PROCESSO-CRIME
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
MOMENTO DE EXERCER
Sumário

I–O titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, não pode ver reconhecido o direito a ser indemnizado no âmbito do processo de insolvência.

II–Só no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos art.ºs 71.º a 84.º, do CPP).

III–Uma vez reconhecido pode ser reclamado no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência.

IV–Não há não há qualquer razão – nem qualquer previsão legal – para que os credores que não tenham exercido os seus direitos no processo de insolvência o não possam fazer, depois de encerrado o processo de insolvência, em acção própria – como é o caso.

Texto Integral

Acordam na Secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.–Nestes autos de Embargo de Executado com o nº supra identificado foi proferida saneador – sentença, dispensada a audiência preliminar, no Juízo Local Criminal de Oeiras - Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste que decidiu julgar os embargos de executado improcedentes e determinou o prosseguimento da execução.

2.–Não se conformando com tal decisão, veio o Embargante, AMFA interpor recurso terminado a sua motivação com as seguintes

Conclusões:

A)–Atento o AUJ nº 5/2018, efectivamente não merece qualquer reparo a fundamentação da sentença ao considerar que “A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal.”.
B)–Porém, já não se concorda com o facto do Tribunal recorrido considerar que o embargado/exequente não teria de ter reclamado o seu crédito no processo de insolvência identificado no ponto 2 dos factos assentes e que, ao invés, deveria exercer o seu direito através da execução apensa.
C)–O AUJ nº 5/2018 é muito claro a lembrar da necessidade do lesado reclamar o seu crédito no processo de insolvência, sem prejuízo da insolvência do lesante não determinar a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal.
D)–Diametralmente do espelhado na sentença de que se recorre (que refere o crédito do embargado só nasceu com o trânsito em julgado do processo criminal), determina precisamente o AUJ nº 5/2018:
“(...)

4.–De tudo o exposto concluímos que:

Por força do princípio de adesão, o titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, apenas no processo penal pode ver reconhecido o seu direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos arts. 71.º a 84.º, do CPP). Só após o reconhecimento do direito e a determinação do quantitativo indemnizatório é que se torna claro qual o crédito de que emerge a obrigação de indemnizar. E somente quando não ocorra o cumprimento desta obrigação e após o vencimento da dívida[33] assiste ao credor o direito intervir no processo de insolvência para obter o pagamento da dívida pelo produto da liquidação dos bens do devedor. Deverá, então, ser reclamado o crédito no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência (cf. arts. 1.º, 3.º, 47.º, 90.º, 128.º, 146.º, n.º 1, e 230.º, do CIRE).
(…)
[33] Isto é, tratando-se de obrigação resultante de ato ilícito, como tal não sujeita a interpelação, o vencimento do obrigação só se dá quando o crédito se torna líquido, o que pressupõe que o pedido de indemnização seja julgado procedente pela sentença condenatória, pelo que o vencimento da obrigação ocorre, neste caso, a partir da citação, data a partir da qual o devedor se constitui em mora (artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil) (cfr. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., 2010, Coimbra: Coimbra Editora, p. 256-7).”
E)–Assim, como se vê, lembra o Acórdão Uniformizador que o vencimento/nascimento da dívida ocorre com a “citação, data a partir da qual o devedor se constitui em mora (artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil) (cfr. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., 2010, Coimbra: Coimbra Editora, p. 256-7)” - in casu, com a notificação do lesante para contestar o pedido de indemnização civil - e nunca com o trânsito em julgado da decisão (como definiu erradamente o Tribunal criticado).
F)–De resto, a sentença proferida nos autos principais de que a execução e os presentes são apensos, apenas    reconheceu   judicialmente o crédito indemnizatório do aqui embargado/exequente, cujo vencimento ocorreu com a citação, ainda que o mesmo careça do trânsito em julgado da decisão para adquirir certeza.
G)–Aliás, a própria sentença dada à execução e que transitou em julgado em 26 de Fevereiro de 2014 condena o embargante a pagar juros de mora desde a prolacção da sentença em 20 de Junho de 2013, conforme peticionado pelo lesado ao abrigo do princípio do dispositivo e não a contar do seu trânsito em julgado.
H)–Pelo que, por uma questão de lógica, seria um completo absurdo o crédito se ter vencido com o trânsito em julgado em 2014, mas o embargante estar condenado a pagar juros de mora desde 2013, ou seja, desde um momento em que alegadamente inexistia sequer qualquer crédito que pudesse vencer juros.
I)–Assim, parece mais do que pacífico que, se existe vencimento de juros a partir de determinada data é porque existe a obrigação de pagamento ocorre a partir desse momento.
J)–Ora, resulta manifesto dos autos principais que participação criminal ocorreu em Maio de 2010 por referência aos factos ocorridos em 2009 e o pedido de Indemnização Civil formulado de fls 125/134 no processo principal de que a execução é apensa, foi apresentado no ano de 2011, tendo o embargante sido notificado para contestar tal pedido em 20 dias por notificação datada de 1 de Fevereiro de 2012 e declarado insolvente por sentença proferida a 19 de março de 2012, transitada a 9 de abril de 2012.
L)–Aquando da declaração de insolvência do embargante estava, pois, o embargado/exequente em condições de reclamar o seu alegado crédito no processo de insolvência, ainda que a título condicional, aguardando depois o rateio no processo de insolvência pelo desfecho do processo criminal.

M)– MRE_____, in “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª edição Almedina 2019, apresenta o seu ponto de vista:
1.º-todos os créditos sobre a insolvência (incluindo os créditos indemnizatórios, vencem-se com a declaração de insolvência – art. 91º, n.º 1 do CIRE);
2º.-se o lesado aguardar pela decisão final para reclamar o seu crédito no processo de insolvência, corre o risco de nada remanescer para pagar o seu crédito (que ainda não foi reclamado);
3.º-a falta de liquidez do crédito não é impedimento da sua reclamação (art. 96º);
4.º-a pendência da ação cível não obsta a que se reclame, já no processo de insolvência, o crédito indemnizatório, como as quantias ficam “cativas” para aquele credor – art. 181.º do CIRE”.

N)–Impunha-se, então, ao embargado reclamar o seu crédito no processo de insolvência, ainda que de forma condicional (e aguardando o trânsito em julgado da decisão a proferir no processo penal), uma vez que aquando da declaração de insolvência já tinha sido definitivamente formulado o pedido de indemização civil e já tinha ocorrido a citação/notificação para contestar (para os efeitos previstos no artigo 805.º, nº 3 do Código Civil).

O)–Leia-se a propósito, o sumário do Acórdão do TRG proferido por unanimidade a 6/02/2014 cujo excertos mais significativos se entram supra transcritos nas alegações de recurso:
I-Vigora na insolvência o princípio da reclamação universal, devendo nela ser reclamados todos os créditos.
II-O crédito proveniente de acidente de trabalho sempre tem de ser feito valer no respetivo processo, não sendo causa da inutilidade deste a declaração de insolvência da entidade patronal responsável.
III-Tal não impede o credor de reclamar, sob condição, o seu crédito na insolvência.

P)–Lembre-se que aqui não está em jogo apenas o direito do embargado a receber o seu crédito, mas o direito de todos os credores a receberem os seus créditos em igualdade de circunstâncias de acordo com as regras do CIRE, não podendo haver credores que o recebem de forma mais favorável do que os demais.
Q)–Razão pela qual, não só podia, mas devia ter sido reclamado tal crédito a título condicional no processo de insolvência, ficando a aguardar-se o trânsito em julgado, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos, 50.º, 181.º e 245.º do CIRE.
R)–Aliás, mesmo antes do AUJ nº 5/2018, também o TRE já tinha decidido que a insolvência do arguido não implicava a inutilidade superveniente do pedido de indemnização civil, mas lembrando da necessidade de ser reclamado o crédito no processo de insolvência, conforme se pode ler no seu Acórdão de 30/09/2014 disponível em www.dgsi.pt e cujos excertos mais relevantes supra se transcreveram nas alegações de recurso
S)–Requerendo-se, atento todo o exposto, que o Venerando Tribunal da Relação modifique em conformidade a decisão proferida pelo Tribunal sindicado, julgado totalmente procedentes os embargos deduzidos.

II–Da impugnação da matéria de facto

T)–O Tribunal de primeira instância considerou com revelância para a decisão de mérito apenas 4 (quatro) factos que considerou assentes, mas entende o recorrente que deveria ter sido igualmente considerado assente, pelo menos os três seguintes factos, com extrema relevância para as várias soluções plausíveis de direito:
5.-A participação criminal ocorreu em Maio de 2010 por referência aos factos ocorridos em 2009 com a não devolução de equipamentos avaliados no valor global de € 16.248,24 (dezasseis mil duzentos e quarenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos).
6.-O pedido de Indemnização Civil formulado de fls 125/134 no processo principal de que a execução é apensa, foi apresentado no ano de 2011.
7.-A embargada/exequente não reclamou o seu crédito no processo de insolvência identificado no ponto 2.”

U)–Os factos que se sugere sejam aditados como pontos 5 e 6 resultam dos próprios autos principais e o facto que se sugere seja aditado como ponto 7 resulta não só dos documentos nºs 3 e 4 juntos com a petição de embargos, como do próprio reconhecimento da embargada na sua contestação (artigo 6.º).
V)–Mas ainda mais importante, de acordo com a própria decisão que foi proferida, devia ter sido considerado assente como ponto 8 que, por notificação datada de 1 de Fevereiro de 2012 foi o embargante notificado no processo nº 1152/10.7TAOER do pedido de indemnização civil formulado e para no prazo de VINTE DIAS, apresentar, querendo, a contestação, nos termos do disposto no art.º 78º do Código de Processo Penal.
X)–Na verdade, tal notificação (que ao diante se junta como documento nº 1 apenas para maior facilidade de análise pelo TRL) consta do próprio processo principal de que a execução e os presentes embargos são apensos e é absolutamente fundamental para a compreensão do momento do vencimento da obrigação de indemnizar e momento a partir do qual, logicamente, se contabilizam os juros de mora nos termos do disposto no artgio 805.º do Código Civil.
Z)–Não carecendo sequer de ser alegado tal facto pelas partes e deve ser atendido pelo Tribunal, conforme resulta claro do artigo 5.º, nº 2, alínea c) do CPC.
Termina pedindo a procedência do recurso, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância e substituindo-se por outra julgue os embargos procedentes.

3.–Não consta destes autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.

4.–O recurso foi admitido.

5.–O Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal teve vista nos autos. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II.–FUNDAMENTAÇÃO

1.–Objecto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), só abrangendo as questões que nelas se contêm, ainda que outras tenham sido afloradas nas alegações propriamente ditas, sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art. 608, nº 2, “ex vi” do art. 663º, nº 2, do mesmo C.P.C.), no presente recurso importa apreciar se o Tribunal a quo errou ao quando considerou que o embargado não teria de ter reclamado o seu crédito no processo de insolvência.


2.–Da Decisão

Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«Dos elementos constantes dos autos, com relevância para a
decisão do mérito da causa, resulta assente a seguinte factualidade:
1.- Nos autos principais o ora embargante (ali arguido / demandado)
foi condenado, por sentença proferida a 20 de junho de 2013,
transitada em julgado a 26 de fevereiro de 2014, por factos
praticados a 26 de novembro de 2009, pela prática de um crime
de abuso de confiança, além do mais, no pagamento ao ora
embargado (ali demandante) da quantia de 16 248,24€ (dezasseis mil, duzentos e quarenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos).
2.- O ora embargante foi declarado insolvente no processo de
insolvência n.º 8412/11.8TBOER que correu os seus termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, por
sentença proferida a 19 de março de 2012, transitada a 9 de abril de 2012.
3.- Nos autos de insolvência do ora embargante acima mencionados
foi a 13 de fevereiro de 2013 admitido o pedido de exoneração do
passivo restante,tendo a insolvência sido encerrada a 13 de fevereiro de 2014.
4.- Nesses mesmos autos foi proferido a 6 de outubro de 2019
despacho final de exoneração do passivo restante.

1.2.–Na motivação da decisão de facto consignou-se:

A factualidade dada como provada resultou da análise crítica
dos documentos juntos aos presentes autos e, bem assim, aos
autos principais.
Mais se consignou “que a restante factualidade alegada não é dada
como provada ou não provada por se considerar irrelevante
para a decisão de mérito da causa, entendendo-se que, ainda
que se provasse, não teria qualquer influência da decisão de
mérito a tomar.

1.3.–A fundamentação de direito foi a seguinte:

Nos presentes autos de embargos de executado veio o executado / embargante pugnar pela extinção da execução, alegando que a sentença dada à execução não é exequível que, tendo corrido processo no qual foi declarado insolvente onde foram graduados
os seus credores e foi já proferido despacho de exoneração do passivo restante, não tendo o exequente / embargado, reclamado na mesma o crédito em causa, não pode o mesmo ser executado.
Para tanto cita o embargante o acórdão do Tribunal da
Relação de Guimarães de 22 de fevereiro de 2011 no qual se
decidiu que declarada a insolvência do arguido, demandado civil, tal facto determina a extinção da instancia cível enxertada em processo penal por inutilidade superveniente da lide e, bem assim, o Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de abril de 2019 e
o acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8.05.2013.
Na sua contestação, por seu turno, pugna a embargada pela improcedência dos presentes embargos, alegando que não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência em virtude da sentença proferida nos autos principais o ter sido em data posterior ao da declaração da insolvência e, como tal, sendo o seu crédito posterior à data da declaração da insolvência, não poderia tê-lo reclamado naquela, nem sequer através da ação de verificação ulterior de créditos.
Mais alega que tendo transitado a sentença que condenou o ora embargante no pagamento à ora embargada da quantia exequenda, a mesma encontra-se vencida e é, enquanto tal, exequível.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos preceituados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, «Fundando-se a execução em sentença, a oposição pode ter algum dos fundamentos seguintes:

a)- Inexistência ou inexequibilidade do título;
b)-Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c)-alta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d)-Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e)-Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f)- Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g)-Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h)-Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i)-Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.»
Defende a embargante que a sentença dada à execução é inexequível pois o reconhecimento do crédito da embargada deveria ter tido lugar no âmbito do processo de insolvência do embargante, ou seja, alicerça os seus embargos na alínea a) no acima transcrito normativo.
Invoca para tanto o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8 de maio de 2013, argumentando que o pedido de indemnização civil que resultou na condenação em causa deveria ter sido declarado extinto por inutilidade superveniente da lide, pois que, não sendo oportunamente reclamado no processo de insolvência, não poderia ser reclamado através da interposição duma execução posterior.
Mas tal argumento não pode proceder.
Efetivamente, tal acórdão uniformizador não se pronunciou pela inutilidade superveniente da lide do enxerto cível em processo penal, mas antes acerca dum caso de inutilidade superveniente da lide numa ação declarativa que visava o reconhecimento de direitos laborais (créditos salariais, direitos indemnizatórios do trabalhador) decorrentes do contrato de trabalho, após ter sido declarada a insolvência da entidade empregadora (devedor).
Afigura-se-nos, pois, que este acórdão uniformizador apenas se poderá aplicar às ações que se destinem ao reconhecimento de um crédito derivado de uma relação pré-existente, e não aos pedidos de indemnização civil deduzidos no processo penal, nos quais o que está em causa é o apuramento de responsabilidade civil fundada na prática de crime.
Em relação aos enxertos declarativos em processo crime foi proferido o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 5/2018, de 30 de outubro de 2018 (in Diário da República n.º 209/2018, Série I de 2018-10-30), no sentido diametralmente oposto, a saber, de que «A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal».
E não podia deixar de ser assim.

Efetivamente, ainda que o artigo 1.º do CIRE qualifique o processo de insolvência como um processo de execução universal, sendo a sua finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ainda que durante a pendência do processo de insolvência os credores apenas possam exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência (artigo 90.º do CIRE) e que, para tanto, os credores tenham de reclamar os seus créditos nos termos preceituados no artigo 128.º do CIRE ou através da ação de verificação ulterior de créditos (artigo 145.º), tal se refere aos créditos existentes à data da declaração de insolvência e não se pode considerar que o ora embargado, demandante na ação cível enxertada no processo crime que correu os seus termos nos autos principais, fosse credor do ora embargante antes de transitada em julgado a sentença que condenou o ora embargante no pagamento da quantia de 16.248,24€, uma vez que com o apuramento da sua responsabilidade criminal é que decorreu a sua responsabilidade civil e consequente direito do demandante (embargado) de ser ressarcido dos prejuízos sofridos.
Ainda que, de facto, os credores do insolvente tenham de reclamar os seus créditos no âmbito da insolvência e que todas questões relativas aos seus créditos tenham de ser decididas no seio desta, tal não aplica à responsabilidade criminal do insolvente a qual apenas pode ser apurada no âmbito do competente processo crime.

Assim, até que haja uma sentença crime transitada em julgado que assim o determine, não tinha o então demandante, ora embargado, qualquer crédito sobre o então demandado insolvente, ora embargante, pois a sua responsabilidade civil decorrente da responsabilidade criminal ainda não havia sido apurada, nascendo apenas o crédito com o trânsito em julgado da decisão judicial condenatória.
então, transitada em julgada a sentença crime que condenou o insolvente no pagamento duma indemnização, pode ser reclamado pelo demandante tal crédito no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência (cf. artigo 1.º, 3.º, 47.º, 90.º, 128.º, 146.º, n.º 1, e 230.º do CIRE).
Resta, então, saber se aquando do trânsito em julgado da decisão que condenou o ora embargante no pagamento ao ora embargado da quantia exequenda, este ainda tinha possibilidade de ir reclamar o seu crédito nos autos de insolvência.
Dos elementos documentais juntos aos autos, designadamente do despacho final de exoneração do passivo restante, resulta que a insolvência foi encerrada a 13 de fevereiro de 2014.
Ora, tendo a decisão que condenou o ora embargante no pagamento da quantia de 16 248,24€ ao embargado transitado em julgado a 26 de fevereiro de 2014, verifica-se que aquando da constituição do crédito do embargado podia o mesmo ir reclamá-lo no âmbito do processo de insolvência pois que o mesmo se encontrava encerrado.
E não podendo reclamar o seu crédito no âmbito da insolvência, não pode o mesmo deixar de poder ser exercido através da execução alvo dos presentes embargos.
Assim e por tudo quanto fica dito, dúvidas não nos restam que não podem deixar de improceder os presentes embargos».

3.–APRECIAÇÃO

A recorrente discorda deste entendimento, no essencial, por considerar que o entendimento do tribunal de que “o crédito do embargado nasceu com o trânsito em julgado do
processo criminal ” é diametralmente oposto ao AUJ nº 5/2018, que “é muito claro a lembrar da necessidade do lesado reclamar o seu crédito no processo de insolvência” ocorrendo “o vencimento/nascimento da dívida” com a “citação, data a partir da qual o devedor se constitui em mora (artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil) (cfr. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., 2010, Coimbra: Coimbra Editora, p. 256-7)” - in casu, com a notificação do lesante para contestar o pedido de indemnização civil - e nunca com o trânsito em julgado da decisão (como definiu erradamente o Tribunal criticado)”.

Vejamos.

É ponto assente que o titular do direito a indemnização, fundada na prática de crime, não pode ver reconhecido o direito a ser indemnizado no âmbito do processo de insolvência.
Só no processo penal pode ver reconhecido o seu “direito a ser indemnizado e determinado o quantitativo da indemnização pelos prejuízos causados (nos termos do disposto nos arts. 71.º a 84.º, do CPP)”.
Daí que “ após o reconhecimento do direito e a determinação do quantitativo indemnizatório é que se torna claro qual o crédito de que emerge a obrigação de indemnizar”.
Reconhecido o crédito, isto é, tendo-se o mesmo tornado liquido e não ocorrendo o cumprimento, entra-se numa outra fase: a do vencimento, que se no caso, se conta a partir da citação ou no caso que nos ocupa com a notificação do lesante para contestar o pedido de indemnização civil,  entra na fase do vencimento, não ocorra o cumprimento da divida e após o vencimento da divida que, no caso, se conta a partir da citação, posto não estar sujeito interpelação.- nº 3 do art. 805 do CC, preceito que regula o atraso/tempo do cumprimento.
É então que tal crédito pode ser reclamado no processo de insolvência no prazo fixado ou posteriormente até ao encerramento do processo de insolvência.
O art.º 90º do CIRE apenas regula o exercício dos direitos dos credores durante a pendência do processo de insolvência. – vidé João Labareda e Carvalho Fernandes (CIRE Anotado, edição, 2015, Quid Juris, pg. 437.
Nos termos do nº5 do art. 128º do CIRE, artigo que abre o capítulo da verificação e graduação de créditos dispõe que “A verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.”

O que esta regra concretiza é, quanto aos créditos da insolvência, o princípio da universalidade do processo de insolvência – todos os credores têm que reclamar todos os créditos se pretenderem obter pagamento pelo produto da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente.

Este preceito é também corolário da regra do art. 90º, deixando claro que os titulares de créditos sobre o insolvente têm a opção de não reclamar créditos no processo de insolvência, sendo a única consequência dessa sua opção a de não obterem pagamento pelo produto da venda dos bens apreendidos para a massa.
Uma vez que a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, incluindo os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (nº1 do art. 47º do CIRE), um credor que não exerça a faculdade de reclamar créditos está, no fundo, a optar por limitar a recuperação do seu crédito ao património do devedor que ele venha a adquirir após o encerramento do processo.
E é assim apenas se o devedor não for uma sociedade comercial em relação à qual se não se tenha aprovado um plano de insolvência prevendo a recuperação do devedor – que se extingue com o encerramento do processo em que se procedeu à respetiva liquidação, nos termos do nº 3 do art. 234º do CIRE.
Nos demais casos, o encerramento do processo determina que os credores da insolvência «poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº1 do art. 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência.» (art. 233º nº1, al. c) do CIRE).

Ou seja, mesmo os credores que reclamaram os seus créditos durante a pendência do processo podem, após o encerramento do mesmo, tentar cobrar os créditos reclamados que não tenham sido satisfeitos.

Se é assim para os credores que exerceram os seus direitos durante a pendência do processo, não há qualquer razão – nem qualquer previsão legal – para não tratar da mesma forma os credores que não tenham exercido os seus direitos: os credores do devedor não deixam de o ser por não reclamarem créditos no processo de insolvência.

Neste sentido acórdão da Relação do Porto de 19 de Maio de 2014 onde a determinado trecho se escreve “sendo a reclamação de créditos um ónus (artigo 128º, 3 do CIRE), está na disponibilidade do credor de a fazer ou não. Se a não fizer, ou seja, caso não reclame os seus créditos ou apenas parte deles, a consequência é que tais créditos não podem ser considerados para efeitos de pagamento no processo de insolvência “restando ao credor esperar para exercer o seu direito uma vez encerrado o processo e tornado in bonis o devedor”.
O CIRE não determina que o credor da insolvência que no âmbito do processo de insolvência não reclamou o seu crédito, fique impedido, numa fase posterior, e fora desse mesmo âmbito, de o fazer em acção própria. A sua inércia não implica a renúncia ao crédito. É lógico que ao não reclamar os seus créditos no âmbito do processo de insolvência corre os riscos inerentes a essa mesma não reclamação, que pode deixar de ter a possibilidade de fazer essa reclamação numa fase posterior. É que como titular de um crédito reconhecido no processo de insolvência o credor pode retirar daí as

No entendimento que perfilhamos não existe obstáculo a que encerrado o processo de insolvência, como foi, o credor possa exercer os seus direitos nos termos normais, como sucedeu nos presentes autos.
Nesta conformidade ainda que por outros motivos é de manter a decisão.
Resta dizer quanto à pretendida adição aos factos de pelo menos os três factos sintetizados na clª T, que em nada influem na decisão do recurso, cujo destino terá de ser sempre a da improcedência.

III–DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, em consequência, ainda que por outros motivos, confirma-se ainda a sentença recorrida.
Custas pela embargante.


(Processado e revisto em computador)



Lisboa, 4 /5/2022



Maria Elisa Marques
Adelina Barradas de Oliveira