.º do CIRE), considera e prevê duas outras espécies de reclamação: a reclamação para restituição e a reclamação para separação que, normalmente, se distinguem por, na reclamação para restituição, o reclamante ter plena e exclusiva propriedade sobre as coisas reclamadas, enquanto, na reclamação para separação, convergem sobre as coisas reclamadas direitos do reclamante e do insolvente; reclamações estas que têm, como aspeto comum, representarem formas de correção da massa insolvente.
Assim, procurando mover-se no perímetro do meio processual de que faz uso, o A/recorrente invoca que estão apreendidos € 150.000,00 para a Massa Insolvente que não são pertença da sociedade Insolvente, sendo antes da A./recorrente, pelo que tal apreensão viola o seu direito de propriedade (cfr. art. 26.º da PI), razão por que pede a “separação” de tais € 150.000,00 da Massa Insolvente da Promorail[1].
E o A./recorrente pede isto porque, tendo a Insolvente um crédito na quantia de € 150.000,00 (sendo devedora a Infraestruturas de Portugal), cedeu tal crédito ao A./recorrente, após o que, estando tal montante de € 150.000,00 depositado à ordem dum processo executivo (em que a quantia exequenda já havia sido paga), foi tal montante de € 150.000,00 arrestado em data posterior à cessão de créditos (e à comunicação da cessão de créditos à devedora) e depois apreendido para a massa insolvente, ou seja, segundo o A./recorrente, “procedeu erradamente o AI ao ter apreendido para a massa insolvente um montante que, bem antes da declaração de insolvência da Promorail havia sido cedido pela insolvente ao A. e que, portanto, já não lhe pertencia” (cfr. art. 33.º da PI).
Mas também diz – cfr. arts. 9.º a 11.º da PI e pontos 9 a 11 dos factos provados – que, antes da comunicação da cessão de créditos, a Infraestruturas de Portugal (IP) recebeu várias notificações provenientes de diversos processos executivos para penhora de créditos que detivesse relativamente à Insolvente; que foi no seguimento de tais notificações que a Infraestruturas de Portugal procedeu a depósitos, para as contas de diversos agentes de execução, de créditos detidos pela Insolvente; e que foi após estes depósitos que a Infraestruturas de Portugal foi informada pela Insolvente que esta, antes de a IP efetuar os depósitos, já havia efetuado o pagamento dos montantes em dívida aos exequentes.
Ou seja, é o próprio A/recorrente a “confessar” que os € 150.000,00 foram e estavam penhorados – é disso que se trata, quando se diz que a IP procedeu a depósitos (cfr. arts. 773.º e 777.º do CPC) – antes da cessão de créditos haver sido comunicada e produzir efeitos, nos termos do art. 583.º/1 do C. Civil, em relação à IP, o que significa que nenhum comportamento incorreto, face ao que o A. alegou, pode ser imputado à IP, que, respeitando “notificações provenientes de diversos processos executivos”, depositou o montante da sua dívida (em data cuja cessão de créditos, repete-se, ainda não lhe havia sido comunicada) à ordem do agente de execução, pagando bem e extinguindo a sua obrigação (respeitante a tais € 150.000,00).
Sendo que, a partir daqui a circunstância dos € 150.000,00 não serem indispensáveis ao pagamento da quantia exequenda (do processo onde estavam depositados/penhorados) não faz como que os € 150.000,00 tivessem que ser devolvidos à IP, que, repete-se, pagou bem e viu extinta a sua obrigação (que, justamente por isto, por estar extinta, não se transmitiu e não passou a ter como credor o cessionário e aqui A./recorrente).
Se, na sequência duma penhora de créditos, o devedor é notificado e declara que o crédito existe e se, chegado o momento do seu vencimento, deposita a quantia em dívida, como no caso aconteceu, tal significa que está a depositar uma quantia que pertence ao executado[2], pelo que, se e quando tal quantia (ou parte dela) tiver que ser devolvida, tem naturalmente que ser devolvida a quem pertence: ao executado (que é/era o seu credor) e não ao devedor.
