INJUNÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
EXECUÇÃO
FALTA DE TÍTULO
Sumário

1 - A ilegitimidade processual passiva no processo onde se formou o título executivo não é suscetível de gerar a falta de título executivo nem a inexistência da obrigação exequenda porquanto a legitimidade processual, pressuposto processual relativo às partes, visa assegurar que as partes processuais são os sujeitos a que se destinam os efeitos materiais da sentença, sendo consideradas como tal os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor. Consequentemente, a legitimidade processual apenas pode ser negada pelo tribunal se o autor tiver convocado para o processo pessoas que não são as que aquele enuncia como integrando a relação material; fora desse particular contexto, a legitimidade processual manter-se-á até à decisão final mesmo que na decisão final se venha a afirmar a sua ilegitimidade material.
2 - O tribunal da execução não podia conhecer oficiosamente de uma eventual ilegitimidade material da requerida do procedimento de injunção.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 530/17.5T8SLV.E1
(1.ª Secção)
Relatora: Cristina Dá Mesquita
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
I.1.
Agência Funerária (…), Lda., exequente na ação executiva para pagamento de quantia certa que moveu contra (…) interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo de Execução de Silves, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual declarou existir falta de título executivo com fundamento na ilegitimidade passiva da demanda do processo de injunção e, consequentemente, rejeitou o requerimento executivo com fundamento em verificação de exceção dilatória na fase declarativa e absolveu a executada da instância executiva.

O teor da decisão sob recurso é o seguinte:
«Na presente execução o título executivo consiste em requerimento de injunção com aposição de fórmula executória, referindo-se a causa de pedir, invocada para fundamentar o pedido, a despesas com o funeral da falecida mãe da Executada (…).
Foi a Exequente ouvida quanto à questão da legitimidade passiva, uma vez que o pedido se funda em despesas de funeral, que são responsabilidade da herança, nos termos do artigo 2068.º do Código Civil.
Veio aquela a pronunciar-se nos termos do requerimento de 10-9-2021 (ref. 9272338), que se dão por reproduzidos, concluindo que considera que a Executada (…), na qualidade de entidade contratante dos serviços e do fornecimento em questão, e não os tendo, oportunamente, pago, detém legitimidade passiva nos presentes autos.
Nos termos do artigo 726.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 551.º, n.º 3), o requerimento executivo é indeferido quando seja manifesta a falta ou a insuficiência do título (a)), quando ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso (b)), ou nos casos previstos nas alíneas c) e d).
Para além do primeiro dos indicados fundamentos, há que ter em conta que a ilegitimidade constitui exceção dilatória nominada, e que as exceções dilatórias são de conhecimento oficioso – artigo 577.º, parte inicial e alínea e), e artigo 578.º do Código de Processo Civil.
No caso, o teor do título executivo reflete uma relação negocial que tem contornos específicos, pois trata-se de uma relação que tem um objeto muito particular, e que não pode ser estabelecida de outra forma (exceto em casos em que estas despesas são previstas pelo próprio sujeito, autor da herança, ainda em vida) que não com a intervenção de pessoa que não é a quem se destinam, afinal, os serviços prestados.
Estas evidências encontram regulação no citado artigo 2068.º do Código Civil, que prevê que “A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios dos seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelas dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados.
É a herança que é responsável, nos termos da lei, pelas despesas a que se refere a injunção instaurada. Naturalmente, os serviços foram contratados pela filha da autora da herança; mas é o património da que tem de assegurar o pagamento do preço dos serviços prestados pela Exequente, e não o dos seus herdeiros.
Por conseguinte, a injunção deveria ter sido intentada não contra a ora Executada, em nome próprio e na qualidade de contratante dos serviços, mas sim contra a herança, representada pelo cabeça-de-casal, ou contra todos os herdeiros, se é que existem outros para além da filha, aqui Executada.
A não se entender assim, seria, no caso concreto, o património desta a responder diretamente por dívidas da herança, quando é esta que tem de responder, desde logo, pelas despesas de funeral.
