PERÍCIA COLEGIAL
SEGUNDA PERÍCIA
INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL
Sumário

I - Constitui um exame médico-legal o exame pericial realizado na pessoa de um sinistrado de acidente de viação, para avaliação do dano corporal, no âmbito de um processo civil.
II - As perícias médico-legais são efectuadas, em regra, por um único perito, sendo-o em moldes colegais apenas nos casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada.
III – Nas situações de perícia colegial, esta é realizada por peritos médicos do quadro do INML ou contratados ou ainda acordados em sede de serviço universitário ou de saúde público ou privado; não é efectuada por peritos indicados ou nomeados nos termos do artº 468º do CPC.
IV – A realização de segunda perícia singular levada a cabo pelo INML não infringe os princípios constitucionais de acesso ao direito, de processo equitativo e de tutela jurisdicional efectiva.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães



I – Relatório;

Recorrente: Companhia de Seguros AA… SA;
Recorrida: BB…;

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Nos autos acção declarativa em processo ordinário que BB intentou contra Companhia de Seguros AA SA, veio esta interpor o presente recurso de apelação, por não se conformar com o despacho judicial que determinou a realização de segunda perícia no IML - Gabinete Médico-legal de Guimarães - por um único perito, mas distinto do que realizou a 1ª perícia.