Era isto que tinha que acontecer e, não tendo acontecido a devolução à executada (e aqui insolvente), nem por isso os € 150.000,00 podem deixar de ser considerados como pertencendo à sociedade que, entretanto, veio aqui a ser declarada insolvente e, por conseguinte, após a sua declaração de insolvência, foram bem apreendidos para a sua Massa Insolvente.
É isto, muito singelamente, que resulta do direito aplicável aos factos alegados pelo A./recorrente (e integralmente provados por terem sido admitidos por acordo pelos RR.).
Não sendo os € 150.000,00, que estavam penhorados (no processo executivo 3.012/17), indispensáveis ao pagamento da respetiva quantia exequenda, deviam em tal processo ter sido devolvidos à executada, uma vez que, antes da cessão de créditos haver produzido efeitos em relação à IP, já esta havia pago/cumprido a dívida que tinha respeitante a tais € 150.000,00, na medida em que não havia chegado a produzir eficácia, quanto a tais € 150.000,00, a cessão de créditos que é a “causa petendi” do presente meio processual.
A quem os € 150.000,00, que estavam penhorados (no processo executivo 3.012/17), não podiam ser entregues, no âmbito de tal processo executivo, era ao aqui A./recorrente, que não era parte ou interveniente acidental em tal processo executivo e que não podia ali invocar a cessão de créditos – cuja eficácia, para mais, era posterior à penhora de tal quantia/crédito – e requerer que fosse decidido que a quantia lhe pertencia e que, por isso, lhe devia ser entregue[3].
Em síntese, do alegado/provado não resulta que tais € 150.000,00 sejam, ao contrário do que se invoca, “pertença/propriedade” do aqui A/recorrente; e também não resulta que fossem “pertença/propriedade” da IP e ainda que assim fosse, o que se concede como hipótese de raciocínio, continuariam, mesmo em tal hipótese, a não ser “pertença/propriedade” do aqui A./recorrente.
O raciocínio do A./recorrente de que, a partir do momento em que os € 150.000,00 deixaram de ser indispensáveis ao pagamento da quantia exequenda, produziu efeitos e se operou a cessão de créditos e os € 150.000,00, depositados/penhorados no processo executivo 3.012/17, passaram a ser sua pertença/propriedade não tem cobertura jurídica: repete-se, tendo a IP procedido ao depósito dos € 150.000,00 antes de lhe ter sido comunicada a cessão de créditos, como o próprio A. alegou, o que sucede é que, quando tal cessão produziu efeitos, já a exequente e aqui insolvente não detinha tal crédito sobre a IP e, por conseguinte, não foi o mesmo, em momento algum, transferido para o aqui A./recorrente.
Não é este raciocínio, reconhece-se, que é feito no Acórdão recorrido.
Mas o decidido no Acórdão recorrido pode e deve manter-se.
Indo um pouco atrás, recapitulando todo o sucedido, importa mencionar que o comportamento processual do A./recorrente nos coloca perante uma situação algo invulgar e até “extraordinária”.
Como resulta do ponto 25 dos factos, a A./recorrente, em 29/04/2019 – ou seja, antes de, em 08/10/2020, haver dado início ao presente procedimento de “Restituição e Separação de Bens” – reclamou a verificação e graduação dum crédito sobre a insolvência de € 150.000,00 e fez esta reclamação a partir e com base exatamente nos mesmos factos com que, aqui, pede que os € 150.000,00 sejam “separados” da Massa Insolvente.
E esta situação invulgar e até “extraordinária” de uma mesma parte, num mesmo processo (em apensos diferentes), pedir, a propósito dos mesmos factos e dos mesmos € 150.000,00, que seja reconhecida como credora de € 150.000,00 e, ao mesmo tempo, que tais € 150.000,00 sejam “separados” da massa insolvente, produz uma clara impressão “negativa” e origina a intuição de que se está perante algo que “não pode ser”.
Daí que a 1.ª Instância – apreciando tal comportamento de, ao mesmo tempo, reclamar-se ser credor dos € 150.000,00 e reclamar-se ser o “proprietário” dos mesmos € 150.000,00[4] – tenha considerado que estava verificada a exceção de litispendência e absolvido as RR. da instância.
Decisão esta que a Relação revogou.