Verificando-se o exposto do teor do requerimento de injunção, ao qual foi aposta a fórmula executória, tem de concluir-se que, não obstante a execução ter sido promovida por quem lá consta como credor, e contra quem consta como devedora, o vício no plano dos pressupostos processuais, no procedimento declarativo, foi determinante para a formação do título apresentado à execução, com fundamento nos factos ali alegados.
Concluindo-se pela ilegitimidade processual da Executada quanto à relação invocada como fundamento conformador do título executivo (artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), decorre também que tal vício determina a falta de título para demandar a Executada por meio da presente execução.
Quanto à oportunidade do conhecimento das exceções, este tem lugar no âmbito da primeira intervenção judicial no processo. O artigo 734.º do Código de Processo Civil permite que o juiz possa conhecer, oficiosamente, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.
Estando em causa a falta de título, com base na ilegitimidade passiva da demandada, deve decidir-se pela rejeição do requerimento executivo.
Em face do exposto, verificando-se falta de título, com fundamento em verificação de exceção dilatória na fase declarativa, e consistindo aquela falta, em si, em exceção dilatória, decide-se rejeitar o requerimento executivo, e absolver da instância executiva a Executada (…).
Custas a cargo da Exequente.
Registe e notifique».
I.2.
A recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A) A Recorrente Agência Funerária (…), Lda. intentou requerimento de injunção no dia 30/11/2016, ao qual foi atribuído o n.º 124494/16.7YIPRT e correu os seus termos do Balcão Nacional de Injunção, no qual requereu a condenação da ora Recorrida (…), no pagamento da quantia de € 2.450,00 (dois mil, quatrocentos e cinquenta euros) referente à fatura A/176 emitida em 17/06/2015 – processo n.º 2015/0162, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados às taxas legais em vigor de 7,05% e 7,00% desde a data de vencimento da fatura (17/06/2015), que à data ascendiam ao valor de € 250,77 e da taxa de justiça no valor de € 51,00, num total de € 2.751,77 (dois mil e setecentos e cinquenta e um euros e setenta e sete cêntimos);
B) A dívida é referente aos serviços prestados pela ora Recorrente no âmbito do funeral da mãe da Executada, Sra. (…), realizado no dia 10 de Junho de 2015, e que incluía, para além da execução do próprio funeral pelos trabalhadores da agência funerária, também a aquisição de diversos produtos (urna, lençol, véu, entre outros);
C) Devidamente notificada a ora Recorrida do teor da referida injunção, não procedeu a mesma, dentro do prazo que lhe assistia, ao pagamento dos valores em dívida à agência funerária, assim como não deduziu oposição a essa pretensão da ora Recorrente, por bem saber que os valores estavam em dívida e deles se tinha comprometido a pagar, tendo sido no dia 9/03/2017 aposta – e bem – fórmula executória no requerimento de injunção em questão, e em cumprimento do disposto no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro – vide docs. 1, 2, 3, 4 e 5 ora juntos;
D) Mantendo-se em dívida os valores referentes aos serviços fúnebres prestados pela ora Recorrente, foi intentada a ação executiva objeto dos autos recorridos, com base no referido título executivo – requerimento de injunção com fórmula executória, o qual é válido e foi obtido em cumprimento dos dispositivos e formalidades legais, nomeadamente nos termos constantes do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância, aprovado pelo referido Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro;