Nas suas alegações, conclui da seguinte forma:
I- A perícia colegial requerida nos presentes autos, apesar de se médica, não é de clínica médico-legal e forense;
II- Não há, no caso, qualquer interesse de ordem pública (ou até de saúde pública, como é o caso das autópsias) que imponha a intervenção exclusiva do INML na realização do exame pericial pedido pelas partes num processo em que se discutem direitos disponíveis;
III- Assim, considera a Ré que não é aplicável ao exame solicitado o disposto na Lei 45/2004.
IV- O nº 3 do artigo 21º da Lei 45/2004 prevê a inaplicabilidade do nº 1 desse mesmo preceito “aos exames em que outros normativos legais determinem disposição diferente”;
V- O artigo 468º n.º 1 alínea b) do NCPC estabelece que “A perícia é realizada por mais de um perito, até ao número de três, funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares:..b) quando alguma das partes, nos requerimentos previstos no artigo 475º e no nº 1 do artigo 476.º requerer a realização de perícia colegial”, cabendo, nesse caso, ao tribunal iniciar um perito e a cada uma das partes outro (cfr artigo 468º n.º 2 do mesmo diploma);
VI- As normas da alínea b) do n.º 1 e do nº 2 do artigo 468º do Código de Processo Civil, constituem um dos “normativos legais” a que alude o n.º 3 do artigo 21º da Lei 45/2004 e que determinam disposição diferente ao princípio geral da intervenção nas perícias de apenas um só perito.
VII- É, precisamente, por força dessa ressalva que que a perícia médica a realização no âmbito de um acidente de trabalho, prevista no artigo 138º do CPT, continua a ser realizada em moldes colegiais, com dois peritos indicados pelas partes e um outro pelo tribunal (cfr 139º n.º 5); de facto, existe uma norma que prevê regime distinto ao da Lei 45/2004 - a do artigo 138º do CPT -, como ocorre nas perícias em direito civil por força dos artigos 468º n.º 1 alínea b) e nº 2.
VIII- Será, pois, no disposto no artigo 21º n.º 3 da Lei 45/2004, de 19 de Agosto, conjugado com as normas dos artigos 468º n.º 1 alínea b) e nº 2 do NCPC, que se encontrará fundamento para a admissão da perícia em moldes colegais, sendo um dos peritos indicados pelo tribunal (ou GML) e os dois restantes por cada uma das partes.
IX- Para que não seja totalmente desprovida de sentido a regra do n.º 3 do artigo 21º da Lei
45/2004, o disposto no n.º 4 desse artigo deverá ter a sua aplicação restringida às situações em que o Tribunal, oficiosamente, ordene oficiosamente a realização da perícia em moldes colegiais (sem que as partes o tenham requerido).
X- E mesmo que essa norma se aplicasse à situação em análise, sempre a mesma teria sido
tacitamente revogada pelo disposto no artigo 468º n.º 1 alínea b) do NCPC.
XI- A realização da perícia em moldes colegais mostra-se, no caso, imprescindível, pelas vantagens que acarreta na descoberta da verdade material;
XII- A unanimidade dos três peritos (um deles indicado pelo GML) quanto a uma determinada conclusão desse relatório pericial, ressalvando, claro, as situações de erro técnico (muito menos provável de ocorrer com a intervenção de três peritos), constituiria uma absoluta certeza por parte do Tribunal de que a situação médica a examinar foi bem avaliada e não oferece qualquer dúvida, nem mesmo para a parte quem, eventualmente, pudesse ser menos favorecida com tal conclusão.
XIII- Mesmo nas situações em que essa unanimidade não se verificasse, a intervenção de três
peritos seria útil para que o Juiz, na qualidade de perito dos peritos, se pudesse aperceber das diferentes perspectivas que a mesma situação médica pode merecer, podendo formar a sua convicção de uma forma mais sustentada ou até aprofundar as matérias em que se verificasse essa divergência, de forma a apreciar a eventual justificação para a ausência de unanimidade nas respostas.
XIV- A eventual discordância de um perito quanto às conclusões obtidas pelos demais, se
fundada em razões sólidas, seria decisiva para que o Tribunal pudesse evitar uma decisão baseada em pressupostos inexactos.
XV- Do mesmo passo, a presença e discussão entre os peritos, no decurso do próprio exame, dessas eventuais diferenças de perspectiva poderia ser suficiente para evitar conclusões erradas e ser
conducente à pretendida unanimidade.
XVI- De um perícia singular levada a efeito no IML não pode resultar qualquer divergência, nem o Tribunal poderá aperceber-se das diferentes perspectivas para a mesma realidade, com o inerente prejuízo para a boa decisão da causa e para as partes, a quem é imposta uma determinada conclusão, muitas vezes subjectiva, do perito, sem que surja qualquer voz dissonante que alertem para o seu eventual desacerto.
XVII- Sejam quais forem as regras processuais em vigor em cada momento, nunca será propósito do legislador impor ao Tribunal o julgamento dos factos com base numa perspectiva forçadamente limitada ou insuficiente da realidade relevante.
XVIII- Bem pelo contrário, o objectivo último do legislador é o de garantir uma solução justa para o litígio, mediante o apuramento, o tanto mais detalhado quanto possível, dos factos em análise.
XIX- Estando ao alcance do Tribunal ordenar uma diligência que garantirá essa maior amplitude na análise e, portanto, propiciará uma mais acertada constatação e avaliação dos factos médicos carecidos de prova, não vemos como possível que se possa rejeitar a sua realização nos moldes propostos.
XX- Atendendo ao relevante contributo que a discussão da questão médica a apurar por três peritos poderia trazer ao processo, será se convocar ainda a regra do artigo 547º do NCPC, como forma de admitir a perícia em moldes colegais, com intervenção de peritos das partes, o que expressamente se requer.
XXI- Entende a Ré que será ser desproporcionada e violadora do direito Constitucional ao “Acesso aos Tribunais e Tutela Jurisdicional Efectiva”, previsto no n.º 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente de direito a decisão judicial mediante “processo equitativo”, a interpretação das regras dos artigos 467º n. 3 do NCPC e 21º n.º 1, 3 e 4 da Lei 45/2004 no sentido de que não é admissível o deferimento de perícia médica em moldes colegais, com indicação dos peritos pelas partes, quando estas assim o requeiram.
XXII- Tal interpretação impede a intervenção na perícia de peritos indicados pelas partes, degradando, dessa forma, os seus meios de defesa de forma desproporcional, uma vez que as sujeita ao laudo de um médico que, apesar do seu grau de especialização, não está imune a cometer erros, nomeadamente ao nível do diagnóstico e avaliação, muitas vezes subjectiva;
XXIII- E impede que a parte exerça um efectivo contraditório no que toca ao desfecho da perícia, na medida em que lhe é vedada a possibilidade de ter um médico da sua confiança no momento em que são descritas as sequelas, cuja existência não pode, de outra forma, confirmar ou
infirmar.
XXIV- Pelo que a única interpretação de tais normas do novo Código de Processo Civil e da Lei 45/2004 consentânea com a indicada norma da Constituição da República Portuguesa é a de que, caso as partes o tenham requerido, a perícia, inclusive a primeira, pode ser realizada em moldes colegiais.
XXV- Devendo, nesse caso, ser conferido às partes, como vem sendo entendido pela jurisprudência já acima citada, a possibilidade de indicarem os seus peritos, em obediência do disposto no artigo 468º n.º 1 alínea b) e nº 2 do NCPC.
XXVI- A douta decisão sob censura violou as regras dos artigos 468º n.º 1 alínea b e nº 2 do NCPC e 21º n.º 3 da Lei 45/2004, de 19 de Agosto e fez uma interpretação que não respeita o direito consagrado no n.º 4 do artigo 20º da Constituição da república Portuguesa, das regras dos artigos 467º n.º 3 do NCPC e artigo 21º n.º1, 3 e 4 da Lei 45/2004, de 19 de Agosto.
Pede o provimento do recurso e que se ordene a realização de perícia médica na pessoa do A em moldes colegiais, com três peritos, um deles indicado pelo Tribunal e dois outros pelas partes.

