LIVRANÇA
VENCIMENTO
PRESCRIÇÃO
Sumário

I–Salvo se se provar a violação do pacto de preenchimento de uma livrança em branco, a data que conta para efeitos da prescrição do aval é a data que for colocada na livrança pelo credor, não importando para o efeito a data da resolução do contrato subjacente (ou do incumprimento definitivo) ou a da declaração de insolvência do avalizado (ou da situação de insolvência de facto).

II–Existe uma jurisprudência reiterada e uniforme no STJ e quase uniforme nas Relações, e que por isso deve ser seguida, no sentido de que a livrança em branco não prescreve no prazo de 3 anos sobre a data em que o credor estava legitimado a preencher a data de vencimento.

III–Tudo isto sem prejuízo da existência de uma situação de abuso de direito de preencher a livrança com a data de vencimento (art. 334 do CC) de que, no caso dos autos, não estão sequer indiciados os respectivos pressupostos.

IV–O facto de ser deixada ao credor a fixação do prazo do vencimento da prestação, com solução no art. 777/3 do CC, não é o mesmo que ser deixado ao arbítrio do credor a determinação da prestação, com a solução da nulidade do negócio (art. 280/1 do CC).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:



A 18/05/2017, a C-SA, mais tarde substituída por P.Unipessoal, Lda (habilitada, como cessionária do crédito no apenso B), requereu uma execução contra, entre outros, (1) S-SA, (2) N e (3) M, com base numa livrança.

A exequente alegou, em síntese [utiliza-se a síntese feita pelos executados, por este TRL não ter pedido acesso à execução, que, no caso, é desnecessário, para além de mais face aos factos provados (do que decorre que a síntese é correcta) e ao que se discute nos autos], que no exercício da sua actividade creditícia, no dia 05/01/2009, celebrou com a S um contrato de mútuo com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança, mediante o qual lhe concedeu um empréstimo, sob a forma de mútuo no montante de 700.000€; a partir de Agosto de 2010, a mutuária S deixou de cumprir as obrigações pecuniárias emergentes do aludido contrato, pelo que, a título de capital, permanecem em dívida 690.000€; considerando que os executados não cumpriram as obrigações emergentes do contrato, a exequente deu cumprimento à convenção de preenchimento, sendo, por conseguinte, nesta data, portadora de uma livrança, preenchida pelo valor de 1.084.635,08€.

Os executados 2 e 3 deduziram oposição mediante embargos, em que, na parte que ainda interessa, alegaram a prescrição da livrança e o abuso de direito, concluindo pela absolvição da instância.

Em síntese:
(i)-a exequente apostou na livrança a data de 14/02/2017, em abuso de direito, uma vez que pretende fazer valer, de má-fé, uma livrança que sabe que já prescreveu; o contrato foi celebrado pelo prazo global de 48 meses; pelo que, tendo sido celebrado a 05/01/2009, então era obrigação dos executados liquidar os montantes mutuados até ao dia 05/01/2013; a cláusula 16/1-a do documento complementar de tal contrato estabelece que a C poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento, designadamente em caso de incumprimento pela parte devedora de qualquer obrigação decorrente deste contrato; como a executada S não liquidou os montantes no prazo de 48 meses então deveria considerar-se que a S incumpriu definitivamente e o contrato deve ter-se por resolvido no dia 05/01/2013, pelo que, deveria ter sido aposta a data de 05/01/2013, ou mesmo a de Agosto de 2010 como sendo a data de vencimento da livrança; como a execução deu entrada em 18/05/2017, o direito prescreveu, por já terem decorridos os três anos previstos no artigo 70 da LULL;
(ii)-a cláusula 16/1-e do documento complementar ao contrato estabelece que a C poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento, designadamente em caso de, insolvência da parte devedora, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias de crédito” e o seu número 2 acrescenta que caso ocorra qualquer uma das situações referidas no número anterior, a C fica com o direito de considerar imediatamente vencidas e exigíveis quaisquer obrigações da parte devedora emergentes de outros contratos com ela celebrados.” Ora, conforme é do conhecimento da C, a S encontra-se insolvente desde pelo menos finais de 2010, ainda que tal insolvência não tenha sido judicialmente declarada [tanto assim é, que, em Agosto de 2010 a S deixou de cumprir as obrigações que havia assumido com a exequente; e a última vez que a S apresentou as suas contas foi 05/08/2009 (conforme doc.1) e foi dissolvida e liquidada em 25/02/2016 (conforme doc.2)]; facto que obrigava a exequente a preencher a livrança nos termos daquela cláusula 16;