E) Sem prejuízo do consignado em sede de Código Civil ao nível da responsabilidade da herança (artigo 2068.º e seguintes), o certo é que a ora Recorrida, na sua qualidade de filha e herdeira da falecida mãe (…), procurou, por sua iniciativa, a Agência Funerária (…), Lda., ora Recorrente, escolheu especificamente os produtos que desejava, precisava e pretendia (urna estofada, canelada, lisa, lenço, lençol e véu tule, bordados), tal como os serviços (auto fúnebre para depósito em capela e funeral para fora do concelho, serviço de agência e despesas com pessoal) e todas as diligências anexas e afins (tais como obtenção de documentos, pagamento de taxas e afins) necessárias à realização do funeral da sua mãe, e todas por si pretendidas e escolhidas;
F) Assim, a ora Recorrida contratou a agência funerária, ora Recorrente, para a realização de tais serviços e para a venda dos produtos por si escolhidos, assumindo aquela expressamente e perante a agência funerária todos os encargos e valores devidos, sem prejuízo, porventura, do seu eventual direito de regresso sobre os restantes herdeiros e/ou bens da herança (caso existissem) e, por sua vez, a ora Recorrente, em cumprimento do acordado com a ora Recorrida prestou todos os serviços que lhe foram solicitados e vendeu os respetivos produtos que lhe foram pedidos, de modo cabal, pleno e eficaz e em cumprimento do que havia sido acordado – realização do funeral da Sra. Maria Augusta Teixeira, nos termos pretendidos e solicitados pela sua filha, ora Recorrida;
G) Prestados tais serviços, vendidos os respetivos produtos e suportados todos os encargos pela agência funerária de modo a que o referido funeral fosse realizado, como o foi, a ora Recorrente procedeu à emissão da respetiva fatura FT A/176 no dia 17/06/2015 em nome da ora Recorrida e em conformidade com o que havia sido com ela acordado e por ela assumido perante a agência funerária, a sua gerência e respetivos colaboradores, conforme documento que foi junto ao Requerimento da Recorrente do dia 10/09/2021 – ref.ª citius 39812176 e que ora se dá por integralmente reproduzido;
H) Uma vez emitida a fatura no âmbito da realização de um funeral, o familiar que recorre aos serviços prestados por uma agência funerária e que com esta contrata tais serviços e assume os respetivos custos, irá, posteriormente, munido dessa mesma fatura emitida em seu nome (ou seja, em seu nome e com os seus respetivos dados fiscais e não com os dados do falecido) requerer junto da Segurança Social ou da Caixa Geral de Aposentações o respetivo e devido reembolso das despesas de funeral;
I) Este reembolso é liquidado diretamente ao familiar do falecido ou do terceiro que assumiu e suportou as despesas com o funeral, com base na fatura emitida em seu nome pela agência funerária que realizou o funeral, não sendo o mesmo liquidado à herança do falecido nem à agência funerária, mas tão-somente ao familiar ou terceiro que consta da fatura, que comprove ter pago as despesas com o funeral e que requereu tal pagamento, com base no formulário do ISS Mod. RP 5076/2019 – DGSS e ao abrigo do disposto no artigo 54.º do DL 322/90, de 18/10, na sua redação atual – vide: https://eportugal.gov.pt/servicos/requerer-o-reembolso-das-despesas-de-funeral-a-seguranca-social ; https://www.seg-social.pt/reembolso-de-despesas-de-funeral
J) São legítimos os sujeitos da pretensa relação material controvertida, tal como o Autor a configura e tal como a desenha, entendimento este perfilhado pelo Prof. Barbosa de Magalhães, e alicerçado agora nos dispositivos constantes do artigo 30.º do CPC, em especial no seu n.º 3;
K) Tendo presente os pressupostos identificados nos parágrafos anteriores, a ora Recorrente intentou o requerimento de injunção que deu origem ao título executivo objeto do requerimento executivo, ora rejeitado, contra a ora Recorrida, na qualidade de filha da falecida e pessoa que contratou os serviços da agência funerária, que os escolheu e que assumiu perante aquela sociedade todos os encargos e valores devidos, sendo assim que vem configurada a relação material controvertida.