Foram apresentadas contra alegações, pugnando-se pelo decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Delimitação do objecto do recurso: Questão a decidir.

a) Admissibilidade da segunda perícia, em moldes colegiais, nos termos requeridos pela demandada?

Fundamentação.
Para decisão do presente recurso há que atender à factualidade que resulta do relatório supra e ainda ao seguinte:
1. No despacho recorrido, proferido em 21.05.2015, decidiu-se o seguinte: “ (…)defiro à realização da segunda perícia, com o mesmo objecto, nos termos do disposto no art°. 487°/3 do Código de Processo Civil, a qual, contudo, será realizada igualmente no G. M. Legal de Guimarães, por um único perito, que não aquele que elaborou o relatório que consta dos autos (cfr. art°. 488°/ b). do C. P. Civil e art°. 21°/1 e 4 da Lei 45/2004, de 19 de Agosto; Ac. RP 4.2.2010, proc. 20l/06.8TBMCD.Pl, Ac. RP 9.06.2009, proc. 13492/05.2TBMAI.BPl, ambos em www.dge.mj.pt), indeferindo-se, por conseguinte, a requerida colegialidade”.
2. Nos autos, e por meio de requerimentos probatórios apresentado pela Ré/recorrente, veio esta requerer a sujeição da Autora a exame médico, a realizar em moldes colegiais, indicando cada uma das partes o seu perito e o tribunal um terceiro, do INML (Instituto Nacional de Medicina Legal).
4. O requerimento probatório da recorrente foi apresentado em 28 de Abril de 2015.

II) O DIREITO APLICÁVEL

Estatui o artº 341º do Código Civil (CC) que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Nos termos dos artigos 388º do CC, a prova pericial tem por fim a percepção ou a apreciação de factos por meio de peritos quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem ou quando os factos relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial.

