COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CUMPRIMENTO DE CONTRATO DE SEGURO DE GRUPO/VIDA
JUÍZO DO DOMICÍLIO DO AUTOR/CREDOR
Sumário

O juízo do domicílio do autor (credor) é territorialmente competente para conhecer de uma ação em que este (pessoa segura) pretende o cumprimento de contrato de seguro de grupo/vida, ligado a crédito bancário à habitação, exigindo do segurador o pagamento à mutuante/tomadora da quantia em dívida à data da incapacidade do autor, bem como a restituição das quantias indevidamente por si pagas à mutuante e ao segurador.

Texto Integral


Processo 5277/20.2/8CBR.C1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA, residente em ..., veio propor ação de processo comum contra C..., S.A. e F..., S.A., alegando, em síntese:

            Ter sido celebrada no dia 23 de Abril de 2007, escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, na qual figurou como segundo outorgante, assim como a sua mulher, tendo comprado aos 1ºs outorgantes, o prédio urbano – composto de casa de habitação de rés-do-chão,  ... e sótão, sito na Rua das Parreiras, nº 25, freguesia ..., concelho ....

Para adquirir o referido prédio, contraiu empréstimo junto da 1ª  R. que igualmente interveio na escritura.

No documento complementar anexo à escritura consta, nomeadamente, que os mutuários se obrigam a constituir seguro de vida cobrindo o risco de morte e invalidez permanente, pelo valor dos empréstimos e pelo seu prazo total, fazendo averbar nas respetivas apólices o interesse do Banco enquanto credor hipotecário e beneficiário irrevogável .

 Por contratos de seguro titulados pelas apólices nº ...27 e ...28, foram contratados com a Ré F... dois seguro do ramo Vida Grupo Risco, associados ao empréstimo hipotecário, figurando, designadamente como pessoa segura, o A., garantindo, durante o prazo de amortização do empréstimo, o pagamento ao beneficiário do total do capital em dívida em caso de morte ou de invalidez absoluta e definitiva da pessoa segura.

Aquando da celebração dos contratos de seguro, apenas foi explicado ao A. que a garantia desse seguro era concedida em caso de morte ou de invalidez da pessoa segura, caso em que a seguradora liquidaria ao banco o capital seguro que estivesse em dívida.

Não foi o A. informado que só se considerava existir invalidez absoluta e definitiva quando, cumulativamente, a pessoa segura/aderente ficasse completa e irreversivelmente incapacitada de exercer a sua profissão ou qualquer outra atividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões e necessitasse de assistência de uma terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária.

Nem a C..., S.A. nem a Ré F..., até à data da interposição da ação, entregaram ao A. as condições gerais e especiais das apólices, duplicado ou cópia, relativas aos seguros de vida celebrados.

 O A., à data da celebração do aludido contrato de seguro, era uma pessoa saudável.

Por parecer da Junta Médica do Ministério da Saúde (ARS ..., ...) realizada em 14 de Abril de 2016, o A. foi considerado incapaz, com um grau de desvalorização de 67,70%, encontrando-se reformado por invalidez desde 21.01.2018.
O A. padece de grave deficiência motora, tendo-lhe sido amputado um membro inferior. Exercia a profissão de operador de resíduo (operador de 1ª) na E..., S.A., competindo-lhe, na prática, aspirar e limpar as ruas, separar os resíduos, o que deixou de poder fazer, sofrendo  uma incapacidade total para o exercício da profissão habitual e necessitando de ajuda de terceira pessoa para as necessidades e cuidados que carece.

Em dia do mês de Outubro que não logrou precisar, o A. dirigiu-se junto da C..., S.A. solicitando o acionamento da apólice nº ...27.

A R. seguradora declinou a responsabilidade pelo pagamento à C..., S.A. da importância do capital do empréstimo, referindo que as apólices contratadas cobrem apenas Invalidez absoluta para a profissão ou atividade compatível (limitação funcional permanente e sem possibilidade de melhoria clínica que incapacita a pessoa para o exercício de atividade remunerada, necessitando de assistência de uma terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária), situação em que entendeu que o A. não sem encontrava.

A  2ª R. continuou a cobrar os prémios do seguro e as prestações do empréstimo continuaram a ser pagas à C..., S.A.. Em Outubro de 2019, a importância em débito à R. C..., S.A. era de € 41.951,03.

Pediu, a final, que:

a) fosse declarada inoponível ao A. e excluída do contrato a cláusula previstas nos respetivos contratos de seguro, na qual se refere que a apólice apenas garante invalidez absoluta e definitiva, considerando-se tal a limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria que incapacite a Pessoa Segura para o exercício de qualquer atividade remunerada, necessitando de uma terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária;

b) fosse a Ré Seguradora condenada a pagar à C..., S.A. a importância do empréstimo em débito em Outubro de 2019, no valor de € 41.951,03;

c) fosse a Ré Seguradora condenada a pagar/estornar ao A. os prémios de seguros pagos desde Outubro de 2019 até à liquidação do capital à C..., S.A., acrescidos dos juros de mora a contar da citação, importância a liquidar em incidente de liquidação ou em execução de sentença.

d) fosse a ré C..., S.A.. condenada a pagar/estornar ao A. as prestações pagas desde Outubro de 2019 até à liquidação do capital à C..., S.A., acrescidos dos juros de mora a contar da citação, importância a liquidar em incidente de liquidação ou em execução de sentença.

            O A. atribuiu à ação o valor de 41.951,03.

            As partes  foram notificadas para se pronunciarem sobre a competência territorial.

            Em resposta, o A. veio requerer a remessa dos autos ao Juízo Central Cível de Coimbra.

            Por despacho de 30.09.2021, foi declarado o Juízo Local Cível incompetente em razão do território, julgando-se verificada a exceção dilatória de incompetência relativa do Tribunal em razão do território, nos temos dos artºs 71° nº 1, primeira parte, 102°, 104° nº 1 a), 576º nº 1 e 577° alínea a), todos do Código de Processo Civil, ordenando-se a consequente remessa dos autos, após o trânsito em julgado, ao Juízo Local Cível de Lisboa, por ser esse o tribunal competente.

            P A. não se conformou e interpôs o presente recurso, onde concluiu as suas alegações do seguinte modo:

B1. A presente ação tem por objeto um contrato de seguro de vida celebrado entre o A. e a R. seguradora, nos termos do qual o beneficiário nomeado (a R. Banco) receberá determinada quantia em função da morte ou invalidez dele (A.), ou seja, estamos perante um contrato em benefício de terceiro. Ora, considerando que:

B2. (i) O A. é credor do R. banco relativamente à restituição do valor que pagou indevidamente a título de prestações de mútuo; (ii) nos termos do art. 444º CC, é outrossim credor da prestação da seguradora, não só porque efetivamente também é beneficiário dela (na medida em que por via da satisfação da prestação do beneficiário,

acaba desonerado) mas também porque está na sua disponibilidade exigir o cumprimento da obrigação; (iii) não vem alegada, por qualquer das partes, convenção

quanto ao local da prestação e (iv) o A. tem domicílio em Coimbra,

B3. O A. poderia, como o fez, propor a presente ação junto do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível (arts. 71º-1 CPC e 774º CC).

B4. Na verdade, o Tribunal a quo ao aplicar ao caso vertente o art. 80º CPC e, em consequência, julgar incompetente este Tribunal e determinar a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, violou as regras da competência territorial.

B5. Ao caso vertente é de aplicar o disposto nos arts. 71º-1 CPC e 774º CC e não o art. 80º CPC.

B6. Ante o exposto, deve o despacho saneador-sentença ser revogado e substituído por outro que, aplicando o disposto nos arts. 71º-1 CPC e 774º CC, determine o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo local cível como aquele competente para julgar e decidir da presente ação.

NORMAS VIOLADAS:

71º e 80º CPC

444º e 774º CC

Termos em que, na procedência do presente recurso, deverá o despacho saneador-sentença ser revogado, com as legais consequências e nos termos supra explanados.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu ato, em princípio delimitado pelo conteúdo do ato recorrido,

a questão a decidir é tão só a seguinte:

. se o juízo local de Coimbra é territorialmente competente para o conhecimento da ação instaurada pelo A.

           

            III – Fundamentação

            A situação factual é a supra descrita.

            É o seguinte o teor do despacho recorrido:

“Dispõe o artigo 80º, nº 1, do Código de Processo Civil, que não havendo especial repartição de competências, o tribunal competente para a ação é o tribunal do domicílio do réu. Assim sendo, conclui-se que este Juízo Local Cível é incompetente em razão do território.

Pelo exposto, declaro este Juízo Local Cível incompetente em razão do território, julgando verificada a exceção dilatória de incompetência relativa deste Tribunal em razão do território, nos temos dos artºs 71° nº 1, primeira parte, 102°, 104° nº 1 a), 576º nº 1 e 577° alínea a), todos do Código de Processo Civil, ordenando-se a consequente remessa dos autos, após o trânsito em julgado, ao Juízo Local Cível de Lisboa, por ser esse o tribunal competente.

Custas do incidente pelo autor, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal.”

           

Na decisão recorrida entendeu-se que não estando o caso em análise regulado nos artigos anteriores sobre competência territorial, aplicava-se ao caso a regra supletiva do artº 80º, nº 1 do CPC, nos termos do qual o tribunal competente é o tribunal do domicílio do réu e ordenou-se a remessa dos autos ao juízo local cível de Lisboa, localidade onde ambas as RR. têm a sua sede.

O apelante, entende que o tribunal competente é o juízo local cível de Coimbra, porquanto se aplica o disposto no artº 71º, nº 1 do CPC, nos termos do qual, quando o réu seja pessoa coletiva, como se verifica no caso, assiste ao A., nas ações destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, o direito de optar entre o tribunal do domicilio do réu e o tribunal onde a obrigação deve ser cumprida, no caso, o lugar do domicílio do credor ao tempo do cumprimento (artº 774º do CC), pelo que lhe assistia o direito de optar, como optou, pelo tribunal de Coimbra.

            Vejamos:
Nos presentes autos está em causa um contrato de seguro, tendo como segurado, o A., a R. F..., S.A., como  seguradora e a R. C..., S.A., como tomadora do seguro. O banco - mutuante - é o tomador do seguro, entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora,  sendo responsáveis pelo pagamento do prémio os segurados/mutuários do crédito concedido (seguro de grupo contributivo).  Os segurados são aqueles cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora depois da receção das declarações de adesão ao grupo - artº 1º, alíneas b, g) e h) do DL nº 176/95, de 26 de Julho, em vigor à data da subscrição do contrato. Atualmente o contrato de seguro de grupo encontra-se regulado no artº 76º e ss do DL 72/2008.
O banco é  o beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro  e é para ele que reverte a prestação a que o segurador, por força do contrato, se vincula, exceto se o capital seguro exceder o valor que lhe é devido, caso em que o excesso reverterá para o segurado ou, em caso de morte deste, para os seus herdeiros.
O contrato de seguro rege-se pelas estipulações, gerais e especiais, da respetiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência pelas disposições do DL 72/2008, diploma que se aplica ao conteúdo dos contratos que subsistam à data da sua entrada em  vigor (artº 2º, nº 1 do DL que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
A partir da adesão de um dos membros do grupo, constitui-se entre os vários intervenientes – segurado, tomador do seguro e segurador – uma relação trilateral, passando o contrato a regular os interesses de todas estas três partes.
Com a presente ação pretende o apelante a exclusão do contrato de uma cláusula por violação do dever de informação/comunicação, mantendo-se o demais convencionado e o cumprimento do contrato de seguro, mediante o pagamento à C..., S.A. do montante mutuado, em dívida à data da incapacidade, a restituição dos prémios pagos indevidamente à 2ª R.  e das prestações do empréstimo igualmente pagas indevidamente  à 1ª R.

            Assim, com a presente ação o A. pretende exigir o cumprimento do contrato de seguro, exigindo o cumprimento da obrigação assumida pela seguradora, pagando à mutuante, e, em consequência desse cumprimento, a restituição das quantias indevidamente por si suportadas.

Dispõe o artº 774º do CC se a obrigação tiver por objeto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efetuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.

Dispõe o artº 43º, nº 3 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que os tribunais judiciais de comarca possuem, em regra, competência na área das respetivas comarcas. Os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada (artº 80º, nº 2 da Lei 62/2013). São tribunais de competência especializada, designadamente, os juízos centrais cíveis e locais cíveis (artº 81º, nº 3, alíneas a) e b) da Lei 62/2013).

Compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00 (artº 117/1/alínea a) da Lei 62/2013.

Ora, tendo em conta o valor da ação, inferior a 50.000,00, o juízo local é o competente para a presente ação e não os juízos centrais de Coimbra, como a apelante veio defender no requerimento em que pronunciou sobre a competência territorial, na sequência de notificação para o efeito do tribunal de 1ª instância, posição que já não veio defender na apelação.

            Face ao exposto, residindo o A. (credor) em Coimbra e pretendendo obter o cumprimento do contrato, o juízo local de Coimbra é o competente para conhecer da presente ação.

            Sumário:

            (…).

                       

            IV – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam o despacho recorrido e declaram o juízo local de Coimbra competente para julgar a presente ação.

            Sem custas.

            Coimbra, 26 de abril de 2022