L) Significando isso que, tal como a ora Recorrente havia configurado o requerimento de injunção e subsequente Execução, são ela, Agência Funerária (…), Lda., e a ora Recorrida (…) os que intervêm na relação controvertida, sendo depois uma questão distinta (e de mérito), o saber se deveria ou não haver lugar ao pagamento dos serviços por ela prestados (o que a seu ver sim) e quem seria o responsável por tal pagamento (o que a seu ver ela, conforme já aflorado, e decidido em sede de requerimento de injunção, face à não oposição por parte da Requerida, ora Recorrida);
M) Posição esta igualmente sufragada pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP) do dia 17/06/2013, no âmbito do processo n.º 1013/10.0TJPRT.P1, in: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/04C275BAD2B8197580257BAA003CA215;
N) Douto Acórdão que igualmente defende – e bem – a legitimidade passiva de quem contrata os serviços fúnebres de uma agência funerária, sem prejuízo do seu direito de vir a reclamar da herança (ou dos demais herdeiros) o respetivo pagamento, como seu credor, à semelhança aliás do tema objeto dos presentes autos e do defendido pela ora Recorrente;
O)Tendo mesmo ficado fixado como sumário no douto Acórdão do TRP do dia 17/06/2013, o seguinte:
“…1 A legitimidade afere-se pela configuração da ação proposta e é parte legítima quem é demandado para pagar o preço devido pela prestação de um serviço fúnebre que contratou, independentemente do custo desse serviço ser encargo da herança…”
P) O facto das despesas de funeral nos termos do artigo 2068.º do CC serem consideradas encargos da herança, tal não impede a Recorrida (…), na qualidade de entidade contratante dos serviços e do fornecimento em questão, e quem assumiu os custos e não os tendo, oportunamente, pago, de deter legitimidade passiva para ser parte num processo judicial, na qualidade de Ré e devedora de tais serviços, e nos termos configurados pela Requerente, ora Recorrente, sem prejuízo do seu eventual direito de regresso sobre a herança e/ou sobre os demais herdeiros, se existentes;
Q) Não existindo qualquer fundamento legal, salvo o devido e merecido respeito pelo Tribunal Ad Quo, para considerar, como considerou, a falta de título com base na ilegitimidade passiva da demandada, que não existe, pelo que a douta Sentença recorrida ilegal e indevidamente rejeitou o requerimento executivo, e em manifesta violação dos artigos 30.º e 550.º, n.º 2, alínea b), do CPC e dos artigos 14.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de setembro;
R) É válido o título executivo que serviu base à execução em questão – injunção com fórmula executória, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 550.º, n.º 2, alínea b), do CPC e nos artigos 14.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro, dado que foram cumpridos e respeitados todos os requisitos e formalidades legais para o efeito, não existindo quaisquer vícios no plano dos pressupostos processuais, no processo declarativo, assim como não se verifica qualquer ilegitimidade passiva da demandada e muito menos a falta de título.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Apelação ser considerado procedente por provado e, por sua vez, ser revogada a douta sentença ora recorrida e substituída por outra que considere válido o título executivo objeto dos autos executivos e legítima a demandada (…), em cumprimento dos dispositivos legais, ordenando ainda o imediato prosseguimento dos ulteriores termos dos autos executivos recorridos, com as devidas e legais consequências, fazendo-se assim a DEVIDA E COSTUMADA JUSTIÇA!!»
I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi admitido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos, nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil).
II.2.
No caso cumpre do acerto/desacerto da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância o qual considerou que a falta de legitimidade processual da executada quanto à relação invocada como fundamento conformador do título executivo determina a falta de título executivo.
II.3.
Factos provados
Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos que constam da decisão recorrida acima transcrita.
II.4.
Mérito do recurso
A recorrente instaurou uma ação executiva apresentando como título executivo um requerimento de injunção no qual foi aposta a fórmula executória em virtude de a executada não ter apresentado oposição à injunção.
Naquele processo de injunção a exequente/apelante reclamou o pagamento dos serviços funerários que prestou e que foram contratados pela executada/apelada por ocasião do falecimento de sua mãe.
O tribunal recorrido julgou que se verifica falta de título executivo em virtude da verificação de uma exceção dilatória na fase declarativa, concretamente, a ilegitimidade passiva da demandada, e, consequentemente, e ao abrigo do disposto no artigo 734.º do CPC, rejeitou o requerimento executivo e absolveu a executada/apelada da instância executiva.