Em suma, a exequente esteve 3 anos sem preencher a livrança, tal como estava obrigada nos termos da cl. 16/1-a, e 7 anos sem preencher a livrança tal como estava obrigada nos termos da cl. 16/1-e, colocando uma data de vencimento da livrança diferente daquela que foi acordada entre as partes.

Os executados citam ainda quase todo o texto de Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, 2016, sobre o assunto, nas páginas 205 e 206 e a obra e jurisprudência referidas pela autora, entre elas as passagens que se seguem:
“ […] circunstância de não haver sido estipulado um prazo para o preenchimento do título ou de não haver sido expressamente determinado o critério da aposição da data de vencimento, não significa que do acordo de preenchimento não possam extrair-se, por interpretação (e, se necessário, por integração), essas mesmas coordenadas.
Assim, o direito cambiário emergente de um título em branco torna-se exercitável a partir do momento em que o respectivo portador está legitimado a preenchê-lo, tipicamente, a partir da ocorrência do incumprimento e subsequente resolução do contrato fundamental”. Nota: [Isto porque naturalmente relevará, para o efeito] “o incumprimento definitivo e este, na esmagadora maioria dos casos, conduz em linha quase directa à resolução do contrato pelo credor (contraparte do inadimplente).”
Acórdão do STJ de 30/04/2002 [02A998 – link introduzido por este TRL]: “a circunstância de o preenchimento das letras constituir uma “simples faculdade” não significa que possa ser “livremente” exercida: optando por preencher as letras no contexto do incumprimento, a locadora deveria ter aposto na letra a data da resolução do contrato, apoiando-se não apenas no conteúdo do acordo de preenchimento (que previa que as letras em branco poderiam ser usadas em caso de mora superior a dez dias ou de incumprimento), como no interesse atendível do devedor “em ver delimitada claramente no tempo a sua responsabilidade” de onde resulta uma “imperatividade” quanto à coincidência entre a data de vencimento e a data da resolução do contrato por incumprimento”.
E o ac. do TRP [ou melhor: do TRL de 10/11/2005, proc. 8959/2005-6 - TRL]: “na data que foi exigido o pagamento do valor da livrança já ela estava prescrita” pois já haviam decorrido três anos sobre a data de vencimento implicitamente imposta pelo acordo das partes. Na verdade, a cláusula nos termos da qual a livrança “será oportunamente preenchida quando a [entidade credora] o entender” deve considerar-se circunscrita “pela imposição contratual de o fazer até ao fim do contrato acrescido das eventuais renovações”, ou seja, deveria ter-se por “localizada” na data do encerramento da conta-corrente.” [os executados em vez da parte em itálico escreveram: vencimento da obrigação].
Concluíram, de novo, parafraseando Carolina Cunha, que a exequente estava obrigada a preencher o título no exacto momento em que procede à resolução do contrato fundamental por incumprimento, e tinha o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos três anos sobre esse instante perder definitivamente a possibilidade de exercitar o direito cambiário; e accionando o título para lá desse limite temporal, incorre em preenchimento abusivo nos termos do art. 10 da LULL e, por referência à data de vencimento correcta, o direito cambiário deve considerar-se prescrito.

A exequente contestou, impugnando os factos base das excepções deduzidas e concluindo pela improcedência dos embargos.