A apelante centra o objecto de recurso em três ordens de razões:
- A perícia colegial requerida, apesar de ser médica, não é de clínica médico-legal e forense, pelo que não se impõe a intervenção exclusiva do INML, sendo inaplicável ao exame solicitado o disposto na Lei nº 45/2004 de 19 de Agosto.
- A perícia singular levada a efeito no IML, ao invés da perícia colegial com indicação de peritos pelas partes, não comporta qualquer divergência, nem o Tribunal poderá aperceber-se das diferentes perspectivas para a mesma realidade, com o inerente prejuízo para a boa decisão da causa.
- É desproporcionada e violadora do direito constitucional de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efectiva, previsto no n.º 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente de direito a decisão judicial mediante “processo equitativo”, a interpretação das regras dos artigos 467º, nº 3, do NCPC e 21º n.º 1, 3 e 4 da Lei 45/2004, no sentido de que não é admissível o deferimento de perícia médica em moldes colegais, quando requerida pelas partes.

No caso em apreço, a perícia colegial foi requerida pela ora apelante na vigência já do CPC actual, introduzido pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho (NCPC).
O procedimento da prova pericial está regulado nos artºs 467º a 489.º do NCPC (no CPC revogado nos artºs 568.º a 591.º).
Nos termos do disposto no art.º 467.º n.º1, do NCPC (anterior art.º 568.º), a perícia é requisitada pelo tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado, ou, quando tal não seja possível ou conveniente, realizado por um único perito, nomeado pelo juiz de entre pessoas de reconhecida identidade e competência na matéria em causa. Havendo acordo das partes sobre o perito a designar, deve o juiz nomeá-lo salvo se tiver razões para pôr em causa a sua idoneidade.
Mas a perícia pode ser colegial quando o juiz oficiosamente o determine, por entender, que a mesma reveste especial complexidade, ou exige conhecimento de matérias distintas, quer quando alguma das partes o requeira (art.º 468.º do NCPC, correspondente ao art.º 569.º n.º 1). Neste caso, a mesma é realizada por dois ou três peritos.
Quando a prova pericial colegial tenha sido requerida por alguma das partes, podem estas acordar na nomeação dos peritos; não havendo acordo, cada parte escolhe os seus peritos e o juiz nomeia o terceiro (n.º 2 do mesmo artigo).

No que respeita à segunda perícia, rege o art.º 487 (anterior 589.º), que, qualquer das partes pode requere-la, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, sendo que a mesma também pode ser ordenada oficiosamente pelo tribunal quando a repute necessária ao apuramento da verdade.

O regime da segunda perícia rege-se pelas disposições aplicáveis à primeira, com as seguintes ressalvas:
a) Não pode intervir na segunda perícia o perito que tenha participado na primeira;
b) Quando a primeira o tenha sido, a segunda perícia será colegial, tendo o mesmo número de peritos daquela.

Anote-se que, no pretérito CPC determinava-se que a segunda perícia seria em regra colegial, excedendo o número de peritos em dois o da primeira, cabendo ao juiz nomear apenas um deles (cfr. art.º 590.º al b).
Mas também se entendia que, mesmo dispondo a lei, no domínio da redacção anterior, que a segunda perícia era em regra colegial, da citada norma, resultava, desde logo, que, apesar de se instituir como regra a perícia colegial (no que respeita à 2ª perícia), não era obrigatório que assim fosse e, portanto, a realização de uma 2ª perícia por um único perito foi admitida e consentida pelo legislador.

Sendo estas as regras genéricas de procedimento da prova pericial em matéria processual civil, considerou-se no despacho recorrido que "da conjugação do disposto no artigo 467°/1 e 3 do C. P. Civil com o art°. 21 ° da Lei 45/2004 resulta que, apenas por lei especial relativa a perícias e exames médicos, são afastadas as regras gerais contidas no Código de Processo Civil, relativamente à realização das perícias médico legais, sendo em regra a primeira e a segunda perícias singulares. Sendo essa a regra - posição que é maioritariamente acolhida pela jurisprudência dos Tribunais Superiores (cfr., por exemplo, Ac. RG 5.06.2014, proc. 400/12.3TBVLN-A.G 1, disponível em www.gde.mj.pt) - é manifesto, também em face da redacção do n°. 4 do citado artigo 21 ° da Lei 45/2004, que não basta que uma das partes requeira a realização da perícia médico-legal em moldes colegais para que ela assim se realize. Ademais, entender-se que o n° 3 do art°. 21 ° da Lei 45/2004 ressalva expressamente as situações previstas no Código do Processo Civil em que é possível a perícia médico-legal colegial, seria esvaziar de sentido útil a norma do n°. 4 do mesmo art°. 21° que, referindo-se expressamente às perícias colegiais previstas no C. P. Civil, determina que as mesmas apenas sejam colegiais quando o juiz, na falta de alternativa, o justifique fundamentadamente. Por último, mesmo quando admissíveis, as perícias colegiais médico-legais e forenses estas não podem ser integradas por peritos indicados pela partes, nos termos do art° 468°/2 do C. P.Civil, já que tais perícias são efectuadas por médicos do quadro do Instituto ou contratados nos termos da referida lei (cfr. art°. 27°/1) ou, eventualmente, por docentes ou investigadores do ensino superior no âmbito de protocolos para o efeito celebrados pelo Instituto com instituições de ensino públicas ou privadas (cfr. art° 27°/2). Do que vem de se dizer, resulta o afastamento da possibilidade de deferir a indicação de um Sr. Perito pela Ré.".

Tal argumentação, conjugada com a alegação da recorrente, remete-nos para a abordagem da primeira questão recursiva acima enunciada: a perícia requerida é ou não de clínica médico-forense?
A recorrente defende que, muito embora seja uma perícia médica, não se trata de perícia médico-legal.
Discorda-se de tal.
Com efeito, perfilhando-se o entendimento plasmado no Acórdão deste Tribunal, proferido em 20/03/2014 (relatora a Exmª Desemb. Helena Melo), publicado em www.dgsi.pt: “É certo que a Lei 45/2004 não define o que se deve considerar como perícia médico-legal para os efeitos de aplicação do mesmo diploma. No entanto, contrariamente ao defendido pela apelante, e com o devido respeito por opinião em contrário, não entendemos que o seu regime não se aplique aos exames médicos a realizar no âmbito de um processo civil com vista a determinar as sequelas decorrentes de um acidente, o grau de incapacidade permanente, o rebate profissional, o período de incapacidade temporária e a data da estabilização médico-legal das lesões, objectivo que se pretende alcançar com a perícia requerida, face aos quesitos formulados pela apelante. Os exames médico legais não são apenas realizados em caso de morte em que se pretende saber a causa da mesma.
A Lei 45/2004 prevê diversas situações e não apenas a autópsia médico- legal, prevendo a realização de exames, perícias (21º/1/2 e 6º/1) e pareceres (artº 5/1). E prevê também expressamente a realização de exames no âmbito do CPC (nº 4 do artº 21º).
E também o Código Processo Civil faz menção expressa às perícias médico-legais e à legislação especial que as regulamenta, no nº 3 do artº 467º do CPC, pelo que se conclui pela aplicação da Lei 45/2004 aos casos como o presente.”
Esta Lei estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses.
Trata-se de lei especial e imperativa, aplicável a todas as perícias médico-legais.
Em suma, estamos, no caso concreto, perante perícia de clínica médico-legal, contrariamente ao expendido pela apelante.

Decorre também deste diploma que as perícias médico-legais são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal (art.º 2.º n.º 1 do citado Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses).
E, estando em causa uma segunda perícia médico-legal, há que ter em conta o preceituado no n.º 3 do art.º 467º do NCPC (anteriormente n.º 3 do art.º 568.º) que determina que “As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados nos termos previstos no diploma que as regulamenta”, ou seja, a assinalada Lei nº45/2004 de 19 de Agosto.
Mas mais: quanto à forma de realização da perícia médico-legal, estatui o art.º 21.º, nº1, deste diploma, que a mesma é efectuada por um médico perito.
E o seu nº 4 preceitua que “ Dado o grau de especialização dos médicos peritos e a organização das delegações e gabinetes médico-legais do Instituto, deverá ser dada primazia, nestes serviços, aos exames singulares, ficando as perícias colegiais previstas no Código de Processo Civil reservadas para os casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada” (sublinhado nosso).
A regra nas perícias médico-legais é, portanto, a da sua realização por um só perito, não obstando a tal a circunstância de se tratar de uma segunda perícia, salvo se a primeira perícia tiver sido colegial – cfr. artº 488º, al. b) do CPC.
Aliás, a parte final do apontado nº 4 do artº 21º, da Lei nº 45/2004, confina as perícias colegais aos “casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada” – o que não ocorre no caso em análise.

Noutra vertente do recurso (a da nomeação do perito indicado pela recorrente), também o mesmo não pode proceder.

No que respeita ao número de peritos, contrariamente ao determinado no anterior CPC, (cf. art.º 590.º al.b)) não se considera necessário que na segunda perícia colegial deva exceder o número de peritos em doiso da primeira (cf. a contrario, art.º 488.º do NCPC).

Assim o que releva é a norma do art.º 468.º n.º 1 do Novo Código que prescreve que “ a perícia colegial é realizada por mais de um perito, até ao número de três.

Acresce que, como adiante se dirá, que não são aplicáveis as normas da alínea b) do n.º 1 e seguintes do art.º 468.º, pois que, no caso, não é possível a indicação dos peritos pelas partes, ou pelo juiz.
Estando em causa uma perícia médico-legal, por força da referidas Lei nº 45/2004, de natureza especial e imperativa, a sua realização é, obrigatoriamente, conferida às delegações e aos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal e levada a cabo pelos peritos designados pelos dirigentes ou coordenadores dos respectivos serviços ou, em caso de manifesta impossibilidade ou quando se afigure necessário, por entidades terceiras públicas ou privadas contratadas ou indicadas por aquele organismo (cfr. artºs 2.º e 5.º n.º 1).
É o que deflui também do consignado no dito nº 4 do artº 21º, cuja parte final contempla as situações excepcionais admitidas – não cabendo no caso presente, como acima expendido ficou.
Tal como defendido no Acórdão deste TRG de 05.06.2014, proc. 400/12.3TBVLN-A, in dgsi.pt, “As perícias médico legais, apenas não serão efectuadas por um só perito nas seguintes situações:
a) Se trate de exames a vítimas de agressão sexual, e disso houver necessidade, podem ser realizados por dois médicos peritos ou por um médico perito auxiliado por um profissional de enfermagem;
b) O juiz, em despacho fundamentado, determine que a mesma se faça em termos colegiais (nomeadamente nos casos em que a perícia exige um grau de especialização que os peritos médicos da respectiva delegação ou gabinete não possuem);
c) Finalmente, existam normas legais que preceituem, imperativamente, de forma diferente.
Todavia, e cumprirá salientar, mesmo quando admissíveis, as perícias colegiais, no âmbito da clínica médico-legal e forense, não são levadas a efeito por peritos indicados ou nomeados, nos termos do artigo 468º, do C.P.C., uma vez que tais perícias são realizadas por médicos do quadro do Instituto ou contratados nos termos da referida lei, conforme prescreve o artigo 27º, nº 1, da aludida Lei, ou, eventualmente, por docentes ou investigadores do ensino superior no âmbito de protocolos para o efeito celebrados pelo Instituto com instituições de ensino públicas ou privadas, em conformidade com o nº2, do mesmo preceito”.

A alegação da recorrente de que a colegialidade de três peritos poderia trazer um mais relevante contributo à discussão da questão médica a apurar é um argumento que pode ser utilizado em qualquer situação, não justificando a requerida colegialidade, nem por força do artigo 547º do C.P.C. (princípio da adequação formal).
Tão pouco a invocação de pretenso unanimismo escolástico ou menor grau de escrutínio, no caso de a segunda perícia ser singular, merece acolhimento, não só porque importaria demonstrá-lo, como o facto de se tratar de perícia colegial não confere por si só maior justeza, adequação e isenção ou percepção e fiabilidade probatórias, com reflexos na decisão da causa.
Também não se descortina dos autos nem foi articulado que o caso em análise contenha uma especial complexidade, que não a normal, em situações do género, tendente a aconselhar a realização de um exame pericial por três peritos.

Por último, cabe dizer, tal como plasmado no citado Acórdão deste TRG de 05.06.2014 e ainda no Acórdão da Relação do Porto, de 09/06/2009, proferido no processo nº 13492/05, www.dgsi.pt., “da circunstância das perícias médico-legais serem, por regra, efectuadas por um só perito do INML, não se nos afigura que, necessariamente, resultem, sem mais, afectados os direitos das partes”, sendo ”(…) indiscutível que, atenta a natural imparcialidade, idoneidade e competência técnica dos referidos peritos médicos, está “ab initio” garantido às partes que essa perícia, quer no que respeita à sua realização, quer no que concerne à elaboração do relatório final e respostas aos quesitos apresentados pelas partes, será, senão de excelente, pelo menos, de muito boa qualidade, tendo em consideração, além do mais que tais peritos têm, necessariamente, no seu curriculum formação específica na área da perícia médico-legal e da avaliação do dano corporal no âmbito do processo civil, cfr. artºs 27º e 28º da Lei 45/2004, de 19.08”.

Ou seja, agora numa perspectiva jurisconstitucional, as partes, incluindo a recorrente/ré, não ficam cerceadas ou diminuídas de quaisquer garantias de defesa, caso a segunda perícia seja singular.
Como ressalta a recorrida, não é pelo facto de não poderem indicar os peritos da “sua confiança” que às partes fica vedado o exercício do direito ao contraditório, podendo a ré exercer sempre e activamente o direito de contraditório através do pedido de esclarecimentos ao relatório apresentado, por deficiência, obscuridade ou contradição, bem como através da solicitação da comparência do perito na audiência de julgamento, a fim de prestar os esclarecimentos que lhe sejam pedidos.
Diga-se ainda, em abono da verdade, que, tratando-se de um perito nomeado pelo IML, desconhecido das partes, não existe qualquer restrição desproporcionada ou desigual no que tange ao direito de acção e de defesa, pois que nem a autora nem a ré fazem intervir perito “em quem deposite confiança”, sendo a avaliação por pessoa idónea, isenta, imparcial e de confiança da justiça, que avalie de forma desinteressada e independente as alterações na integridade físico-psíquica do examinando, por via do sinistro.
Em resumo, a perícia singular nos termos decididos e pelas razões expendidas não belisca ou viola o acesso ao direito da recorrente, a equidade processual e uma tutela jurisdicional efectiva, consagrados no artº 20º, nºs 1, 4 e 5, da CRP, na medida em que é assegurada à ré uma segunda peritagem, a realizar por perito médico, especializado, independente e distinto, cujo relatório está sujeito a reclamação e o qual pode ser submetido a prestar os necessários e requeridos esclarecimentos.

Não procede, assim, a apelação.

Sumariando:

I - Constitui um exame médico-legal o exame pericial realizado na pessoa de um sinistrado de acidente de viação, para avaliação do dano corporal, no âmbito de um processo civil.

II - As perícias médico-legais são efectuadas, em regra, por um único perito, sendo-o em moldes colegais apenas nos casos em que o juiz, na falta de alternativa, o determine de forma fundamentada.

III – Nas situações de perícia colegial, esta é realizada por peritos médicos do quadro do INML ou contratados ou ainda acordados em sede de serviço universitário ou de saúde público ou privado; não é efectuada por peritos indicados ou nomeados nos termos do artº 468º do CPC.

IV – A realização de segunda perícia singular levada a cabo pelo INML não infringe os princípios constitucionais de acesso ao direito, de processo equitativo e de tutela jurisdicional efectiva.


IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.


Custas pela recorrente.


Guimarães, 05.11.2015
António Sobrinho
Isabel Rocha
Miguel Baldaia