Por outras palavras, o tribunal de primeira instância considerou que a falta de legitimidade processual da executada quanto à relação invocada como fundamento conformador do título executivo determina a falta de título executivo.
Insurge-se a apelante contra tal decisão sustentando, em síntese, que:
1) Não existe falta de título executivo porque este consiste num requerimento executivo com fórmula executória, o qual é válido e foi obtido em cumprimento dos dispositivos e formalidades legais, nomeadamente, nos termos constantes do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, aprovado pelo D/L n.º 269/98, de 01.09;
2) A executada, requerida no processo de injunção, é sujeito da relação da material controvertida tal como a apelante a configurou no requerimento de injunção, pois foi ela que contratou a agência funerária, ora apelante, para a realização dos serviços funerários de sua mãe, que foram realizados e faturados pela segunda à primeira, e quem assumiu perante a apelante todos os encargos e valores devidos;
3) Questão distinta – e de mérito – é o de saber quem seria responsável por tal pagamento, o que foi decidido em sede de injunção em face da não oposição por parte da requerida.
4) O facto de as despesas de funeral serem considerados encargos da herança, nos termos do disposto no artigo 2068.º do Código Civil, não impede que a apelada, que foi a contratante dos serviços e do fornecimento em questão nos autos, e que assumiu os custos dos mesmos, detenha legitimidade passiva para ser parte num processo judicial nos termos configurados pela requerente, sem prejuízo do seu eventual direito de regresso sobre a herança ou sobre os demais herdeiros, se existentes.
Cumpre decidir do acerto/desacerto da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, como já assinalámos supra.
Comecemos pelo disposto no artigo 734.º do CPC, o qual sob a epigrafe Rejeição e aperfeiçoamento, dispõe que:
«1 – O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.
2 – Rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte.»
Resulta do preceito legal supra transcrito que decorrido o momento do despacho liminar é ainda possível ao juiz vir a conhecer de qualquer das questões que nos termos do artigo 726.º, n.º 2 a 5, do CPC, podiam ter conduzido ao indeferimento liminar do requerimento executivo ou a um convite ao seu aperfeiçoamento, desde que o faça até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados.
Por sua vez, o artigo 726.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Despacho liminar e citação do executado, enuncia no seu n.º 2 as (únicas) situações suscetíveis de gerar o indeferimento liminar do requerimento executivo.
São elas:
1) A falta ou insuficiência do título executivo, desde que manifestas (alínea a);
2) A verificação de exceções dilatórias não supríveis de conhecimento oficioso (alínea b);
3) A verificação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda, de conhecimento oficioso e que sejam manifestos, se a execução se fundar em título executivo negocial;
4) Tratando-se de execução baseada em decisão arbitral, o litígio não poder ser cometido à decisão por árbitros, ou por estar submetido por lei especial exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, ou por o direito controvertido não ter caráter patrimonial e não poder ser objeto de transação (alínea d).
Um dos fundamentos de indeferimento liminar previstos no artigo 726.º, n.º 2, do CPC é, justamente, a falta ou insuficiência (insupríveis) do título executivo, pelo que essa falta/insuficiência de título executivo pode também vir a ser conhecida, pelo juiz, numa fase mais tardia do processo, isto é, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, nos termos do supra citado artigo 734.º do Código de Processo Civil.
No caso resulta dos autos que não houve oposição à execução e que o juiz a quo conheceu oficiosamente, e posteriormente ao momento do despacho liminar, de uma suposta falta de título executivo.
O título executivo constitui a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da ação executiva» (artigo 10.º, n.º 5, do CPC), ou seja, o tipo de ação executiva, o seu objeto e a legitimidade ativa e passiva para a execução.
O título executivo consiste num documento que demonstra de forma legal bastante a obrigação exequenda (o direito a uma prestação), pelo que, segundo a lei, pode servir de base a uma execução[1].
