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PROCESSO DE INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
Sumário
Em processo de inventário, tendo sido impugnada a competência do cabeça de casal ao abrigo do disposto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea c), do CPC, cumpre averiguar a quem incumbe o cargo, nos termos previstos no artigo 2080.º do CC, não estando em causa apreciar a verificação de algum fundamento que imponha a remoção do cabeça de casal nomeado, nos termos previstos no artigo 2086.º do CC. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 4674/20.8T8STB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Setúbal
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
Nos presentes autos de inventário por óbito de (…) e de (…), intentados a 22-09-2020 por (…), o requerente foi nomeado cabeça de casal por despacho de 22-10-2020 (retificado por despacho de 03-02-2021).
Citado, o interessado (…) impugnou a competência do cabeça de casal nomeado, requerendo se proceda à nomeação do impugnante para o exercício do cargo, em substituição do cabeça de casal anteriormente designado.
Notificado para o efeito, o requerente (…) pronunciou-se no sentido do indeferimento da impugnação deduzida.
Por despacho de 15-04-2021, foi determinada a notificação do interessado (…) para apresentar articulado complementar, no qual concretize determinados pontos da matéria de facto alegada.
O interessado (…) apresentou articulado complementar e o requerente (…) apresentou resposta.
Foi produzida a prova apresentada.
Por despacho constante da ata de 13-09-2021, decidiu-se o seguinte: Pelo exposto, de acordo com os factos e normas legais citadas, decide-se julgar procedente o presente incidente e, em consequência: a) Invisto no cargo de cabeça de casal da herança deixada por morte de (…) e (…), o filho comum do casal (…), em lugar do filho inicialmente designado como cabeça de casal, (…). b) Concedo ao interessado (…), na qualidade de cabeça de casal, o prazo de trinta (30) dias para dar cumprimento ao disposto no artigo 1102.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Notifique-se.
Inconformado, o requerente (…) interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que julgue improcedente a impugnação deduzida, formulando as seguintes conclusões:
«Como já foi supra referenciado há erro; no Thema Decidendum; Erro na aplicação do n.º 3 do artigo 2080.º C. Civil— (…), irmão mais novo não viveu com a mãe o último ano de vida; Erro na apreciação da prova testemunhal falta de prova feita em sede de incidente de remoção de cabeça de casal. Não foi feita prova da alegada incompetência de (…) para o exercício do cargo de cabeça de casal, nem pelos depoimentos das testemunhas nem por qualquer outro meio.
Termos em que, V. Exas concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, deve ser declarada nula a sentença que nomeou (…) cabeça de casal; E reconduzido no cargo de cabeça de casal (…).»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- impugnação da competência do cabeça de casal.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2. Fundamentos
2.1. Fundamentação de facto
Factos considerados provados em 1.ª instância:
1) … e …, casados entre si, faleceram respetivamente em 19/10/2008 e em 25/03/2016.
2) O referido casal deixou a suceder-lhe os seguintes filhos:
a) …, nascido a 23/10/1947; e
b) …, nascido a 07/09/1958;
3) Em 04/07/2018, (…) promoveu, junto da Conservatória do Registo Civil de Setúbal, o procedimento simplificado de habilitação de herdeiros de (…), onde declarou ser o cabeça de casal da referida herança.
4) … promoveu ainda, em 17/09/2020, requerimento para abertura de processo de inventário notarial para partilha da herança deixada por óbito dos seus pais, junto do Cartório Notarial de (…), em Setúbal.
5) Em 22/09/2020, (…) impulsionou o andamento dos presentes autos de inventário, onde declarou, sob compromisso de honra, ser cabeça de casal da herança deixada por óbito de seus pais.
6) Após o óbito de (…), (…) manteve as suas rotinas quotidianas, mas passou a pernoitar em casa do seu filho (…).
7) A partir de data não concretamente apurada, mas cerca do ano de 2011 ou 2012, (…) passou a residir, com caracter de permanência, junto do seu filho (…), onde lhe passaram a ser assegurados os cuidados com a alimentação, higiene e, de um modo geral, todas as necessidades do seu dia-a-dia inerentes à sua condição, inclusive deslocações ao médico e medicação necessária.
8) O referido em 7) sucedeu até Fevereiro de 2015, altura em (…) se instalou num lar de idosos.
9) Pese embora, (…) continuou a receber a sua correspondência (contas e pensão) através do seu filho (…).
10) O acompanhamento e pagamentos necessários junto do lar de idosos eram assegurados por (…), que visitava e acompanhava a mãe num registo quase diário.
11) Desde data não concretamente apurada, (…) deixou de manter contacto e convívio com a sua mãe, que não procurava ou visitava e, inclusive, nunca a visitou no período em que esta permaneceu no referido Lar de idosos.
12) Assim como não a visitou quando foi hospitalizada no período que precedeu a sua morte.
13) E, embora se tenha feito representar, não foi ao seu funeral.
14) … nunca pagou quaisquer dívidas da herança.
15) … suportou o funeral de (…), com o custo de € 1.300,40 e suportou a taxa de colocação da sepultura no cemitério no valor de € 50,00.
16) … suportou o custo da campa da inventariada (…), no valor de € 1.250,00.
17) … suportou o IMI dos imóveis que integram a herança entre os anos 2009 e 2014, bem como os que se venceram após essa data.
2.2. Apreciação do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O apelante põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante do despacho recorrido, tecendo considerandos sobre a prova produzida e sustentando que não decorre dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas qualquer elemento demonstrativo da sua incompetência para o exercício do cargo de cabeça de casal.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o n.º 1 do artigo 640.º do CPC o seguinte: 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 165-166), além do mais, o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”.
Analisando as alegações de recurso apresentadas, verifica-se que o recorrente se limitou a tecer considerandos sobre a prova produzida, não especificando, no corpo das alegações ou nas respetivas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre quaisquer questões de facto, assim não tendo dado cumprimento aos ónus previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do mencionado artigo 640.º.
O incumprimento, pelo recorrente, de qualquer destes ónus previstos nas citadas alíneas a) e c), é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º, assim se encontrando afastada a possibilidade de a Relação convidar ao aperfeiçoamento das alegações, de forma a suprir tal omissão.
No caso presente, verificado o incumprimento pelo recorrente destes ónus – indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e da decisão que entende dever ser proferida sobre tais questões de facto –, cumpre rejeitar o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º.
Rejeita-se, assim, o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
2.2.2. Impugnação da competência do cabeça de casal
Nos presentes autos de inventário por óbito de (…) e de (…), falecidos, respetivamente, a 19-10-2008 e a 25-03-2016, em que o recorrente (…) foi nomeado cabeça de casal, vem posto em causa na apelação o despacho que julgou procedente a impugnação da competência do cabeça de casal, por se ter entendido que o cargo deve ser atribuído ao interessado (…), em consequência do que se investiu este interessado no aludido cargo, em substituição do cabeça de casal anteriormente nomeado.
Invocando o critério estatuído no artigo 2080.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, do Código Civil, a 1.ª instância considerou que, sendo os interessados ambos filhos dos inventariados, o cargo deve ser deferido ao interessado (…), por ser aquele que está em melhores condições para o exercer, pelos motivos seguintes: A administração da herança, “até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal” (artigo 2079.º do Código Civil), cuja nomeação para o cargo, obedece às seguintes regras, previstas no artigo 2080.º do Código Civil: (…) À falta de cônjuge sobrevivo e testamenteiro, o exercício do cargo cabe, em princípio, aos herdeiros legais, onde se incluem os descendentes (cfr. artigo 2133.º do Código Civil). Neste caso, os interessados, na qualidade de filhos dos inventariados, são ambos descendentes dos inventariados em igualdade de grau, pelo que beneficiam da mesma proximidade derivada da relação de parentesco. Havendo o mesmo grau de parentesco, «preferem» os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte (n.º 3) e só se ambos se encontrarem em circunstâncias iguais, prefere o herdeiro mais velho (n.º 4). Neste caso, importa saber se … (nascido a 07/09/1958), apesar de 11 anos mais novo que o seu irmão … (nascido a 23/10/1947), está em melhores condições objectivas e subjectivas para exercer o cabeçalato. A atribuição do cabeçalato ao herdeiro mais velho parte da “presunção genérica da maior sabedoria e conhecimento da vida que traz a experiência da idade”1. Todavia, importa perceber se a maior proximidade de (…) com a inventariada (espelhada nos factos provados), garante que nos termos da lei, deva ser ele o incumbido do cargo que agora contesta ao seu irmão. (…) Pois bem, no caso de (…), é evidente que a mesma foi residir com o seu filho (…), para a sua residência habitual. Contudo, o normal acontecer da vida (em face da sua então provecta idade), a partir de Fevereiro de 2015 ditou que passasse a permanecer num lar. Isso não significa que a sua residência-proximidade se haja transferido para o aludido lar, o que de algum modo é reconhecido pelo próprio interessado (…), que no seu requerimento inicial dá conta que os inventariados tiveram o último domicílio na “Rua (…), (…), 2950 Palmela”, apesar de ter passado os últimos anos de vida num Lar de Idosos. E assim tanto era que manteve o recebimento da correspondência junto do filho (…). De resto, atendendo aos factos demonstrados, parece-nos claro que é o interessado (…) quem se encontra em melhores condições para conduzir a melindrosa tarefa de exercer o cabeçalato, pois que desde os últimos anos de vida da sua mãe vinha actuando sobre o património, suportando as dívidas e garantindo o pontual cumprimento das obrigações da herança então aberta por óbito de seu pai: numa frase, era quem vinha exercendo o cabeçalato de facto, por força da relação de proximidade estabelecida. Do interessado (…), sobra apenas a sua idade como presunção de que se encontra em melhores condições para exercer o cargo. Uma presunção que não é inilidível em face da supletividade do artigo 2080.º do Código Civil, que é afastada ao ver-se que não mantinha qualquer relação de proximidade com a autora da herança (e, portanto, não pode afirmar melhor conhecer a situação do património hereditário) nem tão pouco cuidava da vida económica e patrimonial da inventariada nem da herança subsequente ao óbito desta. Fê-lo, pois, quem mais próximo estava e com maior conhecimento da realidade da vida dos autores da herança e do património e responsabilidades que estes deixaram. Portanto, o interessado que neste momento está em melhores condições para bem administrar e gerir o acervo até à sua partilha é (…), nos termos do artigo 2080.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3, do Código Civil, que dessa forma deve ser investido no cargo.
Discordando da decisão proferida, o apelante sustenta que não se verifica qualquer dos fundamentos de remoção do cabeça de casal previstos no artigo 2086.º, n.º 1, do Código Civil, designadamente o estatuído na alínea d) do preceito, isto é, revelar incompetência para o exercício do cargo. Mais defende que não se mostra preenchida a previsão do n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil, pelo que é aplicável o critério fixado no n.º 4 do preceito, nos termos do qual lhe incumbe o exercício do cargo de cabeça de casal, por ser o mais velho dos dois filhos dos inventariados.
Vejamos se lhe assiste razão.
Previamente à apreciação do objeto do recurso, cumpre determinar o regime aplicável.
Verificando que o processo foi intentado a 22-09-2020, após a entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13-09, que alterou o Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06) designadamente em matéria de processo de inventário e vigora desde 01-01-2020 (artigo 15.º), aplicando-se, entre outros, aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor (artigo 11.º, n.º 1), daqui decorre que é aplicável ao presente inventário o regime emergente do Código de Processo Civil, na redação introduzida pela citada lei.
Está em causa, no presente recurso, a impugnação da competência do cabeça de casal nomeado, deduzida pelo interessado (…) e julgada procedente pelo despacho recorrido, no qual se investiu este interessado no aludido cargo, em substituição do cabeça de casal anteriormente nomeado.
Sob a epígrafe Oposição, impugnação e reclamação, o artigo 1104.º do CPC (na indicada redação), dispõe o seguinte: 1 - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação: a) Deduzir oposição ao inventário; b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros; c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações; d) Apresentar reclamação à relação de bens; e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança. 2 - As faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo. 3 - Quando houver herdeiros legitimários, os legatários e donatários são admitidos a deduzir impugnação relativamente às questões que possam afetar os seus direitos.
Faculta o n.º 1 deste preceito aos interessados diretos na partilha e ao Ministério Público, quando tenha intervenção principal, a possibilidade de, no prazo de 30 dias a contar da citação, deduzirem oposição, impugnação e reclamação, designadamente com os fundamentos elencados nas suas várias alíneas, constando da previsão da alínea c), além do mais, a impugnação da competência do cabeça de casal.
Em anotação ao preceito, esclarecem António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 570) que “o fundamento da impugnação da competência do cabeça de casal consiste na preterição da preferência definida na escala prevista na lei substantiva para o desempenho do cargo (artigo 2080.º do CC), o que não se confunde com o pedido de substituição ou de remoção do cabeça de casal a que se reporta o artigo 1103.º”.
No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa / Carlos Lopes do Rego / António Abrantes Geraldes / Pedro Pinheiro Torres (O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Coimbra, Almedina, 2020, reimpressão, pág. 81) explicam que assiste aos interessados diretos na partilha e ao MP a faculdade de “impugnar a competência do cabeça de casal, demonstrando que, na escala definida pela lei substantiva (artigo 2080.º CC), tal tarefa deve ser atribuída a outrem”.
Tendo sido impugnada a competência do cabeça de casal ao abrigo do disposto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea c), do CPC, cumpre averiguar a quem incumbe o cargo, nos termos previstos no artigo 2080.º do CC, não estando em causa apreciar a verificação de algum fundamento que imponha a remoção do cabeça de casal nomeado, nos termos previstos no artigo 2086.º do Código Civil.
Assim sendo, mostra-se deslocada a argumentação apresentada pelo apelante, no sentido de demonstrar a não verificação do fundamento de remoção do cabeça de casal previsto no artigo 2086.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.
O artigo 2080.º do CC indica, por ordem decrescente de preferência, as categorias de pessoas a quem incumbe o cargo de cabeça de casal, dispondo o seguinte: 1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte: a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal; b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário; c) Aos parentes que sejam herdeiros legais; d) Aos herdeiros testamentários. 2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau. 3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte. 4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.
No caso presente, em que ambos os interessados são filhos dos inventariados, assim tendo o mesmo grau de parentesco, há que atender aos critérios de preferência fixados nos n.ºs 3 e 4 do preceito, dos quais se extrai que a preferência recai sobre os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte ou, em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.
Face à ordem de preferência definida pelo citado artigo 2080.º, relativamente aos critérios de designação das categorias de pessoas a quem incumbe o cargo de cabeça de casal, há que aferir se é de aplicar a regra prevista no n.º 3 ou, se esta for inaplicável, a estatuída no n.º 4 do preceito.
Assim sendo, cumpre apreciar se a factualidade provada permite considerar que o interessado (…) vivia com a falecida há pelo menos um ano à data da morte.
Provou-se que, após a morte do inventariado (…), ocorrida a 19-10-2008, a inventariada (…) passou a pernoitar em casa do interessado (…) e, a partir de 2011/2012, aí passou a residir permanentemente, junto deste seu filho, onde lhe passaram a ser assegurados os cuidados com a alimentação, higiene e, de um modo geral, todas as necessidades do seu dia-a-dia, inclusive deslocações ao médico e medicação necessária, situação que se manteve até fevereiro de 2015, ocasião em que se instalou num lar de idosos. Mais se provou que a inventariada continuou a receber a sua correspondência (contas e pensão) através do seu filho (…), o qual assegurou o acompanhamento da mãe e os pagamentos junto do lar de idosos, visitando-a e acompanhando-a num registo quase diário.
Face a esta factualidade, mostra-se acertada a decisão recorrida, ao considerar que a inventariada viveu com o interessado (…) desde 2011/2012 e que essa situação que se manteve até à sua morte, apesar de se ter instalado num lar em fevereiro de 2015.
Explicando a razão de ser do critério estatuído no n.º 3 do citado preceito, afirma-se no acórdão da Relação do Porto de 15-12-2021 (relator: Aristides Rodrigues de Almeida), proferido no processo n.º 959/21.4T8VNG-A.P1 (disponível em www.dgsi.pt), o seguinte: «Claramente a razão de que o herdeiro que viva com o inventariado há pelo menos um ano terá, em princípio, mais conhecimento da vida financeira e patrimonial do inventariado e, portanto, estará em melhores condições para exercer o cabeçalato. Se assim é na prática ou não é algo que pode variar de caso para caso, mas esse é o critério eleito pela norma legal». Acrescenta-se no aludido acórdão o seguinte: «(…) o critério do n.º 3 nada tem a ver com o conceito de domicílio e muito menos com o conceito de domicílio voluntário. O critério é apenas o de haver entre o inventariado e o herdeiro uma relação de vida em comum. Não é necessário, porque a norma não o exige, que estejamos perante uma vida em economia comum, basta que estejamos perante uma vida na mesma habitação, no mesmo espaço, no fundo uma situação de convivência diária, quotidiana, normal, na medida em que essa convivência permite a partilha de informações que agilizarão o exercício do cargo.».
No caso presente, dúvidas não há sobre a verificação de uma situação de convivência diária, quotidiana, entre a inventariada e o seu filho (…) desde que passou a viver em casa deste, em 2011/2012, situação que não se alterou de forma relevante a partir da instalação da inventariada num lar, em fevereiro de 2015, decorrendo da factualidade provada que se manteve tal convivência e a inerente partilha de informações, o que constitui o fundamento do critério em apreciação.
Nesta conformidade, é de aplicar a regra estatuída no n.º 3 do citado artigo 2080.º, o que determina a inaplicabilidade do critério definido pelo n.º 4 do preceito, cabendo ao interessado Fernando Marques o cargo de cabeça de casal, conforme decidiu a 1.ª instância.
Improcede, assim, a apelação, cumprindo confirmar a decisão recorrida.
Em conclusão: (…)
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Évora, 28-04-2022
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)