SIGILO DE COMUNICAÇÕES
DADOS PESSOAIS
CONSENTIMENTO
ACESSO AO DIREITO
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário


- As empresas de telecomunicações estão sujeitas a deveres de confidencialidade (artº48 Lei n.º 5/2004, de 10-02 “Lei das Comunicações Eletrónicas” e art. 4º nº 1 da Lei n.º 41/2004, de 18-08 “Lei da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações”)
- Os clientes das empresas de telecomunicações ao expressarem a sua vontade em não autorizar a divulgação dos seus dados pessoais, apostos no contrato do serviço de telecomunicações, exercem um direito com proteção constitucional (art. 35º,4 CRP) e com enquadramento no direito da proteção de dados pessoais (art. 5º, 1 alª f do RGPD).
- Não podendo, em princípio, as empresas de telecomunicações (responsáveis pelo tratamento de tais dados) fazer um tratamento não consentido pelo titular.
- Mas o consentimento não constitui a única causa de legitimidade e de licitude no tratamento de dados pessoais.
- O consentimento será dispensável, se o tratamento for necessário para efetivar interesses legítimos prosseguidos por terceiros (art. 6º alª f) do RGPD) e se, recorrendo a um princípio de proporcionalidade, sugerido na mesma norma, se não imponha a prevalência dos interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular dos dados.
- Está nessa situação o direito de terceiro a uma tutela jurisdicional efetiva, para a qual necessita de informação de morada do cliente da empresa de telecomunicações de modo a viabilizar a citação deste, como réu, uma vez esgotadas todas as possibilidades de obter a mesma informação por uma via menos intrusiva.
- A recusa de informação por parte da empresa de telecomunicações não é, no caso, legítima.
(Sumário pela Relatora)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I
NOS Comunicações, S.A apresentou requerimento de injunção contra Maria (…), residente em (…) Odivelas, para dela haver a quantia global de 1.514,79€, relativa a um contrato celebrado em 3.1.17, incumprido a partir de 1.3.17.
A carta registada e com aviso de receção remetida para a requerida foi devolvida, por não ter sido reclamada.
Consultadas as bases de dados da segurança social, da autoridade tributária e aduaneira e dos serviços de identificação civil, obteve-se a morada Rua (…) Almodôvar.
A carta registada e com aviso de receção remetida para a requerida foi devolvida, por não ter sido reclamada.
Tentada a citação da requerida através de agente de execução, o mesmo informou que se deslocara à referida morada em 21.6.21, não tendo conseguido apurar se a requerida aí vivia. Havia deixado aviso pedindo contacto telefónico urgente, mas ninguém o contactara. Deslocara-se de novo à morada em causa no dia 26.7.21, tendo sido atendido por José (…), que dissera desconhecer a citanda.
Consultadas as bases de dados da requerente, foi obtida a morada (…) Leiria.
A carta registada e com aviso de receção remetida para a requerida foi devolvida, por ser desconhecida nessa morada.
Foi solicitada informação à EDP Comercial – Comercialização de Energia, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a mesma não titulava, atualmente, qualquer contrato de fornecimento de energia.
Foi solicitada informação à SU Eletricidade, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a mesma não havia celebrado qualquer contrato de fornecimento de energia.
Foi solicitada informação à Altice Meo – Serviço de Comunicações e Multimédia, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a mesma era cliente e tinha fornecido a morada de Almodôvar.
Foi solicitada informação aos Serviços Municipalizados de Água de Leiria sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido não existir qualquer contrato de água em nome daquela.
Foi solicitada informação à Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A. sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida, tendo tal entidade respondido que a requerida solicitou a confidencialidade dos seus dados aquando da subscrição do serviço telefónico, pelo que tais informações estão cobertas pelo sigilo das comunicações e pelo sigilo profissional. Razões pelas quais pediu escusa.
A requerente veio requerer a citação edital da requerida.

Foi, então, proferido o seguinte despacho:
“(…)
Dispõe o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que «1- Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.». Por seu turno, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, «3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.» (sublinhado meu). Por fim, o n.º 4 da referida disposição legal, prevê que «4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.».
Assim sendo, considerando os motivos de recusa invocados pela operadora, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, cumpre aplicar o disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da eventual dispensa do dever de segredo.
Deste modo, em primeiro lugar cumprirá apreciar e decidir se a recusa da operadora em questão é ou não legítima. Caso se conclua pela ilegitimidade da recusa, o tribunal (de 1.ª instância) deve ordenar a prestação das informações (n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal), cabendo recurso desta decisão; caso contrário, sendo considerada legítima a recusa, e indispensável o fornecimento dos elementos recusados, deve ser suscitado o incidente junto do tribunal superior - oficiosamente ou a requerimento - solicitando que seja determinada a prestação da informação, com quebra de sigilo (n.º 3 do artigo 135.º do Código de Processo Penal).
Isto posto, apreciando a legitimidade da recusa e os fundamentos invocados pela operadora, à luz do quadro legal aplicável, temos que o artigo 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «Inviolabilidade do domicílio e da correspondência» dispõe que «[o] domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis», prevendo-se no n.º 4 do mesmo preceito legal «[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.» Por seu turno, dispõe o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 41/2004, de 18/08 que «1- As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.».
Finalmente, o artigo 48.º, n.º 1, al. l), da Lei n.º 5/2004, de 10/02 prevê a inclusão obrigatória nos contratos celebrados com as operadoras da «Indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respetivos elementos pessoais nas listas telefónicas e sua divulgação através dos serviços informativos, envolvendo ou não a sua transmissão a terceiros, nos termos da legislação relativa à proteção de dados pessoais».
No caso dos autos, a informação pretendida cinge-se à morada da requerida e, como tal, não se pretendendo a revelação de quaisquer dados de tráfego e de conteúdo, entendo não estar em causa a invocada intromissão na correspondência ou nas telecomunicações prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil.
Contudo, é de relevar que a operadora informou que a sua cliente se opôs expressamente à divulgação dos elementos pessoais constantes do contrato, motivo pelo qual entendo que assiste razão à operadora quando alega que se encontra vinculada ao dever de sigilo de tais dados (dados de base), atento o disposto no artigo 48.º, n.º 1, al. l), da Lei n.º 5/2004 (cfr. no mesmo sentido Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 12/04/2018, Proc. 2112/16.0T8EVR-A.E1).
Destarte, julgo legítima a recusa da operadora Vodafone Portugal- Comunicações Pessoais, S.A. em prestar a informação solicitada.
Sucede que o apuramento da morada atual da requerida com vista à sua citação pessoal torna-se imprescindível ao regular andamento do processo e à boa administração da justiça, na perspetiva de que o recurso à citação edital só deve suceder em casos limite, designadamente quando se mostrarem frustradas todas as diligências passíveis de serem realizadas com vista à localização do paradeiro do réu, motivo pelo qual, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, entendo ser de suscitar o incidente de quebra de sigilo.
Em face de todo o exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 417.º, n.º 4, do CPC e 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, suscito o incidente de quebra de sigilo perante o Venerando Tribunal da Relação de Évora, para o efeito de ser determinada a prestação da informação da morada da requerida MARIA (…), atualmente registada no contrato celebrado com a “Vodafone Portugal - Comunicações Pessoais, S.A., com vista à sua citação pessoal nos presentes autos.
(…).”.
*

Os factos pertinentes para a economia do presente processo são os que se deixaram expressos no relatório.
II
É a seguinte a questão a decidir:
No confronto dos interesses que se hão de decompor e sopesar, deve a operadora de telecomunicações prestar a informação solicitada?
Vejamos.
As empresas de telecomunicações estão sujeitas ao dever de confidencialidade previsto na Lei n.º 5/2004, de 10-02 e na Lei n.º 41/2004, de 18-08.
Nos termos do art. 48º da Lei n.º 5/2004, de 10-02 (Lei das Comunicações Eletrónicas), do contrato que oferece o serviço de comunicações eletrónicas deve constar, entre o mais:
« l) Indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respetivos elementos pessoais nas listas telefónicas e sua divulgação através dos serviços informativos, envolvendo ou não a sua transmissão a terceiros, nos termos da legislação relativa à proteção de dados pessoais;(sublinhado nosso).
A informação solicitada – sobre o atual domicílio, domicílio profissional ou entidade patronal da requerida – está contemplada no campo de previsão respeitante à divulgação de elementos pessoais (do cliente) através dos serviços informativos da prestadora a terceiros (no caso, o tribunal e as partes no processo).

Por força do art. 4º nº 1 da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações) :
«1 - As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.»
A informação solicitada nos autos principais à Vodafone não se inclui neste campo de previsão, respeitante à inviolabilidade das comunicações eletrónicas e dados de tráfego.

Como normativo específico está, em causa, tão só a possível ofensa ao art. 48º da Lei n.º 5/2004, de 10-02.
A cliente da Vodafone (titular de dados pessoais) ao contratar com esta (responsável pelo tratamento) terá expressado a sua vontade em não autorizar a divulgação dos seus dados pessoais.
Tendo essa proteção enquadramento constitucional (art. 35º,4 CRP ) e do direito da proteção de dados (art. 5º, 1 alª f do RGPD).
Assim, em princípio, para que a Vodafone pudesse prestar a informação solicitada, a sua cliente teria de o consentir, porque a informação solicitada respeita aos seus dados pessoais.
Mas o consentimento não constitui a única causa de legitimidade e de licitude no tratamento de dados pessoais.
O art. 6º do RGPD enuncia um conjunto de situações, para além do consentimento, que conferem licitude ao tratamento como, para o que ora importa, a estabelecida na alínea f):
O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança.” (sublinhados nossos).
De acordo com esta norma, os interesses do responsável pelo tratamento ou os interesses de terceiro podem fundamentar a licitude do tratamento.
No caso, estamos perante um litígio que pondera os interesses de terceiro.
Interesse legítimo porque visa assegurar-lhe uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20 CRP). O terceiro, autor da ação principal não tem ao seu alcance outra via, menos intrusiva, de obter informação de morada da Ré com vista a viabilizar a sua citação. O conjunto de diligências efetuadas nos autos principais permitem concluir que se esgotaram todas as demais possibilidades de obter essa informação.
De acordo com o princípio de proporcionalidade sugerido ao intérprete pelo art. 6º alª f) do RGPD, o direito da cliente da Vodafone ao sigilo quanto à sua morada e número de identificação fiscal, não prevalece sobre aquele. Não revela nada de fundamental que o sobreponha. Prevalece, por isso, este interesse de terceiro.
O tratamento/divulgação em causa mostra-se necessário para o tratamento de interesses legítimos de terceiros (à relação titular dos dados-responsável pelo tratamento). Logo, é lícito/a.
Em consequência, deve a operadora de telecomunicações prestar a informação solicitada no âmbito do dever processual de cooperação para a descoberta da verdade.

(…)

III
Termos em que, acorda-se em conceder a dispensa do dever de sigilo da Vodafone Portugal Comunicações Pessoais, S.A. para prestar a informação solicitada.
Sem custas.
Évora, 12 de maio de 2022
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Maria Adelaide Domingos

Maria da Graça Araújo
(com declaração de voto)
Voto vencida, pelas seguintes razões:
- Em causa está a ponderação, no concreto circunstancialismo dos autos, entre o dever de segredo a que a Vodafone está vinculada e o interesse da boa administração da justiça (conforme entendeu a 1ª instância e sendo certo que a autora requereu a citação edital da ré);
- Na situação em apreço, a boa administração da justiça não se prende com o mérito da causa (nomeadamente, com o direito à prova), mas apenas com o seu andamento, com a tramitação do processo;
- Se é certo que a lei privilegia a citação pessoal do réu, não deixou de prever a citação edital do mesmo, quando o seu paradeiro não for conhecido (nº 6 do artigo 225º do Cód. Proc. Civ.). Não se confundindo regularidade (que significa conformidade com as regras) com frequência ou normalidade, à face da lei – e, naturalmente, desde que a mesma seja respeitada – tão regular é a citação pessoal do réu como a sua citação edital;
- Mister é que o recurso a esta última modalidade assente na verificação dos pressupostos legais constantes do artigo 236º do Cód. Proc. Civ. (a título exemplificativo, vd. Ac. RL de 27.10.21 e da RE de 6.10.16, in http://www.dgsi.pt, respectivamente, Proc. nº 1788/16.2T8FNC-B.L2-4 e 212/14.0TBPTG-A.E1). O que não se confunde com a realização prévia de “todas as diligências passíveis de serem realizadas com vista à localização do paradeiro do réu”, como afirma a 1ª instância, até pelo que tais pesquisas, tendencialmente exaustivas, acarretariam para o andamento do processo;
- Assim sendo, o esforço exigido ao tribunal há-de, em regra, considerar-se concluído quando se obtiveram informações dos serviços públicos referidos no nº 1 do citado artigo 236º e, relativamente a todas as moradas obtidas, se tentou a citação por via postal e, se frustrada, por contacto de agente de execução ou funcionário judicial;
- A eleição de tais serviços como auxiliares do tribunal prende-se, precisamente, com a obrigatoriedade de os cidadãos terem as suas moradas actualizadas junto dessas entidades. Ora, se o próprio e principal interessado na citação pessoal (repare-se que a requerente já requereu a citação edital), enquanto pressuposto para a sua defesa no processo, não trata de comunicar a sua nova morada aos serviços oficiais, não cremos que, em regra, se justifiquem indagações ulteriores. Mais: se é o citando que, contratando os serviços da Vodafone, lhe impõe sigilo relativamente aos seus dados, nomeadamente a sua morada, não vemos porque, em nome da sua defesa, havemos de levantar o dever de sigilo da operadora;
- No caso em apreço, o tribunal nem sequer esgotou as possibilidades de localizar a requerida no quadro do artigo 236º nº 1 do Cód. Proc. Civ.. Com efeito, não foi pedida informação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e não foi tentada a citação por agente de execução na morada indicada no requerimento de injunção (a carta para aí remetida foi devolvida por não ter sido reclamada);
- Em conclusão, entendo que, in casu, não se justifica a quebra do dever de sigilo da Vodafone (No sentido exposto, aponta o Ac. RL de 5.5.20 (http://www.dgsi.pt Proc. nº 5002/16.2T8LRS-A.L1-7), a propósito de situação parcialmente idêntica à destes autos).