Donde, os factos (principais) da causa de pedir da obrigação exequenda[2] devem estar representados no título executivo e, se não estiverem, o exequente deve inseri-los no requerimento executivo (cfr. artigo 724.º, n.º 1, alínea d), do CPC), sob pena de ineptidão do requerimento executivo.
Note-se que «a ação executiva logicamente pressupõe a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da ação declarativa, constitui, na ação executiva, o ponto de partida»[3].
Isto significa que o título executivo dispensa a indagação prévia da existência ou da subsistência do direito nele pressuposto. Nisto consiste a chamada suficiência do título executivo.
«Portanto, o tribunal da execução não certifica o direito exequendo, antes o impõe, porque o título executivo já o certifica. Efetivamente, o juízo de procedência executiva é instrumental do juízo de procedência declarativa, efetivada em sentença ou presumida em título diverso de sentença. Essa instrumentalidade é assegurada pelo título executivo por meio da sua ligação à causa de pedir».[4]
O que acabou de se referir não significa, porém, que não se possa dar o caso de o credor ter um título que formalmente comprova o seu direito, mas a obrigação exequenda não ser exigível ou até não existir; é o caso, por exemplo, quando se verifica a invalidade formal do próprio negócio representado no título, invalidade que afeta não só a constituição do próprio dever de prestar como a eficácia do respetivo documento como título executivo, ou quando o negócio formalizado no título executivo padece de invalidade substancial de conhecimento oficioso ou que decorra de factos trazidos ao processo pelas partes[5]. Quando a causa dessa inexigibilidade/inexistência for manifesta por resultar do título executivo ou do requerimento inicial da execução e for de conhecimento oficioso ou decorrer de factos trazidos pelas partes ao processo, o juiz deve conhecer da desconformidade entre o título e o direito que se pretende fazer valer e impedir a realização de atos executivos (cfr. artigos 726.º, n.º 2, alíneas a) e c), 734.º, n.º 1 e 729.º, alíneas a), e) e g), todos do Código de Processo Civil).
De acordo com o disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, à execução podem servir de base os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Alguns dos títulos cuja força executiva resulta de disposição especial da lei formam-se no decurso de um processo (títulos judiciais impróprios porque formados num processo mas não resultantes de uma decisão judicial[6]). É justamente o caso do título executivo formado no âmbito do processo de injunção regulado pelo D/L n.º 269/98, de 01.09 e pelo D/L n.º 62/2013, de 10 de maio.
A injunção consiste numa providência que tem por fim dar força executiva a um requerimento destinado a exigir o cumprimento de determinadas obrigações[7] (cfr. artigo 7.º do D/L n.º 269/98). O credor pode requerer, na secretaria do tribunal do lugar do cumprimento da obrigação ou do domicílio do devedor, a injunção deste para o cumprimento da obrigação (cfr. artigo 1.º do D/L n.º 269/98, artigo 8.º, n.º 1, do regime anexo e artigo 10.º, n.º 1, do D/L n.º 62/2013), tendo o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de crédito que se arroga (artigo 10.º, n.º 1, alínea d)); o requerido é notificado para, no prazo legal, pagar ao credor ou deduzir oposição à pretensão; se se opuser, ou se a notificação se frustrar, seguem-se os termos do processo especial de ação declarativa para ações de valor não superior a metade da alçada da Relação; mas se o requerido não deduzir oposição, o secretário judicial, e sem que o processo seja concluso ao juiz, aporá no requerimento de execução que o mesmo tem força executiva (a menos que não se verifiquem os requisitos do processo de injunção) e o requerente pode propor ação executiva com base naquele título assim formado, ou seja, uma execução para pagamento de quantia certa, na forma sumária, com dispensa de citação antes da penhora (cfr. artigo 550.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
Importa referir que a injunção não é uma sentença pois não declara direitos, com valor de caso julgado; se o requerido não contestar, nem pagar, entende-se que fez uma confissão de uma dívida, permitindo ao requerente obter um título executivo[8]. Mas, como se salienta no Ac. da RL de 01.06.2017, processo n.º 17633/13.8YYLSB-A.L2-2, relatora Ondina Carmo Alves, consultável em www.dgsi.pt. «tal silêncio do requerido, subsequente à sua notificação, faz presumir a existência da dívida, cujo pagamento lhe é exigido, sendo certo que essa presunção é passível de ser ilidida, através da oposição que venha a ser feita à execução».
Aqui chegados, uma questão se coloca que é a de saber quais os fundamentos de oposição à execução baseada num requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória que podem ser invocados pelo executado, ou seja, se serão apenas os que podem ser invocados relativamente à sentença e que se mostram previstos no artigo 629.º do CPC ou, também, quaisquer outros fundamentos que assistem aos demais títulos executivos, a saber, quaisquer fundamentos que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração (cfr. artigo 731.º do Código de Processo Civil).
Dispõe o artigo 857.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, na versão vigente à data da instauração da presente execução, e sob a epígrafe Fundamentos de oposição à execução baseada em requerimento de injunção, que:
«1 - Se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, apenas podem ser alegados os fundamentos de embargos previstos no artigo 729.º, com as devidas adaptações, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Verificando-se justo impedimento à dedução de oposição ao requerimento de injunção, tempestivamente declarado perante a secretaria de injunção, nos termos previstos no artigo 140.º, podem ainda ser alegados os fundamentos previstos no artigo 731.º; nesse caso, o juiz receberá os embargos, se julgar verificado o impedimento e tempestiva a sua declaração.
3- Independentemente de justo impedimento, o executado é ainda admitido a deduzir oposição à execução com fundamento:
a) Em questão de conhecimento oficioso que determine a improcedência, total ou parcial do requerimento de injunção;
b) Na ocorrência, de forma evidente, no procedimento de injunção de exceções dilatórias de conhecimento oficioso.».
No seu acórdão n.º 274/2015, de 12 de maio, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 857.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, quando interpretada «no sentido de limitar os fundamentos de oposição a execução instaurada com base em requerimentos de injunção a qual foi aposta a fórmula executória», por violação do princípio da proibição de defesa consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
O que implica que em execução fundada em requerimento de injunção ao qual foi aposta a fórmula executória, na oposição à execução mediante embargos de executada deduzida pelo executado, este possa invocar quaisquer outros factos que possam ser invocados no processo de declaração (artigo 731.º do CPC), quer fundamentos de natureza processual, quer fundamentos de natureza substantiva, com vista à destruição dos efeitos do título executivo[9].
Mas, sublinha-se, os únicos fundamentos para obstar à prática de atos executivos que o tribunal pode conhecer oficiosamente são aqueles que se mostram previsto no artigo 726.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Regressando ao caso sub judice, o exequente/apelante apresentou à execução um requerimento de injunção, no qual se mostra declarado, pelo secretário de justiça, que «este documento tem força executiva».
Resulta dos autos que não houve oposição à execução.
O juiz a quo entendeu que se verifica falta de título executivo e que essa falta de título executivo foi determinada pela ilegitimidade processual passiva da requerida do processo de injunção porquanto do título executivo resulta que as despesas cujo pagamento está a ser exigido pela exequente referem-se ao funeral da falecida mãe da executada e tais despesas são da responsabilidade da herança, em conformidade com o disposto no artigo 2068.º do CC.
A ilegitimidade processual passiva no processo onde se formou o título executivo não é suscetível de gerar a falta de título executivo nem a inexistência da obrigação exequenda porquanto a legitimidade processual, pressuposto processual relativo às partes, visa assegurar que as partes processuais são os sujeitos a que se destinam os efeitos materiais da sentença, sendo consideradas como tal os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor. Consequentemente, a legitimidade processual apenas pode ser negada pelo tribunal se o autor tiver convocado para o processo pessoas que não são as que aquele enuncia como integrando a relação material; fora desse particular contexto, a legitimidade processual manter-se-á até à decisão final mesmo que na decisão final se venha a afirmar a sua ilegitimidade material.
No caso, não é posto em questão que foi a apelada/executada que contratou à exequente/apelante os serviços funerários cujo pagamento é solicitado pela segunda. Pelo que parece inquestionável que a mesma tinha legitimidade processual no processo de injunção.
Apesar de invocar a ilegitimidade processual da requerida do processo de injunção para fundamentar a falta de título executivo, o que o juiz a quo fez foi fundamentar a falta de título executivo numa (suposta) ilegitimidade material da requerida do processo de injunção, claramente confundindo legitimidade processual com legitimidade substantiva.
A legitimidade processual é um pressuposto processual relativo às partes que visa assegurar que as partes processuais são os sujeitos a que se destinam os efeitos materiais da sentença, sendo consideradas como tal os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor (cfr. artigo 30.º do CPC); já a legitimidade substantiva tem a ver com a efetiva titularidade da relação material alegada pelo autor, interessando, portanto, ao mérito da causa; a sua negação não releva para efeitos de regularidade da instância processual, não gerando a absolvição da instância, determinando, outrossim, caso seja procedente, uma absolvição do pedido – neste sentido, Ac. STJ de 11.11.2010, processo n.º 33/08.9TBVNG.P1.S1, relatora Maria dos Prazeres Beleza, consultável em www.dgsi.pt.
Ilegitimidade substantiva/material que a ocorrer – e que nem sequer ocorre pois em face da causa de pedir invocada no requerimento de injunção, a saber, o incumprimento de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a requerente e a requerida, esta última é a efetiva titular da relação controvertida – nem sequer seria de conhecimento oficioso. Isto é, o tribunal da execução não podia oficiosamente certificar o direito exequendo, afirmando que a herança da mãe da executada é que deve responder pelas despesas a que se refere o procedimento de injunção, de acordo com o disposto no artigo 2068.º do Código Civil para dessa forma considerar que o processo de injunção deveria ter sido instaurado contra a herança, representada pelo cabeça-de-casal ou contra todos os herdeiros. E ao concluir que ocorreu situação de ilegitimidade processual passiva no processo declarativo (apesar de reconhecer que em face do teor do requerimento de injunção a requerida celebrou com a requerente o contrato de prestação de serviços e vinculou-se ao pagamento dos mesmos), confundiu (i)legitimidade processual com (i)legitimidade substantiva.
De todo o exposto resulta que a decisão do tribunal de primeira instância não pode subsistir porquanto: (i) uma eventual falta de legitimidade processual da requerida do processo de injunção não afeta a eficácia do título executivo; (ii) o tribunal da execução não podia conhecer oficiosamente de uma eventual ilegitimidade material da requerida do procedimento de injunção.

Sumário: (…)


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente o recurso e, consequentemente:
1) Revogam a decisão recorrida;
2) Ordenam o prosseguimento da ação executiva.
Sem custas porquanto a recorrente procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e, não tendo havido resposta às alegações de recurso, não há lugar a custas de parte na presente instância recursiva.
Notifique.
Évora, 12 de maio de 20202
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
José António Moita (1º Adjunto)
Mata Ribeiro (2º Adjunto)


__________________________________________________
[1] Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Ação e Execução, 5.ª Edição Atualizada e ampliada, 2005, pág. 279.
[2] Ou seja, os factos que demonstram a aquisição de um direito ou o poder a uma prestação segundo requisitos legalmente prescritos – Rui Pinto, A Ação Executiva, 2019, Reimpressão, AAFDL Editora, pág. 136.
[3] Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª Edição GestLegal, pág. 28.
[4] Rui Pinto, ob. cit., pág. 142.
[5] Rui Pinto, ob. cit., págs. 146-147.
[6] Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 80.
[7] Obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00 e obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais abrangidas pelo D/L n.º 62/2013, de 10.05, independentemente do valor da dívida.
[8] Rui Pinto, ob. cit., pág. 215.
[9] De acordo com o disposto no artigo 282.º, n.º 1, da Constituição da República, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional.