RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
Sumário


Constatando-se que uma mesma questão de direito se mostra decidida em dois acórdãos em sentido dissonante – a questão de saber se uma faca de ponta e mola com lâmina inferior a 10 cm preenche ou não o conceito de arma branca – deve ser rejeitado o recurso para fixação de jurisprudência, nos termos dos arts. 440.º, n.os 3 e 4 e 441.º, n.º 1, do CPP, ao verificar-se que tais decisões não foram proferidas no domínio da mesma legislação.

Texto Integral

1. Relatório


AA vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação ... de 6/12/2021, proferido no proc. n.º 38/20.1T9VNC, que não deu provimento ao recurso que havia interposto da sentença proferida a 15/06/2021, pelo Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que o condenara como autor de um crime de detenção de arma proibida do art. 86.º, n.º 1, al. d) do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações da Lei n.º 50/2013, de 24 de Julho, em concurso aparente com uma contraordenação de detenção ilegal de arma, do art. 97.º, n.º 1 do mesmo diploma, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), no montante global de € 1.020,00 (mil e vinte euros).

  Por considerar existir uma “oposição de julgados”, veio o arguido interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com os seguintes fundamentos:

“1º) - Atenta a circunstância, nestes autos, de se tratar de acórdão proferido em sede de recurso, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que confirmou a sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica ..., não há a possibilidade legal de ser instaurado qualquer outro recurso ordinário quanto a tal decisão.

2º) - Sucede, porém, que sobre a mesma questão de direito – saber se uma faca de ponta e mola com lâmina inferior a 10 cm preenche o conceito de arma branca - e no domínio da mesma legislação [ alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, a Relação de Coimbra (acompanhada por dois arestos da Relação do Porto acima identificados), no douto aresto, já transitado em julgado – anteriormente ao “acórdão recorrido” –, no processo :1950/06.6PBAVR.-C1 , publicado em www.dgsi.pt, decidiu que:

- faca de abertura automática ou faca de ponta e mola é também, e antes de mais, uma arma branca, para os efeitos previstos no RJAM. Porque a arma branca exige uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm, também a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, para efeitos penais, tem que estar dotada de lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm.

3º) - Ora, resulta assim manifesta a contradição que ocorre entre o douto “acórdão recorrido”, proferido nos presentes autos nº 38/20.1T9VNC-G1 e o citado “acórdão fundamento”, proferido anteriormente, da Relação de Coimbra, proferido em 01-04-2009, proc. 1850/06PBAVR.C1, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, já transitado em Julgado decisão esta que aqui se indica como fundamento da oposição e que, salvo melhor opinião, se tem por verificada, carecendo de decisão que uniformize a jurisprudência, tendo presentes, quer a factualidade considerada como provada, quer a decisão da questão de direito sub judice no indicado processo em que veio a ser proferido o “acórdão fundamento”. a) – Nota: nos presentes autos o arguido tinha uma faca de ponta e mola com uma lâmina de 8 cms. no processo/ acórdão fundamento, o arguido tinha uma navalha de ponta e mola de 9 cms.

4º) - Concretamente quanto à decisão da questão de direito sub judice, foi decidido o seguinte pelo “acórdão fundamento”:

A navalha detida pelo arguido tem uma lâmina com 9 cm de comprimento a qual é encerrada no cabo respectivo, e armada e exibida de modo instantâneo, através do accionamento de uma mola sob tensão, através da pressão de um botão. O seu modo de funcionamento é pois, idêntico ao de qualquer faca de abertura automática ou faca de ponta e mola. Porém, o tamanho da lâmina, porque inferior a 10 cm de comprimento, retira-lha a qualidade de arma branca e consequentemente, a qualidade de faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, face às disposições conjugadas do art. 2º, l) e ar), do RJAM.

Desta forma, a detenção da referida navalha pelo arguido é insusceptível de preencher o tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d), do RJAM.

Em conclusão, por falta de preenchimento do tipo, impõe-se a absolvição do recorrente.”

5º) - Com a decisão proferida pelo acórdão recorrido terá, salvo melhor opinião, sido violada a interpretação correta e o efetivamente previsto nas normas constantes do artigo 86, nº1 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, ainda que com as sucessivas alterações); bem como: A) al. m) do nº 1 do artigo 2º do RJAM “m) «Arma branca» todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;” - não consta: “independentemente das suas dimensões” - , conjugado com o artigo 86/1, d) do RJAM, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, Lei 50/2019, de 24 de Julho;

B) artigo 20º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL 433/82, de 27 de Outubro, em conjugação com o artigo 86/1, d) do RJAM e o artigo 97/1 do mesmo diploma legal;

C) artigo 14º/1, artigo 26º e artigo 23º, todos do Código Penal, em conjugação com al. m) do nº 1 do artigo 1º do RJAM, conjugado com o artigo 86/1, d) do RJAM;

6º) - Por consequência, e perante tudo quanto ficou supra exposto pelo recorrente nos presentes autos, verifica-se uma manifesta contradição ou oposição entre o “acórdão recorrido” e o douto “acórdão fundamento”, já transitado em julgado, e não sendo admissível recurso ordinário daquele “acórdão recorrido”, posto o que deverá ser admitido o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, tal como previsto nos nºs 1 e 2 do art. 437º do Cód. Proc. Penal, mais se devendo, a final, no entender dos recorrentes, proferir decisão que fixe jurisprudência nos seguintes termos:

A faca de abertura automática ou faca de ponta e mola é também, e antes de mais, uma arma branca, para os efeitos previstos no RJAM. Porque a arma branca exige uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm, também a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, para efeitos penais, tem que estar dotada de lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm.

A faca de abertura automática ou faca de ponta e mola quando o tamanho da lâmina, seja inferior a 10 cm de comprimento, não preenche o conceito e qualidade de arma branca e consequentemente, a qualidade de faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, face às disposições conjugadas do art. 2º, l) e ar), do RJAM.

TERMOS EM QUE, requer-se, a V. Exas., seja admitido o presente recurso, seguindo-se os demais trâmites processuais e, a final, ser proferida decisão que fixe jurisprudência nos seguintes termos: A faca de abertura automática ou faca de ponta e mola é também, e antes de mais, uma arma branca, para os efeitos previstos no RJAM. Porque a arma branca exige uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm, também a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, para efeitos penais, tem que estar dotada de lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm.

A faca de abertura automática ou faca de ponta e mola quando o tamanho da lâmina, seja inferior a 10 cm de comprimento, não preenche o conceito e qualidade de arma branca e consequentemente, a qualidade de faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, face às disposições conjugadas do art. 2º, l) e ar), do RJAM.”

O magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1. Não se encontra presente um dos indispensáveis requisitos, nos termos do art.º 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para a fixação de jurisprudência, por os acórdãos, fundamento e recorrido, terem sido proferidos na vigência de diferentes domínios legislativos, com evidente disciplina jurídica diversa, quer em função de interpretação meramente gramatical, quer em termos de hermenêutica apoiada pelo elemento histórico;

2. Na verdade, o acórdão fundamento foi proferido na vigência da redação inicial da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, enquanto o acórdão recorrido já contou com todo um decantado lastro jurídico evolutivo definido pela alteração trazida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de maio, sobretudo a propósito do conceito de «arma branca», que, com a nova redação da al. m) do n.º 1, do art.º 2.º, alargou a sua amplitude, através do segmento que acima se destacou, possibilitando um outro enfoque interpretativo, de raiz histórica, e a inequívoca inclusão, na abrangência do tipo legal de crime, do instrumento versado nos autos ─ de resto com caraterísticas não inteiramente coincidentes com as do que constitui o objeto do acórdão fundamento ─, sendo certo que a ulterior alteração, emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07, não reduzindo a dita amplitude, manteve, outrossim, a pletora de instrumentos que passou a transcender a estreiteza da redação inicial da então alínea l) do n.º 1, do art.º 2.º da Lei.º n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, em que assentou o acórdão fundamento.

3. Por conseguinte, ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, o recurso deve ser rejeitado, nos termos do art.º 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.”

No Supremo, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu desenvolvido parecer referindo designadamente:

“3 - Como decorre do disposto nos artigos 439, nº 1, 441º, nº 1 e 442º, n.º 1, todos do CPP, a pronúncia neste momento processual deve incidir apenas sobre os pressupostos processuais comuns aos recursos ordinários – tais como a competência, legitimidade, tempestividade, regime e efeito – e sobre os pressupostos próprios deste recurso extraordinário – a efectiva oposição de soluções sobre a mesma questão de direito, em acórdão anterior. 

4 - O art. 437, do CPP, dispõe que: “1- Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar. 2- É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.” 

E o art. 438, nº 1, do mesmo código, estabelece que o “recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.”

5 - Assim, quanto aos pressupostos processuais comuns, afigura-se-nos que não se suscitam quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, quer no que respeita à legitimidade do recorrente, quer quanto à tempestividade do recurso, sendo que, nos termos do art.º 438º, n.º 3 do CPP, não tem efeito suspensivo e sobe nos termos indicados no art.º 439º n.º 2, do citado código.

Todavia o mesmo não ocorre quanto ao pressuposto próprio do recurso extraordinário, isto é, quanto ao pressuposto substantivo – a efectiva oposição de julgados.

6 - Assim e tal como bem nota, e demonstra, o Magistrado do Mº Pº no Tribunal da Relação ..., na resposta ao recurso que apresentou e que subscrevemos inteiramente, as decisões que o recorrente afirma estarem em oposição, são efectivamente divergentes, mas foram proferidas no âmbito de um quadro normativo diverso.

 Sendo certo que é requisito para que se verifique a oposição de julgados, como atrás se referiu, que às decisões esteja subjacente o mesmo quadro legislativo.

 “XI - O pressuposto substancial é a oposição de julgados entre os acórdãos em presença – art.º 437º n.º 1 e 3 do CPP –, a qual na lição deste Supremo Tribunal se verifica, e só se verifica, quando:

XII - Os dois acórdãos em conflito incidam sobre a mesma questão de direito, tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação e adoptem soluções opostas, pelo menos, divergentes.

XIII - A questão decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos e tomada a título principal, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas ou de contraposição de fundamentos ou de afirmações.

XIV - As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam substancialmente idênticos, por só assim ser possível aferir se para a mesma questão jurídica foram adoptadas soluções opostas”. (Ac. de 15/09/2021, proc. 303/12.1JACBR.P1-B.P1.S1 – 5ª sec)

Em conformidade, por não estarem preenchidos os pressupostos previstos no artigo 437.º do CPP, mormente a oposição de julgados, deve o recurso ser rejeitado, nos termos dos artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal..”

Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do CPP o recorrente nada mais disse.

Teve lugar a Conferência.

                                                              

2. Fundamentação

O recurso de fixação de jurisprudência encontra-se previsto no Capítulo I, do Título II, do Livro XIX do CPP, e os arts 437.º (Fundamento do recurso) e 438.º (Interposição e efeito) disciplinam os requisitos de natureza formal e substancial para a admissibilidade deste recurso extraordinário.

De acordo com estes preceitos legais, os requisitos formais do recurso de fixação de jurisprudência consistem na legitimidade do recorrente, na interposição no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, na identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento, com menção da sua publicação se estiver publicado), no trânsito em julgado também do acórdão fundamento.

Os requisitos substanciais consistem na existência de dois acórdãos que respeitem à mesma questão de direito e sejam proferidos no domínio da mesma legislação (sem ocorrência de alteração no texto da lei que regula a situação controvertida) e que assentem em soluções de sinal contrário sobre essa mesma questão de direito. E relativamente ao requisito da oposição entre soluções de direito, o Supremo consolidou jurisprudência no sentido de que essa oposição tem de definir-se a partir de uma identidade de facto, de uma homologia encontrada nas situações de facto apreciadas nos dois acórdãos. E ao que ora mais releva destacar, as soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito sem ocorrência de alteração no texto da lei que disciplina a situação ou a matéria concretamente controvertida.

Como se considerou no recente acórdão do STJ de 21.04.2021 (Rel. Nuno Gonçalves), mantendo uma jurisprudência do Supremo há muito uniforme, “o pressuposto material da identidade da questão de direito exige que: a. as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham consagrado soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; b. as decisões em oposição sejam expressas; c. as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões.” (itálico nosso)

O recorrente alega que o acórdão de que ora recorre contraria o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 1/04/2009, no processo 1850/06PBAVR.C1 , “sobre a mesma questão de direito - saber se uma faca de ponta e mola com lâmina inferior a 10 cm preenche o conceito de arma branca - e no domínio da mesma legislação - se uma faca com um lâmina de 8cms , só porque é de abertura automática, preenche o tipo previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro”.

 Argumenta que no acórdão recorrido se decidiu que “a letra da lei é clara no sentido de que na hipótese de arma com abertura automática, é irrelevante, para efeitos de qualificação legal o comprimento da respectiva lâmina, tendo considerado que se podem agrupar sob a designação de armas brancas:  os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm; independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões; as dissimuladas sob a forma de outro objecto e os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto- contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm, que não tenham afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção”.   Enquanto no acórdão fundamento se decidiu que: “Uma navalha cuja lâmina tenha um comprimento inferior a 10 cm, ainda que ela se encontre recolhida no cabo e deste possa ser extraída de forma instantânea, através do simples accionamento de uma mola sob pressão, não preenche o conceito de faca de ponta e mola para efeitos de preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, nº 1, d), do RJAM”.

No que ao quadro normativo se refere, o recorrente destaca o art. 86.º, n.º 1, al. d), do RJAM. Mas na aferição do requisito “estabilidade da lei” à luz da qual foram proferidas  as duas decisões em análise, cumpre convocar também o art. 2.º do mesmo diploma, norma que cura das “Definições legais”, necessárias à completude do tipo incriminador.

Na verdade, cumprindo verificar, a pedido do recorrente, se ocorre efectiva oposição de soluções sobre uma mesma questão de direito (se existe oposição de decisões sobre a questão concreta problematizada), e se essa questão envolve a análise do elemento típico  “arma branca” (do art. 86.º do RJAM),  encontrando-se a definição de arma branca no art. 2.º, então há que conhecer da estabilidade normativa  do art. 2.º do RJAM. E dessa observação constata-se que ocorreu uma alteração legislativa, relevante para a decisão do recurso.

Assim, na versão inicial da lei, versão à luz da qual se decidiu no acórdão fundamento, a redacção do art. 2.º, na parte que agora releva,  era a seguinte:

“l) 'Arma branca' todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões”.

Na versão dada pela Lei n.º 17/2009, de 06 de maio, a redacção passou a ser:

“m) «Arma branca» todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões”.

E actualmente a al. m é do seguinte teor:

“m) «Arma branca» todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.”

Do exposto constata-se que é de acompanhar o Ministério Público, quando  refere na resposta ao recurso: “o acórdão fundamento foi proferido na vigência da redação inicial da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, enquanto o acórdão recorrido já contou com todo um decantado lastro jurídico evolutivo definido pela alteração trazida pela Lei n.º 17/2009, de 06 de maio, sobretudo a propósito do conceito de «arma branca», que, com a nova redação da al. m) do n.º 1, do art.º 2.º, alargou a sua amplitude, através do segmento que acima se destacou, possibilitando um outro enfoque interpretativo, de raiz histórica, e a inequívoca inclusão, na abrangência do tipo legal de crime, do instrumento versado nos autos ─ de resto com caraterísticas não inteiramente coincidentes com as do que constitui o objeto do acórdão fundamento ─, sendo certo que a ulterior alteração, emergente da Lei n.º 50/2019, de 24-07, não reduzindo a dita amplitude, manteve, outrossim, a pletora de instrumentos que passou a transcender a estreiteza da redação inicial da então alínea l) do n.º 1, do art.º 2.º da Lei.º n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, em que assentou o acórdão fundamento.”

Daí que a Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo tenha também concretizado que “as decisões que o recorrente afirma estarem em oposição, são efectivamente divergentes, mas foram proferidas no âmbito de um quadro normativo diverso.   Sendo certo que é requisito para que se verifique a oposição de julgados, como atrás se referiu, que às decisões esteja subjacente o mesmo quadro legislativo”, concluindo depois que “por não estarem preenchidos os pressupostos previstos no artigo 437.º do CPP, mormente a oposição de julgados, deve o recurso ser rejeitado, nos termos dos artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441.º, n.º 1, do CPP.”

Não cumprindo sindicar a (in)correcção dos acórdãos nas soluções que seguiram, na estrita fiscalização da apodada oposição de julgados constata-se que a situação exposta não a concretiza, por falta do pressuposto substancial “decisões proferidas no domínio da mesma legislação”.


3. Decisão

Em face do exposto, por falta dos necessários requisitos substanciais, decide-se rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo arguido.

Pagará o recorrente 4 UC de taxa de justiça.


Lisboa, 16.03.2022


Ana Barata Brito, relatora

Maria Helena Fazenda, adjunta