Em síntese, disse:
Para verificarmos a consistência da tese sustentada [pelos executados], importa ter presente também a cláusula 18.º, que os embargantes ignoram: “1. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a parte devedora entrega à C, neste acto, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pela parte devedora e avalizada pessoalmente [por…], autorizando, desde já a parte devedora e os avalistas a C a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria C, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) A data de vencimento será fixada pela C quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a C decida preencher a livrança; […]” Esta cláusula tem ínsito um pacto de preenchimento e ele afasta a aplicação ao caso concreto da orientação consignada no ac. do STJ de 30/04/2002. Vale antes a orientação sustentada no ac. do TRL de 19/04/2012, proc. 27827/05.4YYLSB-A.L1-8 e no ac. do STJ de 20/10/2015, proc.  60/10.6TBMTS.P1.S1 [“ […] IV - A recorrente afirma o preenchimento abusivo por banda da ré somente em relação à data de vencimento. Porém, a interpretação que o acórdão recorrido fez das cláusulas do pacto de preenchimento, foi correcta, não sendo aceitável a representação que a recorrente faz de tais itens. A obrigatoriedade da ré preencher a livrança (somente) na data do incumprimento pela mutuária das obrigações assumidas, como defende a autora, não encontra qualquer apoio na convenção de preenchimento. V - Como a data de vencimento não está determinada (não consta da factualidade assente) não se prova a prescrição da acção cambiária. Uma livrança em branco pode prescrever, mas isso só sucederá quando, dentro das relações imediatas, se prove, através do acordo extra-cartular / pacto de preenchimento, que foi fixado, um outro vencimento diferente do indicado no título e que esse vencimento ultrapassa o respectivo prazo de prescrição, o que não se demonstra no caso. […]”]. Aceita a C que o portador da livrança está vinculado, quanto a esse parâmetro como quanto aos outros, pelo que resulta do pacto de preenchimento. Uma vez que o limite temporal tem início na data em que a livrança foi preenchida, salvo se a outra data o portador estiver vinculado por força do pacto de preenchimento. Como no caso concreto não estava, é totalmente despropositada a construção feita pelos executados.

A cláusula 16, invocada pelos embargantes é totalmente despropositada, desde logo porque no corpo de tal cláusula se diz que a C poderá […]; ora, se a cláusula refere que a C pode estamos perante uma mera faculdade sendo inútil o exercício efectuado pelos embargantes para transformar uma faculdade numa obrigação; por outro lado, o facto de, a partir de Agosto de 2010, a mutuária ter deixado de cumprir com as obrigações pecuniárias emergentes do contrato, não significa que se verifique incumprimento mas simples mora; para que a mora se transforme em incumprimento definitivo, importaria que tivesse sido enviada interpelação admonitória nos temos do art. 808 do Código Civil.

Acresce que a tentativa de demonstrar que a mutuária S se encontrava em situação de insolvência, ainda que não judicialmente declarada, é perturbadora. Antes de mais, importaria que tal situação, a verificar-se fosse do conhecimento da C e não era; em segundo lugar, muito estranha que os legais representantes da mutuária S, não tivessem observado durante mais de cinco anos - período que medeia entre finais de 2010 e a data em que a sociedade foi dissolvida - o artigo 18 do CIRE. Mas se a mutuária estava insolvente desde 2010, a única conclusão a extrair é a de que andou a defraudar os seus credores. Que são vários. […]. [Ou seja,] não está demonstrado que a S estivesse insolvente e muito menos que a C soubesse que estaria.

[Os executados] começam a contar o prazo de preenchimento da livrança a partir da data do incumprimento do contrato, o que significa que a livrança estaria prescrita antes de ser preenchida. Para tanto, convocam o artigo 70 da LULL; note-se que, pelo facto de estarmos perante uma livrança em branco, o aval apenas se materializa após o completo preenchimento do título em branco, só se constituindo como dívida cambiária determinada nesse preciso momento. Até esse momento, a livrança em branco, encontra-se incompleta e não produz efeitos como livrança; neste sentido, veja-se o ac. do STJ de 09/09/2008, processo 08A1999; não se verifica, por isso, a prescrição da livrança.

Foi proferido despacho saneador, julgando a oposição improcedente.

Os executados recorrem deste saneador sentença – para que seja revogado -, com base nas mesmas razões alegadas na petição de embargo, mas desta vez sem qualquer referência à questão/argumento da insolvência da S.

A exequente contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, pelas mesmas razões que constam da contestação - mas sem reparar que os executados deixaram cair a questão da insolvência –, a que acrescentou a referência ao acórdão do STJ de 04/07/2019, proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, que vai no mesmo sentido do defendido por ela e faz referência a vários outros no mesmo sentido).
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Questões a decidir: se a livrança está prescrita e o preenchimento foi abusivo ou se o exercício do direito pela exequente é abusivo.
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Foram dados como provados os seguintes os factos que interessam à decisão daquelas questões:
1.–A C intentou, em 18/05/2017, acção executiva para pagamento de quantia certa, munida do documento de fl. 55 dos autos de execução, no qual se inscreve a frase: “no seu vencimento pagarei(emo)s por esta única via de à C ou à sua ordem ou à ordem a quantia de 1.084.635,28€, com data de “emissão” em 05/01/2009 e de “vencimento” em 14/02/2017 (documento que se considera integralmente reproduzido).
2.–Desse documento, no local destinado a “nome e morada do(s) subscritor(es)” está identificada a S-SA, e, no local destinado a “assinatura(s) do(s) subscritor(es)”, consta um carimbo identificativo desta sociedade e duas assinaturas sobre o mesmo.
3.–No verso do documento, encontram-se apostas, transversalmente, as assinaturas dos embargantes, cada uma sob a expressão manuscrita “Bom por aval ao subscritor”.
4.–O documento em execução garante o cumprimento do acordo celebrado entre a exequente e a S, identificada como “parte devedora”, datado de 05/01/2009 e intitulado “Mútuo com hipoteca e pacto de preenchimento da livrança”, pelo qual aquela disse ceder a esta “um empréstimo sob a forma de mútuo no montante de 700.000€, importância de que esta se confessa desde já devedora”(documento de fls. 175 a 180 e documento complementar de fls. 181 a fls. 192 que se dá por integralmente reproduzido).
5.–Do designado “documento complementar” ao acordo referido em 4, consta entre o mais:
“Cláusula 16ª. (Incumprimento / exigibilidade antecipada)
A CCG poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento, designadamente em caso de:
a)-incumprimento pela parte devedora de qualquer obrigação decorrente deste contrato;
(…)
e)-insolvência da parte devedora, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias de crédito.           
(…)
Cláusula 18.ª (Livrança em branco)
1.–Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a parte devedora entrega à C, neste acto, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pela parte devedora e avalizada p[or, entre outros, os executados embargantes], autorizando desde já a C a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria C, tendo em conta nomeadamente o seguinte:
a)-a data de vencimento será fixada pela C quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a C decida preencher a livrança;
b)-a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas, encargos fiscais, incluindo os da própria livrança.”
6.–O embargante foi citado em 28/12/2017 e a embargante foi citada em 10/01/2018.
7.–A execução contra a S, foi extinta pelo AE por inutilidade superveniente da lide, face à dissolução e encerramento da liquidação da executada e ao requerido pela exequente.
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A fundamentação da decisão recorrida:
Descreve, nos termos habituais e com recurso à doutrina e jurisprudência correntes, o regime das livranças, dos avais, das livranças em branco, dos pactos de preenchimento e das prescrições, esclarece que os embargantes podiam opor à exequente a violação do acordo de preenchimento por também serem partes nele, lembra que a cláusula 16 invocada pelos executados apenas conferia uma faculdade, não um dever, de considerar a dívida vencida, no caso de incumprimento e de insolvência por parte da subscritora da livrança (S), e lembra também que os executados não referem a cláusula fundamental a ter em consideração para aferir da alegada prescrição, a cláusula 18ª, em que autorizaram a C a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria C, tendo em conta nomeadamente que a data de vencimento será fixada pela C quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a C decida preencher a livrança.
E depois conclui:
É, portanto, desde a data de vencimento colocada pela C que se conta o prazo de prescrição de 3 anos do art. 70, por força do art. 77 da LULL. Invoca neste sentido, os acórdãos do STJ de 19/06/2019, proc. 1025/18.5T8PRT.P1.S1, do TRC de 14/12/2020, proc. 4161/18.4T8PBL-A.C1, e do TRC de 18/02/2021, proc. 51/19.1T8SRE-B.C1.
Posto isto, temos que a data de vencimento da livrança era 14/02/2017 e a execução foi proposta em 18/05/2017, pelo que o prazo dos 3 anos para a prescrição não havia decorrido, aquando da propositura da execução.
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Apreciando

Quanto ao argumento da resolução do contrato:
A posição dos executados baseia-se em vários erros de direito: só poderia ser como eles defendem se (i) um contrato se resolvesse automaticamente com o incumprimento definitivo, ou se (ii) o incumprimento definitivo fosse o mesmo que a resolução do contrato, ou se (iii) o incumprimento definitivo fosse o mesmo que a ultrapassagem do prazo de cumprimento do contrato, independentemente da natureza desse prazo, sendo que nada disto é assim, como logo decorre dos artigos 808/1 e 801 do CC:
Art. 808 do CC: 1.- Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
Art. 801 do CC: 1.-Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. 2.-Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.

Mora/atraso/não cumprimento no tempo devido, incumprimento definitivo, resolução do contrato, são tudo coisas diferentes.

Como no caso apenas se poderia dizer que a S deixou de cumprir as suas obrigações para com a C em Agosto de 2010 e que em 05/01/2013 já tinham decorridos os 48 meses previstos no contrato, de 05/01/2009, para pagamento das prestações acordadas (factos que não constam dos provados mas que podem ser acrescentados aos mesmos ao abrigo do disposto nos arts. 663/2 e 607/4 do CPC, por as partes estarem de acordo com eles), apenas se pode falar numa situação de incumprimento/mora (porque presumivelmente culposa: art. 799/1 do CC). Não se demonstra, pois, um incumprimento definitivo, nem, muito menos, uma resolução do contrato.

Em suma: sendo a tese dos executados a de que a livrança está prescrita porque a data de vencimento que lhe devia ter sido aposta era a data da resolução do contrato, não se provando, sequer, a data da resolução do contrato - nem há sequer factos que indiciem que o contrato foi resolvido -, a tese não pode ser aplicada, o que basta para a improcedência dos embargos. O mesmo vale, aliás, para a data do incumprimento definitivo, já que também não há dados para se saber quando ele ocorreu, sendo que a dissolução e liquidação da sociedade foram apenas registadas em 2016.
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Da situação de insolvência não declarada:
Os executados também tinham defendido que a data da livrança devia ter sido a data da insolvência da S ainda que não judicialmente declarada. Mas tinham invocado tal situação sem terem alegado quaisquer factos que permitissem o preenchimento daquele conceito técnico jurídico (insolvência - o que implicava a ineptidão da petição com base nesse fundamento) e alegando 3 factos que não implicavam tal conclusão (os referidos na parte ii da síntese feita por este acórdão da petição de embargos). Como os executados deixaram cair, no recurso, esta via de sustento da sua posição (não consta do recurso, sequer uma vez, a palavra insolvência), não se vai desenvolver mais a questão, sem deixar de se dizer que o argumento era manifestamente improcedente, pelas razões dadas pela sentença recorrida:A C poderia considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento, em caso de insolvência da parte devedora, mas não era obrigada a fazê-lo.
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A tese defendida por Carolina Cunha, citada pelos executados, qual seja, em síntese, de que a livrança em branco prescreve no prazo de 3 anos sobre a data em que o credor estava legitimado para preencher a data de vencimento, isto é, a partir da resolução do contrato fundamental, foi seguida por dois do TRG, do mesmo relator, um de 20/10/2016, proc. 460/11.4TBGC-A.G1, e outro de 16/11/2017, proc. 945/11.2TBGMR-A.G1, mas em ambos os casos o preenchimento não foi considerado abusivo e os embargos foram julgados improcedentes, e por dois acórdãos do TRC, um de 28/11/2018, proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1 (revogado pelo ac. do STJ já referido acima), e outro de 11/06/2019, proc. 5046/16.4T8CBR-A.C1, e também por um parecer de Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira, publicado a 23/01/2022 em https://www.revistadedireitocomercial.com/aval-e-prescricao, onde se acrescenta o argumento da declaração da insolvência. O relator deste acórdão, num despacho de 02/04/2018, proferido no proc. 23599/15.2T8LSB-A, para evitar decisões-surpresa, disse que, entre outras, também ia ser ponderada esta tese, o que acabou por não ter de fazer por a exequente ter desistido do recurso que tinha interposto de um saneador-sentença que, com fundamento em abuso de direito, tinha recusado à exequente o direito aos juros de mora incorporados no título, seguindo um ac. do TRL de 16/01/2001, publicado na CJ, I, páginas 81 a 84.

Mas tal tese tem sido reiteradamente afastada pela jurisprudência do STJ e das Relações, nos termos expostos no saneador sentença recorrido, baseado nos acórdãos que cita.

No mesmo sentido, para além ainda dos citados pela exequente, um de 2015 e outro de 2019 [este último, de 04/07/2019, proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, diz: III.-Quanto à questão do preenchimento abusivo ou indevido das livranças dos autos, tendo os pactos de preenchimento autorizado a exequente embargada [C] a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora “ou para efeitos de realização do respectivo crédito”, não é possível concluir-se que aquela – ao apor nas livranças uma data mais de três anos ulterior em relação à declaração de insolvência da devedora, e alguns meses anterior à acção executiva – tenha incorrido em preenchimento abusivo. IV.-Acresce que, mesmo que os termos dos pactos de preenchimento dos autos não atribuíssem à exequente tal margem de discricionariedade, atento o regime normativo da prescrição, sempre seria discutível se o simples decurso do tempo sem exigir o cumprimento das obrigações bastaria para configurar uma situação de abuso do direito. [no texto do acórdão diz-se: Por outras palavras, a ampla margem de discricionariedade concedida à portadora das livranças nos respectivos pactos de preenchimento não permite considerar-se verificado o invocado preenchimento abusivo]], vejam-se ainda os acórdãos do STJ de 19/10/2017, proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1, de 24/10/2019, proc. 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2, 24/10/2019, 295/14.2TBSCR-A.L1.S1, de 10/12/2019, proc. 814/17.2T8MAI-A.P1.S2, e de 20/04/2021, 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1, para citar apenas os mais recentes, sendo que todos eles invocam muitos outros no mesmo sentido, tal como já o tinham feito os dois acórdãos do TRC citados pelo saneador sentença recorrido.

Esta jurisprudência uniforme e reiterada no STJ e quase uniforme e reiterada nas Relações (no sentido contrário subsiste apenas um acórdão de pé e o mesmo era insusceptível de recurso) impede, tendo em conta a norma do art. 8 do CC, que possa haver acórdãos isolados a seguir, sem argumentos novos, a tese em causa.
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O ac. do STJ de 30/04/2002, invocado pelos executados não serve para a defesa da tese deles, pois que, no caso desse acórdão STJ havia um pacto de preenchimento que foi interpretado como pondo em alternativa duas hipóteses para a concretização da data de vencimento: ou a contar da mora, ou a contar do incumprimento. O ac. do STJ diz que tendo o credor usado da 2.ª alternativa, tinha que inscrever a data do incumprimento definitivo. Portanto, era o acordo de preenchimento que obrigava a colocar a data do incumprimento definitivo.
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O mesmo se passa com o ac. do TRL de 10/11/2005, também invocado pelos executados, pois que neles se considerou que a expressão, “‘quando entendesse’, mostra-se, como resulta da conjugação dos n.ºs 2 3 da referida cláusula, limitada no tempo, pela imposição contratual de o fazer, até ao fim do contrato acrescido das eventuais renovações requeridas e aceites pela exequente. Assim, […], a interpretação da cláusula 6.ª que contém o acordo de preenchimento da livrança, não poderá ser outro que não fosse no sentido de que o preenchimento da livrança estava delimitado no tempo pelo acordo do seu preenchimento, e que por ter havido apenas uma única renovação do contrato, levada a efeito nos termos da cláusula 2.ª, a livrança deveria ter sido preenchida efectivamente até ao dia 28/09/1997.” Ou seja, resultava do acordo de preenchimento a data com que devia ter sido preenchida a letra e ela não foi aposta na livrança em branco em violação do pacto de preenchimento.
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Da arbitrariedade do critério para o preenchimento do título com a data
Voltando à jurisprudência reiterada do STJ e das Relações, repara-se que ela parte do pressuposto de que a data de vencimento foi colocada na livrança conforme um critério constante do acordo de preenchimento da livrança.
Esse critério de preenchimento é, nos casos mais desenvolvidos, do tipo daquele que se verifica nos autos: os executados autorizaram a C a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria C, tendo em conta nomeadamente o seguinte: (a) a data de vencimento será fixada pela C quando, em caso de incumprimento pela parte devedora das obrigações assumidas, a C decida preencher a livrança.
Este critério de preenchimento deixa ao arbítrio (a ampla margem de discricionariedade de que fala o ac. do STJ de 04/07/2019 citado acima) do credor a escolha da data de vencimento (o ac. do STJ de 03/05/2001 descreve a situação nesses termos: deixada ao critério do credor, na pág. 1044, e deixado ao arbítrio do credor, na pág. 1045, e foi anotado por Menezes Cordeiro sem reservas quanto ao ponto, na ROA 2001, II, págs. 1051-1052, precisamente sobre o título de Livrança em branco, pacto de preenchimento), o que, tendo em conta o que é dito pela generalidade da doutrina quanto à questão da determinabilidade da prestação, a propósito dos artigos 280/1 e 400 do CC (por exemplo, no âmbito deste tipo de questões, Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, 2016, Almedina, págs. 195 a 199, Jorge Morais Carvalho, Os limites à liberdade contratual, Almedina, 2016, págs. 53 a 73, especialmente páginas 62 a 64, e 75 a 102; Sara Aleixo, O aval cambiário dos sócios em título em branco, RDS VIII (2016), 3, 611-641, especificamente 635-637; genericamente, Fernando Ferreira Pinto, no Comentário ao CC, páginas 35 e 37: “atendendo à mencionada articulação do regime do art. 280 com o do art. 400, é entendimento generalizado da doutrina e na jurisprudência que a prestação indeterminada não é susceptível de ser determinada por recurso a tais critérios [isto é, por recurso ao mero arbítrio de uma das partes ou de terceiro (arbitrium merum)” […] não é permitido sujeitar a determinação ao total arbítrio da pessoa designada”, com todas as referências doutrinárias necessárias], levaria, de uma forma ou de outra, à nulidade de tal cláusula.

Neste sentido, com desenvolvimento, veja-se o parecer citado de Heinrich Hörster e Maria Emília Teixeira.

Em quase todos os acórdãos do STJ referidos e nos acórdãos das Relações que se leram, não se explica porque é que não se considera que tal cláusula é nula.

Há, no entanto, um acórdão do STJ que lembra, para aplicação à questão, a regra que consta do art. 777/3 do CC, a qual dispõe o seguinte: Se a determinação do prazo for deixada ao credor e este não usar da faculdade que lhe foi concedida, compete ao tribunal fixar o prazo, a requerimento do devedor.

Quer isto dizer que são coisas diferentes a determinabilidade da prestação e a determinabilidade da data de vencimento e que quanto a esta se admite que ela seja deixada ao credor, sem critério, por isso ao seu arbítrio, por existir o remédio referido (do art. 777/3 do CC). Ou seja, a solução do art. 280/1 do CC não é aplicável quanto aos elementos do contrato em que a própria lei resolve o problema posto pela falta de concretização da forma como eles serão determinados.
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Nada disto prejudica a hipótese de, neste tipo de casos, se poder verificar uma situação de abuso de direito (art. 334 do CC - como no caso referido acima em que foi proferido o despacho deste relator, em relação ao qual, hoje, o relator entende que provavelmente seria de confirmar o saneador sentença recorrido com o fundamento do abuso de direito, sem recurso às vias mais específicas que foram então sugeridas) quer no preenchimento do título quer no subsequente accionamento dele (como nos casos do ac. do TRL de 2001, publicado na CJ2001, e do STJ de 05/06/2018, proc. 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1), posto que estejam provados os respectivos pressupostos, o que no caso não está minimamente indiciado, desde logo porque os executados se baseavam em duas hipóteses que não se verificavam (resolução do contrato e situação de insolvência de facto).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras) pelos executados.


Lisboa, 28/04/2022


Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas