AUTOS DE DILIGÊNCIA
RELATÓRIOS DE DILIGÊNCIA EXTERNA
MEIOS ATÍPICOS DE PROVA
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO
Sumário

I. Os «autos de diligência» e os «relatórios de diligência» constituem meios atípicos de obtenção de prova.
II. Sem prejuízo da sua relevância no contexto da investigação criminal, só poderão servir em julgamento como elementos a consultar pela testemunha que deles seja autor, quando necessário para avivar a sua memória, mão não poderão ser valorados como se de prova testemunhal ou documental se tratassem – porque não o são.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

1. No termo da fase de instrução, aberta a requerimento (entre outros) do arguido AA, pugnando pela sua não pronúncia, por considerar não conterem os autos indícios suficientes da prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que lhe foi imputado pela acusação, o M.mo Juiz de Instrução (JI) do 2.º Juízo (1) de Instrução Criminal de Portimão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, veio a proferir despacho de não pronúncia, determinando o arquivamento dos autos relativamente a tal arguido.

2. Inconformado com tal decisão o Ministério Público veio a interpor recurso, formulando, no termo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O Mmo. JIC do TCIC não pronunciou o arguido AA por, em suma invocando o princípio in dubio pro reo, entender que a prova indiciária contra si era insuficiente, por isso, possível inferir a prática do crime de Tráfico de estupefacientes p. p. pelo disposto no artº 21º do DL 15/93 de 22 de Janeiro.

2. Considerando que os indícios são de considerar suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena, perante os factos descritos, temos como certo que a prática pelo arguido do crime de tráfico de estupefacientes se encontra suficientemente indiciado, pelo que deverá o arguido ser pronunciado por tais factos.

3. Na decisão de não pronúncia também se invoca, erradamente, o princípio in dubio pro reo, pois inexiste dúvida razoável sobre a prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo arguido AA, conforme a nosso ver se deixou demonstrado, afigurando-se bastante mais provável a sua condenação em julgamento do que a sua absolvição.

4. A versão apresentada pelo arguido AA, salvo o devido respeito, tem muitas lacunas para poder reputar-se de minimamente credível.

5. Desde logo, em momento algum avançou com qualquer razão plausível para se deslocar a Portugal, primeiro veio por engano quando o destino seria …, depois porque viria ajudar o arguido BB na compra de um veículo, contudo não esclareceu porque BB alugou dois veículos, porque conduziram os dois veículos, quer um, quer outro, se sempre viajavam para o mesmo destino, porque é que deixou o veículo … num parque de estacionamento e porque é que o mesmo veio a aparecer noutro parque.

6. Esta falta de coerência ganha ainda maior dimensão quando constatamos que o referido AA acompanhou sempre BB como se de um segurança se tratasse sem questionar a razão das deslocações, guiando ora um ora outro os veículos alugados por BB e realizando claras manobras de vigilância e contra-vigilância conforme resulta dos relatórios de diligência externa constantes dos autos.

7. Qual o móbil, legítimo, para estes arguidos fazerem a mencionada deslocação (de curta duração) a Portugal? Não vislumbramos. Sobretudo quando é o próprio AA que declara que julgava estar a deslocar-se para … e afinal aterra em Portugal.

8. Só por ousadia poderá afirmar-se que estes arguidos foram avistados no mesmo local por “mero acaso” e que o referido AA veio a Portugal em passeio ou lazer, desconhecendo por completo os propósitos de BB pois como se demonstrará melhor infra tudo indicia, de forma suficiente, que a sua presença na zona do Algarve nada ficou a dever ao “acaso”.

9. Temos que relembrar que o arguido AA foi detido na operação realizada quando estava a escassos metros do estupefaciente apreendido.

10. Destarte, numa visão alicerçada de acordo com os elementos de prova juntos aos autos, devidamente conjugados com as regras da experiência comum, os encontros e deslocações dos arguidos de e para Portugal só se podem compreender se forem tidos como actos de organização e execução do transporte transfronteiriço da substância estupefaciente apreendida pelas autoridades.

11. O propósito das movimentações que culminaram nas detenções dos arguidos – transporte, por terra, e entrega a recepção de estupefaciente – foi, seguramente, percepcionado por ambos os arguidos. Para sufragar esta ilação basta atentar nas condutas dos dois arguidos momentos antes da sua detenção, desempenhando o AA a função de “batedor” e de “contra-vigilância” a possíveis operações policiais.

12. As manobras descritas na acusação revelam a acção concertada dos dois arguidos e, tendo em conta que no veículo … de matrícula … se encontravam acondicionadas as 144 placas contendo cocaína, com o peso líquido de 144.215,501 quilogramas, não pode deixar de se concluir que o veículo onde se encontrava AA de marca … tinha como “missão” escoltar o veículo em que seguia o produto estupefaciente, actuando os dois arguidos em comunhão de esforços e desígnios, desempenhando as funções que individualmente lhes competia, de acordo com um plano previamente urdido.

13. Ou que uma organização deste calibre e grau de organização permita que BB traga um amigo completamente “alheio “ aos factos para participar num transporte de cerca de 144 quilos de cocaína, desconhecendo por completo a execução de transporte em curso?

14. O arguido AA actuou sempre como o homem de confiança de BB, o seu braço direito que sempre o acompanhou, que assumiu uma postura quase de segurança, e o acompanhou no percurso de vigilância que aguardava a colocação da droga no veículo e que se preparava para fazer escolta ao estupefaciente quando foi detido.

15. O arguido AA não se comportou como se estivesse de férias, não justificou a condução dos dois veículos, para que serviam, e as manobras de vigilância e contra vigilância efectuadas.

16. Foi o arguido AA quem naquele dia conduziu o veículo … e o deixou estacionado no parque de estacionamento do Supermercado … pelas 10.10 horas.

17. Mas não explicou porque é que o veículo que o próprio conduziu e deixou estacionado no parque de estacionamento do … apareceu umas horas mais tarde estacionado no parque de estacionamento do ….

18. Nem explicou porque é que o BB logo de dirigiu a esse veículo e o AA ao ….

19. Sumariamente o arguido disse o que quis ocultando completamente a verdade e não contraditando validamente ou coerentemente a prova colhida e espelhada nos autos.

20. Refere o Mmº Juiz de Instrução que não há quaisquer provas (ou sequer indícios) do co-envolvimento deste arguido (AA) no transporte de produto estupefaciente aplicando ao caso o princípio do “in dubio pro reo”.

21. Tal princípio somente devia ser convocado aquando da verificação da existência de uma dúvida razoável sobre a prática de ilícito criminal por um arguido, o que não ocorre in casu com o arguido AA, nem, aliás, com nenhum dos restantes arguidos acusados e pronunciados.

22. Deste modo, e cientes que nos encontramos na fase de instrução, a qual visa, tão só, sindicar a decisão do Ministério Público de (no caso) acusar os arguidos, fazendo o indispensável juízo de prognose quanto à elevada probabilidade de condenação dos arguidos com base na prova recolhida no inquérito, é possível afirmar que se encontra suficientemente indiciada a prática, pelos arguidos, em co-autoria imediata, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, imputado pela acusação.

23. Por conseguinte, quer com recurso à prova directa existente nos autos, quer através da mobilização das regras da experiência comum e das ilações que o julgador deve fazer (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 936/08.JAPRT, de 06.10.2010, disponível em www.dgsi.pt).

24. Assim não se decidindo, despronunciando-se o arguido como se decidiu na decisão instrutória em crise, fez-se uma incorrecta interpretação da norma jurídica vertida nos artigos 26º do Código Penal e 21º do DL 15/93 de 22 de Janeiro, bem como do conceito de indícios suficientes referido no artigo 283º n.º 2 do Código de processo Penal e uma errada interpretação dos factos cuja apreciação lhe estava submetida.

25. Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o arguido pronunciado pelos factos supra descritos e constantes da acusação, que integram o tipo legal de tráfico de estupefacientes p.p. pelo disposto no artº 21º do DL 15/93 de 22 de Janeiro por cuja prática deverá ser submetido a julgamento.

26. Pelo exposto e nos termos do art. 410º n.º 2 als. b) e c) do CPP, requer-se a revogação da decisão de não pronúncia do arguido AA e, consequentemente, que o mesmo seja pronunciado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL 15/93 de 22 de janeiro.»

3. O recurso foi admitido, a ele tendo respondido o arguido AA, que em síntese sustentou:

- que quer acusação quer as alegações de recurso não apontam indícios que justifiquem a imputação que lhe foi feita.

- a decisão instrutória procedeu a uma avaliação criteriosa da prova indiciária contida nos autos e concluiu serem manifestamente insuficientes (brutalmente inexistentes) os indícios da prática do crime que lhe foi imputado, insuscetíveis por isso de justificarem a sua submissão a julgamento.

4. Nesta instância de recurso os autos foram com vista ao Ministério Público, que em douto parecer se conclui no sentido da inconsistência do recurso interposto, por ausência de prova indiciária suficiente para submeter o arguido AA a julgamento.

5. Observou-se o disposto no artigo 417.º, § 2.º CPP, na sequência do que vindo o recorrido reiterar a sua posição já anteriormente assumida, louvando a posição assumida pelo Ministério Público junto deste Tribunal superior.

6. Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2), estando suscitada apenas uma questão: a existência de indícios suficientes da prática de crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto no artigo 21.º, § 1.º e 24.º, al. c), f) e j) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por banda do recorrido.

a) O despacho recorrido na parte respeitante ao recorrido tem o seguinte teor:

«Com base em toda a prova descrita na acusação, o Ministério Público veio a encerrar o inquérito com a prolação de acusação em relação aos arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de tráfico de estupefacientes na forma agravada, p. e p. pelo art. 21.º e 24.º, c), f) e j), ambos do D.L. n.º 15/93, de 22/1.

(…)

Não se conformado com a dedução de acusação e no uso das faculdades que legalmente lhes são atribuídas, os arguidos CC, DD e AA requereram a abertura da instrução nos termos do artigo 287.º do Código de Processo Penal nos seguintes termos, que sumulamos:

(…)

O arguido AA veio arguir a nulidade do despacho de acusação nos termos plasmados no art. 283, n.º 3, b) do C.P.P. por o mesmo ser genérico e não narrar, ainda que sinteticamente, os factos que podem vir a dar lugar a uma condenação, nulidade essa de que o Tribunal já conheceu.

Alegou que se limitou a acompanhar o coarguido BB a Portugal, remetendo para as declarações deste arguido prestadas em sede de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, apontando lacunas na prova para tentar demonstrar que era impossível o arguido saber o que estava na mala do … e muito menos para ligar o produto estupefaciente a qualquer conduta praticada por si.

À semelhança dos demais arguidos alegou que existiu notoriamente uma ação encoberta e que foi o agente infiltrado quem carregou e estacionou o …, tendo sido este a receber os 40 mil euros entregues pelo coarguido BB.

(…)

Da responsabilidade criminal do arguido AA

A análise da responsabilidade criminal do arguido AA difere de modo substancial daqueloutra que efetuámos quanto aos arguidos CC e DD.

Um aspeto existe que evola do RAI do aqui arguido com o qual o Tribunal não pode deixar de manifestar total concordância – ao invés do que ocorre com outros arguidos, em especial com o coarguido BB, nunca existiu qualquer referência ou denúncia nos autos atinente a AA. Este emerge quase como um elemento surpresa, nunca tendo sido referenciado por quaisquer práticas ilícitas, pelo menos no que diz respeito à matéria que ora no ocupa.

Mas o cerne da questão que se coloca é saber se existem suficientes elementos probatórios que sustentem a versão do M.P., segundo a qual o arguido foi recrutado por BB para o ajudar no carregamento e transporte de produto estupefaciente, tendo sempre um papel de vigilância.

Os meios probatórios recolhidos são curtos, também nesta sede se resumindo à vigilância efetuada e ao auto de apreensão. Contudo e ao invés do que ocorria quanto aos arguidos CC e DD, o aqui arguido AA não foi detido na posse do produto estupefaciente. Do relatório de vigilância apenas é possível determinar que o arguido veio efetivamente na companhia de BB, ficou hospedado em … e foi conduzindo as viaturas. Mas nem tão pouco se encontrava a conduzir a viatura … quando esta foi carregada e, muito menos, após tal carregamento. E há aspetos que o M.P. leva a acusação que simplesmente não têm estribo probatório e cuja conclusão é impossível de extrair- por que motivo se afirma que o arguido tinha um papel de vigilância? É que em momento algum se verifica AA a vigiar o que quer que seja: quem fica sentado numa viatura assume um papel de vigilância? Não é impossível que assim seja, mas por norma quem tem o ónus de vigiar assume uma posição mais estratégica e não se limita a esperar dentro de uma viatura. Mais, decorre dos autos que o estupefaciente foi carregado na viatura num momento em que os aqui arguidos não se encontravam no local. Nessa sequência questionamos, se o carregamento foi efetuado por um terceiro elemento e longe dos arguidos, o que tinha AA que vigiar? Há um vazio probatório que, por mais que se procure, não tem resposta.

Mas o aspecto mais relevante é a circunstância de não existir qualquer prova que contrarie a versão do arguido. Este referiu que padece de vários problemas de saúde, sendo amigo de longa data de BB, o qual, conhecendo os seus problemas de saúde, lhe pediu para o acompanhar numa viagem ao sul da Europa, visando o bem-estar daquele, sendo que o arguido afirma que nem tão pouco conhecia o destino e lhe era indiferente. E note-se que tais pormenores, que suscitam naturais dúvidas ao Tribunal, simplesmente não podem ser contraditados porque a investigação não reuniu elementos de prova, documentais ou testemunhais que pudessem atacar a credibilidade da versão do arguido. Acrescenta AA que nunca desconfiou do motivo que BB tinha para se deslocar a … nem tão pouco desconfiou da circunstância de BB ter alugado dois carros, pois este explicou-lhe que um deles se destinava a entrega a terceiro, circunstância que pareceu credível a AA, pois este sabia que BB fazia entregas de veículos a terceiros.

Tal versão, por maiores dúvidas e interrogações que levante, não pode ser contraditada pois não há elementos de prova para o fazer. De que modo pode o Tribunal concluir que AA sabia ao que vinha? Em que documentos, comunicações ou testemunhos se fundamentará o Tribunal, este ou de Julgamento, para concluir que dolosamente AA quis ajudar BB e sabia que viria receber estupefaciente e efetuar um transporte? É um salto lógico demasiado grande fundamentar tal conclusão apenas nas regras da experiência, em especial quando estudamos os autos e verificamos que nunca existiu qualquer sinal do papel de AA, que não há uma única mensagem trocada pelo arguido que aponte para a descrição do seu papel. E reiteramos que o arguido nem tão pouco se encontrava na viatura onde foi carregado o estupefaciente, sendo impossível verificar se iria, ou não, efetuar uma espécie de guarda de honra à mesma. Tal conclusão não tem nos autos um único suporte probatório.

E note-se que não há igualmente sinal nos autos que o arguido AA tenha estabelecido contacto com qualquer elemento ou inclusive que soubesse os contactos que estavam a ser estabelecidos por BB, sendo que este sempre referiu que foi ele, sozinho, quem foi falando com L, um alegado elemento que fazia a ligação entre R e BB, quer em …, quer em …, tendo o AA, que de nada sabia, ficado à espera na viatura. Também estes elementos não são possíveis de contraditar com clareza.

Aqui chegados, sopesando os aspetos que temos vindo a estudar, verifica-se, por um lado, que temos a versão do arguido (corroborada pelo co-arguido BB), que ainda que suscite dúvidas, não deixa de ser verosímil e por outro lado, a versão do M.P. que não tem sustento probatório e que, no limite, apenas permite comprovar que AA se deslocou a Portugal e no momento da detenção estava ao volante de uma viatura …, que não tinha estupefaciente no seu interior, desconhecendo-se o destino do mesmo.

Também subjetivamente não vislumbramos que seja seguro concluir que o arguido sabia o que vinha fazer a Portugal ou sequer sabia que estava a ajudar a um eventual transporte de estupefaciente. Para extrair tal conclusão teria o M.P. que ter carreado mais elementos probatórios que, de forma clara, atestassem o conhecimento por banda do arguido e que permitissem colocar em cheque a credibilidade da sua versão.

No atual estado dos autos, são mais as dúvidas do que as respostas e não se olvidando que nesta fase tem aplicação o princípio in dubio pro reo, será o arguido objeto da prolação de despacho de não pronúncia.

**

Por todo o exposto, não se indicia a seguinte factualidade:

1. Para concretização do plano, o arguido BB contactou o arguido AA solicitando-lhe que, a troco de compensação monetária, o ajudasse no transporte por carro dos cerca de 144 quilos de cocaína de Portugal para o Norte da Europa, tendo este último aceitado a realização de tal tarefa, assim aderindo ao plano.

2. No dia 3 de maio de 2021, dando execução ao referido plano elaborado no seio da "organização criminosa", o arguido AA deslocou-se a Portugal, tendo em vista vir a receber e depois transportar a cocaína.

3. No dia 5 de maio de 2021, atuando no âmbito do acordo realizado, o arguido AA deslocou-se a …, local onde lhe foi entregue, por um membro da "organização criminosa", de identidade não apurada, quantidade elevada de dinheiro para pagar o transporte da cocaína, em montante não concretamente apurado, mas de valor não inferior a 40.000,00 (quarenta mil) euros.

4. No dia 6 de maio de 2021, pelas 8.30 horas, seguindo o plano previamente combinado com o indivíduo que lhe ia entregar o estupefaciente, visando concretizar a operação de transporte de cocaína, o arguido AA iniciou o dia em …, de onde se deslocou para a cidade de ….

5. Aquando da abordagem policial, o arguido AA conduzia a viatura … para seguir atrás do veículo … em guarda ao estupefaciente.

6. A cocaína apreendida estava na posse do arguido AA.

7. O arguido AA foi recrutado pelo arguido BB para a concretização do plano do transporte de cerca de 144 quilos de Cocaína para o norte da Europa.

8. O arguido AA tinha como função a guarda do estupefaciente, executando manobras de vigilância e contra vigilância.

9. O arguido AA agiu de comum acordo e em comunhão de esforços, quis e conseguiu deter e transportar a cocaína da forma supra descrita.

10. O arguido AA bem conhecia a natureza e características estupefacientes do produto - cocaína - que detinham, e bem assim que, atentas as elevadas quantidades envolvidas, se destinava a ser disseminado e consumido por milhares de pessoas.

11. O arguido AA, pela sua atuação no transporte do estupefaciente apreendido, iria receber avultada compensação monetária, em montantes não apurados.

12. Deslocou-se o arguido AA a Portugal unicamente para execução desse transporte, conforme plano traçado no interior da organização, tanto com A como com C.

13. Os membros da referida organização criminosa também realizaram contactos em Portugal em data anterior a 20 de abril 2021, com vista à cedência de cocaína aos interessados na sua aquisição, concretamente de pelo menos sete quilos.

14. Um dos interessados na aquisição de cocaína e que estabeleceu contacto com a organização criminosa foi o arguido CC, residente na zona de ….

15. Assim, no período temporal compreendido entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, o arguido CC entrou em contacto com membros da "organização criminosa", tendo em vista a aquisição de cocaína para posterior comercialização.

16. O arguido CC contactou com o arguido DD, seu conhecido, e os dois decidiram organizar-se tendo em vista a compra de estupefaciente.

17. No dia 13.04.2021, o arguido CC viajou até à zona de … (…), onde pernoitou alguns dias, e, em 15.04.2021, viajou até …, onde esteve reunido com o arguido DD, encontro esse que teve como objetivo arranjar dinheiro para a compra da cocaína.

18. Os dois arguidos pretendiam vir a comercializar a cocaína apreendida.

19. Uma vez que, conforme atrás indicado, o preço de mercado de um grama de cocaína é de cerca de 35€ (trinta e cinco euros), os arguidos CC e DD pretenderam auferir, com a operação de compra de cocaína, para posterior venda, um lucro não concretamente apurável, mas não inferior a 250 mil euros.

20. As quantias monetárias apreendidas ao arguido AA serviam para fazerem face às despesas das viagens realizadas para execução do plano.

***

Decisão

Pelo exposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 308.º, nº 1 do Código de Processo Penal, decide-se:

(…)

C) Não pronunciar o arguido AA pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo art. 21.º e 24.º, c), f) e j) do D.L. n.º 15/93, de 22/1.»

b) Nota prévia

Sustenta o recorrente, de modo absolutamente conclusivo, que o despacho recorrido padece dos vícios previstos no «art. 410.º n.º 2 als. b) e c) do CPP»!

Os segmentos normativos invocados reportam-se aos vícios da sentença, concretamente à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e ao erro notório na apreciação da prova!

A mais de não se indicar a que segmento(s) da decisão se faz a apontada referência, e à razão pela qual considera existirem tais vícios, desconsidera-se o facto de estes vícios respeitarem a sentenças (e não a despachos judiciais - anteriores ou posterior àquela), nas quais, necessariamente, se contém o acervo da matéria de facto provada e não provada e respetiva motivação (artigo 374.º, § 2.º CPP), relativamente a um arguido que é presumivelmente inocente. Acrescendo que tais vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, excluindo-se a análise de quaisquer elementos (nomeadamente probatórios) a ela externos, ainda que constantes do processo. Veja-se que o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. E no erro notório na apreciação da prova surpreende-se uma deficiência no apuramento da matéria de facto que se depreende da conexão lógica do texto da decisão. Ora não é isso que sucede numa decisão ante sentencial, relativa à comprovação judicial da decisão que encerrou o inquérito, como é aquela de que ora se recorre, a qual não está sujeita, em larguíssima medida, ao figurino do § 2.º do artigo 374.º CPP. Tanto assim que a verificação de qualquer dos vícios alegados e previstos no § 2.º do artigo 410.º CPP (quando não seja possível supri-los e decidir a causa) tem como consequência o reenvio do processo para novo julgamento, conforme se prevê no artigo 426.º CPP.

Sendo que o escrutínio desta em recurso impõe, necessariamente, a análise de todos os elementos constantes do processo (contrariamente ao que literalmente se estabelece o § 2.º do artigo 410.º CPP). É neste sentido que, sem divergência, vem decidindo a jurisprudência.(3)

As questões colocadas pelo recorrente, reportadas a deficiências da fundamentação do despacho recorrido, não podem, pois, avaliar-se no contexto dos vícios da sentença (porque é essa a vocação do artigo 410.º, § 2.º CPP); mas antes no âmbito da conformidade ou desconformidade daquele, com os indícios que resultam dos meios probatórios indicados no libelo que foi objeto de impugnação judicial perante o Juiz de Instrução Criminal.

Razão pela qual se desatende a este (preconizado) fundamento do recurso.

c) Da prova indiciária relativa à prática de crime de tráfico de estupefacientes agravado

Perante discordância face ao juízo do M.mo Juiz de Instrução no despacho recorrido, que no termo da fase judicial de instrução, considerou não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime de tráfico agravado de substâncias estupefacientes, pelo arguido AA, esperar-se-ia que o impugnante indicasse os meios probatórios desconsiderados ou que dão consistência à acusação rejeitada!

Mas isso, deveras, não sucede.

O recurso sustenta-se em «autos de diligência» e «relatórios de diligência»! Tais «autos» e «relatórios» constituem, na verdade, meios atípicos de obtenção de prova. Os quais, tendo naturalmente a sua relevância no contexto da investigação criminal e podendo (até) servir para em juízo serem consultados pela testemunha que deles seja autor, quando necessite de avivar a memória, não constituem meios de prova. E por isso não poderão, como se afigura óbvio, ser valorados como se de prova testemunhal ou documental se tratasse – que não são (cf. artigos 124.º, 125.º, 128.º, 129.º, 356.º CPP e 255.º Código Penal) (4)!

De acordo com o paradigma do processo penal português a fase de instrução, quando requerida pelo arguido, visa suscitar um controlo judicial da acusação, deveras um controlo negativo sobre a decisão de acusar (cf. artigos 286.º, § 1.º e 287.º, § 1.º, al. a) e 2.º CPP), em ordem a verificar se estão reunidos probatórios suficientes da autoria e da prática do ilícito (artigo 283.º, § 1.º e 2.º CPP).

E assim porquanto, a dedução da acusação, sendo uma decisão final, no sentido de que põe fim a uma fase preliminar do processo, é, no essencial, uma promoção para que se proceda ao julgamento de determinada(s) pessoa(s) singulares ou coletivas, às quais se imputam determinados factos, que a lei tipifica como ilícitos criminais, em ordem a que lhes seja aplicada, pelo tribunal, uma pena ou medida de segurança (artigo 283.º, § 1.º e 2.º CPP).

A fase processual de instrução consiste, justamente, na verificação judicial (pelo juiz de instrução criminal) de um lastro probatório (validamente adquirido) relativo a um acontecimento (ou sequência de acontecimentos) histórico(s) concreto(s) penalmente relevante(s), lastro esse que, avaliada a sua força e aptidão para renovação em audiência de julgamento, sem perda da carga incriminatória, permita vencer as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual penal (artigo 32.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), e por aí, a elaboração com ele e por causa dele, neste momento interlocutório, de um juízo de probabilidade muito elevada de condenação (5).

No concernente ao conceito de indícios suficientes, embora a lei se exprima de modo literalmente algo diverso («indícios suficientes» no normativo citado; e «fortes indícios» p. ex. no § 1.º do artigo 202.º CPP – como requisito da prisão preventiva), na verdade denota em todos os momentos uma mesma convicção: o de se estar perante uma consistência probatória geradora de uma forte probabilidade de futura condenação do(s) arguido(s). Era já assim que Figueiredo Dias (6) entendia o conceito no contexto do CPP de 1929: «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.» Mantendo essa mesma posição no respeitante ao atual código: «um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz (…) um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.» (7) Também Germano Marques da Silva (8) exprime a ideia de que «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos formam a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido». Idêntica exegese faz Jorge Noronha e Silveira (9) que considera dever-se ser exigente quanto à suficiência dos indícios, não bastando uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição, antes se «deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.» Sendo este inequivocamente também o sentido da jurisprudência nacional (10), reafirmando que: «de certo modo se equivalem o conceito de “fortes indícios” usado no artigo 202.º e o de “indícios suficientes” explicitado no artigo 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.»

O recorrente considera que o princípio in dubio pro reo terá sido o fundamento primacial da decisão que impugna. Mas, deitando vista à a decisão instrutória, constatar-se-á que, ao contrário disso, não apenas esse foi o argumento derradeiro, como foi também subsidiário.

Isto é, depois de escrutinada a prova indicada no libelo e após se ter concluído que ela não evidencia, com consistência suficiente, a factualidade imputada ao arguido AA, veio a concluiu-se que (ainda que assim não fosse) a prova indiciária indicada sempre quedaria falha de consistência bastante. Isto é, o que dela tenuemente se poderia extrair sempre suscitaria dúvidas, as quais teriam (por isso mesmo) de ser valoradas a favor do arguido, em razão daquele princípio relativo à prova (in dubio pro reo), que é o correlato processual do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido.

Nas circunstâncias do presente caso, a decisão recorrida evidencia que o Mm.o Juiz de Instrução Criminal, na apreciação da prova indiciária sobre os factos acusandos, mobilizou, a mais dos seus conhecimentos técnicos, as regras da experiência comum, tendo feito bom uso de métodos racionais de dedução e de indução, concluindo, sem nenhuma sombra ou dúvida, que a prova indiciária existente (indicada no libelo) não é suficiente para sustentar a imputação. Isto é, concluiu que a prova existente não permite sustentar um juízo de probabilidade elevada de condenação do arguido em julgamento.

As razões porque assim concluiu estão bem arrimadas na referência feita a cada um dos segmentos factológicos relevantes e nos elementos probatórios disponíveis. Sendo que estes, padecendo da fragilidade já atrás assinalada, não contêm deveras qualquer referência a atos praticados pelo arguido que permitam ligá-lo direta ou indiretamente à atividade ilícita que era desenvolvida por outros. Em suma: tais meios probatórios indiciários não sustentam qualquer dos factos imputados ao arguido.

Importa ainda assinalar que, contrariamente ao que parece subjacente às conclusões 4.ª e 15.ª, não é ao arguido que cabe demonstrar o que quer que seja, sendo irrelevante para o que aqui importa, se a versão por si apresentada no interrogatório é credível ou incrível. Na verdade, tal relato – confirmado aliás por declarações de outro coarguido - poderá até suscitar reservas de credibilidade, mas isso nada acrescenta à posição sustentada na acusação e no recurso. Pois era na prova indiciária recolhida no inquérito e depois apresentada no libelo, que deveriam suficientemente sustentar-se as imputações que são feitas ao arguido. Mas isso, como visto, não sucede.

E, neste quadro, prevalece a garantia constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, § 2.º da Constituição), não devendo por isso mesmo, quanto a este arguido, prosseguirem os autos para julgamento.

Breve: por os autos não conterem prova indiciária que consolide a possibilidade razoável de ao arguido AA vir a ser aplicada uma pena em julgamento, não deverá ser pronunciado.

Pelo que o recurso deverá improceder.

d) Custas

Não há lugar a condenação em custas por o recorrente, nos termos da lei, estar delas isento (artigo 522.º, § 1.º CPP).

III - DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto decidimos:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a decisão recorrida.

b) Sem custas.

Évora, 10 de maio de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa (adjunto)

Gilberto da Cunha (presidente)

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Cf. p. ex.: Decisão Sumária proferida no Proc. 3106/18.6T9LSB.L1-9, de 3/4/2019, Des. Filipa Costa Lourenço; apud Ac. TRÉvora, de 3/7/2012, Proc. 4016/08.0TDLSB.E1, Des. Ana Barata Brito; Ac. TRLisboa, de 31/10/2017, Proc. 3335/16.7T9SNT.L1, Des. Artur Varges; Ac. TRPorto de 15/2/2012, Proc. 918/10.2TAPVZ.P1, Des. Alves Duarte; Ac. TRPorto, de 18/4/2012, Proc. 4454/10.9TAVNG.P1, Des. Maria do Carmo Silva Dias).

4 Cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1052/96, de 10 de outubro de 1996; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao CPP, 2011, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, pp. 917 (notas ao artigo 356.º); Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2021, 3.ª edição, Almedina, pp. 39/40 (§ 8.º da anotação ao artigo 125.º CPP).

5 Cf. Jorge Noronha e Silveira, O conceito de indícios suficientes no processo penal português» (Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», Coord. Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004, pp. 155 ss., maxime, pp. 160-172; na jurisprudência, cf., entre muitos outros, Acórdão da Relação de Évora de 13/5/2014, proc. 200/11.8GTEVR.E1, Des. João Gomes de Sousa, acessível em www.dgsi.pt

6 Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004 (reimpressão da 1.ª edição 1974), pp. 132/133.

7 Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», pp. 20, Coimbra 2015, texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal, do Mestrado Forense da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015, 2016).

8 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 1994, pp. 182/183

9 Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pp. 171.

10 Por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/8/2018, no Proc. n.º 142/17.3JBLSB-A.S1, Cons. Nuno Gomes da Silva.