Efetivamente, embora a situação seja invulgar e algo “extraordinária”, o certo é que os pedidos são diferentes (não há identidade quanto aos pedidos, não se verificando assim todos os requisitos enunciados no art. 581.º do CPC): enquanto na reclamação de créditos se pede que o aqui A. seja reconhecida como credor da insolvência no montante de € 150.000,00, aqui, na presente reclamação do art. 141.º do CIRE, pede-se que os € 150.000,00 sejam “separados” da massa insolvente (e restituídos ao A.).
O que nem significa, afastada a litispendência, que nenhuma questão sobre a regularidade da instância pudesse ser colocada, designadamente, que não pudesse estar-se perante uma situação de caso julgado.
De facto, como resulta do ponto 25 dos factos, o Administrador de Insolvência, na lista apresentada nos termos do art. 129.º do CIRE, reconheceu (como comum) o crédito ali reclamado pela aqui A., pelo que, tendo tal reconhecimento 3 anos, o expetável seria que o crédito já estivesse reconhecido, nos termos do art. 136.º/4 e 6 do CIRE, por sentença.
Nesta hipótese, tendo sido proferida tal sentença (e transitado em julgado), importaria ter presente que proferida uma decisão e formado o respetivo caso julgado material ficam excluídas as situações contraditórias com a que por ela é definida (cfr. v. g., Lebre de Freitas, CPC anotado, Vol. II, pág. 594).
Ou seja, tendo sido proferida tal sentença, ficaria definido que, em razão dos 150 mil euros estarem bem apreendidos para a Massa, o aqui A./ACE era credor da insolvência por tais 150 mil euros, sendo que aqui e agora se pretende, contraditoriamente, que se decida que os 150 mil euros foram mal apreendidos para a Massa e que por isso os 150 mil euros devem ser separados e restituídos ao A/ACE, isto é, com base no mesmo núcleo essencial de factos, ter-se-ia obtido uma decisão que definia ser o ACE credor de 150 mil euros e agora, aqui, pretende-se uma decisão – restituição dos 150 mil euros por terem sido mal apreendidos para a Massa – que estaria excluída pela decisão que definia (por sentença transitada em julgado) ser o ACE credor dos mesmos 150 mil euros[5].
Sucede, segundo informação obtida a partir da consulta do apenso de reclamação de créditos, que ainda não foi (no apenso da reclamação de créditos) proferida a sentença a que se referem os art. 136.º/4 e 6 do CIRE, o que afasta que, aqui e agora, se possa considerar verificado o caso julgado[6].
E é neste ponto, considerando-se no Acórdão recorrido que a instância não padecia de qualquer irregularidade processual (que nenhuma exceção dilatória se verificava), que se entendeu, na Relação, que se podia conhecer desde logo de mérito e se notificou o A. para se pronunciar sobre a sua “falta de legitimidade substantiva para a apresentação do pedido nesta ação, que levará à improcedência da ação”, após o que se “julgou a ação totalmente improcedente”.
Defendendo agora o A/recorrente – e é este, verdadeiramente, o objeto da presente revista – que o Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, padece de inúmeras nulidades.
Vejamos:
A anulação duma decisão da 1.ª Instância não tem como efeito inevitável a remessa do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser de elementos necessários (cfr. art. 665.º/1 do CPC).
E o mesmo acontece nos casos em que, apesar de não se verificar uma situação de nulidade de sentença, o tribunal da 1.ª Instância tenha deixado de apreciar determinada questão considerada prejudicada pela solução dada a outra, hipótese em que, existindo elementos para conhecer da questão que não foi conhecida na sentença da 1.ª Instância, a Relação passará a apreciá-la, porém, com vista a evitar “decisões-surpresa”, apenas após dar às partes a possibilidade de se pronunciarem (cfr. art. 3.º/3 e 665.º/3 do CPC) sobre a questão que pretende apreciar (cfr. art. 665.º/2 do CPC).
É a chamada “regra da substituição ao tribunal recorrido”, prevista no art. 665.º do CPC; e foi exatamente isto que aconteceu nos autos na Relação (aliás, no despacho a notificar as partes para se pronunciarem, a Relatora invocou explicitamente o “princípio da substituição por parte deste tribunal”): a 1.ª instância, no saneador/sentença proferido, conheceu da exceção dilatória da litispendência, julgou-a verificada e absolveu os RR. da instância, pelo que, tendo a Relação entendido que não se verificava tal exceção, podia conhecer do mérito da causa, desde que também entendesse que estavam assentes (não controvertidos) todos os elementos de facto indispensáveis à prolação duma decisão de mérito (e desde que, girando as alegações da A/apelante em torno da litispendência, considerada verificada na 1.ª Instância, as partes tivessem sido, como foram, notificadas para se pronunciarem sobre a hipótese de ser produzida decisão de mérito).
Significa isto que, embora o objeto da apelação se centrasse sobre o decidido na sentença da 1.ª Instância sobre a litispendência, ao decidir sobre o mérito, nos exatos termos referidos, o Tribunal da Relação não conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento[7] e não foi, por isso, cometida a (invocada) nulidade prevista no art. 615.º/d)/2.ª parte do CPC (ex vi art. 666.º do CPC).
E embora o raciocínio substantivo que suportou a decisão de mérito proferida pelo Acórdão da Relação sob recurso não colha, como já se referiu, a nossa concordância, também não foi cometida a (invocada) nulidade prevista no art. 615.º/c) do CPC (ex vi art. 666.º do CPC).
Segundo tal alínea c), constitui causa de nulidade de sentença/acórdão os fundamentos estarem em oposição com a decisão, porém, quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão: está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.
“(…) Trata-se duma construção viciosa, ou seja, de um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziram logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenação do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolvição do réu do pedido). Não se trata de um qualquer simples erro material (em que o Juiz escreveu coisa diversa da pretendida – contradição ou oposição aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos de obtenção de um determinado resultado – contradição ou oposição real. O que se não confunde também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispicie ou previsão normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional.
Diz-se que a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante do 2.º segmento da alínea c) do n.º 1 do art. 615.º, se tais vícios tornarem a decisão ininteligível ou incompreensível.” [8]
Ora, como é evidente, nada disto se verifica no Acórdão recorrido: o que sucede – ponto em que se concorda com o A/recorrente – é que o Acórdão recorrido compreendeu incorretamente a factualidade alegada pelo A..
Começa por dizer-se, no Acórdão recorrido, que “o Autor estriba o seu pedido na circunstância da notificação da cessão de créditos a seu favor ter sido feita à Infraestruturas de Portugal antes do depósito (…) da quantia de € 150.000,00”, porém, como já se explicou (e resulta dos arts. 9.º a 11.º da PI e dos pontos 9 a 11 dos factos provados), o que o A. alegou foi que, antes da comunicação da cessão de créditos, a Infraestruturas de Portugal (IP) recebeu várias notificações provenientes de diversos processos executivos, para penhora de créditos que eventualmente detivesse relativamente à Insolvente, tendo sido no seguimento de tais notificações que a Infraestruturas de Portugal procedeu a depósitos, para as contas de diversos agentes de execução, de créditos detidos pela Insolvente; sendo que foi apenas após estes depósitos que a Infraestruturas de Portugal foi informada pela Insolvente que esta, antes de a IP efetuar tais depósitos, já havia efetuado o pagamento dos montantes em dívida aos exequentes.
E a partir daqui (do vício ocorrido na compreensão da factualidade alegada pelo A.) todo o raciocínio substantivo do Acórdão recorrido – tudo o que se diz sobre a Infraestruturas de Portugal ter pago mal e ter por isso que pagar duas vezes e sobre o A. ter que exigir os € 150.000,00 à Infraestruturas de Portugal – é juridicamente incorreto, porém, insiste-se, não gera a nulidade do 615.º/c) do CPC, configurando antes um erro de julgamento, aqui, neste recurso de revista, sindicável.
Mas sindicar o erro de julgamento não significa, no caso, revogar o que no Acórdão recorrido se decidiu sobre a total improcedência do pedido de “separação” (dos € 150.000,00) aqui formulado.
Resulta da factualidade alegada pelo A., como já se explicou e ora se repete, que os € 150.000,00 não lhe pertencem, uma vez que, antes da cessão de créditos ter sido notificada à IP e ter produzido efeitos (de acordo com o art. 583.º/1 do C. Civil), já a IP havia depositado tal quantia num processo executivo, deixando assim a IP de ser devedora da insolvente por tal quantia e ficando a quantia assim depositada penhorada à ordem do processo executivo em causa, ou seja, como já se explicou, quando a cessão de créditos produziu efeitos, já não existia tal crédito da insolvente sobre a IP e, por conseguinte, tal crédito (que já não existia) não foi transferida para o aqui A. pela cessão de créditos invocada[9], A./recorrente que, assim, não é “proprietária” dos € 150.000,00 que foram penhorados, depois arrestados e finalmente apreendidos para a Massa Insolvente da Promorail.
Percurso este, para decidir de mérito, que é bem diferente, reconhece-se mais uma vez, do seguido no Acórdão recorrido, mas que não é, longe disso, uma surpresa para o A./recorrente, uma vez que foi exposto nas contestações da Massa Insolvente e da Insolvente (como consta do relatório deste acórdão), tendo-lhe o A./recorrente “respondido” em articulado que foi admitido (e em que até reproduz, sublinha e procura contrariar o que consta dos artigos 3.º a 9.º da contestação da Insolvente); assim como foi exposto, de fls. 26 a 29, na sentença da 1.ª Instância.
Isto para dizer e antecipar que não há qualquer nulidade em, aqui e agora, em linha e total respeito com o brocardo latino “jura novit curia” (cfr. art. 5.º/3 do CPC) – ou seja, limitando-nos a enquadrar juridicamente os factos alegados pelo A./recorrente (e integralmente provados pela não impugnação dos RR.), limitando-nos a subsumir os factos julgados provados na norma ou normas jurídicas convocáveis/aplicáveis – confirmar, embora com diferente fundamentação, a total improcedência do pedido de “separação” (dos € 150.000,00) aqui formulado (e negar a revista).
Havendo ainda, face ao que o A./recorrente invoca na sua alegação recursiva, que efetuar as três seguintes considerações:
Embora o A./recorrente venha sustentar que “alegou que a Infraestruturas de Portugal, SA. pagou/transferiu a propriedade dos 150.000,00 imbuída em erro sobre as circunstâncias do negócio” (cfr. conclusão C)), dando a entender que tal questão não foi conhecida (no que terá havido mais uma nulidade), nada disto foi alegado pelo A. na PI.
Como já por duas vezes se disse, o A. alegou, nos arts. 9.º a 11.º da PI, que a IP, antes da comunicação da cessão de créditos, recebeu várias notificações provenientes de diversos processos executivos, para penhora de créditos que eventualmente detivesse relativamente à Insolvente, tendo sido no seguimento de tais notificações que, antes da comunicação da cessão de créditos, procedeu aos depósitos dos créditos detidos pela Insolvente.
Perante tal alegação, só se a seguir o A. dissesse o contrário do que havia alegado em tais arts. 9.º e 11.º da PI é que o A. poderia construir uma alegação em que a IP tivesse “pago/transferido os 150.000,00 imbuída em erro sobre as circunstâncias do negócio”: não foi o caso, o A. nos artigos seguintes não disse o contrário do que havia alegado nos artigos 9.º a 11.º[10].
Invoca ainda o A./recorrente que o Acórdão recorrido é nulo, nos termos da 1.ª parte da alínea d) do artigo 615.º do CPC, por não ter apreciado “a existência ou não de uma conduta abusiva por parte do ACE Recorrente quanto aos termos da sua constituição e quanto à cessão de créditos por parte das consorciadas sociedades empreiteiras ao ACE constituído por estas mesmas sociedades” (cfr. conclusão G))
Face ao percurso e fundamentação jurídica seguidos no Acórdão recorrido, ficou tal apreciação prejudicada (nos termos do art. 608.º/2 do CPC), razão por que não se verifica a invocada nulidade.
E face ao percurso e fundamentação jurídico aqui seguidos, mantém-se do mesmo modo prejudicada a sua apreciação: efetivamente, não esteve aqui em causa – não foi sequer discutido – que não tenha havido abuso de direito na constituição do ACE e na cessão de créditos[11] das consorciadas (sem personalidade jurídica) ao ACE (ente jurídico constituído pelas sociedades consorciadas), sendo o desfecho dos autos, refere-se uma última vez, determinado por, quanto aos € 150.000,00 em causa, a cessão de créditos não ter chegado a produzir os seus efeitos (uma vez que, de acordo com a própria alegação do A., os € 150.000,00 já estavam depositados/penhorados quando a cessão de créditos foi notificada à Infraestruturas de Portugal).
Finalmente, refere-se ainda quanto ao abuso de direito – e apenas se refere por não se perceber totalmente onde o A/recorrente situa o abuso de direito – que não há qualquer abuso de direito em as RR. enquadrarem juridicamente os factos alegados pelo próprio A. e, a partir daí, invocarem que os € 150.000,00 pertenciam à executada e aqui declarada insolvente (a R. Massa Insolvente e os demais credores são até alheios às relações havidas entre a insolvente e a aqui A.).
Em conclusão, o Acórdão recorrido não padece das nulidades invocados, sucedendo, como se explicou, que uma das nulidades invocadas configura um erro de julgamento, que, todavia, não conduz à procedência da revista, uma vez que, como também se explicou, embora com diferente fundamentação, cumpre confirmar a total improcedência do pedido de “separação” (dos € 150.000,00) aqui formulado (e assim negar a revista).
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IV - Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista.
Custas pelo A./recorrente.
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Lisboa, 24/05/2022
António Barateiro Martins (Relator)
Luís Espírito Santo
Ana Moura Resende
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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[1] Em face da distinção referida, devia ter pedido a “restituição”, lapso que não é relevante atento o sentido útil que deve ser conferido ao que se pede.
[2] E é também por isto que sobre a quantia assim depositada – mais exatamente, sobre o seu remanescente, sobre o que sobrar após satisfeita a quantia exequenda e as custas – podem incidir novas penhoras, determinadas em outros processos pendentes contra o mesmo executado.
[3] E se noutras execuções, em situações análogas à do processo executivo 3.012/17, a IP e o aqui A. lograram que quantias depositadas/penhoradas lhes fossem entregues, tal não altera, como é evidente, o que deve ser e é o correto e legal procedimento.
[4] Quando, bem vistas as coisas, não era nem credor, nem “proprietário”. Efetivamente, o A. também não tem sobre a insolvência (a partir dos factos alegados) o direito de crédito que reclamou: diz que deduziu a reclamação “por mera cautela”, mas, em face do que alegou na reclamação de créditos (que é, em termos essenciais, o que aqui alega), não havia nada que fosse acautelável, uma vez que uma cessão de créditos não transfere créditos que, no momento de eficácia da cessão, já se encontrem extintos.
[5] Com base no mesmo núcleo essencial de factos, o A. pediu, a propósito dos mesmos 150 mil euros, que se decidisse: 1 - ser titular dum direito de crédito de tal montante; e 2 - ser o “proprietário” de tal montante.
[6] E também o aqui decidido, porque é de improcedência, não fará (com fundamento na referida contraditoriedade) caso julgado sobre a reclamação de créditos.
[7] Sendo, importa sublinhá-lo, que não há qualquer controvérsia sobre os factos relevantes para a decisão de mérito (os factos alegados na PI não foram impugnados pelos RR. e, por conseguinte, considerando a instância regular, a Relação podia e devia decidir de mérito).
[8] Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, 2015, pág. 369 a 371.
[9] É também por isto, como já se referiu, que o A. não tem o direito de crédito que reclamou (e que o AI reconheceu na lista do art. 129.º do CIRE).
[10] E não é suposto, aceitável ou sequer favorável que uma parte diga/alegue num processo uma coisa e o seu contrário.
[11] Foi introduzida pela insolvente, como se dá nota no relatório inicial, a “questão” da resolução (do art. 120.º e ss do CIRE) do negócio de cessão de créditos, mas, claro, nunca tal “questão” fez validamente parte do objeto dos autos: tal resolução tem que ser feita pelo Administrador de Insolvência e nos termos do art. 123.º do CIRE e não pelo próprio Insolvente e na contestação que apresentou no presente meio processual.